O FEMININO INFAMILIAR: DIZER O INDIZÍVEL

 

 

ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG. Membro da EBP/AMP. andrea.eulalio@hotmail.com

Resumo

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que não pode ser interpretado. Um fragmento clínico elucida como que, no mais íntimo de cada língua familiar, existe uma língua estranha, estrangeira, cujo encontro retorna, segundo Freud, como “inquietante estranheza”.

Palavras-chave: Infamiliar, inconsciente, língua familiar, gozo.

Abstract:

Both the word and the Unheimlich experience refer to an enigmatic point that is of the order of the unspeakable and the unspeakable, to something irreducible and not mediated by the symbolic and that cannot be interpreted. A clinical fragment that elucidates as if in the most intimate of each familiar language, there is a strange, foreign language whose encounter returns, according to Freud, as “disturbing strangeness”.

Keywords: Uncanny, unconscious, familiar language, jouissance.

 

Coletoras – Barbara Schall

 

Logo de início, em seu famoso texto “Das Unheimliche”, publicado em 1919 e traduzido para o português como “O estranho”, Freud adverte o leitor acerca das circunstâncias sob as quais é possível que o familiar se converta no lugar do mais estranho, do mais estrangeiro, do mais alheio e ignorado para cada ser falante.

Na primeira parte desse texto, Freud (1919, p. 277) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do termo heimlich (doméstico, íntimo, conhecido, amistoso) e de seu antônimo unheimlich (misterioso, oculto, secreto, estranho, inquietante, sinistro).

A pesquisa sobre o uso linguístico do termo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de ideias, as quais, mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes e significam, por um lado, aquilo que é familiar e agradável e, por outro, o que está “oculto da vista” (FREUD, 1919, p. 280). Freud aponta que, entre os diversos significados da palavra heimlich, há um que coincide com o seu oposto, unheimlich, e que, de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich.

Segundo Bassols (2017, p. 39), se tivéssemos que transpor literalmente a expressão Das Unheimliche para nossa língua, seria melhor falarmos “o infamiliar”, como se encontra agora traduzido pela Editora Autêntica (2019), “sendo que o ‘in’ pode ser tanto a negação do familiar como também o mais interior a ela” (BASSOLS, 2017, p. 39).

A indicação bastante precisa de Freud, segundo a qual o exterior está presente no interior, vai ao encontro ao termo “êxtimo”, cunhado por Lacan. A estrutura da extimidade relaciona-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Esse “in” que se transforma em “ex” indica que quanto maior a proximidade do familiar, mais ele se transforma em estranho. Indica que ele é, ao mesmo tempo, interior e estranho.

Tanto a palavra quanto a experiência do Unheimlich remetem-nos a um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, a algo irredutível e não mediatizado pelo simbólico e que, por isso mesmo, não pode ser interpretado. Mesmo no encontro originário com a língua, Freud ressalta a dimensão paradoxal da experiência do Unheimlich, na qual o encontro com o mais íntimo retorna enquanto “inquietante estranheza”.

Reencontraremos a partícula “Un”, que designa o inconsciente, presente em Das Unbewusste e em  Das Unheimliche, em Lacan, (1971-1972, p.132) no “Um” sem Outro, sem alteridade possível, no “Um” sozinho do gozo, que faz do seio familiar a sua morada e que vem transformando a estrutura familiar clássica (BASSOLS, 2017, p. 39).

A família é a possibilidade de cada ser falante dar uma resposta, uma versão sintomática, nos melhores casos, a esse gozo do Um sozinho que aparece como Outro estranho e se encarna ali onde não há relação sexual entre um homem e uma mulher.

Como encontramos a incidência desse gozo bárbaro, demoníaco, do Um sozinho nas novas configurações familiares e diversidades sexuais?

As transformações e remodelações em torno da estrutura familiar, com implicações para o parentesco e para a filiação, atestam que a criança se tornou o fundamento da família, e não mais o seu efeito, restando a ela escolher o seu lugar em uma diferença sexual que se pluralizou. Os pais se redefiniram em termos dos cuidados com a criança, e não mais em termos da diferença sexual, e a incidência da função fálica que possibilita o ser falante nomear-se como ser sexuado encontra-se submetida às novas versões de nomeação e a autonomeações. Devemos considerar também a impossibilidade de habitar um corpo e fixar uma imagem. Enfim, uma série de transformações que têm deixado a criança muito mais exposta ao Um sozinho, esse Um do Unheimlich desenlaçado do Outro, e a uma “infância desregulada e disruptiva” [1].

A dificuldade que aparece ao tratarmos do assunto “família”, independentemente do discurso da qual ela se depreende, já se encontra explicitada numa passagem de O semináriolivro 23, sobre “o sinthoma”, na qual Lacan afirma: “Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por cauda disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado” (LACAN, 1975-1976, p. 158-159).

Segundo Bassols (2017, p. 46), cada sujeito é servo do discurso familiar, no sentido de que é a língua familiar que nos fala sobre aquilo que nos determina como sujeitos. Ou seja, é a língua dos significantes mestres fundamentais na história de cada um de nós, os quais servem para nos identificarmos com os outros e entre os outros. Contudo, a transmissão simbólica está marcada por um furo, que passa não só pelos significantes já articulados na linguagem mas, sobretudo, pela lalíngua própria a cada um.

Devemos identificar, então, a língua do Outro, a família do Outro, como o lugar que encarna o Outro de cada sujeito e também da criança. É o estrangeiro, o bárbaro enquanto signo daquilo que rechaçamos como radicalmente diferente e que está, ao mesmo tempo, no lugar mais familiar, mais íntimo e próximo de nossa realidade e da nossa forma de vivê-la.

Em qual língua a família nos fala? Qual é essa língua familiar para cada um? Em qual língua somos realmente falados pela família?

Penso que, nesse sentido, a conferência A língua familiar, de Miquel Bassols, nos orienta quando diz que cada um é um bárbaro em sua própria língua familiar. O termo bárbaro, tal como o termo heimlich, comporta dois sentidos ambivalentes. Pode tanto designar o mais estranho e intrusivo para a língua familiar quanto algo que experimentamos como um grande prazer, de acordo com nossa forma de gozar. E o analista também deve ser um bárbaro da língua para escutar o sujeito, ou seja, deve escutar aquilo da família que o fala quando o sujeito quer falar dela.

Para Bassols, a criança sempre chega à família como um verdadeiro bárbaro inesperado, como um intruso para o casal parental. Esse dizer de Bassols pode ser elucidado em Freud quando este trata a existência da sexualidade infantil como um gozo perverso e polimorfo, descentrado, o qual nunca será unificado, introdutor de uma dificuldade particular: não há código que permita ao sujeito decifrar o que lhe ocorre, e nem mesmo a mãe ou o pai sabe muito bem o que fazer com esse gozo. Sendo assim, a criança encarna esse lugar do bárbaro tanto para o adulto como para ela própria.

A criança surge como um bárbaro na língua familiar porque sua tagarelice é, com efeito, o tagarelar de um bárbaro que ninguém entende. Lacan, ao abordar esse real do gozo da língua, nomeou esse “tagarelar bárbaro” lalangue. A mãe e o pai costumam ser os encarregados de interpretar a língua do bárbaro — inventada a partir das particularidades “linguageiras” de cada um e desprendida do compromisso com a comunicação —, dando-lhe um sentido e supostamente civilizando a língua familiar. “O problema é que esta língua familiar supostamente civilizadora é ela mesma um dialeto da língua bárbara do gozo perverso e polimorfo da própria infância dos pais, que também foram bárbaros em seu momento” (BASSOLS, 2017, p. 46). Há, portanto, um mal-entendido inaugural e permanente que não cessa de se escrever entre a língua amorosa e terna dos adultos e a língua do gozo infantil, esse gozo opaco, indizível e enraizado no corpo.

