Resumo
O presente trabalho apresenta o relato de experiência no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. O objetivo desta escrita é mostrar, através do fragmento de um caso acompanhado pelo Programa, a importância da prática da psicanálise nas Instituições, bem como os princípios que norteiam nosso trabalho.
Palavras-chave: Psicanálise Aplicada, Instituição.
Abstract
This paper presents the report of an experience in the Judicial Patient Comprehensive Care Program (PAI-PJ) of the Minas Gerais Court of Justice, a Lacanian orientation and comprehensive care program to assist judicial patients. The purpose of this writing is to show through fragments of two cases accompanied by the Program, the importance of the practice of psychoanalysis in the institutions; its guiding principles that guide our work.
Keywords: Applied Psychoanalysis, Institution.
Foto do Museu Mineiro
KELEN CRISTINA SILVA
Aluna do IPSM-MG (2017/2019)
O PAI-PJ é pioneiro no Brasil e no exterior no atendimento aos infratores portadores de sofrimento mental e tem como objetivo conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. Segundo Fernanda Otoni de Barros-Brisset, coordenadora e idealizadora do Programa,
“O PAI-PJ é um lugar de interface, afetado por diversos campos, é um lugar mediador quando realiza a mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social, caracterizado como um programa pioneiro no campo da Justiça, na medida em que se diferencia radicalmente das práticas tradicionalmente instituídas para com os ‘loucos infratores’. Tem sido possível um outro olhar a estes casos”. (BARROS-BRISSET, p. 10, 2010).
Implantado em março de 2000 e transformado em Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator em dezembro de 2001, através da Portaria Conjunta nº 25/2001, o trabalho pode ser definido como a assistência jurisdicional aos loucos infratores que cometem algum tipo de crime. A intervenção é determinada pelos juízes das Varas Criminais de Belo Horizonte, que, auxiliados pela equipe interdisciplinar do PAI-PJ, definem a melhor medida judicial a ser aplicada e promovem a articulação do tratamento na rede pública ou particular em saúde mental, bem como a responsabilização pelo ato cometido e a reintegração social do louco. O Programa se orienta pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, instituída pela Lei 10.216/2001.
No ano de 2006, ingresso no PAI-PJ e, hoje, finalizando o curso de formação em psicanálise, a partir da temática estudada na unidade IV, “Ação Lacaniana nas Instituições”, trago aqui um relato da minha experiência de trabalho nesse programa de orientação lacaniana e de atenção integral para acompanhamento dos pacientes judiciários. A metodologia de atenção integral visa a garantir, a cada cidadão em situação de sofrimento psíquico — independentemente do crime, delito ou ato infracional cometido —, responder pelo justo processo legal em condições de acessibilidade aos recursos necessários para o tratamento de seu sofrimento, sem perder de vista o aspecto singular e individual de cada caso e sem prejuízo de seus direitos e deveres estabelecidos por Lei.
Essa metodologia de atenção integral tem alcançado o que está indicado em seu próprio nome, por meio do trabalho de equipes interdisciplinares empenhadas na execução de diversas ações de atenção continuada ao processo desenvolvido pelo paciente judiciário. Vários servidores — equipe de referência de cada caso — estudam a situação particular daquele indivíduo, em seu aspecto jurídico, clínico e social, e promovem sua inserção na rede pública de saúde mental e em sua comunidade de convívio social, acompanhando seu percurso e suas respostas ao tratamento ao lado dos profissionais da rede municipal de saúde, bem como de seus familiares.
Desta forma, estabelecemos uma conversação permanente com os diversos atores sociais e assistenciais do poder executivo sobre as respostas do paciente ao tratamento em saúde mental e seu processo de inserção social e recolhemos o que o paciente diz sobre seus impasses e saídas possíveis nesse percurso.
A equipe responsável pelo acompanhamento do caso, no PAI-PJ, por meio dessas conversações intersetoriais, faz a leitura do detalhe singular em jogo para cada caso, transmitindo à autoridade judicial os relatórios que registram tal acompanhamento, fazendo, assim, a mediação necessária entre o sistema de justiça no qual o paciente cumpre uma medida judicial e os outros setores da sociedade em geral, sem os quais a medida jurídica não conseguiria alcançar a sua finalidade última, a saber, a integração do indivíduo à sua realidade social.
