O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

 

 

IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com

 

Resumo

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.

Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.

Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.

Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.

 

 

Coletoras – Barbara Schall

 

“O horror, o horror”[1]

 

Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.

Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).

(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).

Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.

Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.

Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.

Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.

No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,

(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).

Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que

(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).

Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que

(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).

Miller continua apontando que o caráter é, então,

(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)

A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.

Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?

Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.

Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?


Referências
FREUD, Sigmund (1916). “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 325.
FREUD, Sigmund (1919). O Infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Autêntica, 2019, p. 29-115.
LACAN, Jacques (1950). “Premissas a Todo Desenvolvimento Possível da Criminologia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.131.
MILLER, Jacques-Alain (2011). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 109-145.
MILLER, Jacques-Alain (2011). Quando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós, p. 74.
MILLER, Jacques-Alain (2010). “Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Opção Lacaniana Online ano 1 – número 3 – Novembro de 2010.
[1] Coronel Walter E. Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla, 1979, baseado em Heart of Darkness, de Joseph Conrad.



O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO

LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO
Psicanalista em formação (Aluna do IPSM-MG), técnica em assuntos educacionais (IFMG).
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).
Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais  (UFMG). Pedagoga (UniBH).  livsazzi@gmail.com

 

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Resumo

Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual.

Palavras-chave: Histeria, feminilidade, semblantes do feminino.

Abstract: This paper seeks to locate the disjunctions of hysteria and femininity in Anaïs Nin’s diary (1931–1932/1986). To this end, three positions will be demarcated: (I) Anaïs position towards June, by electing her as The Woman; (II) Henry Miller’s role for Anaïs as the ideal man’s semblance; (III) the diary as a symptom of the elaboration of what to do in the face of non-sexual relations. 

Keywords: Hysteria, femininity, feminine semblance.7

 

Sobre o peso do meu corpo – Barbara Schall

 

Começo servindo-me da frase “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, que Lacan (2009) utilizou para intitular um dos capítulos do Seminário 18. Ao parafraseá-lo no título do presente artigo, substituo “um homem” por “o homem” e “a psicanálise” por “o imaginário”. A escolha desse título se deu não apenas pela inspiração que me tirou da inércia para iniciar este texto, mas, sobretudo, por parecer-me adequada ao enquadramento que proponho aqui: analisar as construções de Anaïs Nin (1931–1932/1986) acerca do feminino em Henry, June e eu: diários não expurgados 1931-1932, no qual a autora utiliza a escrita como forma de elaborar o seu processo de tornar-se mulher.

Cabe salientar que, em “De um discurso que não fosse semblante”, Lacan (2009) irá situar o leitor em três capítulos diferentes, nos quais ele destaca os seguintes enunciados: “O homem e a mulher”, “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. Dando atenção a isso, busquei compreender qual dessas nomeações seria mais apropriada para demarcar essas diferenças, e, ainda, em que medida essas noções ajudam a localizar, nas descrições feitas no diário íntimo de Anaïs, o modo como ela tentará resolver o enigma do feminino, partindo da hipótese de que o seu interesse por Henry e por June se desenvolve numa construção especular de homem e mulher. Posto isso, questiono: qual homem e qual mulher ela irá buscar nesses personagens?

Em “O homem e a mulher”, Lacan (2009) vai dizer que a mulher é precisamente a hora da verdade para o homem, quer seja, diferentemente dos termos “homem” e “mulher”, que demarcam a identidade de gênero, o que define o homem é a sua relação com a mulher, e vice-versa. Se essa relação existe, existe pela via de suporte de um semblante. No capítulo intitulado “O homem e a mulher e a lógica”, Lacan (2009) aconselha estudar a carta/letra, destacando a estrutura de ficção da verdade no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, na medida em que testemunha o ponto em que a ficção tropeça e se articula com a linguagem: a acentuada deficiência de certa promoção da relação sexual. Ele diz que a relação sexual fracassa ao ser inscritível na linguagem, precisamente porque a inscrição efetiva do que seria a relação sexual teria que relacionar os dois polos “homem” e “mulher”, termos estes que, em função da lógica, marcam o impasse sexual. Já no capítulo “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, faço os seguintes destaques: é num discurso que, sendo homens e mulheres, têm que se valer como tais; só há discurso de semblante, e este só se anuncia a partir da verdade, que, como tal, só pode dizer o semblante sobre o gozo.

Neste último capítulo aqui referenciado — que, na verdade, é o capítulo IX do Livro 18 — para designar um homem e uma mulher, juntamente com a psicanálise, Lacan enuncia a histérica como aquela que conjuga a verdade de seu gozo com “o seu saber implacável de que o Outro apropriado para o causar é o falo, ou seja, um semblante” (2009, p. 143). Em sequência, Lacan enfatiza que a histérica se atribui daqueles que ela finge serem detentores desse semblante, ao menos um — o qual Lacan teve necessidade de reescrever como ahomenozum. Todavia, há um problema, visto que, como Lacan pontua, “a histérica não é uma mulher” (2009, p. 145). Desse ponto, buscará saber se a psicanálise dá acesso a uma mulher.

Não proponho, aqui, psicanalisar os diários de Anaïs Nin, mas sim investigá-los, partindo dessa definição negativa de histeria, já que a histérica não é uma mulher, tal como aponta Márcia Rosa (2019, p. 76): “tornar-se mulher implica ter atravessado a histeria”, e acrescenta: “Há, portanto, uma disjunção entre os dois campos: da histeria e da feminilidade”.

Considerando tal distinção, desenvolverei este trabalho buscando localizar as disjunções da histeria e da feminidade nas descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin, correspondente aos anos de 1931-1932. O enredo, embora não seja o motivo da análise, permite a organização de três posicionamentos. Estes, sim, motivam a presente investigação, quais sejam: (I) a posição de Anaïs diante de June ao elegê-la, em suas palavras, “a única mulher que já correspondeu às exigências de minha imaginação”; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs quando ela diz sobre o casal: “Eles dois fazem parte de mim: a mulher que age como Henry e a mulher que sonha em agir como June” (1986, p. 91); e (III) o diário personificado como o seu fiel confidente, o sintoma de Anaïs: “O diário é produto de minha doença, talvez uma acentuação e um exagero dela” (p. 136) — é nele que Anaïs elabora suas descobertas e desordens em relação à sexualidade, é por meio dele que vai se dando conta do impossível da linguagem e do que fazer diante da não relação.

Quanto ao primeiro posicionamento, recorro ao clássico caso de Freud: “Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumava elogiar seu ‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado a um amante do que uma rival derrotada” (2006, p. 65, grifos do autor). Em paralelo, cito Anaïs ao referir-se a June: “Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, a esposa de Henry” (1986, p. 18). Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan (1998) vai constatar, como o próprio Freud reconheceu, que, durante muito tempo, não pôde deparar com essa tendência homossexual, tão constante nas histéricas, justamente pelo preconceito em considerar a primazia do personagem paterno.

Marie-Hélène Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro”, explica que a homossexualidade é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso Dora e da histeria em geral, sob a forma de tendência inconsciente não culminada num ato sexual. O texto de Brousse contribui para a localização desse elemento-chave do caso Dora: “O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher” (2015, p. 3).

Esse elemento também pode ser destacado no interesse de Anaïs por June e em suas tentativas de vincular os semblantes a algum significante de difícil apreensão. Por não ter o falo, ela busca vincular-se àquilo que ela crê que o possua, a posição masculina: “No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros” (NIN, 1986, p. 17).

Anaïs percebia que “o eu de June criado nos outros” nem sempre correspondia a sua June imaginária. Por exemplo, ao avistar June caminhando em sua direção, ela indaga em seu diário: “O homem no American Express não vê a maravilha que ela é?” (NIN, 1986, p. 20). Fatos como esse suscitaram-na a escrever: “Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando a multidão e sabendo que nenhuma June apareceria porque June era um produto de minha imaginação” (Ibid., p. 20).

Em “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998) vai dizer que, tal como o amor cortês, que se gaba de ser quem dá aquilo que não tem, “é exatamente isso que a homossexual se esmera em fazer no tocante àquilo que lhe falta”. A escolha homossexual na mulher não é uma escolha que elege um objeto incestuoso às custas do seu sexo, mas sim um impasse diante do inaceitável de que “esse objeto só assuma seu sexo às custas da castração”. Ele prossegue: “Em todas as formas, mesmo inconscientes, é sobre a feminilidade que recai o interesse supremo” (LACAN, 1998, p. 744).

Esse interesse supremo pela feminilidade na histeria é sintetizado por Brousse (2015), no caso Dora, pelo processo de identificação estabelecido por Dora ao Sr. K ou ao seu pai:

“A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma” (Brousse, 2015, p. 3, grifos meus).

Embasada nas inversões dialéticas expostas por Freud (2006) no caso Dora, destacadas e desenvolvidas em “Intervenção sobre a transferência”, em Escritos, por Lacan (1998), bem como nas contribuições de Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina…”, e de Rosa (2019), sobre “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”, posso afirmar, a partir do diário de Anaïs Nin, que há, no registro escrito da diarista, o enredo de uma escolha amorosa homossexual orientada para além do Édipo, quer seja, orientada pelo modo enigmático que a feminilidade se encarna para uma outra.

Tanto Dora quanto Anaïs colocam, respectivamente, o Sr. K e Henry como testas de ferro do desejo feminino. Assim como Dora, de acordo com Freud, “invejava o pai pelo amor da Sra. K e que não perdoava à mulher amada a desilusão que esta lhe causara” (2016, p. 66), Anaïs indaga em seus diários: “Será que amo Henry porque me identifico com ele e com o seu amor e posse de June?” (1986, p. 90). No entanto, ao que toca a identificação, diferentemente de Dora, que posicionava K apenas como um intermediário, e não como o homem com o qual ela vai sustentar um relacionamento como amante, Anaïs elege Henry o semblante do homem ideal e interessa-se por investigar como ser mulher para esse homem. Para isso, tenta assumir especularmente a posição masculina e, como um homem, investigar aquilo que aquela mulher tem e que interessaria a esse homem: “a amaria por sua beleza enquanto ela poderia me amar como se ama um homem, por seu talento, seu desempenho, seu caráter” (NIN, 1986, p. 90-91). Trata-se, aqui, de localizar o segundo posicionamento entre a histeria e a feminilidade de Nin.

Por fim, o último posicionamento de Anaïs. Ainda servindo das aproximações e diferenças com o caso Dora, esta, enquanto paciente de Freud, apresenta uma complexidade de sintomas no corpo que o próprio médico vai correlacionar como causados pelas desordens da vida psicossocial e “expressão dos seus mais secretos desejos recalcados” (FREUD, 2016, p. 19). Não pude localizar tais sintomas relacionados ao corpo nessa parte do diário sobre Henry e June, correspondente aos anos de 1931-1932. Ao que parece, os sintomas de Anaïs são seus próprios escritos. É no diário que Anaïs Nin elabora suas questões sobre a sexualidade e sobre o que fazer com essa June, sua June, pela qual ela nutria, em vão, a esperança de ver desmascarada. O que há é apenas uma June, uma June pelo que ela é, por si mesma, e, consequentemente, vê instaurada a falta em Henry e em si própria:

“Ontem à noite eu chorei. Chorei porque o processo pelo qual me tornei mulher foi doloroso. Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de uma criança. Chorei porque meus olhos estavam abertos para a realidade — para o egoísmo de Henry, para o amor de June pelo poder, para minha criatividade insaciável que deve preocupar-se com outras pessoas e não consegue ser suficiente a si mesma” (NIN, 1986, p. 177).

Paralelamente a essas descobertas, Anaïs vai arranjando, pela escrita, não apenas sua impotência diante de si mesma, decorrente da castração, mas, principalmente, vai tentando fazer com as palavras, intuitivamente, alguma amarração para o seu gozo.


Referências 
BROUSSE. M-H.“A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro” 2015. Trad. Márcia Bandeira. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/08/brousse.pdf Acesso em: 18, set. 2019.
Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2016.
LACAN, J.  (1951). “Intervenção sobre a transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
NIN, A. Henry, June e eu. Diários não expurgados 1931-1932. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986.
ROSA, M. “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”. Por onde andarão as histéricas de outrora. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.

 




UM MÍSTICO PARA A NOÇÃO DE GOZO FEMININO

RODRIGO SANTOS DA MATTA MACHADO
rsmattamachado@gmail.com
Psicólogo, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, diretor de clínica credenciada ao Detran, psicólogo clínico e aluno do módulo III do curso do IPSM–MG

Resumo: São João da Cruz apareceu em meio à psicanálise lacaniana como um instrumento de auxílio na transmissão do saber psicanalítico. Surge, portanto, nesse contexto, como um exemplo de místico prestigiado por Lacan, que o tinha como uma pessoa dotada. Investigaram-se a obra e biografias de São João da Cruz, buscando conhecer algumas importantes facetas da sua vida para melhor aplicação desse exemplo nas elaborações da tábua da sexuação. As facetas poética e mística de São João da Cruz foram úteis em importantes transmissões do psicanalista.

Palavras-chave: mística, gozo não-todo, poesia, Lacan, São João da Cruz.

A mystic for the notion of feminine enjoyment

Abstract: Saint John of the Cross has appeared within Lacanian psychoanalysis as a helpful resource in the transmission of the psychoanalytic knowledge. Saint John of the Cross emerges in such context as an example of a mystic esteemed by Lacan, who considered him to be a gifted person. The work of Saint John of the Cross, as well as a number of biographies written on him were examined, in an attempt to comprehend some of the most relevant facets of his life, and in the hopes of attaining a better application of such example in the elaborations of the sexuation table. The poetic and the mystical facets of Saint John of the Cross were useful in important teachings of the psychoanalyst.

Keywords: mysticism, not-all jouissance, poetry, Lacan, Saint John of the Cross.

 

Maltratado e abandonado, portando apenas papel e tinta no cárcere do mosteiro Carmelita Calçado, em Toledo, Espanha, São João da Cruz (doravante SJC) dá voz a sua mística e a sua poética. Esse importante santo da Igreja Católica, amplamente conhecido no contexto religioso, suscitou o interesse de Jaques Lacan em meio às suas elaborações psicanalíticas.

Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, no decorrer das formulações sobre o gozo não-todo fálico e sobre o lado feminino na tábua da sexuação, Lacan (1972-73/2008) menciona SJC explicitamente. O santo foi tomado, pelo psicanalista, como um representante da mística que teria algo importante a nos informar. No entanto, justamente por SJC se tratar de um homem, essa colocação teve o caráter de exceção, pois as mais comuns representantes da mística eram as mulheres, mas, como o próprio psicanalista francês indicou, SJC só ocupou esse lugar por estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha)[1].

Em decorrência da importância dada por Lacan ao místico, recorri à biografia e à obra de SJC em busca do motivo pelo qual este se tornou um exemplo precioso, principalmente na exploração da noção de gozo não-todo.

 

Breve biografia de SJC

João de Yepes nasceu em 1542, na cidade de Fontiveros, Espanha. Em sua primeira infância, viveu em extrema dificuldade devido à pobreza familiar e ao falecimento do pai e de um irmão mais velho. Aos dez anos de idade, ingressou em um colégio de ofícios e, depois, tornou-se coroinha em um mosteiro. Aos quatorze, entrou em um hospital como enfermeiro e recolhedor de esmolas e, em consequência, pôde frequentar aulas de Filosofia e Gramática. Aos 21 anos, ingressou para a ordem dos Carmelitas.

No momento em que estava insatisfeito com o pouco rigor das diretrizes espirituais de sua ordem, o frei teve um encontro com a carmelita Madre Teresa de Jesus (mais tarde, canonizada Santa Teresa de Ávila), que lhe apresentou um projeto de reforma do Carmelo que propunha maior rigor nas diretrizes espirituais, como ele desejava. Assim, em 1568, nasceu um novo braço da ordem, os Carmelitas Descalços masculino, e também João da Cruz — nome adotado por ele.

Poucos anos após o início da reforma, Frei João se tornou alvo de perseguição pelos Carmelitas Calçados contrários ao movimento, sendo sequestrado e encarcerado por duas vezes. A primeira, em 1575, foi curta, porém violenta, gerando sequelas físicas permanentes. A segunda, em 1577, durou oito meses e foi marcada por torturas corporais e mentais. Embora as condições do cárcere tivessem sido as piores possíveis, foi nesse período que surgiram as facetas mais importantes desse homem: a mística e a poética. Em agosto de 1578, ele conseguiu fugir e retomou sua função como reformador. SJC faleceu em 1591, aos 49 anos.

Em uma vida de superação, SJC alcançou destaque como religioso e místico, o que provavelmente contribuiu para o interesse de Lacan. Além desse destaque, a faceta de escritor do santo certamente fomentou a valorização desse homem por Lacan. O psicanalista, em uma comparação de SJC com Schreber, demonstrou um reconhecimento à poesia do místico:

 

“Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber.” (LACAN, 1955-56/1988, p. 96).

 

A poesia, por proporcionar uma entrada do leitor em uma “dimensão nova da experiência”, ganhou a função de avalista de autenticidade. O processo de criação da poesia pelo “sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica como o mundo”, presente em SJC, foi, para Lacan, o ponto marcante de distinção entre a escrita do místico e a de Schreber, que não teria o mesmo alcance. Assim, me lançarei a conhecer melhor a faceta poética de SJC.

 

A arte poética de São João da Cruz

 

O poeta SJC parece ter surgido, expressivamente, dentro do cárcere, em Toledo. Sua arte poética pareceu socorrer o frei das angústias, do sofrimento e do abandono vivenciados nessa ocasião. Ele “não aspirava criar uma obra que perdurasse ou que tivesse ecos mais amplos. Em resumo, não vivia para a arte, valia-se dela” (JIMÉNEZ, 1991, p. 16).

Nas poesias de SJC, é possível encontrar alguns temas e ideias recorrentes. A relação amorosa (amante-amado), a experiência de êxtase, a abnegação, o abandono, o gozo e a dor são frequentemente abordados, estando SJC, em inúmeras passagens, como sujeito da oração em uma posição feminina. Essa posição pode ser observada na seguinte estrofe:

 

“Ali me deu peito

e me ensinou ciência saborosa;

e dei-me de tal jeito,

a mim todo, ditosa:

ali lhe prometi ser sua esposa.”

(CRUZ, 1577-1585/1991, p. 43)

 

Os escritos poéticos ganham ainda mais ênfase ao seguirmos a tese apresentada por Jean Baruzi (1924/2001), que indicou que o melhor meio de aproximação da mística de SJC seria a sua poesia. Ele afirmou que o que há de mais original na experiência mística do santo se traduziu em seus primeiros cantos. Inclusive, Baruzi defendeu que SJC, por influência doutrinal, alterou seus escritos e poemas em um segundo momento, como se quisesse ocultar algo que, na experiência original, estaria fora de alguns preceitos religiosos que seguia. As expressões místicas contidas na sua poética seriam perturbadoras para a ordem Carmelita.

A intimidade da experiência mística de SJC com sua criação poética em um eu lírico feminino provavelmente sustentou o uso que Lacan fez de seu exemplo. Assim, vi também a necessidade de explorar as singularidades da mística SJC, para que tivesse maior compreensão sobre a noção pela qual estou transitando aqui.

 

A mística de São João da Cruz

 

Um místico aspira a uma relação outra, além da comum relação entre os seres falantes. Levando em consideração as concepções mais usuais, o místico é aquele que leva sua vida centrado na experiência de procura por um caminho para o Absoluto. SJC afirmava que “uma alma começa a servir a Deus até chegar ao último estado de perfeição[2], que é o matrimônio espiritual” (CRUZ, 1577-91/2002, p. 592).

A mística abarcaria toda uma maneira singular de viver para o alcance da união com Deus. Lacan, ao afirmar que “os místicos tentaram, por seu caminho, chegar à relação do gozo com o Um” (1968-69/2008, pp. 133-134), pareceu resumir teoricamente aquilo que ele entendeu sobre a experiência mística. A noção do Um, nesse contexto, ocupou o lugar que o Absoluto ou a Divindade ocupam para o místico na sua tentativa de união.

SJC é também conhecido como Doutor do tudo e nada[3], nome que indica a centralidade do seu ensinamento sobre o caminho que deve ser percorrido por aqueles que desejam o encontro com o divino. De modo sintético, Deus seria o tudo, o ser completo, aquele que sustenta toda a existência, e o ser humano seria a criatura que, para ter acesso ao tudo, deveria se colocar como nada, sendo a radicalidade do ato de abnegação o caminho principal para o encontro divino.

No mesmo sentido, Lacan indicou “que a porta de entrada da experiência mística seja muito precisamente a extinção completa, radical até suas últimas raízes, de todas as paixões do amor próprio” (1954/2008, p. 69). Essa abnegação possibilitaria a união do místico com a divindade e, consequentemente, permitiria a experiência de êxtase. Sobre o tema, afirmou SJC: “Em verdade, chegando ao estado da união divina, a alma goza de grande sossego em suas potências naturais e tem adormecido os seus ímpetos e ânsias sensíveis na parte espiritual” (1577-91/2002, p. 186).

Os momentos de êxtase são narrados de forma impactante, e o deleite vivido durante o contato com o transcendente é bastante intenso. Apesar do esforço em descrever esses encontros, pouco pode ser falado sobre eles: “Não nos é permitido conhecer as formas mais elevadas de experiência porque são muito inefáveis para poderem ser compreendidas pela inteligência humana” (BORRIELLO et al., 1998/2003, p. 407).

O êxtase parece guardar um mistério acessível apenas para aqueles que procuraram o caminho místico e alcançaram essa experiência de maneira plena. Muitas vezes os místicos lançam mão do recurso poético para tentar transmitir a experiência. SJC apresentou canções em íntima ligação com a união divina e afirmou que elas não poderiam ser totalmente desvendadas, pois seriam uma inspiração direta de Deus durante seus momentos de intimidade com Ele:

 

“Seria, ao contrário, ignorância supor que as expressões amorosas de inteligência mística, como são as Canções, possam ser explicadas com clareza por meio de palavras…

Essas Canções, tendo sido compostas em amor de abundante inteligência mística, não poderão ser explicadas completamente”. (CRUZ, 1577-91/2002, pp. 575-576).

 

Lacan também pareceu perceber a dificuldade no relato do êxtase ao afirmar que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (LACAN, 1972-73/2008, p. 82).

 

A mística e o gozo feminino

 

No Seminário 20, a noção de gozo da mulher entrelaça-se de forma relevante aos exemplos dos místicos em suas manifestações de êxtase. As narrativas desses efeitos levaram Lacan a entendê-los como um tipo de gozo gozo da mulher ou gozo não-todo.

Importa esclarecer sinteticamente que o gozo não-todo, no meu entendimento, é aquele que escapa/nega a ordem fálica. Já o gozo fálico pode ser entendido como “atributo essencial da posição masculina —, concebido como um regime libidinal normatizado e, portanto, submetido aos limites estritos do significante” (SANTIAGO, 2013, p. 90).

Lacan descreveu explicitamente que o místico, em seu êxtase, experimenta um modo próprio de gozo: “Para a Hadewijch em questão, é como para santa Tereza — basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida” (1972-73/2008, p. 82). A utilização dos exemplos místicos em meio às elaborações sobre a noção de gozo não-todo cumpre um papel elucidativo e de visualização. O psicanalista diferenciou esse gozo de outras possíveis interpretações e assim expôs, de modo sintético, todo seu entendimento sobre essa vivência da mística: “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (1972-1973/2008, p. 82). A mística, naquilo que ela tem de indizível e naquilo que a aproxima de uma vivência de um gozo feminino, articula-se definitivamente com noções concernentes ao plano do real. A utilização explícita do exemplo de SJC nas elaborações sobre a tábua da sexuação acrescenta ainda mais conteúdo para avançar na compreensão dessas articulações.

 

São João da Cruz e a tábua da sexuação

 

Na referência a SJC no Seminário 20, Lacan o colocou em lugar de destaque por ser um exemplo precioso para a argumentação teórica que vinha desenvolvendo. Referindo-se à mística, Lacan afirmou:

 

“É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais freqüentemente mulheres, ou bem gente dotada como são João da Cruz – porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do xФx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entrevêem, eles experimentam a idéia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos”. (1972-73/2008, p. 81-82).

 

SJC era, para Lacan, um autêntico místico. Além disso, para esse psicanalista, a mística estava intimamente ligada ao gozo não-todo. Por isso, SJC, inevitavelmente, ocuparia o lado da mulher na tábua da sexuação. Essa tábua, tendo uma divisão descritiva entre o lado do homem e o da mulher, foi uma maneira de exibir o modo como os sujeitos se colocam em sua relação com o Outro e também com o gozo envolvido nos dois lugares. A fiança da vivência mística estaria no gozo feminino, mas o referido místico foi o exemplo maior de que não se trata de ser uma mulher, mas de uma posição de gozo em sua relação com o Outro. Embora essa ocupação no lado da mulher não seja para qualquer um, ela foi condicionada ao fato de SJC estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha).

É possível concluir que o uso de SJC por Lacan, na elaboração sobre o lado da mulher na tábua da sexuação, ganha relevância, em especial, em razão da possibilidade de acesso à experiência de êxtase do santo por meio de sua poesia. Verifico, ainda, que a proximidade existente entre essa experiência e o entendimento lacaniano sobre o gozo não-todo é notada no uso espontâneo e constante pelo místico do eu lírico na posição feminina.

 


 

Referências
BARUZI, J. (1924) San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística. Junta de Castilla y León: Consejería de Educación y Cultura, 2001.
BORRIELLO, L.; CARUANA, E.; DEL GENIO, M.; SUFFI, N. (Dirs) (1998). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003.
CRUZ, J. (1577-85) São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
CRUZ, J. (1577-91). São João da Cruz: obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
JIMÉNEZ, F. Prefácio. CRUZ, J. São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
LACAN, J. (1954/2008) “Do símbolo e de sua função religiosa”. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e a verdade na neurose. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1968-69) O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. (1972-73) Le séminaire de Jaques Lacan, livre XX: encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SANTIAGO, J. (2013) “A plasticidade da sexuação feminina”. Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, n. 65, 2013, p. 89-92.

[1] No original: “gens dou és” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70). Optei por utilizar a versão em francês e traduzi-la à minha maneira, pois a tradução “bem gente dotada” (LACAN, 1972-73/2008, p. 81) não é uma expressão usual de nossa língua.
[2] O estado de perfeição refere-se ao estado de união divina.
[3] Essa nomeação de SJC é o subtítulo de uma das biografias consultadas neste trabalho.



Almanaque On-line Março/2020 V. 14 – Nº 24

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EDITORIAL

Ludmila Féres Faria


Voilá! Chegamos à 24ª edição da revista Almanaque On-line, que tem a religião como tema principal. O mote da escolha foi a constatação do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil… [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
Uma época fundamentalmente descrente – Dalila Arpin
Glosa Sobre uma bússola – Antônio de Ciaccia
ENTREVISTA
As religiões vêm no lugar das adições – Marie Hélène Brousse
A religião e a verdade – Frei Betto
ENCONTROS
Crença e Nome-do-Pai – Alessandra Rocha
INCURSÕES
O tempo faz sintoma no inconsciente à céu aberto – Fernando Casula

O tempo e o inconsciente – Guilherme Ribeiro

A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias – Cláudia Generoso

DE UMA NOVA GERAÇÃO
A solidão e o isolamento nas psicoses – Fernanda do Valle

Psicanálise nas instituições: relato de experiência Pai-PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Kelen Cristina Silva




Editorial – Ludmilla Féres Faria

Ludmila Féres Faria

 

 

Voilá! Chegamos à 24ª edição da revista Almanaque On-line, que tem a religião como tema principal. O mote da escolha foi a constatação do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil — que, segundo o IBGE, terá uma população maior que a católica em 2030 — e, em especial, do uso crescente da religião em assuntos do Estado — na maioria das vezes, com um uso segregatório. Tais fenômenos vão ao encontro da afirmação de Lacan durante uma entrevista dada em Roma, em outubro de 1974, sobre o futuro da religião. Nela, o psicanalista francês afirma que a religião triunfará e acrescenta: “não apenas triunfará sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas também. É impossível imaginar quão poderosa é a religião”. Os desdobramentos dessa afirmação podem ser encontrados neste número da revista do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

Em Trilhamentos, no texto “Uma época fundamentalmente descrente”, Dalila Arpin distingue descrença de incredulidade, e mesmo de ateísmo, para mostrar que a descrença — a falta de uma crença ordenadora — dos dias atuais leva ao surgimento de sujeitos que demandam certezas. Em “Glosa sobre uma bússola”, Antonio di Ciaccia questiona a relação entre o sujeito e o Outro a partir da distinção entre duas bússolas humanas do homem religioso: a crença e a fé. Os dois autores procuram esclarecer a posição do psicanalista nessa seara.

Os entrevistados deste número são Marie-Hélène Brousse e Frei Betto. Brousse, de forma clara, como é seu estilo, esclarece que, embora a psicanálise não seja uma antirreligião, o psicanalista pode ler a religião como uma escolha sintomática. Um vício legal. Em seguida, a Almanaque pôde escutar a leitura de Frei Betto sobre o momento atual da religião do Brasil, por exemplo, sobre as consequências do que ele próprio chamou do “confessionalização da política”. Não deixem de ler.

Ainda sobre o tema da religião, o texto “Crença e Nome-do-Pai” de Alessandra Thomaz Rocha, em Incursões, trata da relação entre crença e Nome-do-Pai buscando elucidar a proximidade e a intimidade entre eles. Evidencia de que maneira ambos tocam a questão do saber e da autoridade, bem como a questão da verdade e da ficção e como se diferenciam.

Na rubrica Encontros, contamos com os trabalhos apresentados nos Núcleos de Pesquisa do IPSM-MG — todos sobre o tema da XXIII Jornada da Seção Minas da EBP, “O tempo na experiência analítica”. O texto de Guilherme Ribeiro, “O tempo e o inconsciente”, aborda as relações entre o tempo das sessões analíticas e o inconsciente. Fernando Casula parte do conceito lacaniano de “inconsciente a céu aberto” para elucidar a incidência do tempo, nesse inconsciente, que está descoberto da metáfora paterna, enquanto Cláudia Maria Generoso privilegia, em seu texto “A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias”, o questionamento da relação entre a passagem ao ato, o acting-out e a iteração do Um sozinho.

As contribuições de Fernanda do Valle, em “A solidão e o isolamento nas psicoses”, e de Kelen Cristina Silva, “Psicanálise nas instituições: relato de experiência PAI- PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais” são encontradas na rubrica De uma nova Geração, com a qual fechamos este número do Almanaque.

Mais uma vez, a equipe de publicação do IPSM-MG buscou escolher textos e imagens que despertem o desejo de trabalho em cada leitor. Agradecemos aos autores que enviaram seus textos e, em especial, aos artistas que nos cederam suas lindas imagens para deixar este número ainda mais rico.

Boa leitura!




Uma época fundamentalmente descrente – Dalila Arpin

Resumo
A autora distingue descrença de incredulidade, e mesmo de ateísmo, para mostrar que a descrença — a falta de uma crença ordenadora — dos dias atuais leva ao surgimento de sujeitos que demandam certezas. Pergunta-se como a psicanálise pode responder a isso, já que um de seus conceitos fundamentais, a transferência, é posto em causa por todos desejarem ser sujeitos supostos saber. Os escritos de Franz Kafka comparecem como exemplos desse mundo angustiado onde falta a crença no Outro.

Palavras-chave: crença, descrença, certezas, Outro, angústia.

Abstract
A fundamentally disbelieving age
The author distinguishes between disbelief and incredulity and even atheism to show that disbelief — the lack of an ordering belief — nowadays leads to the appearance of subjects that demand certainties. She asks how psychoanalysis can respond to that because one of its main concepts — transference — is questioned since everybody wants to be a subject supposed to know. Franz Kafka’s writings come up as examples of this anxious world in which belief in the Other is missing.

Keywords: belief, disbelief, certainties, Other, anxiety.

 


Foto de Nelson de Almeida

 

 

DALILA ARPIN
Psicanalista, membro da Escola da Causa freudiana – ECF/AMP

 

Em nossos dias, fala-se da falta de confiança, da incerteza, da perda das ilusões — várias tentativas de reestabelecer a crença no Outro da boa fé. Uma leitura atenta demonstra que alguns fenômenos contemporâneos não se explicam por uma perda de crença, mas pela presença da descrença — Unglauben —, uma noção que a psicanálise ampliou para além do terreno religioso.

O mundo não é mais o que era

Muitos filósofos assinalaram a descrença, o ceticismo e até a ausência total de crença em nossa época. Nesse sentido, Jacques Bouveresse afirmava:

Mesmo ao se dizerem descrentes, alguns intelectuais colocam-se hoje como defensores da religião em nome de coisas como a necessidade de sagrado e de transcendência, ou o fato de que o laço social só pode ser, em última instância, de natureza religiosa. Mas o que se observa atualmente corresponde sem dúvida menos a um ‘retorno do religioso’ do que ao que Musil chamou de a ‘nostalgia da crença’, que uma época de outro modo fundamentalmente descrente tem uma desagradável tendência a confundir com a própria crença. E o que enfrentamos, na realidade, é mais um novo uso da religião — naquilo que ela pode comportar de mais tradicional e até mesmo de mais arcaico — pelo poder e a política, do que um renascimento religioso propriamente dito (BOUVERESSE, 2007, texto da contracapa).

Por sua vez, Marcel Gauchet apontava, em O desencantamento do mundo (1985), o luto necessário após o desmoronamento das utopias de 1968. Ele indicava que a saída da religião não significa a saída da crença religiosa, mas de um mundo no qual a religião é estruturante, onde ela comanda a forma política das sociedades e onde ela define a economia do laço social.

