1º SEMESTRE 2025
ARGUMENTO SEÇÃO CLÍNICA
Maria Wilma S. de Faria EBP/AMP
FALAR COM A CRIANÇA: DESDOBRAMENTOS
O instigante tema do XII ENAPOL, “Falar com a criança”, orientará a pesquisa da Seção Clínica no primeiro semestre de 2025. Esse tema toca a atualidade do sintoma pois sabemos o quanto é difícil fazer falar, confrontar com o sofrimento, tornar o sintoma um enigma. Em uma análise, o que sempre se analisa é o inconsciente infantil, o ponto de marca deixado pelo impacto de lalíngua sobre o corpo do parlêtre. Como Fernanda Otoni[1] bem afirmou no argumento do XII ENAPOL, esse assunto está presente desde o início até o término de uma análise. Segundo ela, não pretendemos outra coisa em uma análise senão fazer falar a criança que está presente nos sonhos, nas palavras que marcam cada falasser, nos traumas, na loucura de cada um, no real. A forma como o sujeito foi marcado pelos significantes advindos do Outro, a leitura que faz de tal marca e a linguagem que o habita com suas falhas e equívocos trazem as balizas de um mal-entendido sobre lalíngua. Com Lacan,[2] “a linguagem é feita de lalíngua, é uma elucubração de saber sobre lalíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com lalíngua”. E lalíngua comporta efeitos que são os afetos. Na orientação lacaniana, interessa-nos a criança no adulto, uma vez que, para a psicanálise, não há uma criança ou um adulto, mas sim o falasser. De tal sorte que a maneira pela qual ele se apresentou no desejo do pai e da mãe nos leva a ir além da sua história propriamente dita e nos convida a localizar sua relação com o saber, com o Outro, o gozo em jogo e as cenas nas quais encontrou algum ancoramento ou se encontra fixado: “Aprende-se a falar e isso deixa traços. Isso deixa traços e, desse feito, isso traz consequências que não são outras que o sinthoma, e a análise consiste em se dar conta de porque se tem esses sinthomas”.[3]
Ainda com Lacan,[4] temos o papel primordial exercido pela família na transmissão da cultura, na “repressão dos instintos”, até a aquisição da língua genuinamente materna. Em “Nota sobre a criança”,[5] o autor vai destacar a “irredutibilidade de uma transmissão” pela família conjugal que vai além da satisfação das necessidades, qual seja, a de “um desejo que não seja anônimo” e que está ligado à constituição subjetiva do falasser. Assim, a mãe, com suas faltas e com seus cuidados, teria como função inscrever um “interesse particularizado”; quanto ao pai, teria como função a “encarnação da Lei no desejo”.
Hoje, como marca de nossa época, recolhemos o que Lacan[6] anunciou há quase 60 anos ao encerrar uma jornada sobre as psicoses da criança, um problema que vislumbrava no horizonte. Trata-se da “segregação”, a qual afirma causar uma “subversão sem precedentes”. A segregação está relacionada à parceria entre o discurso da ciência e o discurso capitalista, responsáveis pela universalização e homogeneização do gozo. Objetos de consumo lançados a cada instante no mercado são tentativas de suturar qualquer divisão e incompletude. Estamos na era da “criança generalizada”, e a segregação surge como consequência. Com essa expressão Lacan aponta não apenas a posição da criança como objeto de gozo do Outro, mas também o lugar de objeto em que o homem contemporâneo se deixa colocar no entrecruzamento entre os dois discursos.
Numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes.[7]
Deste modo, o esgarçamento vivido no laço social acaba criando comunidades de gozo nas quais proliferam cada vez mais fenômenos identificatórios.
Em que pese estejamos na época da evaporação do pai, Lacan
propõe a ideia de uma cicatriz deixada por essa evaporação e que poderíamos colocar sob o título geral de segregação, apesar de acreditarmos que o universalismo, a comunicação, em nossa civilização, homogeneizaria a relação entre os homens. Se o pai do patriarcado evaporou, o sujeito tem que se haver com a relação com o pai, que continua tendo sua importância.[8]
Assim,
A psicanálise é a via aberta por Freud ao adulto que não se sente muito bem em suas roupagens, para tentar compreender esta criança que ele foi e de quem se esquece, aquela que, para além das palavras do Outro, encontrou alguma coisa inominável, que Lacan demarcou na topologia dando-lhe a letra a.[9]
O tema exposto, portanto, abre um leque de possibilidades de investigação, e ficam aqui lançados a partida e o convite para que cada um possa se engajar nos inúmeros núcleos de investigação e pesquisa que integram a Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental.