O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

 

 

IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com

 

Resumo

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.

Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.

Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.

Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.

 

 

Coletoras – Barbara Schall

 

“O horror, o horror”[1]

 

Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.

Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).

(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).

Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.

Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.

Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.

Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.

No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,

(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).

Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que

(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).

Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que

(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).

Miller continua apontando que o caráter é, então,

(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)

A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.

Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?

Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.

Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?


Referências
FREUD, Sigmund (1916). “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 325.
FREUD, Sigmund (1919). O Infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Autêntica, 2019, p. 29-115.
LACAN, Jacques (1950). “Premissas a Todo Desenvolvimento Possível da Criminologia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.131.
MILLER, Jacques-Alain (2011). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 109-145.
MILLER, Jacques-Alain (2011). Quando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós, p. 74.
MILLER, Jacques-Alain (2010). “Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Opção Lacaniana Online ano 1 – número 3 – Novembro de 2010.
[1] Coronel Walter E. Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla, 1979, baseado em Heart of Darkness, de Joseph Conrad.



O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO

LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO
Psicanalista em formação (Aluna do IPSM-MG), técnica em assuntos educacionais (IFMG).
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).
Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais  (UFMG). Pedagoga (UniBH).  livsazzi@gmail.com

 

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Resumo

Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual.

Palavras-chave: Histeria, feminilidade, semblantes do feminino.

Abstract: This paper seeks to locate the disjunctions of hysteria and femininity in Anaïs Nin’s diary (1931–1932/1986). To this end, three positions will be demarcated: (I) Anaïs position towards June, by electing her as The Woman; (II) Henry Miller’s role for Anaïs as the ideal man’s semblance; (III) the diary as a symptom of the elaboration of what to do in the face of non-sexual relations. 

Keywords: Hysteria, femininity, feminine semblance.7

 

Sobre o peso do meu corpo – Barbara Schall

 

Começo servindo-me da frase “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, que Lacan (2009) utilizou para intitular um dos capítulos do Seminário 18. Ao parafraseá-lo no título do presente artigo, substituo “um homem” por “o homem” e “a psicanálise” por “o imaginário”. A escolha desse título se deu não apenas pela inspiração que me tirou da inércia para iniciar este texto, mas, sobretudo, por parecer-me adequada ao enquadramento que proponho aqui: analisar as construções de Anaïs Nin (1931–1932/1986) acerca do feminino em Henry, June e eu: diários não expurgados 1931-1932, no qual a autora utiliza a escrita como forma de elaborar o seu processo de tornar-se mulher.

Cabe salientar que, em “De um discurso que não fosse semblante”, Lacan (2009) irá situar o leitor em três capítulos diferentes, nos quais ele destaca os seguintes enunciados: “O homem e a mulher”, “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. Dando atenção a isso, busquei compreender qual dessas nomeações seria mais apropriada para demarcar essas diferenças, e, ainda, em que medida essas noções ajudam a localizar, nas descrições feitas no diário íntimo de Anaïs, o modo como ela tentará resolver o enigma do feminino, partindo da hipótese de que o seu interesse por Henry e por June se desenvolve numa construção especular de homem e mulher. Posto isso, questiono: qual homem e qual mulher ela irá buscar nesses personagens?

Em “O homem e a mulher”, Lacan (2009) vai dizer que a mulher é precisamente a hora da verdade para o homem, quer seja, diferentemente dos termos “homem” e “mulher”, que demarcam a identidade de gênero, o que define o homem é a sua relação com a mulher, e vice-versa. Se essa relação existe, existe pela via de suporte de um semblante. No capítulo intitulado “O homem e a mulher e a lógica”, Lacan (2009) aconselha estudar a carta/letra, destacando a estrutura de ficção da verdade no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, na medida em que testemunha o ponto em que a ficção tropeça e se articula com a linguagem: a acentuada deficiência de certa promoção da relação sexual. Ele diz que a relação sexual fracassa ao ser inscritível na linguagem, precisamente porque a inscrição efetiva do que seria a relação sexual teria que relacionar os dois polos “homem” e “mulher”, termos estes que, em função da lógica, marcam o impasse sexual. Já no capítulo “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, faço os seguintes destaques: é num discurso que, sendo homens e mulheres, têm que se valer como tais; só há discurso de semblante, e este só se anuncia a partir da verdade, que, como tal, só pode dizer o semblante sobre o gozo.