Para alcançar esse objetivo, o acompanhamento do processo judicial não se faz apenas a partir de ofícios e documentos a serem enviados, via impressa ou virtual, aos demais setores da sociedade. Nesse detalhe reside o diferencial do PAI-PJ, que se serve da ação humana para realizar a complexa interação entre o paciente judiciário e os diversos setores e variáveis que se enodam à situação de cada caso em particular.
A metodologia de atenção integral exige que a equipe de acompanhamento do paciente judiciário esteja em contato permanente e em constante discussão, tanto com o indivíduo e sua família como com outros atores da rede social, educacional, de saúde e de justiça (promotores, defensores, juízes e demais operadores do direito) envolvidos em cada caso.
A experiência do PAI-PJ ensina que, sem essa costura cotidiana, de formação e construção de redes de cuidado e atenção, a vinculação do paciente a seus processos terapêutico e judicial pode se desamarrar. Quando isso acontece, pode se instalar uma crise: a engrenagem jurídica se interrompe, as relações familiares e sociais se esgarçam e o paciente pode entrar em intenso sofrimento e desordem pela ausência de laço social que o acolha. Nesses casos, a probabilidade de o paciente judiciário, devido à crise por seu sofrimento psíquico, se envolver em atos que coloquem seu corpo em risco, bem como o corpo social, ou mesmo a tentativa reiterada de buscar anestesiar sua dor com o uso de substâncias entorpecentes, via de regra, pode ser a resposta mais usual à falta de seu engendramento aos recursos da sociedade em que vive e que, para tanto, necessitam da articulação da rede jurídica, clínica e social na atenção desses casos.
A história comprova que encerrá-los no manicômio judiciário por tempo indeterminado — solução francamente inconstitucional — foi, nos últimos anos, a resposta mais cômoda das instituições a situações de crise.
Miller, no texto “Rumo ao Pipol 4”, publicado no Correio da EBP, traz o conceito de “Lugar Alfa” e indaga: há, na Instituição, um lugar analítico possível? Um lugar que seja muito mais que apenas um lugar de escuta, mas também um lugar de respostas?
“Um Lugar Alfa não é um local de escuta. Hoje, chama-se de lugar de escuta o local em que o sujeito é convidado a falar o que quiser, à vontade. Diz-se que o pôr em palavras alivia. Um lugar Alfa é um lugar de respostas, um lugar em que falar à toa assume a forma de questão e a própria questão, a forma da resposta. Não há Lugar Alfa se, pela mediação do analista, o falar à toa não revelar um tesouro, o do outro sentido que vale como resposta, ou seja, na condição de saber inconsciente. Essa mutação do falar livremente resulta no que chamamos de transferência, a qual permite a ocorrência do ato interpretativo, que, por sua vez, divide-se em um antes e um depois, como dizemos classicamente. Para haver um Lugar Alfa, faz-se necessário — e é suficiente — instalar-se o laço pelo qual “o emissor recebe do receptor sua própria mensagem numa forma invertida”, encontra-se o sujeito, a partir daí, conectado com o saber suposto de que ele próprio ignorava ser a sede” (MILLER, p. 9).
A partir da acolhida de cada caso que nos é encaminhado pelo PAI-PJ, tentamos construir, junto com o paciente, um “Lugar Alfa”, capaz de acolhê-lo em sua singularidade. Há aqueles que chegam resistentes (“estou aqui porque o juiz mandou”), outros, de maneira mais silenciosa, sem expressar se existe ou não desejo de estar ali. O certo é que, em todos estes anos de existência, temos colhido experiências que demonstram que a aposta na transferência, na escuta e na disposição de estar ao lado tem nos surpreendido e nos aponta que é possível, sim, a psicanálise nas instituições.
Cabe aqui ressaltar que, para além da relação com os pacientes, respondemos e somos interpelados pelo Outro Social (sociedade, sistema de justiça), que quer resultados, dados, eficácia. É nosso desafio cotidiano apresentar respostas, mas sem perder de vista que o nosso norte é o sujeito. O Discurso do Mestre vai perpassar todo o tempo, mas é preciso saber-fazer com ele.
