PAULA RAMOS PIMENTA
Qual o lugar dos objetos para o autista? Por que uma aparentemente banal manipulação de objetos pode trazer um efeito apaziguador para a crise autística?
Tais questões, essenciais por surgirem da experiência, guiam minha busca de formalização nesta tese. O estudo sobre as diferentes concepções do autismo e suas decorrentes propostas de tratamento, que empreendi no mestrado, promoveu a fagulha inicial deste trabalho ao chegar à solução encontrada por Temple Grandin por meio de um objeto por ela construído. Grandin, mundialmente conhecida por ser, concomitantemente, autista e Ph. D. em psicologia animal, defende publicamente a importância que tem sua “máquina de apertar”[2] para ajudá-la a manter-se mais sociável e afastada de intensas crises.
Da manipulação de objetos à construção de um especial, como recurso protetor contra uma angústia aniquiladora, vê-se que os objetos são alçados a um lugar insigne pelo autista. O estudo de seus atributos, bem como de suas funções, implica em reconhecê-los como essenciais para a orientação de tratamento dos autistas. A tese aqui defendida segue nesse caminho, acrescendo-o pela concepção de objeto proposta pela psicanálise lacaniana. O objeto passa a ter um lugar basilar para a construção do corpo, ou para supri-la quando ela não ocorreu, como sucede nos casos de autismo.
Este trabalho conduz-se por um percurso teórico que parte da noção de objeto como promotor do alheamento autista do mundo e encontra a aparente formulação paradoxal sobre a função essencial desses objetos como apoio para a interação social do autista.
A metodologia utilizada é o Estudo de Caso, sendo o campo da pesquisa composto pela clínica da autora, que atende crianças e adolescentes autistas desde 1996, e por casos da literatura psicanalítica e outras. Uma especificidade que traz riqueza à investigação psicanalítica no âmbito da universidade foi aqui posta em prática: os casos são convocados para problematizar uma questão, a ser respondida teoricamente. Em poucas passagens da tese eles se prestam a ilustrar uma elaboração teórica anteriormente proposta.
Uma observação suplementar refere-se ao termo “criança”, preferido como opção de referência ao autista. Sabe-se que há autistas adolescentes e adultos, no entanto o termo criança, generalizável no texto para todos eles, não se mostra inadequado, por se supor que o tratamento é iniciado na infância, uma vez que as manifestações sintomáticas do autismo surgem até os três anos de idade.
O tema do autismo tem estado atualmente em pauta, no Brasil e no mundo. Associações de pais de autistas procuram obter das autoridades envolvidas um retorno científico e político sobre as dificuldades de seus filhos. Coagem os cientistas a se definirem por tratamentos mais efetivos para o autismo, apoiando-os, por meio de fundações de pesquisas, a investigarem sobre suas causas. Às políticas públicas educativas e de saúde, requisitam maiores recursos para a escolarização e o tratamento dos autistas.
Uma das discussões mais áridas promovidas por essa mobilização recaiu sobre o tratamento. A intervenção comportamental, por meio dos programas ABA (Applied Behavior Analysis) e TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children), tomou a cena ao promover a aprendizagem de habilidades sociais e funcionais pelo autista, bem como orientar os pais quanto a suas atitudes frente aos filhos. A despeito da postura mecânica adquirida pelas crianças, que aprendem mas verdadeiramente não assimilam o fundamento do que lhes foi ensinado, os psiquiatras, no Brasil, são quase unânimes em indicar o tratamento comportamental para os autistas.
Na França, chegou-se à proposição legal de se interditar os psicanalistas de tratarem autistas, sob a alegação de se reconhecerem como eficazes apenas as intervenções educativas. Enquanto no Brasil apenas alguns médicos repudiam a proposta de trabalho psicanalítico com os autistas, na França esse desprezo não se mostra suficiente, uma vez que os psicanalistas têm forte presença nos aparatos públicos de tratamento. A responsabilidade social do governo sustenta tais instituições, encaminhando-lhes as crianças, restando aos pais que optarem pelas intervenções educativas seu custeio com recursos próprios. Subentende-se daí o radicalismo da requisição francesa.
Em reação, os psicanalistas de orientação lacaniana, que trazem vasta bagagem de experiência no trabalho com crianças autistas e psicóticas nessas e outras instituições confederadas com a Associação Mundial de Psicanálise[3], abriram-se à sociedade para mostrar-lhe como a psicanálise trata os autistas. Um site foi lançado[4], em fevereiro de 2012, e os psicanalistas foram para a mídia defender sua prática, salientando sua disponibilidade ao diálogo, sobretudo com os pais de autistas.
Como contraponto ao tratamento comportamental, cuja metodologia estabelece programas de ensino com base no reforçamento das respostas corretas e na extinção das incorretas, surgiram o método Floortime e o programa Son-Rise. Ambos trazem a proposta, compartilhada pela psicanálise, de aceitar o modo particular do autista se apresentar. Respeitam o tempo da criança ao definirem que deve partir dela a disposição ao contato. Ao terapeuta cabe promover um ambiente que lhe seja facilitador e aproveitar as dicas dadas pela criança — como um olhar, por exemplo — para seguir com a interação mínima estabelecida.
O tratamento psicanalítico apresenta, em termos gerais, conjunção com essa proposta, ao mesmo tempo que dela se diferencia. Sua leitura original do autismo, com base nos conceitos de Outro, corpo e gozo, encaminham o tratamento por meandros díspares.