Neste último capítulo aqui referenciado — que, na verdade, é o capítulo IX do Livro 18 — para designar um homem e uma mulher, juntamente com a psicanálise, Lacan enuncia a histérica como aquela que conjuga a verdade de seu gozo com “o seu saber implacável de que o Outro apropriado para o causar é o falo, ou seja, um semblante” (2009, p. 143). Em sequência, Lacan enfatiza que a histérica se atribui daqueles que ela finge serem detentores desse semblante, ao menos um — o qual Lacan teve necessidade de reescrever como ahomenozum. Todavia, há um problema, visto que, como Lacan pontua, “a histérica não é uma mulher” (2009, p. 145). Desse ponto, buscará saber se a psicanálise dá acesso a uma mulher.

Não proponho, aqui, psicanalisar os diários de Anaïs Nin, mas sim investigá-los, partindo dessa definição negativa de histeria, já que a histérica não é uma mulher, tal como aponta Márcia Rosa (2019, p. 76): “tornar-se mulher implica ter atravessado a histeria”, e acrescenta: “Há, portanto, uma disjunção entre os dois campos: da histeria e da feminilidade”.

Considerando tal distinção, desenvolverei este trabalho buscando localizar as disjunções da histeria e da feminidade nas descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin, correspondente aos anos de 1931-1932. O enredo, embora não seja o motivo da análise, permite a organização de três posicionamentos. Estes, sim, motivam a presente investigação, quais sejam: (I) a posição de Anaïs diante de June ao elegê-la, em suas palavras, “a única mulher que já correspondeu às exigências de minha imaginação”; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs quando ela diz sobre o casal: “Eles dois fazem parte de mim: a mulher que age como Henry e a mulher que sonha em agir como June” (1986, p. 91); e (III) o diário personificado como o seu fiel confidente, o sintoma de Anaïs: “O diário é produto de minha doença, talvez uma acentuação e um exagero dela” (p. 136) — é nele que Anaïs elabora suas descobertas e desordens em relação à sexualidade, é por meio dele que vai se dando conta do impossível da linguagem e do que fazer diante da não relação.

Quanto ao primeiro posicionamento, recorro ao clássico caso de Freud: “Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumava elogiar seu ‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado a um amante do que uma rival derrotada” (2006, p. 65, grifos do autor). Em paralelo, cito Anaïs ao referir-se a June: “Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, a esposa de Henry” (1986, p. 18). Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan (1998) vai constatar, como o próprio Freud reconheceu, que, durante muito tempo, não pôde deparar com essa tendência homossexual, tão constante nas histéricas, justamente pelo preconceito em considerar a primazia do personagem paterno.

Marie-Hélène Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro”, explica que a homossexualidade é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso Dora e da histeria em geral, sob a forma de tendência inconsciente não culminada num ato sexual. O texto de Brousse contribui para a localização desse elemento-chave do caso Dora: “O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher” (2015, p. 3).

Esse elemento também pode ser destacado no interesse de Anaïs por June e em suas tentativas de vincular os semblantes a algum significante de difícil apreensão. Por não ter o falo, ela busca vincular-se àquilo que ela crê que o possua, a posição masculina: “No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros” (NIN, 1986, p. 17).

Anaïs percebia que “o eu de June criado nos outros” nem sempre correspondia a sua June imaginária. Por exemplo, ao avistar June caminhando em sua direção, ela indaga em seu diário: “O homem no American Express não vê a maravilha que ela é?” (NIN, 1986, p. 20). Fatos como esse suscitaram-na a escrever: “Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando a multidão e sabendo que nenhuma June apareceria porque June era um produto de minha imaginação” (Ibid., p. 20).

