François Ansermet[1]
“Onde você mora?
Na linguagem.
E não posso me calar.
Ao falar, eu me lanço
em uma ordem desconhecida,
estrangeira, e eu me torno
subitamente responsável por isso.”
(Jean-Luc Godard)
No começo, era o exílio. A criança vem ao mundo estrangeira a ela mesma e aos outros. O nascimento pode assim ser visto como um primeiro exílio.
A criança vem ao mundo inacabada, ela nasce marcada pela incompletude. Ela é mesmo o mais inacabado dos seres vivos, potencialmente submetida a uma angústia fundamental.
No começo, portanto, a separação e o exílio, o inacabado e a angústia. Sozinho, sem o outro, não há saída para o filhote do homem. O outro lhe é necessário – necessário à sua sobrevivência –, mas também para surgir em um mundo que já existe, que é também o mundo da linguagem que o precede.
A linguagem não tem somente uma função de representação ou de expressão; a linguagem é também esse operador que produz um sujeito, a cada vez diferente em seu modo de encontrá-la, de colocá-la em jogo, de modificá-la, de reinventá-la. Como diz Ferdinand de Saussure, cada locutor modifica o sistema da língua, se apropriando dela sempre de forma diferente, até modificar a própria língua.
Mas pode haver rupturas nesse processo, como a migração forçada ou mesmo escolhida. Será que todo exílio recoloca em jogo o exílio primeiro do nascimento?
A origem irrepresentável
O exílio coloca para cada um a questão de sua origem. Mas sabemos realmente o que é nossa origem? Percebemos a fragilidade dessa noção. A criança que vem ao mundo nos remete ao mistério de sua origem, às origens da origem.
Até onde se pode voltar quanto a origem? O que precedeu a criança é infinito: toda criança é de fato proveniente das contingências que precederam sua concepção. Ela poderia ter nascido em um outro tempo, em um outro lugar, de uma outra mulher, de um outro homem, de um outro óvulo, de um outro espermatozoide. Isso não impede que ela esteja aqui, não é mais possível que ela não esteja aqui, quaisquer que sejam o arbitrário e o irrepresentável de sua origem. A criança nos remete, assim, ao real (ANSERMET, 2003), no sentido de Lacan, mais do que ao originário, isto é, a algo impensável, mais do que à ideia de uma origem, ou mesmo de um começo. A origem não é o começo. O começo é localizável. Por outro lado, a origem é infinita quanto ao passado. Potencialmente sempre a se repetir. A origem estaria, portanto, por vir. O futuro anterior poderia ser visto como o tempo da origem, uma origem que pode ser tomada também no devir.[2]
Odradek
Em um extraordinário pequeno texto, “A preocupação do pai de família”, Kafka (1914-17/1994) coloca a questão da origem em sua dimensão enigmática, estrangeira, perturbadora. Trata-se de Odradek, nome dado a um estranho objeto que, desde sempre, mora na casa do pai de família: um perturbador carretel plano, em forma de estrela, feito de velhos pedaços de fios cortados, emaranhados, torcidos; ele fica como se estivesse sobre dois pés, sempre pronto a ressurgir. Odradek percorre a casa desde o sótão até a escada, ágil e impressionante:
É natural que não se façam perguntas difíceis, mas sim que ele seja tratado – já o seu minúsculo tamanho induz a isso – como uma criança. “Como você se chama?”, pergunta-se a ele. “Odradek”, ele responde. “E onde você mora?” “Domicílio incerto”, diz e ri […]. (KAFKA, 1914-17/1999, p. 45)
O pai se pergunta o que Odradek vai se tornar. Pode somente morrer? Tudo o que morre conheceu antes uma espécie de propósito, atravessou uma atividade que o desgastou. Não é o caso de Odradek. “Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel?”: é o que se pergunta o pai de família. Essa pergunta o preocupa no mais alto grau: “Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa” (KAFKA, 1914-17/1999, p. 45).
A origem de Odradek é inatingível. Odradek é uma eternidade fora da história, tornando vã toda perspectiva de anamnese. Tudo se concentra em um objeto, resto incongruente, enigmático, derrisório, sinal pontual e irredutível da presença de um passado, mas sobretudo também de um mais além. Esse objeto veio do passado? Ele é presente? Ou ele retorna do futuro? Produto de um tempo fora do tempo, como um resto, esse carretel, em sua corrida através da casa, prega uma peça na memória. Odradek é o que sobrevive a cada um, mesmo nas piores situações. É o que aponta o que ultrapassa cada um dos protagonistas: por que também não numa história de migração, de separação, de exílio, como as histórias vividas pelos refugiados?
