Resumo
A partir das noções de isolamento, estabelecidas por La Sagna (2017), e de desordem mais íntima no sentimento de vida do sujeito, trazida por Lacan (1958), este trabalho discute o estado de solidão como possível índice de desencadeamento nas psicoses. Também estabelece a diferenciação entre a solidão como fenômeno e como ponto de estrutura do ser na linguagem, indicando-a como uma forma de segregação do ser do sujeito e, nas psicoses, como índice de ruptura com o campo do Outro. Encontra como resultados a correlação da solidão nas psicoses à melancolia, bem como ponto de estabilização em alguns casos de psicose.
Palavras-chave: psicoses, solidão, melancolia, segregação.
Abstract
From the notion of isolation established by La Sagna (2017) and of a more intimate disorder in the subject’s feeling of life brought by Lacan (1958), this paper discusses the states of isolation and loneliness as possible indexes of triggering in psychoses. It also establishes the differentiation between loneliness as a phenomenon and as a point of structure of being in language, indicating it as a kind of segregation of the subject’s being and, in psychoses, as an index of rupture with the Other’s field. It finds as a result the correlation of loneliness in psychosis to melancholy, as well as stabilization point in some cases of psychosis.
Keywords: psychoses, loneliness, melancholy, segregation.
Foto do Museu Mineiro
FERNANDA DO VALLE
Aluna do IPSM-MG (2017/19)
Solidão e isolamento são significantes que recolhemos da experiência clínica cotidiana. Pacientes relatam sentimentos de estarem sozinhos, vivendo vidas infelizes em função de serem deixados de fora dos laços sociais ou submetidos a um exílio do qual não conseguem escapar.
Contudo, para a psicanálise, não é propriamente das pessoas que o sujeito se isola e nem é por isolar-se que se torna solitário. Para Philippe La Sagna (2017), por exemplo, isolamento e solidão indicam formas com que o simbólico se coloca para cada sujeito e como cada um se enlaça a ele. Ele propõe o isolamento como correlato a um mais-de-gozar contemporâneo, indicativo do que denomina “suave segregação” (p. 74), uma forma individualista e consentida de nos mantermos separados de todos. Ao fazer ver que o isolamento implica exclusão do Outro, sua proposição nos permite ler que, para além da estrutura clínica, “isolar-se é evitar a solidão”. Em uma solução precária frente ao muro da linguagem, que dificulta o estabelecimento dos laços sociais, o sujeito busca o isolamento recorrendo a um objeto que o estimule — uma droga, uma fantasia ou um delírio —, “sem que se tenha a mínima realização da solidão”. A seu turno, a solidão seria o testemunho de que somos seres de fala e de linguagem e uma tentativa de dar sentido ao ser de falta.
Sendo assim, no sentido de um afastamento ou mesmo de uma ruptura com o laço e o convívio sociais, podemos recorrer à proposição de existência de uma ordem fenomênica para o isolamento e para a solidão. Sobre esta, podemos também recorrer à proposição de uma ordem estrutural. Tal ordem se torna índice de inserção e desinserção do sujeito no Outro da linguagem. Trata-se de uma questão válida tanto para a neurose quanto para a psicose, estrutura que se tornou um paradigma clínico para Lacan, uma vez privilegiada a relação do sujeito com o real e com o gozo no decorrer de seu ensino.
Em tempos do Outro que não existe e partindo da premissa que o psicótico está inserido na linguagem, porém está fora do discurso, nos interrogamos: a partir de quais balizas conceituais podemos pensar a solidão, face à frágil relação do sujeito psicótico com o simbólico? Se a solidão em Schreber nos indica o tempo de seu desencadeamento, como pensá-la em casos em que ela se torna um aparente resquício desse processo?
Solidão estrutural
A solidão não é um conceito estabelecido ou investigado por Lacan dentro de sua doutrina. Contudo, em O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, tempo da primeira clínica, vemos Lacan abordá-la a partir dos heróis trágicos de Sófocles, trazendo a história de Antígona como um paradigma. Antígona se lança a uma ruptura social radical em que a solidão se apresenta como “uma morte em vida”. Para Lacan, os heróis sofoclianos sempre participam do seu isolamento, havendo uma espécie de fora dos limites que os mantém “arrancados por algum lado da estrutura” (1960/1997, p. 328), bem como confrontados com uma fixidez que “indica a posição do sujeito numa zona em que a morte invade a vida” (LACAN, 1960/1988, p. 344). Nessa morte em vida, tal como indica Lacan, o ser está só, está “na-finda-linha” de uma ausência de representação da cadeia significante, numa suspensão da relação do seu de sujeito à linguagem.
