Resumo
Elegendo o eixo de investigação a temporalidade do inconsciente (ICS) e sua incidência nas toxicomanias, o artigo propõe interrogar alguns fenômenos que surgem na clínica com toxicômanos, tais como a temporalidade do ICS no ato de se drogar e na fissura, bem como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out e a iteração do Um sozinho.
Palavras-chave: temporalidade do inconsciente (ICS), passagem ao ato, acting-out, fissura, toxicomania.
Abstract
ICS temporality in a drug addiction clinic
Choosing as a research axis the temporality of the ICS and its incidence in drug addictions, the article proposes the questioning of some phenomena that arise in the clinic with drug addicts, such as the temporality of the ICS in act of drugging and drug craving and its correlations with the passage to the act, the acting out, the iteration of the One alone.Keywords: ICS temporality, passage to act, acting out, drug craving, drug addiction.
Foto de Nelson de Almeida
CLÁUDIA MARIA GENEROSO
Coordenadora do Núcleo de Toxicomania IPSM-MG (2018-2019),
doutora em Psicologia/Estudos Psicanalíticos (UFMG),
psicóloga no CAPS-AD Betim e professora da PUC-Minas.
claudia.generoso@yahoo.com.br
No Núcleo de Toxicomania do 2º Semestre de 2019, orientamos nossas investigações em torno do tema dos afetos e da temporalidade do inconsciente (ICS) na clínica das toxicomanias. Interrogamos como é a temporalidade do ICS na fissura e no ato de se drogar, assim como suas correlações com a passagem ao ato, o acting-out, a iteração do Um sozinho e as soluções possíveis encontradas por cada sujeito para lidar com o mal-estar da vida.
Sendo assim, como pensar a temporalidade do ICS na clínica das toxicomanias? Antes, vamos destacar alguns pontos da relação do ICS com o tempo. No artigo “O inconsciente”, Freud (1915) o conceitua a partir da relação com o material psíquico recalcado, sustentando que nem tudo que é psíquico é consciente. O ICS tem suas próprias características, entre elas o desconhecimento da negação, dos contrários e do tempo. Por ser atemporal, o ICS desconhece a passagem do tempo referente à cronologia, à sucessão dos acontecimentos. Dessa forma, os processos inconscientes não são modificados pelo tempo: “A passagem do tempo não modifica o desejo e isso se revela nas manifestações do inconsciente” (SALUM, 2019).
Em Lacan, podemos delimitar duas formas de pensar o ICS: pela via do sentido, do simbólico; e pela via do real, do gozo. Nessas duas concepções, o tempo também se apresenta de forma diferente. Na via do simbólico, o ICS é estruturado como uma linguagem, uma articulação significante e suas leis da linguagem — metáfora e metonímia. O tempo será concebido a partir do Nachträglich freudiano, o só depois (efeitos retroativos), uma reversão temporal. Uma temporalidade pulsátil que Lacan nomeia de “pulsação de borda”, referente à abertura e fechamento da hiância do ICS, que tem a função estruturante de uma falta, instaurando o tropeço, “a descontinuidade na qual alguma coisa se manifesta como vacilação” (LACAN, 1964, p. 30-31). No ordenamento temporal da cadeia significante, no intervalo entre S1 e S2, há o surgimento do desejo, do sujeito do ICS através de suas formações, tais como os atos falhos, os sonhos e os sintomas passíveis de decifração de um sentido.
A outra via relaciona o ICS ao real, e será pensado não apenas como uma articulação significante, mas como um enxame de S1, situando-o fora do sentido e conectado à lalíngua e ao falasser. Ao status de sujeito como operação significante que surge fugazmente, Lacan acrescentou o corpo como falante, o falasser, instituindo o corpo como o lugar de um sujeito e também sua consistência de gozo. Trata-se do ICS como escrita que cifra o gozo fora do sentido, tendo uma relação com a temporalidade diferente.
