Mariah Casséte
Doutora em Teoria Política (UFMG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
E-mail: mariahlqc@gmail.com
A posição feminina sempre impulsionou a psicanálise. O que é ser mulher? O que quer a mulher? Essas questões estruturam o campo psicanalítico desde que Freud tomou as histéricas como inspiração. No texto “Sobre a Sexualidade Feminina” (1931/1996, p. 204), ele destaca o mistério do desenvolvimento feminino, mencionando uma fase pré-edípica “remota, penumbrosa, quase impossível de ser revivida”. A castração feminina resulta de um processo prolongado, marcado por uma ligação profunda com a mãe. A ausência do falo posiciona a mulher no “não ter”, gerando uma angústia intrínseca que a confronta com um real indizível.
Nessa experiência singular de encontro com a castração, a referência fálica é insuficiente no continente feminino: há um “gozo do corpo, que é […] para além do Falo”. (LACAN, 1972-73/2022, p. 100, grifo nosso). Se há algo do gozo feminino que escapa ao simbólico, seria possível dizer que as mulheres seriam mais amigas do real? Essa é a questão colocada por J.-A. Miller (2010a, p. 2), sugerindo que, na lógica imaginária do falo, o feminino sempre representará o Outro absoluto – o “mistério absoluto fora do falo” – a quem não se imputa uma consistência definível. Essa falta de substância impulsiona uma busca incessante por identificações que preencham o vazio. A histérica, ao se perguntar sobre o desejo dos homens por outras mulheres, tenta apaziguar a angústia da inconsistência, como se as outras guardassem o segredo do feminino. Marie-Hélène Brousse (PASSELANDE, 2012) afirma que essa busca ainda está no campo fálico, na tentativa de encontrar um Nome que defina seu lugar e sentido.
O vazio da posição feminina pode ser deslocado do “ter” para o “ser”, trabalhando com a falta e “fabricando um ser com o nada” (MILLER, 2021, p. 5). A relação entre mulheres e semblantes torna-se então um tema central na psicanálise. Apesar de os semblantes serem fundamentais para o laço humano, as mulheres se destacam pela “enorme liberdade com o semblante” (LACAN, 1971/2009, p. 34). O homem usa semblantes para proteger seu “pequeno ter”, já o semblante feminino é a máscara da falta. No jogo das aparências, as mulheres se aproximam mais do real, usando máscaras para sugerir algo que, na verdade, não existe. Encarna-se o falo para mostrar o que não se tem. O problema é que a falta de substância apavora, levando as mulheres, muitas vezes, a relações de devastação. Há, portanto, uma ambivalência estruturante no feminino e sua relação com as máscaras: seriam insígnias ou fetiches? Como questiona M.-H. Brousse, teriam algo a dizer sobre um ideal do feminino ou servem como suportes para esconder o que não se sabe e nem se suporta? (PASSELANDE, 2012).
Freud nos convida a buscar na experiência, na ciência ou na arte meios de avançar sobre o “enigma da feminilidade”. Vejo no filme Persona, de 1966, de Ingmar Bergman (2006), uma excelente fonte para essa busca, ao apresentar a interação entre uma atriz que se absteve da fala e uma enfermeira que usa a fala como investigação. As duas se isolam em uma casa à beira-mar, onde desenvolvem uma relação ambivalente de distância e complementaridade. O olhar, a voz, os semblantes, assim como gozo e devastação, são temas centrais dessa obra visualmente poética e clássica expressão do enigma do feminino.
Prólogo
No prólogo de Persona, Bergman estabelece o tom misterioso da narrativa. Em um clima onírico e sombrio, cenas fragmentadas surgem na tela, culminando em duas faces femininas, projetadas como sombras. As protagonistas são observadas por um menino que, atraído, as toca curiosamente. Quem seriam essas figuras enigmáticas? Parecidas, mas únicas. O que essas faces (ou máscaras?) ocultam em seu mistério?
Seria a sequência do prólogo uma metáfora do próprio cinema? Janela para nossas inquietações mais profundas. A partir do início da narrativa propriamente dita, o espectador se tornará – assim como o próprio diretor – testemunha e observador da jornada dessas duas mulheres. O cinema, portanto, é apresentado como reflexo do Outro e como reflexo da alma. Alma, aliás, é o nome de uma das protagonistas que dirige incessantemente seus questionamentos a uma outra mulher, Elisabeth, que, em sua visão, deveria portar as respostas que tanto demanda.