Esta tese surge nesse contexto, posicionando-se contrária ao puro adestramento do autista, que desconsidera seu lugar de sujeito, e se propondo a aclarar a orientação psicanalítica de tratamento, o que a faz diferenciar-se, contudo, de suas congêneres psicodinâmicas.
A composição do trabalho edificou-se sobre três eixos de leitura, expostos nos três capítulos iniciais. A organização lógica dos eixos tomou como estrutura o processo da construção lacaniana do Estádio do Espelho. Os mesmos pontos dessa progressão teórica são reproduzidos na problemática autista.
Sendo assim, o tema do objeto introduz diretamente a questão da tese e a interpela. Em sua elaboração imaginária, Lacan afirma que, no mesmo golpe especular em que o Eu é constituído, compõem-se também os objetos-entidades do mundo externo. Ainda em outros termos, inicialmente, persegue a localização do que veio posteriormente a chamar de objeto a, não “especularizável”, que bordeja e recobre o corpo. Este passa a ser, portanto, o tema do capítulo seguinte. A constituição do corpo decorre da borda instituída pelo objeto a. No autismo, por não ter havido o arremate definidor do corpo, promovido pela extração do objeto, a constituição corporal evidencia-se problemática.
Mais à frente em sua teorização, Lacan faz compor com o imaginário o simbólico. A dimensão da linguagem surge posteriormente em sua elaboração, mas com uma função original de revestir simbolicamente o corpo, por meio dos significantes-mestres do Outro, fundamentando uma alienação simbólica que norteia a imaginária. O capítulo dedicado à linguagem vem demonstrar o embaraço radical do autista com a posição de enunciação, que exige a alienação do sujeito a esses significantes-mestres.
Por fim, fecha-se o ciclo com o quarto capítulo, que estabelece os rumos para o tratamento do autista, remontando novamente aos objetos como seu eixo condutor. Objetos promotores de uma borda postiça que delimita precariamente um corpo para o autista.
Desse modo, o capítulo 1 se conduz pelas características dos objetos autísticos. Define, inicialmente, a categoria nosológica do autismo, identificando a dificuldade de interação social como um de seus pilares diagnósticos. Em oposição às pessoas, demarca a relação com os objetos como sendo de especial importância para essas crianças. A última seção do capítulo parte da nociva função de alheamento dos objetos autísticos e chega à proposta de uma teoria da gradação, que implica a concepção de uma dinâmica pulsional propiciada por esses objetos.
O capítulo 2 visa ao uso dos objetos autísticos para simular a operação lacaniana de extração do objeto pulsional, da qual decorre uma localização do gozo. Para que se estabeleça um corpo, é preciso que as zonas erógenas sejam delimitadas. No autismo, as manifestações desregradas da pulsão pressupõem uma ausência da consistência corporal. Para examinar tal aspecto, percorre-se o processo da constituição do corpo, em Freud e em Lacan. Em seguida, erigem-se os índices dessa ausência no autismo. A desregulação pulsional do autista é demonstrada fenomenologicamente e embasada pela ausência de extração do objeto.
O capítulo 3 empenha-se no tratamento da linguagem no autismo. Traça, preliminarmente, as indicações de Lacan, as quais acentuam essa relação. A maneira como os autistas usam a linguagem se subdivide, essencialmente, em duas: aquela do privilégio dado ao som, à materialidade do significante, e uma outra que contempla o sentido, mas de um modo funcional, sem a prosódia típica da fala. Um terceiro tipo assumido pela linguagem do autista foge a seus costumes: em situações críticas, adota uma posição de enunciação, com o uso correto do pronome “eu”, pronunciando frases de caráter imperativo. Essa fala tem o mérito de pôr à prova a tese comportamentalista do deficit cognitivo, ao demonstrar a capacidade do autista de elaborar corretamente sua verbalização.
Para instituir a possibilidade de comunicação funcional que encerra um sentido, vê-se a conveniência do dispositivo linguístico do signo. A seção consagrada à singularidade da linguagem do autista contempla esse propósito, bem como esclarece a sua dificuldade em assumir uma posição de enunciação. Um cotejamento entre autismo e esquizofrenia arremata esse capítulo, em razão de suas semelhanças conjugadas com suas particularidades.
O quarto e último capítulo retoma a pergunta da tese sobre o lugar dos objetos na clínica do autismo, formalizando algumas orientações. Com base na identificação anterior de um movimento espontâneo do autista que procura instaurar imaginariamente a perda que não ocorreu no nível simbólico, ele contempla esse arremedo de extração do objeto acentuando as indicações apoiadas no âmbito da instância da letra. Outrossim, a evidenciação da função vital fundamentada pelos objetos autísticos complexos salienta o lugar do duplo, ocupado por esses objetos e eventualmente pelo analista. Finalmente, oficializa-se o caráter fundamental de borda do corpo que localiza o gozo, resguardado pelos objetos, circunscrevendo sua essencialidade para a clínica do autismo.
A conclusão retoma o percurso teórico da tese e relança perguntas que tocam de perto a prática clínica. A indicação, para essas crianças, de um trabalho institucional, fica premente.
Cabe justificar, desde já, o uso do termo “sujeito” para essas crianças. Por ser falada pelo Outro, mesmo que não lhe responda à altura, o termo já se mostra apropriado. Trata-se do sujeito como efeito de remissão de um significante a um outro. O fato de o autista aceder aos significantes do Outro, em momentos pontuais, indica que há um sujeito que pode ser, inclusive, tomado numa enunciação. Ademais, a presença momentânea de um olhar, habitualmente ausente, leva a se considerar sobre a existência de um efeito-sujeito, sobre o qual recai a aposta do analista.