Em “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998) vai dizer que, tal como o amor cortês, que se gaba de ser quem dá aquilo que não tem, “é exatamente isso que a homossexual se esmera em fazer no tocante àquilo que lhe falta”. A escolha homossexual na mulher não é uma escolha que elege um objeto incestuoso às custas do seu sexo, mas sim um impasse diante do inaceitável de que “esse objeto só assuma seu sexo às custas da castração”. Ele prossegue: “Em todas as formas, mesmo inconscientes, é sobre a feminilidade que recai o interesse supremo” (LACAN, 1998, p. 744).

Esse interesse supremo pela feminilidade na histeria é sintetizado por Brousse (2015), no caso Dora, pelo processo de identificação estabelecido por Dora ao Sr. K ou ao seu pai:

“A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma” (Brousse, 2015, p. 3, grifos meus).

Embasada nas inversões dialéticas expostas por Freud (2006) no caso Dora, destacadas e desenvolvidas em “Intervenção sobre a transferência”, em Escritos, por Lacan (1998), bem como nas contribuições de Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina…”, e de Rosa (2019), sobre “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”, posso afirmar, a partir do diário de Anaïs Nin, que há, no registro escrito da diarista, o enredo de uma escolha amorosa homossexual orientada para além do Édipo, quer seja, orientada pelo modo enigmático que a feminilidade se encarna para uma outra.

Tanto Dora quanto Anaïs colocam, respectivamente, o Sr. K e Henry como testas de ferro do desejo feminino. Assim como Dora, de acordo com Freud, “invejava o pai pelo amor da Sra. K e que não perdoava à mulher amada a desilusão que esta lhe causara” (2016, p. 66), Anaïs indaga em seus diários: “Será que amo Henry porque me identifico com ele e com o seu amor e posse de June?” (1986, p. 90). No entanto, ao que toca a identificação, diferentemente de Dora, que posicionava K apenas como um intermediário, e não como o homem com o qual ela vai sustentar um relacionamento como amante, Anaïs elege Henry o semblante do homem ideal e interessa-se por investigar como ser mulher para esse homem. Para isso, tenta assumir especularmente a posição masculina e, como um homem, investigar aquilo que aquela mulher tem e que interessaria a esse homem: “a amaria por sua beleza enquanto ela poderia me amar como se ama um homem, por seu talento, seu desempenho, seu caráter” (NIN, 1986, p. 90-91). Trata-se, aqui, de localizar o segundo posicionamento entre a histeria e a feminilidade de Nin.

Por fim, o último posicionamento de Anaïs. Ainda servindo das aproximações e diferenças com o caso Dora, esta, enquanto paciente de Freud, apresenta uma complexidade de sintomas no corpo que o próprio médico vai correlacionar como causados pelas desordens da vida psicossocial e “expressão dos seus mais secretos desejos recalcados” (FREUD, 2016, p. 19). Não pude localizar tais sintomas relacionados ao corpo nessa parte do diário sobre Henry e June, correspondente aos anos de 1931-1932. Ao que parece, os sintomas de Anaïs são seus próprios escritos. É no diário que Anaïs Nin elabora suas questões sobre a sexualidade e sobre o que fazer com essa June, sua June, pela qual ela nutria, em vão, a esperança de ver desmascarada. O que há é apenas uma June, uma June pelo que ela é, por si mesma, e, consequentemente, vê instaurada a falta em Henry e em si própria:

“Ontem à noite eu chorei. Chorei porque o processo pelo qual me tornei mulher foi doloroso. Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de uma criança. Chorei porque meus olhos estavam abertos para a realidade — para o egoísmo de Henry, para o amor de June pelo poder, para minha criatividade insaciável que deve preocupar-se com outras pessoas e não consegue ser suficiente a si mesma” (NIN, 1986, p. 177).