Ambas parecem ocupar lugares diferentes na relação estabelecida. Em um primeiro momento, é possível inclusive separá-las em polos distintos: a fala e o silêncio; a iniciativa e a passividade; a expectativa e a desesperança; a enfermeira e a paciente. No entanto, gradativamente, a narrativa entrelaça os polos aparentemente opostos em um sem limite, de modo que se perde quaisquer certezas sobre quem de fato ocupa cada posição ou imagem do corpo, demarcadas por um tênue litoral.
A atriz
Elisabeth, uma famosa atriz de teatro e cinema, encontra-se, no início da trama, internada como paciente em um hospital. Não se sabe o diagnóstico de seu “problema”, apenas se revela que abdicou da fala. Em um momento em que atuava no palco, é tomada por uma paralisia que retira de si a vontade de continuar representando suas personagens, ou mesmo de representar a si mesma na vida, fora dos palcos. A partir de então, emudece, abdica de seu papel de atriz, esposa e mãe e, assim, é internada. A enfermeira designada para o caso é Alma, uma jovem mulher que fica deslumbrada na presença da atriz.
O ofício da atriz é também um campo que remete ao feminino. Afinal, que outro tipo de trabalho permite a participação tão ativa no jogo de máscaras que encobre o vazio? Essa intimidade com os personagens, essa capacidade de ser o que não se tem, certamente torna essas pessoas magnéticas aos que testemunham sua atuação. Chico Buarque (1983), nos versos da música Beatriz, expressa essa captura do outro promovida através do enigma da atuação:
Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é pintura/ O rosto da atriz/ Se ela dança no sétimo céu/ Se ela acredita que é outro país/ E se ela só decora o seu papel/ E se eu pudesse entrar na sua vida
Elisabeth torna-se um ímã para sua enfermeira. Guardaria a atriz respostas sobre o “ser mulher”? É ilusório pensar que o desejo produzido pelas máscaras levaria à descoberta de significantes que resolvem os mistérios da vida ou do feminino. M.-H. Brousse (2004) afirma que, quando exposto, o semblante se transforma em mentira, estalando sob os assaltos do real, desqualificando a fala. Talvez a paralisia no palco tenha sido um assalto do real para Elisabeth, que se cala diante da falta de sentido. O silêncio da atriz pode ser lido como uma encenação desse vazio que suas máscaras ocultam.
No desenrolar da narrativa, somos apresentados a momentos que apontam para a frustração de Elisabeth em sua função materna. Ela parece demonstrar uma dificuldade em assumir o papel de mãe com a mesma desenvoltura que desempenha os outros personagens nos palcos. Quando ainda está internada no hospital, chega a amassar uma fotografia de seu filho. Sua enfermeira Alma, já no final da trama, em um monólogo perturbador, como em uma interpretação selvagem, diz o que parece ser, de fato, o sentimento de sua paciente em relação a ser mãe: a repulsa dessa posição e o arrependimento dessa decisão. Ainda assim, em outros momentos, Elisabeth escreve a seu marido, demonstrando interesse no bem-estar de seu filho, alegando, ainda, sentir a falta dele. Em qual encruzilhada Elizabeth se encontra?
Tal ambivalência parece ser aspecto fundamental na abordagem da posição do feminino por J.-A. Miller (2010b, p. 6), segundo o qual encontra-se a mulher na “distância subjetiva da posição de mãe. Porque ser uma mãe […], é para uma mulher querer se fazer existir como A. Fazer-se existir como A mãe é se fazer existir como A mulher que tem”. Gabriela Grinbaum (2021) também expressa essa problemática, ao apontar que o feminino se localiza na disjunção entre o desejo da mãe e o desejo de ser mãe. Seu silêncio seria uma expressão da angústia perante o vazio de sentido que se vislumbra nessa posição?
A saída pela identificação materna não é suficiente para aplacar a inquietude de Elisabeth em relação ao feminino. A atriz permanece perdida e emudecida perante o enigma de seu lugar no mundo. Sua enfermeira Alma, parece também estar perdida perante esse mesmo mistério. No entanto, o caminho escolhido por ela – embora também esteja situado no campo fálico – é de outra ordem. Em vez do silêncio, a verborragia. Em vez da maternidade, a identificação com a Outra.
A histérica
Como indica Lacan (1971/2009, p. 118), “nada comunica menos de si do que um dado sujeito que, no final das contas, não esconde nada”.
Alma é a enfermeira da atriz e, ao contrário de sua paciente, ela se desnuda a todo instante. Fala sobre si, seus projetos de futuro, sua vida atual, seus amores, seu passado e suas experiências. O fato de Elisabeth permanecer em silêncio parece, inicialmente, causar em Alma o desejo de continuar falando, incessantemente. Vez ou outra, deixa escapar – como lapsos – momentos de incerteza ou fissuras pelas quais o vazio pode ser espiado: seja em seu olhar, numa gargalhada ou em lágrimas inesperadas. Em certos momentos, ainda que de forma caricata, é nítida a dinâmica analista/analisando que parece se instaurar entre as duas mulheres.