Geralmente, o melhor que pode ocorrer aí é a criança fazer o seu sintoma ao se fazer representante da verdade do casal parental como “a verdade do bárbaro que está na origem da sua língua familiar”, tal como Lacan (1969) observou em “Nota sobre a criança” (LACAN, 1969, p. 369). Podemos tratar a noção de verdade no contexto familiar como aquela que implica o encontro sexual que concerne ao gozo e ao desejo do casal parental. A outra possibilidade, muito mais sinistra, é a criança encarnar o objeto do fantasma materno, “e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto” (LACAN, 1969, p. 369).

Outro momento decisivo que envolve o Outro familiar e a língua do Outro se dá quando o bárbaro se depara com o real da puberdade. Ao representar-se como ser sexuado, o sujeito se vê privado da língua de sua infância, que sustentava sua identificação e seu sentimento de vida. As modificações do corpo causam um sentimento de estranheza que o adolescente enfrenta como algo intraduzível na língua do Outro. Quando esse ponto de apoio vacila, o sujeito se confronta com algo que faz “furo no real”, reenviando-o a um vazio de significação. Essa delicada passagem se converte, novamente, em um momento de mal-entendidos absolutos, incertezas e inquietudes e de uma grande confusão de línguas no seio familiar.

“Tudo isso que foi dito nos indica que não é nada fácil discernir o que e qual é a língua familiar do sujeito. Sobre que linguagem, como aparato simbólico, o ser falante elucubra para situar o real em jogo de cada língua?” (BASSOLS, p. 46).

A seguir, apresento um fragmento de caso no qual o encontro com o real da puberdade traz consequências perturbadoras para a relação desse sujeito com o próprio corpo, com a imagem e com a língua, deixando-o exilado em seu próprio gozo.

Esse estranho que me habita

“Ele é o único em nossa família a ter problemas”. Foi desse lugar do estranho que um adolescente me foi apresentado por sua mãe em nosso primeiro encontro. A família paterna do garoto é estrangeira e os poucos contatos que ele tem com esses familiares são permeados pelos mal-entendidos. Ele não sabe dizer o porquê de ser tratado com tamanha rispidez e intolerância por seus familiares.

Quando Lacan diz que somos filhos do mal-entendido e que somos atravessados pelos mal-entendidos que proliferam na confusão dos laços e das línguas faladas entre nossos ascendentes, ele indica que, por não haver “revelação ou dissolução possível, resta-nos incorporar esse mal-entendido” (GROISMAN, 2016, p. 47). É isso que esse adolescente vem tratando em sua análise: desse gozo estranho que o acomete no corpo e que é vivido com muita estranheza. Afinal, nada é mais familiar e mais estranho que a experiência do próprio corpo.

A cada discussão familiar que se vê envolvido, o garoto é tomado por uma sensação de estranheza, por um afeto que o ultrapassa, e a sua forma de responder a isso é uma cisão entre o eu e o corpo real de seu ser. Ele se vê vendo, como se estivesse enquadrado na cena de um filme. O mundo fica estranho — lugares e situações familiares ficam diferentes —, dando-lhe a sensação de que ele “já não é o mesmo”; sua voz também lhe soa estranha, irreconhecível, tudo fica no automático, como se ele “não mais fizesse parte da vida”.

Sabemos que o “eu” se sustenta em determinações simbólicas e pela extração do objeto a no real. A vacilação das identificações simbólicas do sujeito consigo mesmo e a consequente perda dos pontos de referência imaginários revelam o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Sendo assim, o lugar que o sujeito havia encontrado para si no Outro, seu lar, seu Heim, se torna então Unheim, estranho. Com relação a esse ponto do estranhamento, Lacan afirmará, em O seminário, livro 23, que “A inquietante estranheza, incontestavelmente, provém do imaginário” (LACAN, 1975-1976, p. 47).

Em uma análise, tentar dissolver o mal-entendido só o alimenta, diz Lacan. Será preciso que o sujeito possa reencontrar, em sua própria fala, as fontes desses mal-entendidos não como o que escutou ou entendeu mal, mas como aquilo que encerra em si a opacidade do desejo que lhe deu origem, deixando, assim, uma via para invenção (REGO, BARROS, 2016, p. 41).


Referências
BASSOLS, M. O bárbaro: transtornos da linguagem e segregação. Opção Lacaniana onlineano 9, n. 25 e 26, mar.-jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_Barbaro_Transtornos_de_linguagem_e_segregacao.pdf. Acesso em: 8 mar. 2020.
BASSOLS, M. A língua familiar. Opção lacaniana, n. 79. Conferência apresentada no VIII Enapol, em Buenos Aires, em setembro de 2017.
FREUD, S. “O estranho” (1919). In: Freud, S. Obras completas, volume 14, São Paulo: Cia das Letras, 2010.
FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019). Obras Incompletas de Freud, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
GROISMAN, A.T. O mal-entendido que entre pelos Ouvidos. Opção Lacaniana, n. 72, p. 47, mar. 2016.
La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n. 2. Lettre d’information de L’institut psychanalytique de l’enfant.
LACAN, J. Nota sobre a criança. (1969). In: Lacan, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975/1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior.1971-1972. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
RÊGO BARROS, M. R. O mal-entendido e a não relação sexual. Opção Lacaniana, n. 72, p. 41, mar. 2016.

[1]La sexuacion des enfants, 6 e Journée D’Étude. Zapresse, n.2. Lettre d’information de L’Institut psychanalytique de l’enfant.



O ESTRANHO FAMILIAR: UMA LEITURA A PARTIR DE FREUD

JEANNINE NARCISO
Psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental. Membro da EBP-MG/ AMP. jannarciso31@gmail.com

Resumo

Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real.

Palavras-chave: infamiliar, familiar, angústia, linguagem, extimidade.

The familiar stranger: a reading from Freud

Abstract: This text presents the essay by Freud in which a new signifier appears, which concerns the terrifying, causes anguish and points to the fading of the domains between the familiar and the foreign. This text resumes the question raised by Miller once more, when he states that for Lacan, the “Unheimliche”, results in the notion of “extimité”. The work addresses the subject’s relationship with language as being what makes a hole in reality.

Keywords: Uncanny, familiar, anguish, language, ex-timate.

Coletoras – Barbara Schall

 

O Estranho em Freud

O encontro com o texto de Freud se deu em três diferentes traduções, a saber, “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar” — tradução esta de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares —, cujas particularidades aparecem em cada percurso de tradução. No ensaio, entre outras obras, Freud cita Hamlet, texto de Shakespeare sobre o qual a tradutora comenta: “traduzir Hamlet se mostra uma tarefa para sempre inacabada, infinita, aberta a novas interpretações, compreensões, traduções, como é praxe de sua leitura, da fruição elíptica de nosso solilóquio mais insuspeito ao longo da vida: amor e morte, amor e morte” (BEBER, 2019, p. 6).

Freud e o infamiliar

Segundo Iannini, em Freud (2019), Das unheimliche é uma palavra e um conceito; a palavra-conceito é o título do escrito de Freud. E mais: é o nome de um sentimento aterrorizante, um domínio desprezado pela pesquisa estética e o efeito da leitura de certos contos fantásticos. Para Iannini, o que Freud pretendia era convocar o psicanalista a não perder de vista o real que a palavra unheimliche recorta. Assim, entrega um significante novo e intraduzível, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia. A equipe tradutora optou por traduzir unheimliche, do alemão, por um aparente neologismo, “infamiliar”, e mostra que essa tradução causa problema. “’O infamiliar’ mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (FREUD, 2019, p. 40). “É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita” (FREUD, 2019, p. 42).

A palavra unheimliche, usada por Freud, é formada pelo prefixo de negação un, um índice de castração, e o adjetivo heimliche, que exprime aquilo que é “familiar e íntimomas que pode evocar o que é secreto e desconhecido” (FREUD, 2019, p. 205) e deriva do substantivo Heim (lar, morada).