Paralelamente a essas descobertas, Anaïs vai arranjando, pela escrita, não apenas sua impotência diante de si mesma, decorrente da castração, mas, principalmente, vai tentando fazer com as palavras, intuitivamente, alguma amarração para o seu gozo.


Referências 
BROUSSE. M-H.“A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro” 2015. Trad. Márcia Bandeira. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/08/brousse.pdf Acesso em: 18, set. 2019.
Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2016.
LACAN, J.  (1951). “Intervenção sobre a transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
NIN, A. Henry, June e eu. Diários não expurgados 1931-1932. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986.
ROSA, M. “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”. Por onde andarão as histéricas de outrora. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.

 




UM MÍSTICO PARA A NOÇÃO DE GOZO FEMININO

RODRIGO SANTOS DA MATTA MACHADO
rsmattamachado@gmail.com
Psicólogo, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, diretor de clínica credenciada ao Detran, psicólogo clínico e aluno do módulo III do curso do IPSM–MG

Resumo: São João da Cruz apareceu em meio à psicanálise lacaniana como um instrumento de auxílio na transmissão do saber psicanalítico. Surge, portanto, nesse contexto, como um exemplo de místico prestigiado por Lacan, que o tinha como uma pessoa dotada. Investigaram-se a obra e biografias de São João da Cruz, buscando conhecer algumas importantes facetas da sua vida para melhor aplicação desse exemplo nas elaborações da tábua da sexuação. As facetas poética e mística de São João da Cruz foram úteis em importantes transmissões do psicanalista.

Palavras-chave: mística, gozo não-todo, poesia, Lacan, São João da Cruz.

A mystic for the notion of feminine enjoyment

Abstract: Saint John of the Cross has appeared within Lacanian psychoanalysis as a helpful resource in the transmission of the psychoanalytic knowledge. Saint John of the Cross emerges in such context as an example of a mystic esteemed by Lacan, who considered him to be a gifted person. The work of Saint John of the Cross, as well as a number of biographies written on him were examined, in an attempt to comprehend some of the most relevant facets of his life, and in the hopes of attaining a better application of such example in the elaborations of the sexuation table. The poetic and the mystical facets of Saint John of the Cross were useful in important teachings of the psychoanalyst.

Keywords: mysticism, not-all jouissance, poetry, Lacan, Saint John of the Cross.

 

Maltratado e abandonado, portando apenas papel e tinta no cárcere do mosteiro Carmelita Calçado, em Toledo, Espanha, São João da Cruz (doravante SJC) dá voz a sua mística e a sua poética. Esse importante santo da Igreja Católica, amplamente conhecido no contexto religioso, suscitou o interesse de Jaques Lacan em meio às suas elaborações psicanalíticas.

Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, no decorrer das formulações sobre o gozo não-todo fálico e sobre o lado feminino na tábua da sexuação, Lacan (1972-73/2008) menciona SJC explicitamente. O santo foi tomado, pelo psicanalista, como um representante da mística que teria algo importante a nos informar. No entanto, justamente por SJC se tratar de um homem, essa colocação teve o caráter de exceção, pois as mais comuns representantes da mística eram as mulheres, mas, como o próprio psicanalista francês indicou, SJC só ocupou esse lugar por estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha)[1].

Em decorrência da importância dada por Lacan ao místico, recorri à biografia e à obra de SJC em busca do motivo pelo qual este se tornou um exemplo precioso, principalmente na exploração da noção de gozo não-todo.

 

Breve biografia de SJC

João de Yepes nasceu em 1542, na cidade de Fontiveros, Espanha. Em sua primeira infância, viveu em extrema dificuldade devido à pobreza familiar e ao falecimento do pai e de um irmão mais velho. Aos dez anos de idade, ingressou em um colégio de ofícios e, depois, tornou-se coroinha em um mosteiro. Aos quatorze, entrou em um hospital como enfermeiro e recolhedor de esmolas e, em consequência, pôde frequentar aulas de Filosofia e Gramática. Aos 21 anos, ingressou para a ordem dos Carmelitas.