Entre as formações do ICS, o sintoma difere das outras pelo seu caráter de constância. É devido a essa característica que Miller (2016) dirá que “o sintoma é o que de mais real a psicanálise nos dá”, carregando a conjunção de duas faces: sentido e real. Ou seja, o que é interpretável e um resto que resiste. Algo decifrável e restos sintomáticos referentes ao núcleo real do sintoma que precisam ser confrontados, e não interpretados, fazendo importante outras formas de intervenção. Mahjoub nos indica que o tempo de fazer vacilar o gozo remete a uma pulsação de borda concernente aos orifícios corporais, possibilitando outras saídas, pois, “se deixarmos o sujeito entregue ao seu gozo, não há nenhuma chance de tocar um real sob as formas do objeto a, essa redução do gozo que não é de forma alguma dócil ao tempo” (2014, p. 347). Há, assim, uma dimensão do objeto a, do gozo, para se pensar a temporalidade, ao contrário da temporalidade fugaz referente às manifestações do sujeito do ICS decifrável.
Nessa perspectiva, Miller (2000, p. 64) evidenciará uma outra modalidade do tempo do discurso, que Lacan nomeará “presente espesso” e que se refere à libido. Se, por um lado, temos o sujeito dividido ($), pontual e fugaz, por outro, temos o objeto a relacionado à libido, à inércia, à consistência que indica “o lastro de uma retirada de uma parte do corpo: objeto anal, vocal (…)”, apontando para a vertente do gozar (MILLER, 2000, p. 66). Considerando essa via é que Lacan acrescentou o corpo ao status do sujeito, instituindo o falasser — que não é o sujeito, mas o corpo falante —, que tem sua consistência e duração próprias (MILLER, 2000, p. 67). Ele nos indica que há certa necessidade de o objeto a ser depositado, absorvido, exemplificando que isso pode acontecer pela arte, como a pintura e a música, como possibilidade de absorção ou depósito do objeto a, insinuando outra forma de manejo clínico, que vai além da interpretação. Desse modo, verificamos a necessidade de ir além da escuta, incluindo saber ler o sintoma que condiz mais com a clínica dos modos gozos (MILLER, 2016).
A partir desses elementos, interrogamos como pensar a temporalidade do ICS nas toxicomanias. Muito já foi debatido sobre a relação dos toxicômanos com o ICS se referir a uma tentativa de obturar a falta, a hiância estrutural do sujeito que remete à castração. Como vimos, é nessa hiância que o ICS se manifesta, instaurando um desencontro e a impossibilidade de satisfação plena da pulsão. Mas, como indica Freud, apesar dessa impossibilidade, haverá sempre uma exigência para a descarga da pulsão que busca insistentemente uma satisfação.
Hugo Freda (2010) destaca algumas referências de Lacan à toxicomania ao longo de sua obra e faz uma aproximação de Freud e Lacan na concepção de que a droga é uma solução, e não um sintoma (Freud, com “Mal-Estar na Cultura”, e Lacan sobre a droga, em 1975). Mas Freda, junto com Bernard Lecoeur, afirma que a toxicomania é uma nova forma de sintoma mais congruente ao mundo contemporâneo, sendo um protótipo desse momento na civilização. O autor ressalta que, nas primeiras observações de Lacan, até 1960 (“Subversão do sujeito e dialética do desejo do sujeito no inconsciente freudiano”), na perspectiva da prevalência do simbólico, “a intoxicação seria uma resposta não sintomática que tenta anular a divisão, a marca de uma posição subjetiva caracterizada por um não querer saber nada do ICS. (…) um tipo de resposta do sujeito ante o reconhecimento da existência do ICS”, visando apagá-lo (FREDA, 2010, p. 305).