Em Freud (2019), Iannini aponta como fundamental, no ensaio freudiano, o movimento de descentramento subjetivo, de esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro:

como respondemos àquilo que um estrangeiro nos aporta, especialmente quando este algo é absolutamente familiar e doméstico para ele, mas claramente exótico e ameaçador, pelo menos da perspectiva de nossa suposta integridade identitária, que resiste a assimilar o estrangeiro. Os nexos profundos entre tradução e política não tardam a aparecer (FREUD, 2019, p. 102).

O infamiliar

Para Freud (2019), o termo é peculiar. Relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror; é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho e, há muito, familiar. Mas, ao mesmo tempo, o infamiliar seria algo do qual nada se sabe. Freud consulta vários dicionários para buscar encontrar algum novo significado para além da equivalência infamiliar (não conhecido).

O efeito infamiliar pode ser criado, na literatura, nos contos que colocam o leitor diante da incerteza “se ele tem diante de si, uma determinada figura, uma pessoa ou um autômato” (FREUD, 2019, p. 1012). Dessa maneira, o leitor fica com uma incerteza intelectual diante de algo que não sabe como abordar de fato. No conto “O homem da Areia”, E.T.A. Hoffmann estabeleceu essa manobra psicológica. O tema “O homem da Areia”, aquele que arranca os olhos das crianças, foi considerado por Freud como central no conto. Portanto, não é Olímpia, a boneca aparentemente viva, que causa o efeito infamiliar do conto nem as elucubrações fantasísticas do jovem estudante Natanael.

O sentimento do infamiliar será provocado pela figura do Homem da Areia, que deve roubar os olhos e substitui o temido pai, de quem se espera a castração. Na experiência psicanalítica, aparece a angústia da criança de se machucar ou de perder os olhos — que aparece também nos adultos. Tanto que existe o dizer sobre aquilo que se protege como a “menina dos olhos”. O medo de ficar cego é correlativo à angústia de castração, assim como, no mito de Édipo, há o ato punitivo de cegar a si mesmo.

Freud investiga vários fatores que provocam o efeito infamiliar, e alguns desses provêm de fontes infantis e de fases específicas do desenvolvimento do Eu. No tema do duplo, o Eu se forma e instâncias singulares aparecem: a “consciência moral” — contrapondo ao restante do Eu, que serve de censura psíquica — e, nos casos patológicos, o delírio de se ser observado.

O fator da repetição do mesmo, outra fonte do sentimento do infamiliar, aparece nos sonhos e nas situações de desamparo. Freud conta algo que aconteceu com ele em uma quente tarde de verão, enquanto caminhava pelas ruelas de uma cidadezinha italiana, acabou voltando, por três vezes, a um mesmo trecho, onde haviam mulheres maquiadas debruçadas nas janelas das pequenas casas. Nesse momento, ele diz ter experimentado o sentimento do infamiliar e ficou feliz por ter renunciado a fazer outras descobertas. A repetição involuntária pode derivar da vida anímica infantil e exprime a compulsão à repetição, ligada à natureza das pulsões.

Freud propõe a aproximação de casos que validariam a hipótese do infamiliar apresentando a história clínica de um neurótico obsessivo que quer ocupar um quarto em uma clínica, mas este está ocupado por outro paciente, e então diz: “que ele morra de infarto” (FREUD, 2019, p. 1200). Dias depois, isso ocorre. Para o paciente, foi uma vivência “infamiliar”.

Nesse ensaio, Freud ainda cita outros fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar. Na sequência, faz duas observações consideradas essenciais. Em primeiro lugar, que “todo afeto de uma moção de sentimento — de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio de recalques — este angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 1230).

Em segundo lugar, aponta que “o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliaruma vez que esse infamiliar nada tem de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 1230).

O infamiliar no mundo em que a gente vive

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010) diz que, se os avanços tecnológicos não tivessem acontecido, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Na atualidade, a aviação comercial possibilitou cruzar os oceanos. Mas, ainda hoje, ser um estrangeiro, ser um imigrante, traz algo do infamiliar. Para Bassols, “É o estrangeiro (…) que encarna, para cada um, um gozo estranho, segregado, alheio (…) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante” (FREUD, 1930/2010, p. 6).

Afinal, como o infamiliar se apresenta no mundo em que a gente vive? A família moderna apresenta um estatuto extremamente reduzido; a redução das solidariedades familiares deixa o sujeito desatado da sabedoria tradicional. Nos casos atendidos na clínica, aparecem a família da época da ciência e também a da época da psicanálise, em um mundo onde o discurso da ciência dessubjetiva o significante e introduz a universalização, desatando o sujeito da sabedoria tradicional. E o real do trauma, por sua vez, irrompe na modalidade temporal das urgências. É o tempo do inconsciente real, um inconsciente sem recalque, ou com pontos em que o Nome-do-pai (NP) não incidiu, de onde advêm os fenômenos que não obedecem às leis da linguagem e cujo conteúdo que retorna não poderá ser historiado pelo sujeito.

Desde Freud, os psicanalistas não deixam de pensar o sujeito na sua relação com a linguagem. Lacan chama de falasser a relação do falar com o ser: “a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 2007, p. 31). Portanto, uma pergunta é formulada: como se dá o encontro de uma criança que imigra com o infamiliar da linguagem? Brousse (2007) considera que o bebê não nasce falando, mas é exposto à alteridade da linguagem e será um sujeito falante quando souber as palavras e puder devolvê-las ao Outro. Para o psicanalista, o encontro com a história de vida de uma criança se dá a partir da entrevista inicial com os pais e será no a posteriori que se verá como cada criança ressignificará o vivido.

Vejamos como esse encontro ocorre atualmente: quando imigra, no primeiro ano de vida, a criança tem seu nome próprio — Tainá[1]. Lacan (2007) diz que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que um S1. Se dirige rumo S2, onde se “acumula o que concerne ao saber” (LACAN, 2007, p. 86). A pronúncia do nome da criança, de origem indígena, causa a preocupação dos pais. No entanto, o que provoca a angústia é a irrupção do real, que advém com o seu primeiro adoecimento, quando começa a ir à creche. Ou seja, quando o infamiliar emerge, o encontro com aquilo que é invasivo convoca, no pai, a tentativa de dar um sentido, lançando mão do simbólico, para lastimar contra os malditos microrganismos — vírus e afins — e ao custo de uma vida social[2].

Quando outra criança se muda de país enquanto está aprendendo a falar, normalmente rompe com as rotinas com as quais tinha intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar com desenvoltura sua língua materna nem a segunda língua, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha. Miller (2011, p. 15) vai dizer que “intimidad es estar calentito” [3] e que, do lado íntimo, está o interior mais pessoal.

Ao imigrar, uma criança tem que aprender uma terceira língua, que possui certa dificuldade, mas pode não mostrar interesse em participar das aulas nem progredir na seriação escolar. Tal dificuldade pode impedir o acesso à universidade, despertando a angústia dos pais.

O infamiliar faz surgir a angústia mobilizando o sujeito quando o gozo invasivo emerge e deixa aparecer o que é da ordem do real. O infamiliar, para Freud, toca o limite entre o interno e o externo. Para Lacan, resulta na noção da extimidade, isso que é o mais interior sem deixar de ser exterior (MILLER, 2011). Segundo Miller (2011), a extimidade, o falar “do Outro de dentro”, aponta para a questão da imigração, termo considerado relativamente novo, contemporâneo da revolução industrial. O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, faz cálculos “para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Em psicanálise, ser um imigrante é o estatuto do sujeito. “O sujeito como tal definido por seu lugar no Outro, é um imigrante… O problema do sujeito precisamente é que este país estrangeiro é seu próprio país” (MILLER, 2011, p. 43).