Estamos, definitivamente, na época d’O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se crer é crer no Outro, a crença está comprometida/prejudicada na sociedade contemporânea. “O Nome-do-Pai se trincou”, como disse Jacques-Alain Miller (2014, p. 22). As referências das quais dispúnhamos não estão mais ao nosso alcance, e assistimos à “grande desordem no real no século XXI” (Ibid., p. 23). Como psicanalistas, recebemos cada vez mais sujeitos que não creem no Outro, que demandam garantias, que são céticos, que exigem resultados… Na paisagem de descrença atual, a crença na psicanálise não constitui exceção. A transferência, conceito psicanalítico e pivô essencial de um tratamento, não é mais o que era. A questão se coloca agora: como operar nesse contexto com os meios da psicanálise?

Essa crença a meio-mastro determina o surgimento da angústia diante de um real desregulado, o ponto exato em que Freud localizou o nascimento das religiões (FREUD, 1927/1996). O homem primitivo, confrontado com as forças indomáveis da natureza, talhou divindades capazes de vir em seu auxílio no seu desamparo. Essa invenção foi extremamente tranquilizadora e lhe permitiu suportar a inclemência da natureza. Uma vez que somos confrontados à grande desordem do real, as soluções contemporâneas dão conta não mais do surgimento de crenças, mas da busca de certezas. Seguindo Freud e Lacan, constata-se que a certeza se distingue da crença; ela é própria da descrença.

Uma descrença certa demais

O senso comum da descrença está relacionado à ausência de crença religiosa e é frequentemente considerado sinônimo de ateísmo (LE ROBERT, 1996). O termo “crer” (LE ROBERT, 1988) tinha, a princípio, significados profanos e se relacionava à confiança depositada em qualquer coisa ou pessoa. É a introdução do cristianismo que o circunscreve à esfera religiosa. O termo “descrença” é introduzido apenas no século XIX, pela mão de Chateaubriand. Essa palavra permanece pouco comum, frequentemente em concorrência com “incredulidade”, recusa a crer. O termo “descrente” fez sua aparição um século mais cedo, mas foi de repente abandonado em favor do termo “não-crente”. De tal modo que a descrença, termo tardio e pouco corriqueiro, não conseguirá, posteriormente, se livrar do sentido religioso. É a psicanálise que vai ampliar sua acepção para além do sentido religioso. Freud emprega o termo Unglauben — que é possível traduzir como descrença — a propósito da paranoia na qual, diferentemente da neurose obsessiva, nenhum crédito é dado à censura (FREUD, 1896/1996, p. 135). A censura volta-se para o exterior e o outro é considerado responsável por ela. O sintoma primário é, conforme o caso, a desconfiança. Na neurose obsessiva, mais caracterizada pela autocensura e pelo sintoma da escrupulosidade, a Unglauben aparece, então, como o que separa essas duas entidades clínicas.

Para Lacan, a descrença ocupa um lugar importante no início de seu ensino. No seminário sobre as psicoses afirma que o que caracteriza a psicose é que, entre as duas funções da fala, fides e fingimento, a segunda invadiu a primeira (LACAN, 1955-56/1988, p. 47). Na dimensão de um imaginário submetido, um exercício permanente do engano vai subverter toda a ordem, qualquer que seja. No Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a noção de Unglauben é mais bem esclarecida (LACAN, 1964/1996, p. 225). Na crença, dois elementos se separam: o sujeito dividido, que crê, e o sujeito suposto saber, aquele a que se dá crédito. Para um sujeito dividido — aquele para quem uma parte do aparelho psíquico é o inconsciente —, a crença nunca é plena nem absoluta. Ora, a descrença não é “não crer nisso”, mas a ausência do primeiro termo da crença: o sujeito dividido. Ela se define como uma apreensão em massa da cadeia significante que impede a abertura dialética própria à crença. A paranoia, que parece estar animada de crença, está mais do lado da descrença. Na medida em que a dialética está excluída dela, a descrença tende a deslizar em direção à certeza.

Assistimos atualmente a uma busca desenfreada de certezas. Assim como a escalada de fundamentalismos, que recrutam cada vez mais acólitos entre os jovens ocidentais. A religião é instrumentalizada em benefício de uma ideologia de dominação, de tal modo que aqueles que são seduzidos por ela seguem ensinamentos impregnados de certezas. A relação da certeza com a pulsão encontra sua expressão última na matança. A existência de enciclopédias na web constitui um outro exemplo. O leitor é também autor e pode modificar o texto que, em seguida, será compartilhado ou mesmo modificado por outros leitores dos quais não se requer nenhuma qualificação. Qualquer um pode contribuir para o saber planetário, de tal modo que somos todos sujeitos supostos saber.

Franz Kafka, poeta do extravio

Um escritor do século XX, pela errância que lhe era própria, soube antecipar nossa época fundamentalmente descrente. “Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (KAFKA, 1997, p. 9). É assim que começa O processo, uma das obras-primas do escritor tcheco. Ele é confrontado com um mundo e um tempo que o deixam perplexo. Um mundo hostil, de pesadelo e arbitrário:

[…] absorvi vigorosamente o elemento negativo do meu tempo, um tempo que me é muito próximo, que não tenho que combater, mas tenho o direito, até certo ponto, de representar. Em seus poucos elementos positivos — como ao negativo extremo que se torna positivo — não tive participação hereditária. Não fui como Kierkegaard guiado pela mão já bastante debilitada sem dúvida do cristianismo e nem como os sionistas agarrei a custo a última franja do xale de prece judeu que esvoaça” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 220).

O apelo à religião, fosse ela judaica, fosse cristã, não lhe deu nenhum auxílio. O historiador Saul Friedländer constata que, se Kafka se documentou abundantemente sobre a literatura ídiche de sua época, foi em busca de uma fonte de inspiração literária. Esse historiador se pergunta sobre as fontes judaicas da literatura de Kafka e conclui que apenas a novela intitulada “Em nossa sinagoga” lhe faz uma referência explícita. Um animal de tamanho e cor imprecisos a elegeu como domicílio. Sua infelicidade é habitar um lugar que é animado apenas temporariamente e fadado a transformar-se em celeiro. Como Friedländer sugere, a história poderia representar “o aspecto indeterminado e a ’cor’ incerta da judaicidade, tal como Kafka a percebia”, assim como a erosão do judaísmo europeu (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 98). Kafka ele próprio se considerava “excluído pelo seu judaísmo não sionista […] e não crente” (KAFKA, 1988, p. 696).

Numa carta a seu amigo e biógrafo Max Brod, ele expressa a grande angústia que se apoderara dele uma noite, impedindo-o de dormir. Ele tem a impressão de viver uma “descida em direção aos poderes obscuros” (KAFKA, 1984, p. 1.156), onde os espíritos naturalmente acorrentados se soltam. É então que “o diabólico da coisa lhe parece bem claro. É a vaidade e o apetite de prazer” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 224). É nesse momento que, buscando uma saída, ele se volta para a escrita. No entanto, mesmo ela lhe parece fraca comparada às “forças do Mal”, considerando-a “um salário a serviço do diabo” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 223). Ele se vê sobre um “solo tão frágil, talvez totalmente inexistente, por cima de um buraco de sombra, de onde os poderes obscuros saem à vontade para destruir [sua] vida” (KAFKA, 1984, p. 1.155).

O tom é desesperado: “Tudo é quimera, a família, o escritório, os amigos, a rua, tudo é quimera e quimera mais ou menos distante, a mulher; mas a verdade mais próxima é que você bate a cabeça contra a parede de uma cela sem porta nem janela” (KAFKA, 1984, p. 514).

A oposição é clara entre o fundo de angústia, de depressão, de desencanto e o aparecimento da certeza: ele é presa de forças maléficas que se imiscuem até mesmo na sua esperança de saúde, a escrita.

Seja em O castelo, seja em O processo, o personagem principal está às voltas com uma autoridade que ele não chega a identificar nem a enfrentar (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 231). As prisões são arbitrárias, e, as condenações, inexoráveis. As narrativas descrevem o longo caminho do personagem, até sua queda. Nada pode ser contra a Lei, pois a própria existência da Lei pode ser questionada. Como sugeriu Éric Santner:

[O] discurso de mestre [que implica a existência da Lei] foi atenuado e disperso num campo de relés e pontos de contato que não possuem mais nenhuma coerência, nem mesmo na fantasia, como um “outro” consistente de possível endereçamento e reparação. Em Kafka, a Lei está em todo lugar e em lugar nenhum (SANTNER, 2006, p. 22).

Em Investigações de um cão, um dos últimos textos do escritor, um velho cão busca compreender diversos aspectos da “raça canina”, examinando o maior número de elementos que a concernem. “Onde estão, portanto, meus congêneres? Sim, esta é a queixa — precisamente esta” (KAFKA, 2002, p. 174), exclama o cão com amargura. O cão aqui pega o bastão de Diógenes, pois, em alemão — bem como nas línguas latinas —, uma aproximação é possível entre as palavras cão (Hund) e cínico (hündisch)[2] (KAFKA, 2002, p. 176). Por meio dessa parábola, o autor exprime sua incapacidade de reconhecer o mundo dos homens e de suas convenções. Essa história visa a provar, como sustenta Saul Friedländer, os limites do entendimento humano, a incapacidade de perceber certos aspectos da existência: “Essa busca pode não ter sido abandonada, mas ela tornou-se de agora em diante interminável, fonte de mais ceticismo ainda, de desencanto e ironia” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 235).

O cão constata: “Não; o que também objeto à minha época é que as gerações anteriores não foram melhores que as mais novas; num certo sentido foram muito piores e mais fracas. […] mas os cães ainda não eram – não consigo exprimi-lo de outro modo – tão caninos[3] como hoje em dia…” (KAFKA, 2002, p. 176). Atualmente, não obstante as tentativas de redourar o brasão da crença, reinstalar o Nome-do-Pai não é mais possível. Tornou-se difícil situar o Outro na cultura. Como consequência, é a busca de certezas que ameaça o sujeito. A descrença é, então, o destino comum dos sujeitos contemporâneos. Quase ouviríamos Kafka dizer que a ordem simbólica não é mais o que foi

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Michelle Sena

 

 

 


Referências
BOUVERESSE, J. Peut-on ne pas croire? Sur la verité, la croyance et la foi. Marseille: Editions Agone, 2007.
FREUD, S. (1896). “Manuscrit K”. In: Naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996.
FREUD, S. (1927). “O futuro de uma ilusão”. In: Obras completas de Sigmund Freud. vol XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FRIEDLÄNDER, S. Kafka, poète de la bonté. Paris: Seuil, 2014.
GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
KAFKA, F. Investigações de um cão. In: Narrativas do espólio. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KAFKA, F. Oeuvres completes III, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1984.
KAFKA, F. Oeuvres completes IV, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1988.
KAFKA, F. O processo. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LACAN, J, (1955-56) O Seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
LACAN, J, (1964) O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
Le Robert, dictionnaire de la langue française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1996.
Le Robert, dictionnaire historique de la langue française, sous la direction d’Alain Rey. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1988.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI: Apresentação do tema do IX Congresso da AMP.”, In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
SANTNER, E. On creaturely life, Rilke, Benjamin, Sebald. Chicago: The University Chicago Press, 2006.cado em La Cause Du Désir, nº 90, jun. 2015.
[2] Na edição em português, as palavras usadas são “cão” e “canino”. A tradutora manteve a palavra “cínico” por causa da referência ao filósofo cínico Diógenes. O termo grego kunikós, que originou o termo latino cynicus, significa “o que concerne a cachorro; cínico”. Os filósofos receberam esse nome porque viviam nas ruas “como cães” (N.T.).
[3] Ver nota 2.