Renascer para a linguagem
Tal como acontece com Odradek, o exílio projeta para fora do tempo, fora do laço social, fora da linguagem. A história do imigrante muda para o que ele pode viver como um vazio. Ele não consegue encontrar seus pontos de referência. Ele não representa mais para si sua situação, em um mundo do qual ele está desatado. Como se ele devesse repetir sua entrada no mundo: em um mundo diferente, no qual ele ainda não está.
A aposta para o imigrante é a de se fazer ouvir, de se fazer reconhecer. Será ele ouvido? Será ele reconhecido? Poderá ele repetir sua entrada nesse mundo desconhecido, estrangeiro? Seu acesso pode ser barrado pela dimensão traumática do exílio. Aqueles que vivenciam traumas maiores, extremos, testemunham o fato de que eles não sabem como falar. Eles estão projetados para fora da linguagem, para fora do mundo do Outro. A linguagem não os carrega mais, eles se sentem excluídos dela, como se devessem repetir sua entrada no mundo da linguagem. Poderá ele reatar com a linguagem? Ou será ele reenviado à sua solidão, a seu desamparo?
O filósofo Giorgio Agamben (2007), em Homo sacer, distingue dois regimes da vida: zoé, a vida nua, e bios, a vida tomada na linguagem, no mundo dos outros, tomada na sociedade. O refugiado deixou o mundo de sua origem, de sua cultura, de seus laços: ele é assim enviado ao estatuto da vida nua. Isso quer dizer também que ele saiu do mundo da lei. Ele perdeu todo estatuto. Como se as leis mais elementares não se aplicassem mais. Como se os direitos do homem desaparecessem com o exílio e a separação. Os países aos quais os refugiados afluem se apresentam sobrecarregados, eles dizem não saber mais o que fazer com eles – um modo a mais de rejeitar os exilados para estarem no registro do zoé, a não estarem mais em nenhum bios que lhes dê um lugar – ao risco de se encontrarem “sacrificáveis”, de se tornarem aqueles que podemos sacrificar.[3]
O exílio interior: uma saída?
Como encontrar uma saída? Como sair do exílio que aprisiona, como ir além da separação, da angústia? Da mesma forma, para aquele que deveria acolhê-lo, como estar à altura do drama do exilado, como enfrentar sua condição? Quais são as condições para encontrá-lo, para além da problemática da identidade, para além do confronto de identidades diferentes?
Paradoxalmente, a solução está na separação. A separação não do outro, mas a separação de si mesmo. Uma separação em si. Isso é, se tornar exilado de si mesmo, não mais acreditar demais nesse si mesmo que pensamos ser.
Cabe a cada um encontrar um ponto de detalhe, um ponto de surpresa, um ponto de espanto, um ponto de história: o ponto de enigma que faz o próprio de cada um, que o faz único e diferente.
Trata-se, portanto, de colocar em jogo, em si, o exílio e a separação. Um exílio e uma separação subjetivos, para além do exílio objetivo. Um exílio na linguagem. Colocar em jogo no campo da palavra essa parte de si que nos escapa. Seja no exilado, seja naquele que o recebe.
Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a via nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ANSERMET, F. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Belo Horizonte: Contra Capa, 2003.
KAFKA, F. A preocupação do pai de família. In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (Trabalho original redigido em 1914-17).
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 238-324. (Trabalho original proferido em 1953).
[1]1 Publicação autorizada pelo autor, a quem manifestamos nossos sinceros agradecimentos.
François Ansermet, psicanalista, psiquiatra de crianças e adolescentes, professor honorário da Universidade de Genebra e Universidade de Lausanne, membro do Comité Consultatif National d’Ethique em Paris, cofundador da Fundação Agalma em Genebra (www.agalma.ch). Publicações, entre outras: ANSERMET, F. Clinique de l’origine. Nantes: Ed. Cécile Defaut, 2012; ANSERMET, F. La fabrication des enfants. Un vertige technologique. Paris: Odile Jacob, 2015; ANSERMET, F.; NOURRY, P. Serendipity. Arles: Acte Sud, Arles, 2018; ANSERMET, F. Prédire l’enfant. Paris : PUF, 2019.
[2] “O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando.” (LACAN, 1953/1998, p. 301)
[3] “Exibindo à luz o resíduo entre nascimento e nação, o refugiado faz surgir por um átimo na cena política aquela vida nua que constitui seu secreta pressuposto.” (AGAMBEN, 2007, p. 138)