Já nas observações posteriores de seu ensino (“Psicanálise e Medicina” [1966], “Os não tolos erram”/”Os nomes do pai” [1973/74] e “Discurso de fechamento das jornadas de carteis da EFP” [1975)], Lacan aponta para uma mudança de concepção a partir da clínica borromeana, estando mais afinado com a ideia de ICS na perspectiva do real, do gozo implicado no sintoma. Nessa via, a toxicomania será pensada no embaraço que surge da relação da angústia com a castração, sendo a droga uma resposta eficaz para romper essa relação (“a droga é o que permite romper com o pequeno pipi”), um rompimento com a função fálica, com o gozo do corpo. Freda (2010) evidencia também que, no toxicômano, mais do que romper com essa relação, há nele uma identificação com a nomeação de ser toxicômano cerceando a possibilidade de o ICS fazer um sintoma.
Diante da dificuldade que se coloca frente ao sintoma como uma formação do ICS decifrável, como pensar as formações do ICS nas toxicomanias? Formações tais que podem causar uma surpresa, uma questão, e não apenas a prática reiterada de se drogar? Como diz Freda (2010), essa nomeação rígida — sou um toxicômano — dá outra dimensão ao uso da droga, como referência a uma prática (toxicomania) e à pessoa que consome como um personagem, e não como um sujeito. Afirma ainda que “a toxicomania é uma nova forma do sintoma na medida em que define o sujeito por uma prática, mas não por seu sintoma” (FREDA, 2010, p. 307). Nesse sentido, o toxicômano é um personagem da modernidade que, a partir de sua prática, quer provar que o ICS não existe. Não por acaso, podemos observar o aumento do uso de medicações psicotrópicas que também entram nesse movimento de aniquilar o mal-estar na cultura, a falta do ser falante — que é estrutural.
Podemos pensar a prática, o ato incessante de se drogar dos toxicômanos e sua relação com o ICS a partir do que Jésus Santiago (2017) diz, que, nos toxicômanos, há uma perturbação do ato diferenciando-o do ato falho, que revela uma manifestação do ICS. Dessa forma, “os tropeços e equívocos que cometem não fazem enigma, mas são remetidos à ordem de um não saber maciço” (p. 222). É comum observamos, na clínica, que esses pacientes não conseguem fazer uma associação do ato de se drogar com algum acontecimento de sua vida, uma localização de uma experiência perturbadora em seu percurso, sendo difícil a criação de uma questão e a instauração do SSS que possa levar a uma demanda de tratamento, ou, como diz Santiago, a um “equívoco do pensamento”. O autor diz que a prática metódica não se confunde com a manifestação da mensagem do sintoma endereçada ao Sujeito Suposto Saber do ICS, pois o que se testemunha na clínica é a presença massiva de acting-outs e passagens ao ato. Há mais o ato do que o pensamento.
Miller (2014), em seu artigo “Jacques Lacan: observações sobre o conceito de passagem ao ato”, nos ajuda a entender as especificidades da passagem ao ato e do acting-out. Segundo o autor, Lacan faz a diferença entre dois atos: o bem-sucedido e o falho. E Miller indaga: “O que é o ato falho, senão o pensamento inconsciente que emerge no pensamento consciente, na fala, no corpo, e desloca o ato, faz com que diga outra coisa?”. Na experiência analítica, Lacan toma o ato verdadeiro a partir do paradigma da passagem ao ato suicida, havendo um “suicídio do sujeito”. O autor diz que a passagem ao ato desvela a estrutura do ato analítico, uma vez que o sujeito pode renascer de forma diferente a partir desse ato. Nessa perspectiva, “todo ato que marca, que conta, é transgressão. (…) uma ultrapassagem de um código, de uma lei, de um conjunto simbólico que ele infringe, e é a infração que permite que esse ato tenha a oportunidade de remanejar essa codificação”. Faz uma diferença entre ato e ação, agitação motora, pois “é preciso que haja também um dizer que enquadre e fixe esse ato. (…) para que haja ato, é preciso que o sujeito nele seja modificado por esse franqueamento significante” (MILLER, 2014, s/p.).