Glosa Sobre uma bússola – Antônio de Ciaccia

Resumo
Nas religiões monoteístas, há diferença entre crença e fé. A crença é uma opinião considerada verdadeira e a fé o efeito de um encontro entre um sujeito ou um povo com um Outro que lhe fala. No entanto, na psicanálise Lacan opera um deslocamento em relação ao pivô que organiza a fé. Esse ponto será a palavra enquanto tal e a única relação em jogo será a do sujeito com a palavra.

Palavras-chaves: crença, fé, palavra, psicanálise, religião

Abstract
In monotheistic religions, there is a difference between belief and faith. Belief is an opinion considered true and faith is the effect of an encounter between a subject or a people with an Other who speaks to them. However, in psychoanalysis Lacan operates a shift in relation to the pivot that organizes the faith. This point will be the word as such and the only relationship at stake will be that of the subject with the word.

Keywords: Belief, faith, Psychoanalysis, religion

 

 


Foto de Nelson de Almeida

 

 ANTONIO DI CIACCIA
Psicanalista, membro da ECF.

 

Entre todas as bússolas humanas (cf. MILLER, 2015), há uma que denota o homo religiosus: a fé. A palavra adquire uma conotação precisa no âmbito das três religiões monoteístas, a saber, de todos aqueles que seguem os passos de Abraão, que é “o pai de todos os que aderem” (Rm., 4,11).

As palavras para dizê-lo

No monoteísmo, se desdobram o sentido e a significação de uma verdadeira constelação que gira em torno do termo “fé”, e entram em jogo dois polos que nomearemos, para simplificar, o sujeito e o Outro.

Em geral, os termos “fé” e “crença” são usados como sinônimos, mas, enquanto a fé diz respeito a esses dois polos, a crença diz respeito a apenas um, o sujeito. De fato, a crença, encontrada em todo homem e em toda comunidade, implica uma opinião considerada verdadeira e segura. Ela diz respeito tanto ao indivíduo quanto à coletividade e se refere a noções ou conceitos cuja demonstração não pode ser produzida. Trata-se, em suma, de uma convicção de um sujeito ou de uma comunidade inteira em relação à existência de algo ou de alguém. Na maioria das vezes, no que diz respeito a assuntos religiosos, a crença está presente em toda teoria. A crença, definitivamente, está ligada ao pensamento.

A fé, ao contrário, é uma questão de palavra. É o efeito de um encontro de um sujeito ou de um povo com um Outro que lhe fala. Para permanecer na tradição judaico-cristã, é pela palavra que Yahvé se anuncia a Moisés (Ex., 3, 1-15), o qual irá lhe responder através de uma fé sólida (Hb., 11, 23-29), e, no Novo Testamento, em sua “Epístola aos Romanos”, São Paulo insiste na fé como efeito da palavra (Rm, 10, 17). Desde então, se toda fé comporta a crença, nem toda crença comporta a fé.

Partamos do texto bíblico. No Antigo Testamento há uma variedade de vocábulos que refletem a complexidade da atitude do crente e que, fundamentalmente, estão correlacionados a duas raízes: aman, que remete à firmeza e à certeza, e batah, que remete à confiança.

No século III antes de Cristo, os tradutores judeus da Bíblia para a versão grega, a Septante, tiveram que inventar os termos, pois os gregos acreditavam em deuses e não tinham palavras apropriadas para expressar a crença em um só Deus. Eles então traduziram a raiz –batah pelos termos elpis, elpizo, pèpoitha, que São Jerônimo fez, na versão latina, a Vulgate, por spes, sperare, confido, que foi traduzida em francês por “espoir”, “espérer”, “avoir confiance”, “se fier en[1]. A raiz –aman, ainda presente em nosso amém, foi traduzida em grego pelos termos pistispisteuoaletheia, em latim, na Vulgate, por fides, credere, veritas, e enfim, em francês, por “foi”, “croire”, “verité[2].

O estudo dos termos bíblicos apresenta, portanto, a fé segundo estas duas vertentes: por um lado, a confiança, colocada pelo sujeito, dirigida a esse Outro que lhe fala e que é fiel à sua palavra, e, por outro lado, um certo passo do sujeito que lhe permite aceitar essa palavra vinda do Outro, uma palavra que lhe dá acesso ao que São Paulo chama de “a prova das realidades que não se vê” (Hb., 11:1). Nas línguas romanas, o termo em latim fides está na origem do termo “fiel”, empregado em geral como sinônimo de crente. No texto bíblico, entretanto, esse termo é inicialmente uma prerrogativa de Yahvé, definido quando de sua revelação a Moisés como “rico em graça e em fidelidade” (Ex., 34, 6). A fidelidade (emet) quer dizer que a palavra de Yahvé não mente e não se retrata (Nm., 23, 19), embora não houvesse meios de discutir com ele, como o diz Jó em sua aflição (, 9,32). De fato, entre a palavra de Yahvé e a do homem, existe uma profunda imparidade, se quisermos utilizar um termo caro a Lacan. Se Yahvé é fiel, seu povo, ao contrário, oscila entre uma irredutível infidelidade, que o deixa surdo e cego (Is., 42, 18ss). Essa é a origem da cólera divina, pois a fidelidade que Yahvé exige de seu povo é que tenham um pacto de aliança (Jó, 24, 14). Finalmente, é pela contiguidade com a fidelidade divina que o homem pode se dizer fiel. No cristianismo, essa fidelidade é encarnada, por antonomásia, por Cristo.

No entanto, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o crente não pode ser fiel sem receber essa fides, essa fé, como um dom que lhe chega por parte de Deus, dom gratuito que provém de Yahvé, o Fiel, mas também aquele que é rico em graça (ben), uma outra das prerrogativas divinas. Esse termo, que se diz em árabe, no islã, pela palavra “misericordioso”, se tornou, em grego, Karis e foi traduzido em latim por gratia. É pela graça de Deus que o fiel recebe o dom da fé em Deus.

Vamos compartilhar esses termos de acordo com os dois polos da experiência religiosa. A graça é uma prerrogativa de Deus. A fé é um dom que a graça de Deus faz ao homem, que lhe permite aceitar a palavra de Deus, a saber, a revelação. De sua parte, o homem pode ser um homem de fé, ou seja, capaz de confiar na palavra de Deus, de ter confiança nele, como o profeta sugere (Jr., 17, 5-7), mas também de ser fiel a sua própria palavra: “Que vossa linguagem seja: Sim? Sim. Não? Não.” (Mt., 5, 37). Ora, essa confiança na palavra do Outro, a própria possibilidade de receber essa palavra, não deixa de ter uma prerrogativa, dessa vez, tipicamente humana, a humildade, cujo paradigma é dado por Moisés, “o homem mais humilde que a terra tenha criado” (Nm., 12, 3). Somente a humildade permite ao homem ouvir a palavra de Yahvé, “devorá-la em êxtase e alegria”, usando as palavras de Jeremias (Jr., 15, 16). “Confiança e humildade são de fato inseparáveis”[3], lembra o monge Marc-François Lacan.

E a psicanálise? Não há conexão…entre o sujeito e o Outro

Lacan, Jacques, desta vez, não sem conhecer essas indicações, vai operar um deslocamento essencial em relação ao ponto pivô que organiza a fé. Esse ponto deixa de ser a relação entre o sujeito e o Outro. Será a palavra enquanto tal, e a única relação em jogo consistirá, de agora em diante, essa do sujeito à palavra, “que se revela na questão do que falar quer dizer” (LACAN, 1998, p. 332–333). Todavia, é por uma “verdadeira” humildade (Ibid.) que cada um poderá acolher um discurso. No entanto, acolher o que o sujeito “quer dizer” já deixa claro que ele não o diz. Mas o que quer dizer esse “quer dizer” é uma dupla escuta que compete ao ouvinte: escutar o que o falante quer lhe dizer pelo discurso que lhe dirige ou o que esse discurso lhe ensina sobre a condição do falante.

Assim, não somente o sentido desse discurso reside naquele que o escuta, como é também de sua acolhida que depende quem o diz, ou seja, ou é o sujeito a quem ele dá sua confiança e autorização, ou é esse outro que lhe é dado por seu discurso como constituído. […] Ora, o analista apodera-se desse poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência (Ibid. p. 331).

É, pois, a palavra que tem o poder de distribuir as cartas, embora os atores em jogo permaneçam os mesmos: o locutor e o ouvinte. Não é mais o poder de Deus, mas o poder da palavra enquanto tal que exige a humildade da acolhida, a confiança e a fé nela. E é em nome da palavra que o analista toma esse poder até o ponto que “ele impõe ao sujeito, no dito de seu discurso, a abertura própria da regra que lhe atribui como fundamental” (Ibid. p. 333).

O céu esvaziou-se do poder da palavra. Ela está esvaída e seu poder se reduz à relação que o homem mantém com ela. Da mesma maneira, Lacan desloca a constelação em torno da fé tal como declina a tradição religiosa no que chamamos virtudes teológicas: a fé, a esperança e a caridade. Da esperança, Lacan fala, em “Televisão”, respondendo pessoalmente a seu interlocutor, Jacques- Alain Miller, que lhe havia proposto as três questões retomadas por Kant do dominicano Agostinho de Dácia para a formação dos irmãos pregadores. Uma das quais foi formulada nestes termos: “O que me é lícito esperar?”. Sua resposta é: “Espere o que lhe aprouver” (LACAN, 2003, p. 540).

Ainda em “Televisão”, Lacan trata também da caridade. Falando do psicanalista e nomeando-o segundo o termo de “santo”, emprestado da tradição religiosa, ele diz que, como este último, o psicanalista “não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade” (Ibid, p. 518). Lacan joga com o equívoco e com os deslizamentos entre as línguas. Se a palavra “caridade” provém do latim, significa amor ao próximo que nos é carus e pode se abrir para uma reciprocidade que São Tomás de Aquino chama de amizade, retomando a philia aristotélica. O termo charitas também ressoa do termo grego Karis, que significa graça. O analista não se situa em relação a seu analisante do lado de quem faz caridade, que esbanja ao próximo um amor que seria um efeito do dom da graça. Tampouco precisa se situar como alguém que expande a graça feita ou não ao sujeito, salvo se for louco. Mas ele deve se ater ao que a estrutura da linguagem impõe, ou seja, “permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa de seu desejo” (Ibid, p. 518).

Enfim, a fé. Lacan dirá que o analista não tem que tomar posição sobre a conveniência ou não de uma crença. Neste breve artigo, eu me referirei a uma passagem de Lacan na qual é esclarecida a utilização do verbo crer, limitando-me às significações de “croire à” e “croire en[4]. Esse verbo, assim utilizado, se situa, de fato, no cruzamento dos dois termos de fé e de crença, e pode se aplicar tanto a um quanto a outro. Essa possibilidade de mal-entendido inclusa na língua resultou em grandes disputas entre Roma, Lutero e Calvino no que concerne notadamente à exegese dos textos de São Paulo. Não é o mesmo dizer, por exemplo, que acreditamos “nos deuses” e de dizer que acreditamos “em Deus”. A expressão “croire à” quer dizer que o sujeito está convencido da conveniência de uma proposição, de uma descoberta ou de uma hipótese, enquanto que a expressão “croire en” quer dizer “ter confiança em”, “se fiar a”, portanto, ter a fé, entendida aqui como uma virtude teológica.