No momento em que estava insatisfeito com o pouco rigor das diretrizes espirituais de sua ordem, o frei teve um encontro com a carmelita Madre Teresa de Jesus (mais tarde, canonizada Santa Teresa de Ávila), que lhe apresentou um projeto de reforma do Carmelo que propunha maior rigor nas diretrizes espirituais, como ele desejava. Assim, em 1568, nasceu um novo braço da ordem, os Carmelitas Descalços masculino, e também João da Cruz — nome adotado por ele.

Poucos anos após o início da reforma, Frei João se tornou alvo de perseguição pelos Carmelitas Calçados contrários ao movimento, sendo sequestrado e encarcerado por duas vezes. A primeira, em 1575, foi curta, porém violenta, gerando sequelas físicas permanentes. A segunda, em 1577, durou oito meses e foi marcada por torturas corporais e mentais. Embora as condições do cárcere tivessem sido as piores possíveis, foi nesse período que surgiram as facetas mais importantes desse homem: a mística e a poética. Em agosto de 1578, ele conseguiu fugir e retomou sua função como reformador. SJC faleceu em 1591, aos 49 anos.

Em uma vida de superação, SJC alcançou destaque como religioso e místico, o que provavelmente contribuiu para o interesse de Lacan. Além desse destaque, a faceta de escritor do santo certamente fomentou a valorização desse homem por Lacan. O psicanalista, em uma comparação de SJC com Schreber, demonstrou um reconhecimento à poesia do místico:

 

“Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber.” (LACAN, 1955-56/1988, p. 96).

 

A poesia, por proporcionar uma entrada do leitor em uma “dimensão nova da experiência”, ganhou a função de avalista de autenticidade. O processo de criação da poesia pelo “sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica como o mundo”, presente em SJC, foi, para Lacan, o ponto marcante de distinção entre a escrita do místico e a de Schreber, que não teria o mesmo alcance. Assim, me lançarei a conhecer melhor a faceta poética de SJC.

 

A arte poética de São João da Cruz

 

O poeta SJC parece ter surgido, expressivamente, dentro do cárcere, em Toledo. Sua arte poética pareceu socorrer o frei das angústias, do sofrimento e do abandono vivenciados nessa ocasião. Ele “não aspirava criar uma obra que perdurasse ou que tivesse ecos mais amplos. Em resumo, não vivia para a arte, valia-se dela” (JIMÉNEZ, 1991, p. 16).

Nas poesias de SJC, é possível encontrar alguns temas e ideias recorrentes. A relação amorosa (amante-amado), a experiência de êxtase, a abnegação, o abandono, o gozo e a dor são frequentemente abordados, estando SJC, em inúmeras passagens, como sujeito da oração em uma posição feminina. Essa posição pode ser observada na seguinte estrofe:

 

“Ali me deu peito

e me ensinou ciência saborosa;

e dei-me de tal jeito,

a mim todo, ditosa:

ali lhe prometi ser sua esposa.”

(CRUZ, 1577-1585/1991, p. 43)

 

Os escritos poéticos ganham ainda mais ênfase ao seguirmos a tese apresentada por Jean Baruzi (1924/2001), que indicou que o melhor meio de aproximação da mística de SJC seria a sua poesia. Ele afirmou que o que há de mais original na experiência mística do santo se traduziu em seus primeiros cantos. Inclusive, Baruzi defendeu que SJC, por influência doutrinal, alterou seus escritos e poemas em um segundo momento, como se quisesse ocultar algo que, na experiência original, estaria fora de alguns preceitos religiosos que seguia. As expressões místicas contidas na sua poética seriam perturbadoras para a ordem Carmelita.