Já o ato suicida alcança o gozo em curto-circuito e, ao mesmo tempo, exclui o mundo subjetivo, o franqueamento significante. Nesse ponto, o ato visa o cerne do ser, que é o gozo. O suicídio atinge o mal encarnado pelo gozo, “essa coisa que o habita, que o corrói, e nesse momento o destrói”. E é por isso que o ato visa ao gozo. O sintoma traz esse gozo que faz mal ao sujeito, mas também o sustenta. Um gozo tal que “(…) quando se autonomiza, é até a morte” (ibid.).
Nesse viés, o ato suicida referente a uma passagem ao ato leva ao movimento curto-circuitado do gozo e é uma resposta ao embaraço em que se encontra o sujeito, que sai da cena. “O sujeito se subtrai, digamos, aos equívocos da fala como a toda dialética do reconhecimento; ele coloca o Outro em um impasse, e é por aí que o propósito do ato propriamente dito não é cifrável” (ibid.). Nesse sentido, o ato é o que separa do Outro e “o sujeito está eventualmente morto”. E, diversamente, no acting-out, há um enquadramento em um apelo, uma demanda endereçada ao Outro, uma cena “que é a fala, e o sujeito se põe a agir diante do Outro nessa cena. É preciso o Outro, é preciso o espectador”. Miller nos dirá que “a clínica da passagem ao ato nos lembra a inscrição temporal inevitável do ato — especialmente sob a forma da urgência” (ibid.), assim como “é no tempo precipitado que esconde a incidência do gozo” (MILLER, 2000, p. 69).
É com esses elementos que nos perguntamos qual é a temporalidade que concerne mais ao funcionamento dos toxicômanos com suas formas de agir e seus fenômenos, tais como a fissura e o ato de se drogar compulsivamente. Quando o ato de se drogar é uma passagem ao ato ou uma atuação? Quando o ato de se drogar é uma separação do Outro, apagando o sujeito? Quando o ato de se drogar pode ser um suicídio não violento, conforme diz Lacan (1938) sobre a toxicomania? Observamos que esses sujeitos estão sempre numa urgência configurada pela satisfação imediata, não se importando nem mesmo por preservar suas vidas, tal como na fissura. Ou, então, encontram-se na monotonia tanto do seu ato quanto da fala sobre a droga. O gozo do sintoma mais congruente com a toxicomania, que remete a sua iteração, pode ser um operador clínico para trabalharmos situações que surgem, tal como a fissura, ao pensá-la como um imperativo de gozo do supereu em que o sujeito é identificado ao seu ser de gozo (ALVARENGA, 2006). A angústia também é um operador clínico nessas situações na medida em que surge sem um gozo circunscrito.
Algumas situações em nossa prática nos chamam a atenção quanto ao agir dos pacientes. Entre elas, é comum, nas instituições que acolhem toxicômanos, aqueles que usam drogas dentro desses espaços, levando-nos a perguntar sobre a natureza desse agir: seria uma atuação? Nesse caso, qual endereçamento está sendo feito à equipe e o que não está sendo escutado? Seria todo uso de drogas dentro das instituições da ordem de uma atuação? Sendo assim, entender as situações a partir do caso a caso é imprescindível.
Enfim, as experiências vivenciadas pelos toxicômanos nos colocam diante do tempo a partir da urgência do gozo, da satisfação imediata, encontrando-se em um movimento de iteração incessante com um objeto artificial, que é a droga. Como fazer vacilar o tempo de urgência da satisfação do gozo na toxicomania e abrir um intervalo no tempo curto-circuitado do gozo? Nessa relação interceptada dos toxicômanos com o ICS na via do simbólico e suas formações, seria mais apropriado nos valer mais da concepção do ICS real para o manejo no tratamento com esses sujeitos?
[1] Abertura do Núcleo de Toxicomania, 2º semestre de 2019.