2º SEMESTRE 2024
ARGUMENTO SEÇÃO CLÍNICA
Maria Wilma S. de Faria – Diretora da Seção Clínica
Os corpos, seus restos e a experiência psicanalítica hoje!
Se no primeiro semestre foi possível retomar o que havia de específico e próprio a cada Núcleo de Investigação do Instituto, o convite para o segundo semestre coloca no horizonte a forma como é vivida a pluralidade dos corpos, marcados por todas as formas de nomeações advindas do mestre contemporâneo.
Estamos em uma época balizada pela Pulsão de Morte cujo estatuto modificado se apresenta para além de sua forma silenciosa, é também vivida de forma barulhenta nos corpos, escancarada, a céu aberto. Assistimos a uma multiplicação de formas de existir que fogem a qualquer circunscrição e que no excesso “vale tudo, vale o que quiser”. Neste novo mal estar, o individualismo reivindica o direito ao gozo, qualquer barbaridade ou estranheza torna-se passível de receber “likes”. Na era da pós-verdade sujeitos criam bolhas de certeza, impera a prevalência da sobredeterminação ao “eu sou”; “eu acredito”, “meu diagnóstico”, “meu TDAH”, “meu autismo”, “minha depressão”, “meu direito”, enfim, pérolas do Discurso da Ciência que atreladas ao Discurso Capitalista prometem uma nomeação e apaziguamento que não alivia, como bem o sabemos.
Estamos advertidos por Lacan de que o corpo é feito para gozar, porém com a ascensão do objeto a temos “a ditadura do mais-de-gozar que devasta a natureza, (…) remaneja os corpos, não apenas nos aspectos da cirurgia estética, ou da dieta – um estilo de vida anoréxica (…) ela realiza também uma intervenção muito mais profunda sobre o corpo[1]”. A relação do falasser com seu corpo é sempre acompanhada de uma estranheza, uma inadequação, apesar de o corpo estar situado no registro do imaginário, não podemos excluí-lo do simbólico e do real. Nas neuroses temos os impasses do falasser frente ao desejo e ao gozo, contudo, nem todas as queixas que abrangem o corpo se emolduram na via do sintoma. Inibição e angústia também se expressam através do corpo. O caso do pequeno Hans é paradigmático para ensinar a proximidade entre o trio: inibição, sintoma e angústia. O sintoma de Hans que tem como pivô o medo de cavalos se apresenta como uma resposta à angústia de castração, de não saber o que passava em seu corpo, além disso, ele veio apresentar uma inibição como consequência de seu sintoma, parou de sair de casa, atemorizado, com o risco de encontrar com os cavalos. Desta maneira os 3 estão entrelaçados, o sintoma pode suscitar angústia e inibição; a angústia pode gerar um sintoma e uma inibição; uma inibição pode levar à angústia e até mesmo, caso paralise totalmente o sujeito, vir a se transformar em um sintoma.
No Seminário 22 Lacan vai introduzir a inibição, o sintoma e a angústia no nó borromeano. Assim, a inibição está referida ao corpo, já que procede da incursão do imaginário no simbólico. “A inibição é pura e simplesmente a limitação de uma função. Uma inibição como tal, não tem senso de verdade”[2]. O sintoma aparece referido à intrusão do simbólico no real e este último, o real, se refere à satisfação pulsional que toca o corpo. Já na angústia, Miller, vai nos lembrar de que: “A angústia se situa em lugar diferente do medo em nosso corpo. É o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzir a nosso corpo. É muito curioso que a debilidade do falasser tenha conseguido chegar a esse ponto– até discernir que a angustia não é o medo do que quer que possa motivar o corpo. É um medo do medo[3].” Nada mais contemporâneo. Tais referências nos fornece um importante instrumento para atuarmos na clínica da atualidade. Podemos indagar como chegam os falasseres nas instituições e consultórios hoje? Trazem seu sofrimento? Há dor, perguntas, divisão, algum enigma no modo com que se apresentam? Ou há certa banalização, onde tudo aparenta ser “normal”? Estamos cada vez mais, nos deparando com sujeitos neuróticos ou não, que não se apoiam no Nome-do-Pai, o romance familiar quase que inexiste e a materialidade do sintoma não remete a nada, no limite do sentido. Onde a norma fálica e edípica desvanece, avança mais e mais o imperativo de gozo na vertente do supereu, assim, quanto mais inibição da palavra, mais desinibição dos atos.
Em seu texto “Ler um sintoma”, Miller aponta o paradoxo com que Freud se deparou: “a persistência do sintoma, depois da interpretação. O paradoxo aqui é o do resto. Há um x que resta, mais além da interpretação freudiana. (…) Em nossa prática, assistimos então à confrontação do sujeito com os restos sintomáticos. Sob o nome de restos sintomáticos, Freud esbarrou no real do sintoma, no que do sintoma é fora de sentido[4].”
Se a arte da interpretação, tal como até tempos atrás se colocava, repousando sobre o simbólico, cai por terra, contamos hoje, com a o pêndulo do imaginário e do real. Daí a fundamental importância de como os praticantes da psicanálise hoje lidam com estes restos sintomáticos, uma vez que não se trata mais de interpretar, de dar sentido, decifrar, mas antes de tudo desinflar os diagnósticos e as identificações, operar uma redução, considerando também como aliados o corte e o ato. O que uma análise visaria e como o discurso da psicanálise pode atuar? Ainda com Miller, a proposta é passar da escuta do sentido à leitura do fora de sentido: “O efeito daquilo que está em pauta no tratamento analítico não é outro senão o objeto a, do qual o próprio analista se faz o representamen, no lugar de semblante. O objeto de que se trata, não é nada além do fato do dizer como esquecido. É isso que é o objeto do que constitui a questão para cada um, Onde estou no dizer?[5]