Em uma das cenas iniciais, Alma fala a si mesma: seus planos de casar-se, tornar-se mãe e “ser aquilo que se espera de uma mulher”. Entretanto, ao se expressar, fica claro um momento de dúvida, como se tal projeto de vida não fosse aquilo que de fato ela deseja seguir, ou como se não fosse o suficiente. O ser mulher – tal como se constitui nas expectativas do Outro – vacila na subjetividade da personagem. Há, assim, um desespero latente nas palavras de Alma, que não consegue lidar com essa sensação de vazio que a domina. É como se estivesse perdida e procurasse a máscara para tapar a falta que insiste em aparecer. Sua busca, então, dirige-se àquela outra mulher a quem considera portadora dos segredos do feminino. A atriz, que é sua paciente, exerce um encantamento sobre a enfermeira, que lhe dirige todas as angústias e experiências, em busca de uma identificação que lhe confira alguma substância e apaziguamento, como se essa outra pudesse ter algo a revelar.
Na casa à beira do mar, pouco a pouco, Alma se espelha na atriz que, em um primeiro momento, torna-se seu objeto de amor e seu modelo. As roupas vestidas, os gestos e até a forma de usar seu cabelo parece se aproximar gradativamente aos modos de Elisabeth. Essa transformação é narrada de forma belíssima pela fotografia de Sven Nykvist, que expressa a dinâmica especular estabelecida entre as duas personagens.
A dinâmica entre ambas pode ser vista como uma encenação do discurso histérico, pelo qual Alma tenta revelar a verdade do desejo da outra, questionando sua própria identidade. Sua posição histérica se manifesta tanto na angústia frente ao silêncio de Elisabeth, quanto na oscilação entre identificação e rejeição em relação àquela que ela cuida, revelando um discurso que procura incessantemente um saber que nunca será pleno. Assim, a enfermeira mantém uma relação ambivalente com seu objeto de amor, caracterizada por um duplo movimento de destituição (ao apontar a falta na outra) e de devoção (ao atribuir a essa outra um infalível referencial identificatório). Essa forma de lidar com a falta pode, no entanto, reverter em devastação, quando ela sente não ser mais amada.
A precariedade da identificação revela a fragilidade da busca de Alma. Ao ler escondida uma carta de Elisabeth para seu marido, Alma se sente exposta e traída pelas impressões negativas da atriz. A devoção então se transforma em agressividade. A atriz, antes vista como espelho, ou por causa dessa relação especular, agora se torna alvo das frustrações de Alma, que continua a enfrentar o vazio que rompe suas máscaras.
A “outra para si mesma”
Elisabeth e Alma, duas mulheres que investigam em si e na outra aquilo a que suas faltas não são capazes de responder. O manejo de seus semblantes vacila sob as investidas do real. Essa ausência de um termo para dizer A Mulher deixa indeterminada uma identificação especificamente feminina. Uma jornada de perdas: perde-se a identidade, o nome, as máscaras, no caminho em direção ao gozo que lhe é próprio – que Lacan denomina de o “Outro gozo” e que Dominique Miller (2021, p. 7) expressa como uma “estranheza que as carrega”.
Não há caminhos definidos para abordar o feminino, mas Persona pode contribuir para o que está justamente nesse inescapável (des)encontro entre as duas protagonistas e na impossibilidade da identificação com a Outra. A cada tentativa de fusão, uma quebra. A cada palavra, uma falta de sentido. O desafio enfrentado é, portanto, o reconhecimento dessa Outra que existe em si mesma, desse gozo estrangeiro inominável, mas que, ainda assim, é constitutivo do ser. Alma e Atriz permanecem nessa dualidade entrelaçada, assim como cada mulher, uma a uma, tem de se haver com a falta no Outro – S(Ⱥ). A mulher experimenta um tipo de alteridade ou diferença em relação a si mesma, uma espécie de opacidade interna, porque o gozo feminino não é completamente acessível ao saber ou à consciência.
A beleza de Persona é conseguir construir na tela um universo entre as protagonistas que escapa às palavras, mas que invade, transborda e devasta para além daquilo que a linguagem pode significar. Ao longo das décadas, muitos ousaram decifrar o mistério de Persona, apresentando teorias para explicar a natureza da relação entre as duas mulheres, suas angústias e destinos. Porém, prefiro destacar a interpretação de Susan Sontag (1987), que não busca decifrar, mas, sim, abraçar a potência dessa dualidade entre máscara e pessoa, discurso e silêncio, alma e performance.