Trago agora um fragmento de caso para ilustrar a nossa prática, e, como diz Zenoni, “É a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar” (2000, p. 19). O caso mostra a importância da transferência que o sujeito faz com a instituição, e sendo a instituição um lugar que tem a psicanálise e o laço social como princípios orientadores, a acolhida aos que chegam deve ser orientada pelo que o sujeito traz, e não pelos critérios institucionais que definem burocraticamente o acesso aos serviços.
Jorge, 51 anos, amasiado, 2 filhos e um enteado é aposentado por invalidez, residia com a companheira e filhos na cidade de Juatuba, região metropolitana de Belo Horizonte, havia pouco mais de dois anos. Foi acompanhado pelo PAI-PJ no período de 2002 a 2016 e respondia pelo crime de porte ilegal de arma. Sentenciado pela Medida de Segurança Ambulatorial, estava submetido ao tratamento psiquiátrico na Rede de Saúde/Centro de Saúde da área de abrangência de sua residência e frequentava o Centro de Convivência e o PAI-PJ. Em fevereiro de 2016, seu processo foi extinto após a Perícia de Cessação de Periculosidade ter emitido laudo favorável. Durante o período de acompanhamento, Jorge respondia à sanção que lhe foi imposta de forma satisfatória: fazia uso regular da medicação e comparecia aos atendimentos no PAI-PJ e às consultas psiquiátricas.
Tinha um bom relacionamento com os familiares. Apesar de aposentado por invalidez, mantinha atividades laborais no mercado informal, tais como vigia noturno e catador de material reciclável. Falava com orgulho das conquistas materiais (moto, carro) e da satisfação em ser o provedor da casa, apesar de contar com ajuda financeira da companheira. Sofreu alguns outros processos criminais (CNH falsa e roubo de um cavalo), pelos quais foi apenado: o primeiro, por PSC (Prestação de Serviços à Comunidade) e, o segundo, por pagamento de Pena Pecuniária.
Jorge é diagnosticado esquizofrênico e possui histórico de tratamento há mais de vinte anos, bem como passagem por duas internações no hospital Galba Veloso — ambas por um curto período. Relata de uso de drogas na adolescência (maconha) e, esporadicamente, na vida adulta, associando esse uso a momentos de dificuldade em relação ao convívio com as pessoas: “o ser humano é muito complicado, por isso que eu prefiro conversar com os bichos”. Por gostar de cavalos, comprava e vendia os animais e se entristecia quando presenciava um animal sendo maltratado. Ao relatar esses episódios, se emocionava e, muitas vezes, comprava o cavalo apenas para cuidar de seus ferimentos. Na região onde residia, havia acesso a uma área de mata, aonde gostava de ir quando se sentia triste ou se desentendia com familiares, amigos ou vizinhança: “Fico lá tranquilo, às vezes sozinho, às vezes com meu cavalo, prefiro os animais aos homens”.
Assim foi sua passagem pelo Programa. Ao término do processo, informamos ao paciente sobre seu encerramento, bem como o do acompanhamento, porém lhe é dito que o PAI-PJ estaria à disposição de suas necessidades; sempre que desejasse, poderia telefonar ou comparecer pessoalmente, que seria acolhido.
Em outubro de 2018, cerca de três anos do desligamento, Jorge procura o PAI-PJ. Chega ansioso, aflito, solicita ajuda junto ao INSS e informa que está desde abril daquele ano sem receber sua aposentadoria. O benefício havia sido bloqueado por não ter se submetido à perícia de revisão da aposentadoria e por seu endereço cadastrado na agência do INSS não ter sido atualizado, o que levou a carta do órgão a ser encaminhada ao domicílio antigo. Com posse dessas informações, Jorge agendou a perícia, mas, por engano, foi agendada uma perícia de concessão de novo benefício. Foi quando chegou à agência que se constatou o erro, e nova perícia para revisão da aposentadoria agendada, após a qual foi orientado a telefonar para se informar do resultado. Passado o prazo estabelecido, Jorge telefona para o INSS e lhe informam que consta seu não comparecimento à perícia. Diante desse impasse, Jorge resolve procurar ajuda no PAI-PJ e, após relatar toda a situação, chora e diz: “Por causa disso que está acontecendo, eu fiquei pensando em me matar. Se eu não encontrasse vocês, se não pudessem me ajudar, eu ia me matar. Briguei com minha companheira porque ela está jogando na minha cara que não aguenta mais; que está tudo por conta dela; que eu não ajudo pagar uma conta”.