A intimidade da experiência mística de SJC com sua criação poética em um eu lírico feminino provavelmente sustentou o uso que Lacan fez de seu exemplo. Assim, vi também a necessidade de explorar as singularidades da mística SJC, para que tivesse maior compreensão sobre a noção pela qual estou transitando aqui.

 

A mística de São João da Cruz

 

Um místico aspira a uma relação outra, além da comum relação entre os seres falantes. Levando em consideração as concepções mais usuais, o místico é aquele que leva sua vida centrado na experiência de procura por um caminho para o Absoluto. SJC afirmava que “uma alma começa a servir a Deus até chegar ao último estado de perfeição[2], que é o matrimônio espiritual” (CRUZ, 1577-91/2002, p. 592).

A mística abarcaria toda uma maneira singular de viver para o alcance da união com Deus. Lacan, ao afirmar que “os místicos tentaram, por seu caminho, chegar à relação do gozo com o Um” (1968-69/2008, pp. 133-134), pareceu resumir teoricamente aquilo que ele entendeu sobre a experiência mística. A noção do Um, nesse contexto, ocupou o lugar que o Absoluto ou a Divindade ocupam para o místico na sua tentativa de união.

SJC é também conhecido como Doutor do tudo e nada[3], nome que indica a centralidade do seu ensinamento sobre o caminho que deve ser percorrido por aqueles que desejam o encontro com o divino. De modo sintético, Deus seria o tudo, o ser completo, aquele que sustenta toda a existência, e o ser humano seria a criatura que, para ter acesso ao tudo, deveria se colocar como nada, sendo a radicalidade do ato de abnegação o caminho principal para o encontro divino.

No mesmo sentido, Lacan indicou “que a porta de entrada da experiência mística seja muito precisamente a extinção completa, radical até suas últimas raízes, de todas as paixões do amor próprio” (1954/2008, p. 69). Essa abnegação possibilitaria a união do místico com a divindade e, consequentemente, permitiria a experiência de êxtase. Sobre o tema, afirmou SJC: “Em verdade, chegando ao estado da união divina, a alma goza de grande sossego em suas potências naturais e tem adormecido os seus ímpetos e ânsias sensíveis na parte espiritual” (1577-91/2002, p. 186).

Os momentos de êxtase são narrados de forma impactante, e o deleite vivido durante o contato com o transcendente é bastante intenso. Apesar do esforço em descrever esses encontros, pouco pode ser falado sobre eles: “Não nos é permitido conhecer as formas mais elevadas de experiência porque são muito inefáveis para poderem ser compreendidas pela inteligência humana” (BORRIELLO et al., 1998/2003, p. 407).

O êxtase parece guardar um mistério acessível apenas para aqueles que procuraram o caminho místico e alcançaram essa experiência de maneira plena. Muitas vezes os místicos lançam mão do recurso poético para tentar transmitir a experiência. SJC apresentou canções em íntima ligação com a união divina e afirmou que elas não poderiam ser totalmente desvendadas, pois seriam uma inspiração direta de Deus durante seus momentos de intimidade com Ele:

 

“Seria, ao contrário, ignorância supor que as expressões amorosas de inteligência mística, como são as Canções, possam ser explicadas com clareza por meio de palavras…

Essas Canções, tendo sido compostas em amor de abundante inteligência mística, não poderão ser explicadas completamente”. (CRUZ, 1577-91/2002, pp. 575-576).

 

Lacan também pareceu perceber a dificuldade no relato do êxtase ao afirmar que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (LACAN, 1972-73/2008, p. 82).

 

A mística e o gozo feminino

 

No Seminário 20, a noção de gozo da mulher entrelaça-se de forma relevante aos exemplos dos místicos em suas manifestações de êxtase. As narrativas desses efeitos levaram Lacan a entendê-los como um tipo de gozo gozo da mulher ou gozo não-todo.

Importa esclarecer sinteticamente que o gozo não-todo, no meu entendimento, é aquele que escapa/nega a ordem fálica. Já o gozo fálico pode ser entendido como “atributo essencial da posição masculina —, concebido como um regime libidinal normatizado e, portanto, submetido aos limites estritos do significante” (SANTIAGO, 2013, p. 90).