Na modernidade, com o objeto a que “es tan êxtimo al sujeito como al Otro” (MILLER, 2011, p. 22), no zênite, com o declínio do NP, temos duas vias para pensar a angústia trazida pelo infamiliar. Segundo Sérgio de Castro (2020), na via da angústia de castração, temos um unheimliche passível de ser interpretado e que traz a marca do NP, apreensível pela linguagem. O sujeito sustentado pelo NP poderá decodificar, compreender um certo mal-estar, lançando mão do simbólico. Na via da angústia lacaniana, quando o objeto se presentifica, quando falta a falta, aparece um unheimliche, um real que remete ao campo do gozo, que tem algo de invasivo. O sujeito, sem a sustentação fálica e sem a mediação simbólica, pode se ver sem a possibilidade de dar um sentido àquilo.


REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. O bárbaro: Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 25/26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto2.html. Acesso em 30 out. 2019.
BEBER, Bruna. (2019), Hamlet. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
BROUSSE, Marie-Hélène. (2007) Objets ètranges, objets immatériels: pourquoi Lacan inclut la voix et le regard dans la série des objets freudiens? Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, p. 287-293, dez. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672007000200017. Acesso em 8 abr. 2020.
CASTRO, Sérgio de. Seminário ministrado em Montes Claros – MG em 13 fev. 2020.
FREUD, Sigmund. (1919). O Estranho. In: Obras completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990.
FREUD, Sigmund. (1919) O Infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de “O homem da areia” de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte, MG: Editora Autêntica, 2019.
FREUD, Sigmund. “O Inquietante”, In: Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. (1930) “O Mal-estar na civilização”, In: Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HOFFMANN, E.T.A. ”O homem de areia”, In: Contos Fantásticos do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthomaRio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,2007.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.

[1] Nome fictício.
[2] Este texto foi escrito antes de a OMS declarar a pandemia do coronavírus, em 11 mar. 2020.
[3] “Intimidade é estar quentinho” (tradução nossa).



O INFAMILIAR E O OUTRO MAU

 

 

IVAN VITOVA JUNQUEIRA
Psiquiatra e psicanalista praticante, coordenador da Reunião Clínica no Complexo Penitenciário da Parceria Público Privada em Ribeirão das Neves
ivanvitova@hotmail.com

 

Resumo

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada com uma populacão encarcerada, que recebe atendimento psicológico e psiquiátrico há mais de seis anos, e no qual se tenta articular os sentimentos de angústia e terror que surgem nos atendimentos ao conceito freudiano de infamilar, assim como ao conceito de dejeto, proposto por Miller em seu texto “A salvação pelos dejetos”. A partir desses conceitos, é possível pensar se esses sujeitos podem estar identificados ao objeto “a” enquanto dejeto Real.

Palavras-chave: horror; ser falante; dejeto; infamiliar; Outro mau.

Abstract: This article is based on a research done with an incarcerated population that receives psychological and psychiatric treatment for more than six years in wich is made an attempt to articulate the feelings of anguish and terror that emerge in their stories to Freud’s concept of the uncanny, as well as the concept of psychic litter proposed by Miller in his text “Salvation through the litter” Through theses concepts it is also possible to think if those subjets could be identified to object “a” as a waste of the Real.

Keywords: horror; speaking being; waste; uncanny; Other bad.

 

 

Coletoras – Barbara Schall

 

“O horror, o horror”[1]

 

Em “O infamiliar” (1919), Freud coloca que o psicanalista, em uma investigação estética — que se ocupa, de preferência, dos sentimentos belos e grandiosos —, pode se interessar aí por um domínio específico, por algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada: os sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos. Freud coloca também que algo desse domínio é o “infamiliar”, que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, seguro de que essa palavra coincide com aquilo que angustia e na espera de que exista um determinado núcleo que justifique a utilização desse conceito. Passa, então, a investigar o que seria esse núcleo comum que permitiria diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. Observa diversos fatores a partir dos quais o angustiante se torna assim infamiliar — como o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração — e conclui que este é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e dele retorna. O prefixo de negação “in-”, nessa palavra, é a marca do recalcamento, ou seja, o infamiliar designaria algo correlato ao retorno do recalcado, fonte de angústia para o ser falante.

Miller, digamos, retornando à investigação estética pela via dos “sentimentos contraditórios, repugnantes e penosos” (FREUD, 1919, p. 31), em “A salvação pelos dejetos” (2010), retoma o mito de Hércules, que, como a humanidade, teria se situado diante de uma escolha entre duas vias: “E, como por uma escolha forçada, se poderia dizer que a humanidade tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita, a da salvação pelos dejetos” (MILLER, 2010, p. 1).

(…) o que é o dejeto? É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa (MILLER, 2010, p. 1).

Ou seja, a descoberta freudiana primeiramente foi, como se sabe, a desses dejetos da vida psíquica, do mental − que são o sonho, o lapso, o ato falho e, mais além, o sintoma, enquanto decifrável. Poderíamos dizer então que o mecanismo de recalcamento, nesse caso, marca comum, enlaça o infamiliar aos dejetos da vida psíquica.

Retornando a Hércules e à escolha da humanidade, falemos de uma parcela desta que, ao que parece, escolheu a via do vício, ou seja, a do dejeto. Mais especificamente, trata-se de uma população encarcerada (CPPP Ribeirão das Neves, MG), com a qual trabalhamos há mais de seis anos. Trata-se de parte dos cerca de três mil detentos, encaminhada para atendimento psicológico e psiquiátrico e como casos para supervisão e construção na reunião clínica devido ao intenso sofrimento mental decorrente do encarceramento. Nessa população, as características mais marcantes são a precariedade simbólica e uma história que se repete: desamparo familiar, abandono precoce da escola e início também precoce do uso de drogas e envolvimento com tráfico, roubo e homicídio. Nessa clínica, em geral, o sofrimento emerge sob a forma do horror quando o ser falante vislumbra a possibilidade de abandono, de ruptura da relação com a companheira, percebida como uma maldade proposital. Emerge também quando o ser falante crê que o Outro da instituição de uma “ordem rija” (LACAN, 1950, p. 131) o persegue e o prejudica intencionalmente, de algum modo. Nesses casos, na impossibilidade de matar esse Outro, o ser falante evolui com ideias de autoextermínio ou passa ao ato na tentativa de enforcamento. Nesses momentos, a direção do tratamento, construída pela equipe clínica em conjunto com a segurança, tem como base operar como o Outro mínimo na construção da relação transferencial com o ser falante em sofrimento, ou seja, construir um Outro que não abandona, que faz barra à pulsão de morte e lhe abre espaço para colocar em palavras o que o aterroriza. Para isso, muitas vezes é necessário colocá-lo em cela especial no setor de saúde, sob vigilância ostensiva para evitar um suicídio, o que, às vezes, não ocorre por um triz. Em geral, vão acontecendo os atendimentos quando é possível ir construindo, na relação transferencial, um Outro menos persecutório, o que abre para a possibilidade de outros modos de amarração para o ser falante além da identificação ao criminoso.

Nesse trabalho clínico, um a um, quando da emergência do aterrorizante, do que suscita angústia e horror, perguntamo-nos se podemos identificar, aí, o infamiliar enquanto dejeto marcado pelo mecanismo de recalcamento. Para tentar responder a essa questão, é necessário nos aprofundarmos no estudo de características comuns dessa clínica precária do simbólico, que são a passagem ao ato, a desconfiança em relação ao Outro, a vontade de gozo e a ausência de sentimentos de culpa ou responsabilidade pelos atos que motivaram a prisão.

Diferentemente do texto de Lacan de 1950, “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia”, onde este percebe o ser falante encarcerado como “sujeito culpado” e com “esperança de se integrar num sentido vivido” (p. 131), Miller (2011), em “La experiência de lo real em la cura psicoanalítica”, enlaçando o último ensino de Lacan a Freud, desenvolve a articulação entre os termos caráter e resistência, no qual o primeiro está designando elementos de personalidade do ser falante, que, apesar de patológicos, se expressam de modo consciente, sem culpa e como modo de gozo.

