Patrícia Regina Guimarães
Mestre e Doutora em Ciências da Saúde
Médica do Hospital das Clínicas da UFMG
Professora do Departamento de Medicina da PUC-MINAS
E-mail: patrguimaraes@gmail.com
“Estou passando mal essa semana toda… sentindo muito cansaço”: Trata-se da fala de paciente do sexo feminino, adulta jovem, acompanhada em serviço de referência por doença crônica com comprometimento pulmonar importante. Apresenta limitações para as atividades cotidianas. Sem adesão ao tratamento. Violências diversas desde o primeiro mês de vida. Três filhos pequenos, o mais velho com seis anos. A queixa de cansaço, acompanhada por esforço respiratório, chega associada ao relato de cansaço de viver.
Assim como o “cansaço”, as queixas de dores, desconfortos e males diversos localizados no corpo levam pacientes à avaliação médica, buscando no organismo a sua origem, e a medicina apresenta um amplo arsenal de investigação desse corpo-organismo.
A semiologia médica é a disciplina que se ocupa de paramentar o médico com as perguntas certas, que conduzirão à identificação da doença. As várias manobras executadas no corpo, assim como os instrumentos médicos que amplificam seus sentidos, como o estetoscópio, levam à localização da patologia, da alteração. E há um aparato tecnológico diversificado que permite determinar a alteração, mesmo que microscópica. “Os elementos que o médico utiliza para o diagnóstico são o exame clínico e os exames complementares. O exame clínico compreende a anamnese e o exame físico” (LÓPEZ, 1990, p. 5).
O “olhar clínico”, treinado por anos, pretende que as alterações e doenças se revelem ao clínico experiente. Mas a própria clínica e o médico já experimentam o declínio desse poder a ele atribuído, do olhar que penetra o corpo e desvela o mal. Hoje, profissionais da educação, o Google, até os vizinhos fazem diagnósticos. A clínica cedeu lugar à tecnologia, que substitui o médico com maior precisão. E o mercado das medicações traz a promessa da cura e alívio.
Médicos e pacientes acreditam na consistência material do corpo, que pode ser palpado, auscultado, percutido, e em um mal-estar que possa ser localizado, circunscrito, diagnosticado e, com isso, curado. Considera-se, para a cura do corpo doente, os efeitos de substâncias sobre essa matéria. Todo o processo acontece quase à revelia do sujeito que habita esse corpo.
É certo que na medicina se admitem as particularidades – as doenças manifestando-se de maneira particular nos diferentes corpos. Mas a subjetividade, que se relaciona à forma como cada sujeito toma o adoecimento do seu corpo, ainda é um campo a ser explorado.
Em muitas situações, mesmo se empregando o recurso da tecnologia de ponta e exames sofisticados, não se encontra no corpo-organismo a alteração que justifique a queixa do paciente. Ou, se encontrada, seu tratamento não traz o alívio esperado. Outras vezes, as queixas orgânicas ancoram e delimitam no corpo um mal-estar muito mais difuso, insuportável e mortífero. Um nome (diagnóstico) para o que faz sofrer pode ser apaziguador – “eu sofro disso”.
Nesse contexto de crise da clínica e diante do paciente que fala da sua dor e do que o faz sofrer, localizando seu mal-estar no corpo-organismo, o que é possível para o médico advertido pela psicanálise?
O paciente chega à consulta apresentando seu corpo como sendo ele mesmo, portador de uma doença. Ele sente e localiza no corpo-organismo seu mal-estar e parece demandar uma resposta técnica que acabe com seu sofrimento. Por outro lado, o médico traz, da sua formação, a crença que esse corpo-organismo guarda uma doença em forma de mistério a ser descoberto. E acredita que o arsenal tecnológico será capaz de localizar, melhor que ele próprio ou que o próprio doente, o mal-estar. Assim, o profissional investe pouco na entrevista médica – que persegue a doença – e menos ainda no exame desse corpo. Pede exames que não cumprem a promessa de revelar o mal. As medicações são experimentadas tantas vezes sem nenhuma lógica amparada no raciocínio clínico. E seguem, médico e paciente, nesse desencontro que frustra a ambos.
