O INFAMILIAR E O OUTRO MAU
IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com
Resumo
O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.
Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.
Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.
Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.
Coletoras – Barbara Schall
“O horror, o horror”[1]
Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.
Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).
(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).
Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.
Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.
Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.
Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.
No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,
(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).
Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que
(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).
Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que
(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).
Miller continua apontando que o caráter é, então,
(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)
A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.
Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?
Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.
Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?