No capítulo “A patologia da conduta”, Miller (2011) constrói a articulação entre sintoma e caráter, desde suas origens. Cita, como os pós-freudianos, que,

(…) a partir da noção de sintoma localizado, necessitaram introduzir o caráter, que é o conceito que serviu, quando a patologia se apresentou de alguma maneira assintomática, mas afetando o comportamento, a conduta do sujeito, o conjunto de sua vida… O conceito de caráter foi o instrumento conceitual para estender a neurose para mais além do sintoma. Para Alexander, Glover, Jones e outros, o sintoma freudiano é um enclave na personalidade do sujeito que sofre. Com respeito ao caráter, sem dúvida, a questão é convencê-lo de que está doente, na medida em que sua conduta caracterial lhe dá satisfação (MILLER, 2011, p. 138).

Em relação à satisfação, Miller, citando os três tipos de caráter de Freud, presentes em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), mais especificamente no capítulo “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”, coloca que

(…) a origem comum é a relação do sujeito com o lust, com o prazer ou o gozo. Então no caráter está em primeiro plano a satisfação, a befriedigung. E Freud nomeia caráter ao que no sujeito não se satisfaz com o sintoma, o faz parecer como um modo de satisfação da pulsão, que não mobiliza o sintoma como mensagem ao Outro (MILLER, 2011, p. 119).

Continua, em relação a outra característica dessa clínica, citada anteriormente, a passagem ao ato, que

(…) o caráter se caracteriza pelo fato de que no lugar dos sintomas se tem ações, atos afora na vida… Com o caráter apontaram para algo mais arcaico que o sintoma, anterior ao estágio de sua formação, onde a pulsão se satisfaz na ação, que o substitui. Por isso o caráter se apresenta como patologia da conduta (MILLER, 2011, p. 140).

Miller continua apontando que o caráter é, então,

(…) um.a instância, uma formação, um objeto, algo com que se cruza no trabalho analítico e que precisamente o obstaculiza de uma maneira que lhe é própria. E porque, se seguirmos Freud, se inscreve no trabalho analítico como obstáculo, penso que é legítimo inscrever o caráter como experiência do real na cura analítica. Simplesmente e conforme as indicações freudianas, localizaria o termo caráter como diferente do sintoma. O sintoma é decifrável e o caráter se apresenta como o que não se deixa ler, onde não há intencionalidade inconsciente (MILLER, 2011, p. 112-113)

A partir daí, Miller desenvolve como Lacan, apoiando-se em artigos de Jones e Abraham sobre a ideia da base pulsional do caráter, caminha para a questão do caráter como defesa e de como isso afeta o trabalho psicanalítico como interpretação: se o caráter representa uma resistência ao trabalho psicanalítico como interpretação, é porque “interessa ao que Freud denominou no Eu e o Isso de defesa” (Miller, 2011, p. 135), referindo-se ao inconsciente não recalcado. Defesa que difere do sintoma, por este estar diretamente conectado ao Real, à pulsão e ao gozo.

Após essas observações, podemos retornar à questão sobre o que suscita a angústia, o horror e o aterrorizante nessa clínica específica do ser falante encarcerado. Tratar-se-ia do infamiliar enquanto dejeto marcado pelo recalcamento, a saber, um dejeto enlaçado à ordem simbólica?

Na nossa experiência, o horror parece emergir no ser falante quando este se aproxima de uma experiência singular, descrita por Miller em “Efeito do retorno à psicose ordinária” como uma das externalidades índices de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida (2010, p. 18). Seria a experiência da identificação ao objeto “a” enquanto dejeto real, na qual o ser falante “vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo” (MILLER, 2010, p. 18), podendo chegar ao suicídio. Em outras palavras, poderíamos dizer que o que causa horror é a aproximação da possibilidade de o ser falante ocupar o lugar de objeto de gozo do Outro. Mais especificamente, de um Outro que Miller nomeou “Outro Mau”: “trata de um Outro que quer meu mal e também de um Outro que goza do mal que faz” (2011, p. 74). Situação essa que emerge quando o ser falante perde suas defesas — no caso, o enlaçamento à imagem e ao modo de gozo do bandido, que pode se defender do Outro que quer gozar dele — ou, em outras palavras, quando tem perturbado o seu caráter enquanto defesa e modo de gozo explícito do ser falante.

Poderíamos concluir questionando se, nessa população específica de nossa pesquisa, que escolheu a “via do vício”, o mais comum seria a emergência do horror — não como índice de retorno do infamiliar, enquanto dejeto articulado ao recalcado, mas como índice de um defeito na junção mais íntima do sentimento de vida — quando o ser falante se aproxima da identificação ao objeto enquanto dejeto real e, ainda: não seria também essa a situação de boa parte dos seres falantes fora do sistema prisional, na nossa civilização atual?


Referências
FREUD, Sigmund (1916). “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 325.
FREUD, Sigmund (1919). O Infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Autêntica, 2019, p. 29-115.
LACAN, Jacques (1950). “Premissas a Todo Desenvolvimento Possível da Criminologia”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.131.
MILLER, Jacques-Alain (2011). La experiência de lo real em la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 109-145.
MILLER, Jacques-Alain (2011). Quando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós, p. 74.
MILLER, Jacques-Alain (2010). “Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Opção Lacaniana Online ano 1 – número 3 – Novembro de 2010.
[1] Coronel Walter E. Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando no filme Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla, 1979, baseado em Heart of Darkness, de Joseph Conrad.



O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO

LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO
Psicanalista em formação (Aluna do IPSM-MG), técnica em assuntos educacionais (IFMG).
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).
Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais  (UFMG). Pedagoga (UniBH).  livsazzi@gmail.com

 

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Resumo

Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual.

Palavras-chave: Histeria, feminilidade, semblantes do feminino.

Abstract: This paper seeks to locate the disjunctions of hysteria and femininity in Anaïs Nin’s diary (1931–1932/1986). To this end, three positions will be demarcated: (I) Anaïs position towards June, by electing her as The Woman; (II) Henry Miller’s role for Anaïs as the ideal man’s semblance; (III) the diary as a symptom of the elaboration of what to do in the face of non-sexual relations. 

Keywords: Hysteria, femininity, feminine semblance.7

 

Sobre o peso do meu corpo – Barbara Schall

 

Começo servindo-me da frase “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, que Lacan (2009) utilizou para intitular um dos capítulos do Seminário 18. Ao parafraseá-lo no título do presente artigo, substituo “um homem” por “o homem” e “a psicanálise” por “o imaginário”. A escolha desse título se deu não apenas pela inspiração que me tirou da inércia para iniciar este texto, mas, sobretudo, por parecer-me adequada ao enquadramento que proponho aqui: analisar as construções de Anaïs Nin (1931–1932/1986) acerca do feminino em Henry, June e eu: diários não expurgados 1931-1932, no qual a autora utiliza a escrita como forma de elaborar o seu processo de tornar-se mulher.

Cabe salientar que, em “De um discurso que não fosse semblante”, Lacan (2009) irá situar o leitor em três capítulos diferentes, nos quais ele destaca os seguintes enunciados: “O homem e a mulher”, “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. Dando atenção a isso, busquei compreender qual dessas nomeações seria mais apropriada para demarcar essas diferenças, e, ainda, em que medida essas noções ajudam a localizar, nas descrições feitas no diário íntimo de Anaïs, o modo como ela tentará resolver o enigma do feminino, partindo da hipótese de que o seu interesse por Henry e por June se desenvolve numa construção especular de homem e mulher. Posto isso, questiono: qual homem e qual mulher ela irá buscar nesses personagens?