Lacan descreveu explicitamente que o místico, em seu êxtase, experimenta um modo próprio de gozo: “Para a Hadewijch em questão, é como para santa Tereza — basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida” (1972-73/2008, p. 82). A utilização dos exemplos místicos em meio às elaborações sobre a noção de gozo não-todo cumpre um papel elucidativo e de visualização. O psicanalista diferenciou esse gozo de outras possíveis interpretações e assim expôs, de modo sintético, todo seu entendimento sobre essa vivência da mística: “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (1972-1973/2008, p. 82). A mística, naquilo que ela tem de indizível e naquilo que a aproxima de uma vivência de um gozo feminino, articula-se definitivamente com noções concernentes ao plano do real. A utilização explícita do exemplo de SJC nas elaborações sobre a tábua da sexuação acrescenta ainda mais conteúdo para avançar na compreensão dessas articulações.

 

São João da Cruz e a tábua da sexuação

 

Na referência a SJC no Seminário 20, Lacan o colocou em lugar de destaque por ser um exemplo precioso para a argumentação teórica que vinha desenvolvendo. Referindo-se à mística, Lacan afirmou:

 

“É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais freqüentemente mulheres, ou bem gente dotada como são João da Cruz – porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do xФx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entrevêem, eles experimentam a idéia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos”. (1972-73/2008, p. 81-82).

 

SJC era, para Lacan, um autêntico místico. Além disso, para esse psicanalista, a mística estava intimamente ligada ao gozo não-todo. Por isso, SJC, inevitavelmente, ocuparia o lado da mulher na tábua da sexuação. Essa tábua, tendo uma divisão descritiva entre o lado do homem e o da mulher, foi uma maneira de exibir o modo como os sujeitos se colocam em sua relação com o Outro e também com o gozo envolvido nos dois lugares. A fiança da vivência mística estaria no gozo feminino, mas o referido místico foi o exemplo maior de que não se trata de ser uma mulher, mas de uma posição de gozo em sua relação com o Outro. Embora essa ocupação no lado da mulher não seja para qualquer um, ela foi condicionada ao fato de SJC estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha).

É possível concluir que o uso de SJC por Lacan, na elaboração sobre o lado da mulher na tábua da sexuação, ganha relevância, em especial, em razão da possibilidade de acesso à experiência de êxtase do santo por meio de sua poesia. Verifico, ainda, que a proximidade existente entre essa experiência e o entendimento lacaniano sobre o gozo não-todo é notada no uso espontâneo e constante pelo místico do eu lírico na posição feminina.

 


 

Referências
BARUZI, J. (1924) San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística. Junta de Castilla y León: Consejería de Educación y Cultura, 2001.
BORRIELLO, L.; CARUANA, E.; DEL GENIO, M.; SUFFI, N. (Dirs) (1998). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003.
CRUZ, J. (1577-85) São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
CRUZ, J. (1577-91). São João da Cruz: obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
JIMÉNEZ, F. Prefácio. CRUZ, J. São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
LACAN, J. (1954/2008) “Do símbolo e de sua função religiosa”. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e a verdade na neurose. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1968-69) O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. (1972-73) Le séminaire de Jaques Lacan, livre XX: encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SANTIAGO, J. (2013) “A plasticidade da sexuação feminina”. Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, n. 65, 2013, p. 89-92.

[1] No original: “gens dou és” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70). Optei por utilizar a versão em francês e traduzi-la à minha maneira, pois a tradução “bem gente dotada” (LACAN, 1972-73/2008, p. 81) não é uma expressão usual de nossa língua.
[2] O estado de perfeição refere-se ao estado de união divina.
[3] Essa nomeação de SJC é o subtítulo de uma das biografias consultadas neste trabalho.



Almanaque On-line Março/2020 V. 14 – Nº 24

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