Mas também é possível o encontro entre o médico e seu paciente e, a partir disso, a produção de algo. Através do vínculo, do desejo de saber (do médico) e da suposição de saber (do paciente no médico), pode-se operar uma escuta que vai além das queixas orgânicas, provocando no paciente a busca do seu mal-estar além do corpo. É nesse ponto da percepção de que “não se trata disso” – de uma doença orgânica – que se torna possível localizar na dimensão psíquica o desconforto e a elaboração possíveis.
Jacques Lacan (1966/2001), em seu texto “O lugar da psicanálise na medicina”, traz contribuições importantes para a discussão. Ao diferenciar demanda de desejo, e a estrutura falha entre essas duas dimensões, Lacan (1966/2001, p. 11) chama a atenção para o que resta, o que fica fora, tão familiar aos médicos: “Permita-me assinalar como falha epistemo-somática o efeito que terá o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo”.
É necessária ao médico atenção ao que há para além daquilo que o paciente apresenta como demanda, imbuído do discurso poderoso da ciência e do direito à saúde. “Isto porque aquilo que é excluído da relação epistemo-somática é justamente o que o corpo em seu registro purificado vai propor à medicina” (LACAN, 1966/2001, p. 11). A dimensão do gozo aparece completamente excluída da relação epistemo-somática, fora do que pode saber a ciência.
Na prática médica, a perplexidade diante de adolescentes vivendo com doença crônica que não aderiam ao tratamento proposto, numa marcha em direção à morte, introduziu para esta autora um furo no saber médico e a busca de referencial que trouxesse alguma resposta. Freud (1920/1996), em “Além do princípio de prazer”, introduz para o médico uma dimensão importante – a pulsão de morte – para o manejo clínico de pacientes que não fazem a opção pela saúde. E Lacan (1966/2001, p. 12) aponta que “a direção ética é aquela que se estende em direção ao gozo”, indicando duas balizas: a demanda do doente e o gozo do corpo.
Ao médico atento ao inconsciente e à dimensão do gozo é possível, a partir da escuta do paciente, ocupar uma posição diferente daquela de quem demanda (o tratamento). Roberto Assis Ferreira discutiu, em 2013, em uma aula dada na Faculdade de Medicina da UFMG sobre a relação médico-paciente na adolescência, os lugares que o médico pode ocupar diante do paciente. Ele adverte para a importância de ocupar o lugar de quem não sabe, fazendo surgir, a partir do vínculo, o saber que está com o paciente (FERREIRA; CUNHA, 2014). Apresentou também, citando Miller (2012, p. 98), o “médico-passador”, que seria aquele que é capaz de sustentar uma escuta até que algo surja, localizando o sofrimento em outro campo, que não seja o orgânico, tornando possível uma transferência de cuidado que leve o paciente a um trabalho analítico com outro profissional.
Aqui outro ponto surge: a angústia do profissional diante dessa posição despretensiosa e modesta da escuta ativa. A discussão do caso com a equipe, ou melhor, a conversação, poderia ser um espaço de apoio para o profissional que se angustia. Mas esse dispositivo não é suficiente para dar conta de algo que toca o médico de forma singular, apontando para a própria análise, ou para a supervisão do caso, como uma possibilidade.
Diante dessa reflexão, uma direção possível para médicos e estudantes de medicina seria cuidar do corpo-organismo, que pode mesmo adoecer, mas estar atento ao que se apresenta de outra ordem. O “médico-passador” poderia estar ao lado – que é da posição clínica –, nesse percurso do paciente na direção do seu tratamento em outro campo profissional.
Também seria possível tomar a psicanálise como a última flor da medicina, seguindo na direção que Lacan (1966/2001, p. 14) aponta: “Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, é a meu ver, prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud”.