Em “O homem e a mulher”, Lacan (2009) vai dizer que a mulher é precisamente a hora da verdade para o homem, quer seja, diferentemente dos termos “homem” e “mulher”, que demarcam a identidade de gênero, o que define o homem é a sua relação com a mulher, e vice-versa. Se essa relação existe, existe pela via de suporte de um semblante. No capítulo intitulado “O homem e a mulher e a lógica”, Lacan (2009) aconselha estudar a carta/letra, destacando a estrutura de ficção da verdade no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, na medida em que testemunha o ponto em que a ficção tropeça e se articula com a linguagem: a acentuada deficiência de certa promoção da relação sexual. Ele diz que a relação sexual fracassa ao ser inscritível na linguagem, precisamente porque a inscrição efetiva do que seria a relação sexual teria que relacionar os dois polos “homem” e “mulher”, termos estes que, em função da lógica, marcam o impasse sexual. Já no capítulo “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, faço os seguintes destaques: é num discurso que, sendo homens e mulheres, têm que se valer como tais; só há discurso de semblante, e este só se anuncia a partir da verdade, que, como tal, só pode dizer o semblante sobre o gozo.

Neste último capítulo aqui referenciado — que, na verdade, é o capítulo IX do Livro 18 — para designar um homem e uma mulher, juntamente com a psicanálise, Lacan enuncia a histérica como aquela que conjuga a verdade de seu gozo com “o seu saber implacável de que o Outro apropriado para o causar é o falo, ou seja, um semblante” (2009, p. 143). Em sequência, Lacan enfatiza que a histérica se atribui daqueles que ela finge serem detentores desse semblante, ao menos um — o qual Lacan teve necessidade de reescrever como ahomenozum. Todavia, há um problema, visto que, como Lacan pontua, “a histérica não é uma mulher” (2009, p. 145). Desse ponto, buscará saber se a psicanálise dá acesso a uma mulher.

Não proponho, aqui, psicanalisar os diários de Anaïs Nin, mas sim investigá-los, partindo dessa definição negativa de histeria, já que a histérica não é uma mulher, tal como aponta Márcia Rosa (2019, p. 76): “tornar-se mulher implica ter atravessado a histeria”, e acrescenta: “Há, portanto, uma disjunção entre os dois campos: da histeria e da feminilidade”.

Considerando tal distinção, desenvolverei este trabalho buscando localizar as disjunções da histeria e da feminidade nas descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin, correspondente aos anos de 1931-1932. O enredo, embora não seja o motivo da análise, permite a organização de três posicionamentos. Estes, sim, motivam a presente investigação, quais sejam: (I) a posição de Anaïs diante de June ao elegê-la, em suas palavras, “a única mulher que já correspondeu às exigências de minha imaginação”; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs quando ela diz sobre o casal: “Eles dois fazem parte de mim: a mulher que age como Henry e a mulher que sonha em agir como June” (1986, p. 91); e (III) o diário personificado como o seu fiel confidente, o sintoma de Anaïs: “O diário é produto de minha doença, talvez uma acentuação e um exagero dela” (p. 136) — é nele que Anaïs elabora suas descobertas e desordens em relação à sexualidade, é por meio dele que vai se dando conta do impossível da linguagem e do que fazer diante da não relação.

Quanto ao primeiro posicionamento, recorro ao clássico caso de Freud: “Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumava elogiar seu ‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado a um amante do que uma rival derrotada” (2006, p. 65, grifos do autor). Em paralelo, cito Anaïs ao referir-se a June: “Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, a esposa de Henry” (1986, p. 18). Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan (1998) vai constatar, como o próprio Freud reconheceu, que, durante muito tempo, não pôde deparar com essa tendência homossexual, tão constante nas histéricas, justamente pelo preconceito em considerar a primazia do personagem paterno.

Marie-Hélène Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro”, explica que a homossexualidade é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso Dora e da histeria em geral, sob a forma de tendência inconsciente não culminada num ato sexual. O texto de Brousse contribui para a localização desse elemento-chave do caso Dora: “O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher” (2015, p. 3).

Esse elemento também pode ser destacado no interesse de Anaïs por June e em suas tentativas de vincular os semblantes a algum significante de difícil apreensão. Por não ter o falo, ela busca vincular-se àquilo que ela crê que o possua, a posição masculina: “No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros” (NIN, 1986, p. 17).

Anaïs percebia que “o eu de June criado nos outros” nem sempre correspondia a sua June imaginária. Por exemplo, ao avistar June caminhando em sua direção, ela indaga em seu diário: “O homem no American Express não vê a maravilha que ela é?” (NIN, 1986, p. 20). Fatos como esse suscitaram-na a escrever: “Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando a multidão e sabendo que nenhuma June apareceria porque June era um produto de minha imaginação” (Ibid., p. 20).

Em “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998) vai dizer que, tal como o amor cortês, que se gaba de ser quem dá aquilo que não tem, “é exatamente isso que a homossexual se esmera em fazer no tocante àquilo que lhe falta”. A escolha homossexual na mulher não é uma escolha que elege um objeto incestuoso às custas do seu sexo, mas sim um impasse diante do inaceitável de que “esse objeto só assuma seu sexo às custas da castração”. Ele prossegue: “Em todas as formas, mesmo inconscientes, é sobre a feminilidade que recai o interesse supremo” (LACAN, 1998, p. 744).

Esse interesse supremo pela feminilidade na histeria é sintetizado por Brousse (2015), no caso Dora, pelo processo de identificação estabelecido por Dora ao Sr. K ou ao seu pai:

“A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma” (Brousse, 2015, p. 3, grifos meus).

Embasada nas inversões dialéticas expostas por Freud (2006) no caso Dora, destacadas e desenvolvidas em “Intervenção sobre a transferência”, em Escritos, por Lacan (1998), bem como nas contribuições de Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina…”, e de Rosa (2019), sobre “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”, posso afirmar, a partir do diário de Anaïs Nin, que há, no registro escrito da diarista, o enredo de uma escolha amorosa homossexual orientada para além do Édipo, quer seja, orientada pelo modo enigmático que a feminilidade se encarna para uma outra.

Tanto Dora quanto Anaïs colocam, respectivamente, o Sr. K e Henry como testas de ferro do desejo feminino. Assim como Dora, de acordo com Freud, “invejava o pai pelo amor da Sra. K e que não perdoava à mulher amada a desilusão que esta lhe causara” (2016, p. 66), Anaïs indaga em seus diários: “Será que amo Henry porque me identifico com ele e com o seu amor e posse de June?” (1986, p. 90). No entanto, ao que toca a identificação, diferentemente de Dora, que posicionava K apenas como um intermediário, e não como o homem com o qual ela vai sustentar um relacionamento como amante, Anaïs elege Henry o semblante do homem ideal e interessa-se por investigar como ser mulher para esse homem. Para isso, tenta assumir especularmente a posição masculina e, como um homem, investigar aquilo que aquela mulher tem e que interessaria a esse homem: “a amaria por sua beleza enquanto ela poderia me amar como se ama um homem, por seu talento, seu desempenho, seu caráter” (NIN, 1986, p. 90-91). Trata-se, aqui, de localizar o segundo posicionamento entre a histeria e a feminilidade de Nin.

Por fim, o último posicionamento de Anaïs. Ainda servindo das aproximações e diferenças com o caso Dora, esta, enquanto paciente de Freud, apresenta uma complexidade de sintomas no corpo que o próprio médico vai correlacionar como causados pelas desordens da vida psicossocial e “expressão dos seus mais secretos desejos recalcados” (FREUD, 2016, p. 19). Não pude localizar tais sintomas relacionados ao corpo nessa parte do diário sobre Henry e June, correspondente aos anos de 1931-1932. Ao que parece, os sintomas de Anaïs são seus próprios escritos. É no diário que Anaïs Nin elabora suas questões sobre a sexualidade e sobre o que fazer com essa June, sua June, pela qual ela nutria, em vão, a esperança de ver desmascarada. O que há é apenas uma June, uma June pelo que ela é, por si mesma, e, consequentemente, vê instaurada a falta em Henry e em si própria:

“Ontem à noite eu chorei. Chorei porque o processo pelo qual me tornei mulher foi doloroso. Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de uma criança. Chorei porque meus olhos estavam abertos para a realidade — para o egoísmo de Henry, para o amor de June pelo poder, para minha criatividade insaciável que deve preocupar-se com outras pessoas e não consegue ser suficiente a si mesma” (NIN, 1986, p. 177).