Oriento a ficar tranquilo e digo que iremos ajudá-lo. Explico que todas as aposentadorias por invalidez com mais de dez anos de concessão estão sendo revisadas, e que, caso o INSS decidisse por encerrá-la, ele poderia entrar com processo na Justiça Federal contra o órgão. E, para isso, poderia contar com nosso auxílio.
Diante da angústia de Jorge e sabendo que a probabilidade de seu benefício ser suspenso era grande, iniciamos, no dia seguinte, uma verdadeira maratona: agendamento de atendimento, consultas na agência onde o benefício era cadastrado, horas de espera, apresentação de documentação, comprovação de comparecimento à perícia, relatórios médicos, etc.
Passada essa fase, o resultado da perícia é que Jorge tem condições de voltar ao trabalho: um sujeito afastado do mercado por mais de vinte anos, com 51 anos de idade e capacidade laborativa visivelmente comprometida. A situação era caótica, mas, após pesquisa, me informei que, pelo fato de estar aposentado há mais de dez anos, na hipótese de ter o benefício cessado, ele teria de ser incluído no programa do INSS chamado Mensalidade de Recuperação, que é um pagamento de forma regressiva, por seis meses, até a cessação definitiva: nos dois primeiros meses, salário integral; nos terceiro e quarto meses, 75%; e, nos dois últimos meses, 50%.
Pergunto ao funcionário que nos atendia se Jorge teria direito a esse benefício, ao que me responde que sim e verifica a razão pela qual nosso paciente não havia sido incluído no programa, pois, desde que os pagamentos lhe foram suspensos, já deveria estar recebendo a Mensalidade de Recuperação. Ficam, então, as perguntas: se não houvesse nosso questionamento, seria Jorge incluído no Programa? Quantos cidadãos não recebem os direitos que lhes são garantidos?
Apesar da notícia do cancelamento da aposentadoria, Jorge se sentiu aliviado, pois teria como pagar algumas dívidas, já que ficou sem recebê-la por cinco meses. Mostra várias cartas de cobrança do banco onde tinha um empréstimo, que era descontado do benefício, e fala das contas atrasadas — água, luz, padaria, etc. Relembro Jorge sobre a possibilidade de entrar na Justiça Federal contra o INSS, e ele aceita. Pergunta se poderemos ajudá-lo, e digo que sim. Com o auxílio de uma estagiária, o acompanhamos, desde o momento da entrada com os papéis, em novembro de 2018, e na perícia médica, com o perito nomeado pela justiça, até a assinatura da homologação da sentença, em junho 2019, quando o INSS teve de reativar sua aposentadoria, acertar todos os meses não pagos e considerar sua incapacidade laborativa como permanente.
Acho importante trazer esse caso, pois relata o acolhimento a um ex-paciente que tem o Programa como um lugar aonde pode se endereçar em momentos de embaraço, de angústia, em vez de tentar outras saídas — que poderiam lhe custar a vida ou resultar em risco para si ou para terceiros. No momento de sua chegada, foi possível escutar esse pedido de socorro diante de uma situação com a qual ele não dava conta de lidar, apesar de suas tentativas. O fato de o caso não estar dentro dos critérios para atendimento pelo Programa, já que seu processo de Medida de Segurança já se encerrara, não interferiu em seu acolhimento. O que o determina são os princípios orientadores de nossa prática e a vida de cada um — isso sim importa.
Parafraseando Freud, podemos dizer que, em quase vinte anos de trabalho acompanhando pacientes, aprendemos que, quanto mais se ampliam os recursos da civilização, mais se caminha contra a guerra [1]. Em outras palavras, ao ampliar a rede socioassistencial; ao dar voz a esses sujeitos, antes impedidos de falar sobre seus atos, novas possibilidades de resposta ao sofrimento, ao embaraço, vão surgindo, muitas vezes em substituição a um ato de violência. “Não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca, na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade. De tal sorte que propomos uma subversão: no lugar da presunção de periculosidade, elevar a presunção de sociabilidade” (BARROS-BRISSET, 2011, p. 17). Fica aí o convite.
[1] “Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”. Carta de Freud a Einstein, 1933.