No seminário Mais ainda, Lacan, após ter falado da existência de Deus e de ter sido zombado pelos teólogos, pouco inclinados a crer nisso, exclama: “vocês vão ficar todos convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo da mulher no que ele é a mais, com a condição de que esse a mais, vocês coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem” (LACAN, 1985, p. 103).

O céu esvaziou-se. Para o falasser, resta a função e o poder da palavra, sem outra garantia senão sua ocorrência, seja sua imanência.

 

Tradução: Maria de Fátima Ferreira
Revisão: Luciana Silviano Brandão

 

 


Referências

 

LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
LACAN, J. “Televisão”. Outros escritos. In: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. O Seminário, livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER J-A. “Uma fantasia”. In: Mental, n. 15. fev. 2015.
[1] Em português, respectivamente, “esperança”, “esperar”, “ter confiança”, “confiar em”.
[2] Em português, respectivamente, “fé”, “crer”, “verdade”.
[3] Cf. deste autor os artigos “Confiança”, “Fidelidade”, “Alegria”, “Humildade”, Vocabulário de Teologia bíblica, Paris.
[4] Em francês, o verbo croire (crer) prevê as preposições “à” e “en”, cujo uso se adequa a variações semânticas. Em português, no entanto, utilizamos o verbo “crer”, como TI, apenas sob a regência da preposição “em”.



As religiões vêm no lugar das adições – Marie Hélène Brousse

ALMANAQUE ENTREVISTA MARIE-HÉLÈNE BROUSSE

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Foto de Nelson de Almeida

 

 

ALMANAQUE: Temos hoje uma diminuição da crença e um aumento da fé. O que você poderia nos dizer sobre o crescimento das religiões, das seitas ultraconservadoras e do fundamentalismo?

MARIE-HÉLÈNE BROUSSE: O que a psicanálise pode dizer? Eu me lembrava de um pequeno texto de Lacan, o “Triunfo da religião” (LACAN, 2005).

Então, o que as religiões têm de novo? Elas são cada vez mais fundamentalistas. Não todas! Mas aquela que chama maior atenção sobre si neste momento, a religião muçulmana, é fundamentalista.

Quanto maior o saber científico — esse saber ligado à combinatória da escrita matemática, privada de sentido —, maior a aspiração a encontrar o sentido e, sobretudo, o sentido religioso. Há uma grande aspiração a encontrar o sentido e, mesmo que as religiões mudem, há sempre o sentido religioso. Agora, o que as religiões têm de novo?

Eu faço uma distinção nítida entre Deus, de um lado, e as religiões, de outro. As religiões são discursos de dominação: dos corpos, dos atos e do pensamento. A crença em Deus, a fé, é outra coisa. Deus é outra coisa, Deus é muito mais um enigma. Não há um crescimento de Deus, há um crescimento das religiões.

Vivemos em um período no qual isso que chamamos de modo de gozar, ou seja, todas as novas formas de satisfação, é aquele do Um sozinho. É como se fosse uma espécie de sede de marcas. As tatuagens, os piercings, as maneiras de customizar. Tudo isso são tentativas de fazer entrar os Uns sozinhos sobre a cena. Diante disso, as religiões tentam colocar uma ordem. As religiões vêm no lugar das adições. Aliás, há muitas assim! Os renascidos (born again), os arrependidos… Eles são todos ex-aditos do sexo, da droga, etc.

Então, a religião é uma solução que se propõe sob a mesma versão que as adições. É um vício legal.

A: Você disse isso em seu texto, “O temor a Deus libera de todos os outros” (2019, p. 135).

M-HB: Sim!

A: Como enfrentar o crescimento das políticas do medo, ou seja, o medo como instrumento para gerir os seres humanos, os estados religiosos?

M-HB: Como a psicanálise não é um discurso da dominação, não há nada a dizer sobre o fato de as pessoas serem religiosas ou não. É a escolha delas…

Eu vejo essa escolha como uma solução sintomática. A psicanálise não é antirreligião. Ela é fora da religião. Não é a mesma coisa, porque o sentido religioso é sempre o sentido sexual, e a psicanálise tem por objetivo fazer cair o sentido — o sentido sexual, evidentemente! E a metáfora e a metonímia e tudo isso…

Não há um cenário de combate ateísta na psicanálise. Trata-se de interpretar o grande A barrado como tentativa de vislumbrar um Outro, mais além do Outro da linguagem — o que as religiões fazem. Ou quer dizer o inverso, isto é, um tipo de vazio… nas nem todo mundo tem acesso a ele nem ao porquê. Há toda uma orientação na psicanálise antes de Lacan e depois de Lacan. Nós vimos isso no nosso país, a França, na ocasião do “Casamento para todos”, em que há toda uma orientação na psicanálise — que é uma orientação paternalista — que vai decididamente contra a modernidade e que combina perfeitamente com a ascensão das religiões. Acontece que a orientação lacaniana não vai nesse sentido. Se nós estamos mais-além do Pai, se vislumbramos ir mais-além do Pai em uma análise, forçosamente deixamos cair o Deus eterno. Mas não sob a versão do não ser tolo dele.

Enfim, é preciso suportar que as pessoas tenham necessidade disso para viver, por que não? Poder-se-ia transformar a religião em sinthoma. E a psicanálise é um outro sinthoma, diz Lacan.

A: A religião é o universal, quer dizer o “para todos”. É absolutamente uma criação da linguagem. Mas sob a versão do misticismo, do êxtase, é outra coisa! Temos, atualmente, além do crescimento de religiões, o interesse pelas filosofias orientalistas e espiritualistas… Como você percebe esse fenômeno?

M-HB: Como Freud de O futuro de uma ilusão: uma ilusão sempre do futuro! A religião é o futuro, mesmo que, como Freud o diz, ela seja uma ilusão. Mas é difícil fazer a diferenciação entre um semblante, de um lado, e uma ilusão, de outro. Enfim, a perspectiva freudiana é extremamente ateia. A posição de Lacan é mais complexa, puxa Deus mais em direção ao conceito de gozo do que em direção ao conceito de Lei.

 

 

Por Alessandra Thomaz Rocha
Novembro de 2019, São Paulo

Referências
LACAN, J. “O triunfo da religião”. Discurso aos católicos. RJ: JZE, 2005. (pp.55-83)
BROUSSE, M.-H. “To exorcise that Good Old God”. InMulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, Coleção Opção Lacaniana, v.15, 2019. pp. 129-144.
Transcrição e tradução: Alessandra Thomaz Rocha
Revisão : Lúcia Grosssi
 [Vídeo e áudio com a entrevista:  https://www.youtube.com/watch?v=Fj8En7amUCA&t=39s]



A religião e a verdade – Frei Betto

ALMANAQUE ENTREVISTA FREI BETTO*

 

 

Foto do Museu Mineiro

 

 

ALMANAQUEO que levou o Brasil — que, até a década de 80 do século passado, era considerado o maior país católico do mundo — ao momento atual, no qual há um crescente aumento da filiação evangélica? De acordo com um estudo do IBGE sobre transição religiosa, em 2030, a população católica será menor do que a evangélica.

FREI BETTO: Em 1950, os católicos representavam 93,5% da população; os evangélicos, apenas 3,4%. Nos últimos 70 anos, a percentagem de pessoas que se declaram católicas caiu rapidamente e chegou a 64,6% em 2010. No mesmo período, os protestantes (históricos, pentecostais e neopentecostais) cresceram e atingiram 22,2% (2010). Houve também crescimento de outras religiões (como espíritas, etc.) e do percentual de pessoas que se declaram sem religião. Em fins de 2018, os evangélicos aglutinavam 34% da população.

Vários fatores explicam essa mudança: o clericalismo, que, na Igreja Católica, dificulta o protagonismo dos leigos (para formar um padre, são necessários quatro anos de filosofia, quatro de teologia e a heroica virtude do celibato, enquanto, para formar um pastor, bastam oitos meses — e ele pode ter família); a desvalorização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), sob os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, ao longo de 34 anos; a rede de proteção social que os evangélicos promovem junto às famílias mais pobres etc. As igrejas evangélicas tendem a crescer onde o Estado se faz ausente, em especial quanto aos serviços de saúde.

A: Em uma entrevista concedida em 2016, o filósofo francês Jean Rancière disse que “a política não tem nada a ver com a política dos políticos, das intrigas palacianas, das negociações de gabinete e disputas de poder”. Segundo Rancière, ela é “uma forma de ação de subjetivação coletiva para construir um mundo em comum”, que inclui aqueles que têm posições político-ideológicas diferentes, visando a criar um “nós aberto e includente, que fala de igual para igual com o adversário”. Assim, ele propõe que, ao contrário de nos determos no antagonismo de populistas versus democratas, “o melhor remédio é a ação política autônoma em relação aos lugares, ao tempo e a agenda estatal […] como antídoto ao mal-estar na civilização”, ou seja, contra a onda atual de ódio e segregação. Diante do avanço do que você chamou de “confessionalização da política” e de seus desdobramentos nocivos para a democracia, que ações, nesse sentido, a Igreja Católica poderia tomar?

FB: O papa Francisco se empenha em reformar a Igreja Católica, essa entidade milenar que, hoje, tem uma cabeça progressista e um corpo conservador. Penso que nenhuma Igreja deva apoiar ou rejeitar um governo. O papel da Igreja é estar ao lado do povo, da maioria, sobretudo dos desamparados. Se o governo serve a eles, serão positivas as relações Igreja-Estado. Se não serve, serão conflituosas.

Rancière faz eco ao que já disseram Platão e, sobretudo, Aristóteles, sobre a função da política. Ocorre que a política, após a queda da monarquia medieval, foi apropriada pela burguesia industrial e financeira e, hoje, serve aos interesses dela, exceto em um país como Cuba. O papel da Igreja Católica e de todas as instituições da sociedade civil é reforçar isso que Rancière chama de “ação política autônoma”, que defino como empoderamento popular, objetivo que se alcança reforçando os movimentos sociais que lutam por conquista e defesa dos direitos humanos e da Terra.

A: Em seu artigo “A ciência e a verdade”, Lacan afirma que o religioso é aquele “que entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto de sacrifício”. Em outros termos, o que o sujeito demanda é tomado como o desejo suposto de um Deus. Numa época em que várias lideranças cristãs se valem da prática de propagar notícias falsas entre seus fiéis, como pensar essa relação entre a Religião e a Verdade? De que verdade aí se trata, quando o que está em jogo passa, como você declarou, por uma servidão voluntaria à determinada doutrina ou a líderes religiosos?

FB: Penso que Lacan faça eco a Freud, que, por sua vez, não ficou totalmente imune ao positivismo que exerceu tanta influência na cultura da esquina dos séculos XIX e XX. E, no entanto, o avanço do conhecimento científico não fez retroceder o fenômeno religioso, pelo contrário.

Quem tem acesso à verdade? O ateu mais do que o crente? Como disse um chinês da década de 1910, após ouvir um padre pregar “a verdade”, existem três verdades: a sua, a minha, e a verdade verdadeira. E nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira.