Paralelamente a essas descobertas, Anaïs vai arranjando, pela escrita, não apenas sua impotência diante de si mesma, decorrente da castração, mas, principalmente, vai tentando fazer com as palavras, intuitivamente, alguma amarração para o seu gozo.


Referências 
BROUSSE. M-H.“A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro” 2015. Trad. Márcia Bandeira. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/08/brousse.pdf Acesso em: 18, set. 2019.
Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2016.
LACAN, J.  (1951). “Intervenção sobre a transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
NIN, A. Henry, June e eu. Diários não expurgados 1931-1932. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986.
ROSA, M. “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”. Por onde andarão as histéricas de outrora. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.

 




UM MÍSTICO PARA A NOÇÃO DE GOZO FEMININO

RODRIGO SANTOS DA MATTA MACHADO
rsmattamachado@gmail.com
Psicólogo, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG, diretor de clínica credenciada ao Detran, psicólogo clínico e aluno do módulo III do curso do IPSM–MG

Resumo: São João da Cruz apareceu em meio à psicanálise lacaniana como um instrumento de auxílio na transmissão do saber psicanalítico. Surge, portanto, nesse contexto, como um exemplo de místico prestigiado por Lacan, que o tinha como uma pessoa dotada. Investigaram-se a obra e biografias de São João da Cruz, buscando conhecer algumas importantes facetas da sua vida para melhor aplicação desse exemplo nas elaborações da tábua da sexuação. As facetas poética e mística de São João da Cruz foram úteis em importantes transmissões do psicanalista.

Palavras-chave: mística, gozo não-todo, poesia, Lacan, São João da Cruz.

A mystic for the notion of feminine enjoyment

Abstract: Saint John of the Cross has appeared within Lacanian psychoanalysis as a helpful resource in the transmission of the psychoanalytic knowledge. Saint John of the Cross emerges in such context as an example of a mystic esteemed by Lacan, who considered him to be a gifted person. The work of Saint John of the Cross, as well as a number of biographies written on him were examined, in an attempt to comprehend some of the most relevant facets of his life, and in the hopes of attaining a better application of such example in the elaborations of the sexuation table. The poetic and the mystical facets of Saint John of the Cross were useful in important teachings of the psychoanalyst.

Keywords: mysticism, not-all jouissance, poetry, Lacan, Saint John of the Cross.

 

Maltratado e abandonado, portando apenas papel e tinta no cárcere do mosteiro Carmelita Calçado, em Toledo, Espanha, São João da Cruz (doravante SJC) dá voz a sua mística e a sua poética. Esse importante santo da Igreja Católica, amplamente conhecido no contexto religioso, suscitou o interesse de Jaques Lacan em meio às suas elaborações psicanalíticas.

Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, no decorrer das formulações sobre o gozo não-todo fálico e sobre o lado feminino na tábua da sexuação, Lacan (1972-73/2008) menciona SJC explicitamente. O santo foi tomado, pelo psicanalista, como um representante da mística que teria algo importante a nos informar. No entanto, justamente por SJC se tratar de um homem, essa colocação teve o caráter de exceção, pois as mais comuns representantes da mística eram as mulheres, mas, como o próprio psicanalista francês indicou, SJC só ocupou esse lugar por estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha)[1].

Em decorrência da importância dada por Lacan ao místico, recorri à biografia e à obra de SJC em busca do motivo pelo qual este se tornou um exemplo precioso, principalmente na exploração da noção de gozo não-todo.

 

Breve biografia de SJC

João de Yepes nasceu em 1542, na cidade de Fontiveros, Espanha. Em sua primeira infância, viveu em extrema dificuldade devido à pobreza familiar e ao falecimento do pai e de um irmão mais velho. Aos dez anos de idade, ingressou em um colégio de ofícios e, depois, tornou-se coroinha em um mosteiro. Aos quatorze, entrou em um hospital como enfermeiro e recolhedor de esmolas e, em consequência, pôde frequentar aulas de Filosofia e Gramática. Aos 21 anos, ingressou para a ordem dos Carmelitas.

No momento em que estava insatisfeito com o pouco rigor das diretrizes espirituais de sua ordem, o frei teve um encontro com a carmelita Madre Teresa de Jesus (mais tarde, canonizada Santa Teresa de Ávila), que lhe apresentou um projeto de reforma do Carmelo que propunha maior rigor nas diretrizes espirituais, como ele desejava. Assim, em 1568, nasceu um novo braço da ordem, os Carmelitas Descalços masculino, e também João da Cruz — nome adotado por ele.

Poucos anos após o início da reforma, Frei João se tornou alvo de perseguição pelos Carmelitas Calçados contrários ao movimento, sendo sequestrado e encarcerado por duas vezes. A primeira, em 1575, foi curta, porém violenta, gerando sequelas físicas permanentes. A segunda, em 1577, durou oito meses e foi marcada por torturas corporais e mentais. Embora as condições do cárcere tivessem sido as piores possíveis, foi nesse período que surgiram as facetas mais importantes desse homem: a mística e a poética. Em agosto de 1578, ele conseguiu fugir e retomou sua função como reformador. SJC faleceu em 1591, aos 49 anos.

Em uma vida de superação, SJC alcançou destaque como religioso e místico, o que provavelmente contribuiu para o interesse de Lacan. Além desse destaque, a faceta de escritor do santo certamente fomentou a valorização desse homem por Lacan. O psicanalista, em uma comparação de SJC com Schreber, demonstrou um reconhecimento à poesia do místico:

 

“Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber.” (LACAN, 1955-56/1988, p. 96).

 

A poesia, por proporcionar uma entrada do leitor em uma “dimensão nova da experiência”, ganhou a função de avalista de autenticidade. O processo de criação da poesia pelo “sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica como o mundo”, presente em SJC, foi, para Lacan, o ponto marcante de distinção entre a escrita do místico e a de Schreber, que não teria o mesmo alcance. Assim, me lançarei a conhecer melhor a faceta poética de SJC.

 

A arte poética de São João da Cruz

 

O poeta SJC parece ter surgido, expressivamente, dentro do cárcere, em Toledo. Sua arte poética pareceu socorrer o frei das angústias, do sofrimento e do abandono vivenciados nessa ocasião. Ele “não aspirava criar uma obra que perdurasse ou que tivesse ecos mais amplos. Em resumo, não vivia para a arte, valia-se dela” (JIMÉNEZ, 1991, p. 16).

Nas poesias de SJC, é possível encontrar alguns temas e ideias recorrentes. A relação amorosa (amante-amado), a experiência de êxtase, a abnegação, o abandono, o gozo e a dor são frequentemente abordados, estando SJC, em inúmeras passagens, como sujeito da oração em uma posição feminina. Essa posição pode ser observada na seguinte estrofe:

 

“Ali me deu peito

e me ensinou ciência saborosa;

e dei-me de tal jeito,

a mim todo, ditosa:

ali lhe prometi ser sua esposa.”

(CRUZ, 1577-1585/1991, p. 43)

 

Os escritos poéticos ganham ainda mais ênfase ao seguirmos a tese apresentada por Jean Baruzi (1924/2001), que indicou que o melhor meio de aproximação da mística de SJC seria a sua poesia. Ele afirmou que o que há de mais original na experiência mística do santo se traduziu em seus primeiros cantos. Inclusive, Baruzi defendeu que SJC, por influência doutrinal, alterou seus escritos e poemas em um segundo momento, como se quisesse ocultar algo que, na experiência original, estaria fora de alguns preceitos religiosos que seguia. As expressões místicas contidas na sua poética seriam perturbadoras para a ordem Carmelita.