A nosso ver, se estabelece uma suspensão do ser do sujeito que o coloca em um deslizamento metonímico em relação ao Outro. O que se recolhe é uma busca incessante pelo sentido do ser, numa relação iminente do sujeito com a vertente simbólica da linguagem. Trata-se de uma falha a ser recoberta pelo sentido.
No Seminário 20, tempo da segunda clínica e de estabelecimento do estatuto do gozo e da verdade inconsciente, Lacan situa a solidão como algo inerente àquilo que fala, àquilo que não pode se escrever. Ao afirmar que o eu não é um ser, mas apenas suposto a quem fala [1], Lacan afirma que a solidão se coloca do lado do ser em relação ao saber inconsciente. Como índice da relação do sujeito com o significante, ela é aquilo que “não pode se escrever”, de um furo no real que o simbólico não recobre de todo. A solidão é estabelecida como um traço de gozo daquilo que, referido ao saber inconsciente, não se escreve. Lacan indica, nessas formulações, que o sujeito está sempre isolado e exilado de si mesmo. Na relação entre o sujeito e o Outro, há sempre um objeto estabelecido como resto, como traço de gozo — exílio do sujeito do significante e interrupção da relação do eu ao seu ser e, portanto, em relação ao Outro. O UM, segundo Lacan, indica o gozo extraído da linguagem, sendo, ao mesmo tempo, o representante da solidão do ser do sujeito.
Seguindo Lacan no Seminário 20, Marcelo Veras afirma que é na condição de falasser que se “experimenta a linguagem em seu limite último, exilada de toda e qualquer significação” (VERAS, 2017, p. 91) e que tal experiência se refere a um núcleo de solidão e incomunicabilidade sobre o qual se funda o ser a partir dos restos pulsionais que incidem sobre seu corpo.
De acordo com Heloísa Prado Teles (2019), a experiência da solidão somente se constitui a partir da articulação de uma presença ou ausência do Outro simbólico, indicando a existência de uma questão bascular do sujeito em relação à separação do desejo do Outro. Dessa forma, para a autora, em relação às psicoses, a solidão se constitui como uma “dor de existir”, ao passo que nas neuroses ela seria o indicativo das paixões do ser. Seguindo as indicações de Miquel Bassols (2009), Teles (2009 s/p) afirma que “na psicose a solidão está mais referida ao silêncio das pulsões ou à experiência de uma solidão extrema” e nos remete à experiência de abandono por Deus, relatada por Schreber.
Solidão, forclusão e disjunção nas psicoses
A propósito do desencadeamento da psicose de Schreber, Lacan (1958) indica, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que o momento do anúncio do assassinato de sua alma corresponde a uma ordem simbólica cuja afirmação primordial é percebida de forma original a partir da inscrição de um signo. A Verwerfung desse signo resulta na não inscrição do significante fálico. Lacan nos esclarece que a marca da forclusão é um furo feito no lugar da significação fálica, o qual se estabelece em razão de uma carência de um efeito metafórico. Nas psicoses, seu efeito é uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, em função da exclusão do sujeito para fora do campo do Outro.
No início do adoecimento de Schreber, diante da solidão do impossível de significar o furo da forclusão, é possível verificar um ponto de recuo dos laços sociais e de isolamento do sujeito nos fenômenos elementares que o desencadeamento produz. Sérgio Laia (2000), a partir dos pressupostos estabelecidos por Lacan no escrito de 1958, elucida que, nas psicoses, cujas irrupções se fazem através de uma ruptura do simbólico, provém um desastre crescente do imaginário. Trata-se, nos dizeres de Laia, de uma desamarração, ou desalinhavo, no ponto denominado por Lacan como ponto de capitonê. A retroação do eixo metafórico se mostra incapaz de dar ou de manter a estabilidade de sentido ao conjunto de significantes. Logo, o enigma do sentido produzido pela forclusão pontual de um significante ordenador é obturado pela produção de fenômenos que organizam a realidade do sujeito de forma particular.