Embora nem tudo seja política, a politica está em tudo. Ela é um jogo de interesses. E em uma sociedade tão desigual, um jogo de interesses antagônicos. Os fiéis que pregam notícias falsas, em sua maioria, não sabem que elas são falsas. Como cordeiros a serem tosquiados, acreditam piamente na palavra do pastor ou do padre e, assim, convictos de que ele nunca mente, divulgam o que ele afirma.

Enquanto a Ciência é o reino da dúvida, a Religião é o da certeza. E verdade e autoridade se confundem. Por isso, nós cristãos ou religiosos de qualquer confissão devemos ter como referência não uma verdade abstrata, mas o ídolo de Deus: o ser humano. Pilatos perguntou a Jesus, ao interrogá-lo: “o que é a verdade?”. E Jesus se manteve calado, possivelmente por considerar que não valia a pena “atirar pérolas aos porcos” (expressão do próprio Jesus). Treze séculos depois, meu confrade, Santo Tomás de Aquino, deu uma brilhante e irretocável resposta: “A verdade é a adequação da inteligência ao real”. E o real, acrescento eu, é o que vemos em volta: o ser humano reduzido a mera mercadoria descartável. Tudo o que Jesus propõe no Evangelho e nos engajarmos no resgate da dignidade humana.

 

Por Giselle Moreira, Ludmilla Féres Faria e Patrícia Ribeiro

 

 

 


 

* Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte. Ë frade dominicano, jornalista e escritortendo publicado diversos livros. Em 1983 recebeu o prêmio Jabuti por seu livro Batismo de Sangue, posteriormente transformado em filme dirigido por Helvécio Ratton. Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.




Crença e Nome-do-Pai – Alessandra Rocha

Resumo
O texto trata da relação entre os conceitos de crença e Nome-do-Pai buscando elucidar a proximidade e a intimidade entre eles. Evidencia de que maneira ambos tocam na questão do saber e da autoridade, bem como, na questão da verdade e da ficção e como se diferenciam.

Palavras-chaves: Crença, Nome-do-Pai, saber, verdade, ficção

Abstract
The text delas with the relationship between the concepts of bilef and Name-of-the-Father seeking to elucidate the proximity and intimacy between them. It shows how both touch the questiono f knowledge and authority, as well as the question of truth and fiction and how they differ from each other.

Keywords: Belief, Name-of-the-Father, knowledge, truth, fiction

 

Foto de Ric Rodrigues

 

 

ALESSANDRA THOMAZ ROCHA

Psicanalista, doutora em Psicanálise pela UFMG, membro da EBP/AMP 

 

A noção de crença está intimamente relacionada à questão da paternidade. Primeiramente, porque ela é uma invenção da sociedade, nos diz Margaret Mead (1971). Porém, é Jacques Dupuis (1989) quem nos conta a história dessa descoberta. A máxima do Direito romano Mater semper certa est, pater semper incertus est é algo que atesta tal fato. Nos dias de hoje, com a ajuda dos exames de DNA, as coisas ficaram mais óbvias, mas nem por isso mais fáceis: se a paternidade não fosse um problema, não haveria toda essa parafernália para lhe conferir uma certeza, ou uma garantia de verdade.

Mas qual é a relação entre os conceitos de crença, de ficção e de Nome-do-Pai? E a questão da mentira, o que ela carrega de relação com a verdade?

Parte-se do pressuposto que a crença, em suas várias acepções, é o que necessariamente permite o acesso a um saber, mesmo que ele se erga sobre um fundo fictício; que seja sobre uma verdade, ou mesmo sobre uma mentira. O que implica que, “não há saber algum que não se erga sobre um fundo de ignorância” (LACAN, 1997, p. 210).

Sabemos que a ficção pressupõe um lugar imaginário, que é um recurso do pensamento que suporta a contradição e que, por isso mesmo, não pode ser verificada. Já a crença é o que sustenta uma ficção. É o que permite que algo funcione; é o que funda uma autoridade. Assim, a crença numa autoridade, que pode ser representada pela figura do pai, por exemplo, é o que assegura uma ordem. Logo, trata-se de fazer crer para se obter um poder, uma autoridade. A crença faz existir aquilo em que se crê. Esse é o seu segredo, seu poder.

Quanto à função do pai na psicanálise, sabe-se, desde Freud, que ela tem um caráter fundamental, que se constitui como ponto de central sob o qual a psicanálise se apoiou. Seu lugar na teoria psicanalítica é o de um fundamento, é o alicerce sobre o qual foi construída. É aquilo sobre o qual se apoia, seja sob um dado no domínio do ser (nesse caso, o fundamento é garantia ou razão de ser), seja sob uma teoria ou um conjunto de conhecimentos (logo, o fundamento é o conjunto de proposições de onde esses conhecimentos se deduzem)[2]. Tal como o fundamento de uma lei, um fundamento é uma ficção ordenadora que pressupõe uma crença para operar. Essa crença pode estar presente de forma positiva ou negativa, o que importa é sua presença. Na religião católica, por exemplo, o fundamento é uma revelação. Por conseguinte, toda a doutrina cristã se ergue a partir desse ponto. Desta forma, a revelação é a condição sine qua non da religião cristã.

No caso da psicanálise, o pai desempenha essa função. Ele tem valor de norma fundamental, de condição sine qua non da psicanálise, ponto de convergência que não deixa de ser uma ficção, já que não pode ser verificado. Freud, com o mito do pai primevo, assenta a pedra fundamental da psicanálise, construindo, a partir dele, um fundamento para a ideia do inconsciente. Portanto, não importa que esse fundamento seja um mito, uma revelação, um fato ou uma hipótese. O que importa é a crença nesse fundamento. Contudo, sabemos que o pai, na psicanálise, não se constitui como uma hipótese, mas como uma ficção. A ficção não tem uma relação necessária com a realidade, ela funciona “como se”, ou seja, não necessita de verificação. É diferente de uma hipótese, que pede verificação, pois pretende-se uma expressão do que é verdadeiro e real. A ficção é um desvio contingente da realidade que tem a função de pensar a origem do fundamento, de justificá-lo. Então, podemos dizer que o mito do pai é a origem do fundamento da psicanálise. O pai é a figura que sustenta o lugar de uma autoridade, e essa autoridade é o que assegura a ordem diante do desamparo e do sofrimento humano.

Não é por acaso que a antropóloga Margareth Mead, em seu livro Macho e fêmea, nos diz que “A paternidade é uma invenção da sociedade” (1971). E Jacques Dupuis, em seu livro Em nome do pai: uma história da paternidade (1989), vai justificar, por meio de dados históricos, alegando que é somente a partir do período neolítico que começa a se propagar a ideia da paternidade. Foi no quinto milênio, de acordo com sua própria datação, que os egípcios e os indo-europeus tomaram consciência do papel do pai na procriação. Antes desse período, as civilizações só conheciam as estruturas protofamiliares, centradas nas mães, com uma vida religiosa inspirada no tema da fecundidade feminina e numa vida sexual caracterizada pela livre satisfação do desejo. Só depois que as civilizações começam a se sedentarizar é que se começa a estabelecer a correlação entre a procriação e o ato sexual e, assim, tomar consciência da paternidade. Antes disso, ela era ignorada, pois os homens eram caçadores nômades. Foi a partir do momento em que as mulheres começaram a se fixar na terra por causa da agricultura, atividade criada e cultivada inicialmente por elas, que começaram a se organizar, aos poucos, o que chamamos de família. Assim, a história do pai, enquanto ficção ordenadora, tem uma origem a partir desse momento.

No que diz respeito às relações entre fé e crença, Freud nos dá sua versão. Distingue a crença da ilusão afirmando que podemos chamar uma crença de ilusão quando ela é motivada por uma realização de desejo e, portanto, não precisa ser confirmada pela realidade, quando não dá valor à verificação (FREUD, 1990, p. 44). Quando, em “O futuro de uma ilusão”, Freud discorre sobre a significação psicológica das ideias religiosas, sustenta que estas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa ou interna que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos, e por isso reivindicam nossa crença. Para ele, todo ensinamento exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir fundamentos que o justifiquem. Para Freud, os ensinamentos são apresentados como o resultado resumido de um processo mais extenso de pensamento baseado em observações e inferências.

Mas, com relação aos ensinamentos da religião, quando se indaga sobre seus fundamentos, deparamo-nos com três respostas que se complementam. A primeira é que devemos crer porque nossos antepassados primitivos já acreditavam nesses ensinamentos, entretanto, nossos antepassados eram muito mais ignorantes do que nós. A segunda, porque possuímos provas escritas que nos foram transmitidas desde os tempos primitivos — mas Freud justifica que, nas provas que nos deixaram, estão registrados escritos cheios de contradições, revisões e falsificações, que são os livros sagrados, e, além disso, as palavras escritas nesses registros se originam de revelações divinas. A terceira seria sobre a proibição de questionamento de sua autenticidade. Com relação a esse terceiro ponto, Freud nos diz que o próprio fato de não se poder questionar já desperta fortes suspeitas, afinal, uma proibição como essas só pode ter uma razão: a insegurança que essas reivindicações geram em relação às doutrinas religiosas. Caso contrário, poderiam ser colocadas à prova de quem quer que deseje chegar a tais convicções.

Por conseguinte, não há como provar a verdade das doutrinas religiosas. E é por isso que ela necessita da fé. Talvez possamos dizer que esse seja mais um dos equívocos de Freud, o de pensar que o fundamento precise ser verificado para ser válido. E é por isso que ele deprecia a religião com relação à ciência. Mas nós, mais de cem anos depois dele, sabemos que o problema não está aí, e ele, apesar desse equívoco, segue adiante.

Freud menciona duas tentativas que foram feitas para se fugir ao problema da prova diante da tentativa de verificação da crença: “uma, de natureza violenta, é antiga; a outra, é sutil e moderna” (1990, p. 40). A primeira é o “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo), de Tertuliano[3], aquele que foi o primeiro e mais importante escritor eclesiástico da língua latina, também padre da igreja católica. Essa tentativa sustenta que

[…] as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão — isto é, acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente e não precisam ser compreendidas. Logo, esse credo só tem interesse como autoconfissão. Como declaração autorizada, não possui força obrigatória. […] Acima da razão não há tribunal ao qual apelar (FREUD, 1990. p. 40).

A segunda tentativa para fugir do problema da prova é efetuada pela filosofia do como se, que assegurava que “nosso pensamento inclui várias hipóteses cuja falta de fundamentos, e até mesmo absurdidade, compreendemos perfeitamente. São chamadas de ficções, mas por várias razões práticas, temos que nos comportar como se nelas acreditássemos” (FREUD, 1990. p. 41). Freud admite que as doutrinas religiosas, apesar de serem ilusões, são de grande importância para a sociedade. Mas o que ele se pergunta é: de onde surge a força dessas doutrinas? E a que se deve sua eficácia, já que elas não dependem do conhecimento pela razão?