Exilado de um significante que faça ancoragem na junção significante e reordene seu sentimento de vida, Schreber está só. Restam-lhe os fenômenos elementares, a partir dos quais ele tentará ordenar o sentido que lhe escapa por meio da captura de um deslizamento metonímico particular, e a perturbação em seu ser, denominada por Lacan de “desordem na junção mais íntima no sentimento de vida”. Tal sentimento é o que exprime o ser do sujeito. Como ponto de exílio do ser do sujeito em relação ao Outro, a solidão na psicose diz respeito à disjunção que afeta o sentimento de vida do sujeito.
Em 1998, em A convenção de Antibes, Jacques Alain-Miller retorna a essa noção da “junção mais íntima ao sentimento de vida” para dizer de quadros de psicose em que tal desordem, apesar de presente, não chega a produzir fenômenos elementares. Miller indica que a noção de sentimento de vida não somente está colocada para todos os sujeitos em todas as estruturas, como também todos são passíveis de experimentar alguma desordem nesse sentimento, de forma mais ou menos intensa, com ou sem a presença de fenômenos elementares.
Solidão e melancolia
“Minha solidão é não ter uma linguagem com a qual eu posso dizer quem eu sou”. “Eu sou um nada! Sou um lixo! Sou como Sísifo, condenado a rolar a mesma pedra”. “Acho que nunca fui normal. Eu gosto de falar com as pessoas. Prefiro ficar sozinha”.
Essas passagens, escutadas cotidianamente em nossa prática clínica, revelam que a questão da melancolia se apresenta para alguns pacientes, seja em sua versão de estado melancólico, seja como uma posição melancólica do ser, como indicativos, segundo Sophie Marret-Maleval, da presença de uma desordem na junção mais íntima no sentimento de vida. Em sua investigação em torno dessa noção, Marret-Maleval a considera um ponto de forclusão que faz do humor “a base contínua da existência subjetiva” (2017, s/p). Portanto, a autora propõe certa associação entre tal desordem, a melancolia e a solidão, e, para reforçar sua tese, aponta que, ao aproximar a forclusão das variações de humor, Miller faz dessas variações um ponto de referência fundamental da desordem na junção mais íntima do sentimento de vida. Em consequência, ele as direciona à concepção de um fundo melancólico nas psicoses.
Tal posicionamento de Marret-Maleval pode ser entendido também a partir do que Teles (2019) postula a respeito da solidão nas psicoses como uma dor de existir. Nas psicoses, essa dor pertinente à desordem do sentimento de vida adquire os tons da melancolia, muitas vezes impeditivos do engajamento do sujeito ao laço social e de difícil manejo clínico. Em situações assim, o sujeito não só se retira do convívio social como também presentifica a exclusão de seu ser do Outro em uma suave segregação (La Sagna, 2017), manifestada sob a forma do silêncio, do isolamento ou de uma reinvindicação melancólica. Aqui, a solidão aparece como um ponto da linguagem exilado de significação, que empurra o sujeito a uma espécie de ritornelo no que toca às tentativas de significação, lá onde o simbólico não se inscreve e o real se apresenta como um furo. Verifica-se o empuxo do ser a uma morte em vida, a um estar “na-finda-linha”, tal como nos indica Lacan em relação a algo que marca uma ausência de representação ou, nos termos de Laia, um vazio correlato à ausência de ligação entre um significante e seu referente, própria à forclusão e à forclusão generalizada. Se, para Schreber, a solidão aparece como índice do desencadeamento, para alguns pacientes, ela se mostra como um possível ponto de ancoragem, apesar dos embaraços que lhes causam tal exílio. Acreditamos que as psicoses (desencadeada ou ordinária) nos apresentam essa experiência de forma radical.
Sendo assim, a solidão pode ser considerada a partir tanto da desordem que atinge a junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito, no momento de um desencadeamento, quanto como seu aparente ponto de ancoragem, caso o analista consinta com a construção de uma forma do ser que inclua, na experiência analítica do paciente, o estar a sós com seu furo e com um bordejamento que lhe seja possível.
[1] Referência também encontrada na aula de 20 de maio de 1959, do Seminário 6: o Desejo e sua interpretação (1959), em que Lacan afirma que o ser só pode ser encontrado em intervalos, a partir do corte que a linguagem opera no real. A partir dessa referência, Marcos André Vieira (1998) recorta três ideias mais ampliadas a respeito da noção do ser em Lacan, quer sejam: o ser só existe na linguagem; o ser é resultado da operação da linguagem no real; o ser é o simbólico no real.