Verifica que as ideias religiosas são transmitidas como ensinamentos, entretanto, não passam de ilusões que permitem a realização dos mais fortes e antigos desejos da humanidade. Ele deduz que o segredo de sua força, sua eficácia, reside na força desses desejos humanos. Ao chamar as ideias religiosas de ilusões, esclarece que ilusão não é a mesma coisa que um erro. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. As ilusões também se diferem dos delírios, uma vez que estes últimos se encontram necessariamente em contradição com a realidade. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Uma crença pode ser chamada de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator decisivo em sua motivação e quando suas relações com a realidade são desprezadas. Ou quando, tal como a própria ilusão, não dá valor à verificação. Assim, Freud conclui que as doutrinas religiosas são crenças que se constituem como ilusões, que, por sua vez, não são suscetíveis de prova. Para ele, a via do conhecimento científico é a única que pode levar ao conhecimento da realidade externa a nós mesmos. Acredita ser uma ilusão apostar na intuição ou na introspecção, já que elas são apenas detalhes da nossa vida mental e difíceis de interpretar. Então, afirma que a essência da atitude religiosa se constitui na busca de um remédio para a impotência e a insignificância do homem diante do Universo. Por isso, a crença nas doutrinas religiosas é necessária à civilização, para apaziguar o sofrimento das pessoas já que a ciência, sozinha, não basta ao homem. Reconhece que as necessidades imperiosas do homem jamais poderiam ser satisfeitas pela “frígida ciência”, pois “a razão pouco pode fazer contra os impulsos apaixonados” (FREUD, 1990. p. 56). Percebe-se, assim, como Freud não pôde ir mais além do pai e como Lacan foi necessário para manter a atualidade da psicanálise diante dos impasses da clínica e para fazer entender por que a psicanálise pressupõe uma crença.

Na clínica, verifica-se que, normalmente, quando um paciente procura por um analista, ele já tem algum tipo de crença, pois a transferência pressupõe uma crença. Se não há crença no analista, enquanto Sujeito-Suposto-Saber, o paciente encontra dificuldades de chegar até ele. Sabe-se também, pelos ensinamentos de Lacan, elucidados por Jacques-Alain Miller, que há a transferência negativa, que pode ser uma outra via de acesso ao analista, e se dá quando este está sob suspeita. Nessa situação, o paciente hesita, tem dúvidas, desconfia do analista, tenta verificar se sua crença pode ser confirmada. A suspeita se situa num nível intermediário entre o saber e a crença (MILLER, 1999, p. 15–16). Miller (1999) ressalta que a suspeita se manifesta quando não se está seguro de alguma coisa ou de alguém; quando há algo que não se sabe, mas que se antecipa como mal, como negativo. É um grau inferior de saber, não demonstrável, que, por isso mesmo, é insistente. É uma crença sustentada na desconfiança. O que há em comum entre a desconfiança e a confiança é a antecipação, pois ambas vão além do que se sabe e do que se pode provar.

De acordo com Lacan, que toma esse conceito a partir de sua origem grega, pode-se perceber como a diferença entre fé e crença é uma questão de nuance. E, assim, pode-se também dizer que a filosofia inglesa, com Hume — na qual a crença passa a ser impressão, hábito, sentimento, a partir do momento em que adquire uma unidade, e não mais se apresenta em termos de nuances — constrói as bases para o triunfo do discurso da ciência, que é o que se presencia nos dias de hoje e que faz da probabilidade a garantia de uma verdade. Logo, o desenvolvimento do discurso da ciência coincide com a queda do Nome-do-pai, com a morte de Deus ou fim da crença, enquanto possibilidade de acesso a um saber sobre uma verdade.

Para Lacan, a verdade tem estrutura de ficção, tomando como referência os estudos de Jeremy Bentham (1997, apud, LAIA, 2005), para quem uma entidade fictícia não é uma entidade imaginária enganosa pelo fato de a linguagem fazer existir a ficção — o que faz com que a ficção não dependa de uma realidade, mas da linguagem. Logo, se o inconsciente, para Lacan, tem a estrutura de uma linguagem, pode-se dizer que ele também tem um caráter de ficção.

Finalmente, pode-se perceber como e por que é preciso crer no Nome-do-Pai, ou no sinthoma, mesmo que essa crença não seja uma certeza, uma convicção, ou algo tomado como verdadeiro. A partir do momento em que constatamos que há vários níveis de crença, podemos perceber que, entre o sim e o não, entre uma verdade e uma mentira, há uma crença, que, de acordo com seu grau, pode nos levar de um ponto a seu oposto — o que permite entrever como a crença se relaciona com o Real e com o semblante. E, por conseguinte, porque é preciso, segundo Miller, acreditar no Nome-do-Pai para poder prescindir-se dele. É preciso de uma fantasia, de um mito, mesmo que delirante, para que um sujeito do inconsciente possa ex-sistir enquanto sinthoma. Sabemos que, para Lacan, a diferença entre crença e fé é sutil. Por isso, vai examinar o funcionamento da fé na experiência religiosa, tal como Freud o fez.

Numa análise, o analisante deposita sua confiança no analista — não na pessoa dele, e sim no Sujeito-Suposto-Saber, que opera enquanto objeto a. É essa crença que instaura a transferência e permite a produção do inconsciente do analisante. Para Lacan, a fé é algo verdadeiro que não tem nada a ver com o Real. Por isso faz equivaler a psicanálise com uma forma moderna da fé. A religião, para Lacan, é marcada pelo esquecimento. Daí a existência dos sacramentos, que têm a função de renovar um pacto esquecido, através dos rituais, da repetição. “A verdade pelo decreto dos deuses se esquece” (LACAN, 1964, p. 239). Uma análise é marcada por um esquecimento semelhante, porém opera a partir dele, do recalque, levando em consideração o dizer que se encontra mais além da fala. O esquecimento está relacionado ao “dizer que ultrapassa o dito” (LACAN, 2003, p. 483), pois “que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 2003. p. 448)

Lacan interroga Freud para tentar saber o que faz um pai. Qual é a função do pai em Freud? O que é um pai?

Responde que é um nome que implica a fé, é um sinthoma. A hipótese do inconsciente supõe um Nome-do-Pai, que significa supor Deus. Porém, essa hipótese da existência de um grande Outro, da existência de Deus, serviu não somente para promulgar a lei, mas para garantir o sentido. Contudo, como estamos impossibilitados de dizer o verdadeiro sobre o real, que é sem-sentido, que faz barra sobre o dizer, para que seja pensado um saber no real, Lacan precisou buscar, na topologia, uma maneira de tentar formalizar o inconsciente e sua lógica; foi mais além do sentido, buscando elucidar a lógica do real. Ele encontra, assim, no nó borromeano, uma resposta para suas dificuldades de formalização, que não poderia ser bem transmitida apenas pela letra ou pela linguagem. Ele formula o nó borromeano de três termos — simbólico, imaginário e real. Mas esse nó não responde ao enigma sobre a foraclusão, pois foi construído sob as bases referenciais do complexo de Édipo. Por isso, mais tarde vai chegar ao nó borromeano de quatro termos, no qual o Nome-do-Pai vem a se somar ao simbólico, ao imaginário e ao real. Nesse quarto nó, o do pai, o sujeito precisa crer para que funcione, isto é, o Nome-do-Pai, ou o Sinthoma, é um utensílio que funciona como operador lógico, que permite que o sujeito acredite num sentido, em algo que faça função de ordenador, concedendo o funcionamento do semblante. Permite que se torne possível o acesso a uma verdade, a um saber inconsciente, que não deixa de ser um golpe de sentido, um semblante, ou um sens-blant (FONTENEAU, 2005, p. 34).

Portanto, a crença está no âmago da experiência analítica, mesmo que muitas vezes enquanto fé, pois o que está em jogo é a implicação do sujeito na cura. Ela está presente em todo sujeito no sentido de tomar-como-verdadeiro, associada tanto ao saber quanto ao não saber; associada ao ato psicanalítico tanto no neurótico quanto no psicótico, com a única diferença de que, neste último, ela aparece de forma invertida, isto é, enquanto descrença (Ibid.).

Por fim, é importante salientar que a descrença para Lacan é o Unglaben, que não é a supressão da crença nem a negação da fenomenologia do Galuben, da crença, que foi a obsessão de Freud até o final. “É um modo próprio da relação do homem com seu mundo e, na verdade, aquele no qual ele subsiste” (LACAN, 1959-60, p. 163). Para Lacan, a crença pressupõe a divisão do sujeito, pressupõe uma Verdrangung, um recalque da coisa. Logo, quando não há crença — e o exemplo que ele dá aqui é o do discurso da ciência —, e sim descrença, o que está em questão é a rejeição da coisa no sentido próprio da Verwerfung (Idem, p. 164). Segundo Lacan, o discurso da ciência rejeita a presença da coisa, pois pressupõe o ideal do saber absoluto, de algo que estabelece, apesar de tudo, a coisa, mas não a leva em conta. Ressalta que o discurso da ciência é determinado por essa Verwerfung. Assim, entendemos a aproximação entre Unglauben e Verwerfung, de acordo com o uso que Lacan faz deles, no sentido de que a descrença seria um repúdio da crença e, portanto, correlativo da rejeição. Podemos constatar isso pela seguinte citação:

No fundo da própria paranoia, que nos parece no entanto toda animada de crença, reina esse fenômeno de Unglauben. Não é o não crer nisso, mas a ausência de um dos termos da crença, do termo em que se designa a divisão do sujeito. Se não há, de fato, crença que seja plena, e inteira, é que não há crença que não suponha, em seu fundo, que a dimensão última que ela tem que revelar é estritamente correlativa do momento em que seu sentido irá desvanecer-se (LACAN, 1964, p. 225).

 

 

 

 


Referências
BENTHAM, J. De l’ontologie et autrestextessurlesfictionsParis: Seuil, 1997.
DUPUIS, J. Em nome do pai: uma história da paternidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1989.
ENCYCLOPEIE UNIVERSALIS. Versão eletrônica, 2005.
FREUD, S. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: ESB, v.21. 1990.
FONTENEAU, F. “Crença”. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. AMP. Textos preparatórios para o congresso de Roma, 2005.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
LACAN. (1973) “O aturdito”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAIA, S. “A mentira e o Nome-do-Pai”. In: Scilicet dos Nomes-do-PaiOp. Cit.
MEAD, M. (1949). Macho e fêmea. Petrópolis: Editora Vozes, 1971.
MILLER, J-A. “La transferencia negativa”. Seminário sobre a política da transferência. Escuela del Campo Freudiano de Barcelona. 1ª edición, Barcelona, 1999.
[1] Texto inédito apresentado na “Sessão Literária” da Biblioteca da EBP-MG, no dia 13/3/2006, que teve como tema de debate “crença e nomes-do-pai”. Uma versão modificada deste texto compõe parte do subitem “A crença no Pai: a construção do conceito de Nome do Pai e seu uso”, de minha dissertação de mestrado “A lógica do Sacrifício e suas consequências”. UFMG, 2006.

[2] Conforme definição do dicionário Aurélio. Séc.XXI. versão eletrônica.

[3] Tertuliano nasceu em Cartago, no ano 155 d.C., e lá exercia sua profissão de advogado, quando, em 193, converteu-se ao Cristianismo, passando a exercer também a atividade de catequista junto à Igreja. Sua inteligência e sólida formação jurídica foram claramente demonstradas em Contra Práxeas, sua obra mais importante, escrita no ano 197 e dirigida aos governantes do Império Romano. Ali, ele defende os cristãos, apelando por seu direito de liberdade religiosa perante o Império Romano cruel e perseguidor. Seus argumentos são expostos de forma lógica e polêmica, visando ao convencimento das autoridades a quem é dirigida, questionando a “justiça” aplicada contra os cristãos, transportando a apologética do terreno filosófico para o jurídico.