A intimidade da experiência mística de SJC com sua criação poética em um eu lírico feminino provavelmente sustentou o uso que Lacan fez de seu exemplo. Assim, vi também a necessidade de explorar as singularidades da mística SJC, para que tivesse maior compreensão sobre a noção pela qual estou transitando aqui.

 

A mística de São João da Cruz

 

Um místico aspira a uma relação outra, além da comum relação entre os seres falantes. Levando em consideração as concepções mais usuais, o místico é aquele que leva sua vida centrado na experiência de procura por um caminho para o Absoluto. SJC afirmava que “uma alma começa a servir a Deus até chegar ao último estado de perfeição[2], que é o matrimônio espiritual” (CRUZ, 1577-91/2002, p. 592).

A mística abarcaria toda uma maneira singular de viver para o alcance da união com Deus. Lacan, ao afirmar que “os místicos tentaram, por seu caminho, chegar à relação do gozo com o Um” (1968-69/2008, pp. 133-134), pareceu resumir teoricamente aquilo que ele entendeu sobre a experiência mística. A noção do Um, nesse contexto, ocupou o lugar que o Absoluto ou a Divindade ocupam para o místico na sua tentativa de união.

SJC é também conhecido como Doutor do tudo e nada[3], nome que indica a centralidade do seu ensinamento sobre o caminho que deve ser percorrido por aqueles que desejam o encontro com o divino. De modo sintético, Deus seria o tudo, o ser completo, aquele que sustenta toda a existência, e o ser humano seria a criatura que, para ter acesso ao tudo, deveria se colocar como nada, sendo a radicalidade do ato de abnegação o caminho principal para o encontro divino.

No mesmo sentido, Lacan indicou “que a porta de entrada da experiência mística seja muito precisamente a extinção completa, radical até suas últimas raízes, de todas as paixões do amor próprio” (1954/2008, p. 69). Essa abnegação possibilitaria a união do místico com a divindade e, consequentemente, permitiria a experiência de êxtase. Sobre o tema, afirmou SJC: “Em verdade, chegando ao estado da união divina, a alma goza de grande sossego em suas potências naturais e tem adormecido os seus ímpetos e ânsias sensíveis na parte espiritual” (1577-91/2002, p. 186).

Os momentos de êxtase são narrados de forma impactante, e o deleite vivido durante o contato com o transcendente é bastante intenso. Apesar do esforço em descrever esses encontros, pouco pode ser falado sobre eles: “Não nos é permitido conhecer as formas mais elevadas de experiência porque são muito inefáveis para poderem ser compreendidas pela inteligência humana” (BORRIELLO et al., 1998/2003, p. 407).

O êxtase parece guardar um mistério acessível apenas para aqueles que procuraram o caminho místico e alcançaram essa experiência de maneira plena. Muitas vezes os místicos lançam mão do recurso poético para tentar transmitir a experiência. SJC apresentou canções em íntima ligação com a união divina e afirmou que elas não poderiam ser totalmente desvendadas, pois seriam uma inspiração direta de Deus durante seus momentos de intimidade com Ele:

 

“Seria, ao contrário, ignorância supor que as expressões amorosas de inteligência mística, como são as Canções, possam ser explicadas com clareza por meio de palavras…

Essas Canções, tendo sido compostas em amor de abundante inteligência mística, não poderão ser explicadas completamente”. (CRUZ, 1577-91/2002, pp. 575-576).

 

Lacan também pareceu perceber a dificuldade no relato do êxtase ao afirmar que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (LACAN, 1972-73/2008, p. 82).

 

A mística e o gozo feminino

 

No Seminário 20, a noção de gozo da mulher entrelaça-se de forma relevante aos exemplos dos místicos em suas manifestações de êxtase. As narrativas desses efeitos levaram Lacan a entendê-los como um tipo de gozo gozo da mulher ou gozo não-todo.

Importa esclarecer sinteticamente que o gozo não-todo, no meu entendimento, é aquele que escapa/nega a ordem fálica. Já o gozo fálico pode ser entendido como “atributo essencial da posição masculina —, concebido como um regime libidinal normatizado e, portanto, submetido aos limites estritos do significante” (SANTIAGO, 2013, p. 90).

Lacan descreveu explicitamente que o místico, em seu êxtase, experimenta um modo próprio de gozo: “Para a Hadewijch em questão, é como para santa Tereza — basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida” (1972-73/2008, p. 82). A utilização dos exemplos místicos em meio às elaborações sobre a noção de gozo não-todo cumpre um papel elucidativo e de visualização. O psicanalista diferenciou esse gozo de outras possíveis interpretações e assim expôs, de modo sintético, todo seu entendimento sobre essa vivência da mística: “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (1972-1973/2008, p. 82). A mística, naquilo que ela tem de indizível e naquilo que a aproxima de uma vivência de um gozo feminino, articula-se definitivamente com noções concernentes ao plano do real. A utilização explícita do exemplo de SJC nas elaborações sobre a tábua da sexuação acrescenta ainda mais conteúdo para avançar na compreensão dessas articulações.

 

São João da Cruz e a tábua da sexuação

 

Na referência a SJC no Seminário 20, Lacan o colocou em lugar de destaque por ser um exemplo precioso para a argumentação teórica que vinha desenvolvendo. Referindo-se à mística, Lacan afirmou:

 

“É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais freqüentemente mulheres, ou bem gente dotada como são João da Cruz – porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do lado do xФx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entrevêem, eles experimentam a idéia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos”. (1972-73/2008, p. 81-82).

 

SJC era, para Lacan, um autêntico místico. Além disso, para esse psicanalista, a mística estava intimamente ligada ao gozo não-todo. Por isso, SJC, inevitavelmente, ocuparia o lado da mulher na tábua da sexuação. Essa tábua, tendo uma divisão descritiva entre o lado do homem e o da mulher, foi uma maneira de exibir o modo como os sujeitos se colocam em sua relação com o Outro e também com o gozo envolvido nos dois lugares. A fiança da vivência mística estaria no gozo feminino, mas o referido místico foi o exemplo maior de que não se trata de ser uma mulher, mas de uma posição de gozo em sua relação com o Outro. Embora essa ocupação no lado da mulher não seja para qualquer um, ela foi condicionada ao fato de SJC estar entre as “pessoas dotadas” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70, tradução minha).

É possível concluir que o uso de SJC por Lacan, na elaboração sobre o lado da mulher na tábua da sexuação, ganha relevância, em especial, em razão da possibilidade de acesso à experiência de êxtase do santo por meio de sua poesia. Verifico, ainda, que a proximidade existente entre essa experiência e o entendimento lacaniano sobre o gozo não-todo é notada no uso espontâneo e constante pelo místico do eu lírico na posição feminina.

 


 

Referências
BARUZI, J. (1924) San Juan de la Cruz y el problema de la experiencia mística. Junta de Castilla y León: Consejería de Educación y Cultura, 2001.
BORRIELLO, L.; CARUANA, E.; DEL GENIO, M.; SUFFI, N. (Dirs) (1998). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003.
CRUZ, J. (1577-85) São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
CRUZ, J. (1577-91). São João da Cruz: obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
JIMÉNEZ, F. Prefácio. CRUZ, J. São João da Cruz: poesias completas edição bilíngue. São Paulo: Consejería de Educación de la Embajada de Espanã, 1991.
LACAN, J. (1954/2008) “Do símbolo e de sua função religiosa”. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e a verdade na neurose. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1968-69) O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. (1972-73) Le séminaire de Jaques Lacan, livre XX: encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SANTIAGO, J. (2013) “A plasticidade da sexuação feminina”. Opção lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, n. 65, 2013, p. 89-92.

[1] No original: “gens dou és” (LACAN, 1972-73/1975, p. 70). Optei por utilizar a versão em francês e traduzi-la à minha maneira, pois a tradução “bem gente dotada” (LACAN, 1972-73/2008, p. 81) não é uma expressão usual de nossa língua.
[2] O estado de perfeição refere-se ao estado de união divina.
[3] Essa nomeação de SJC é o subtítulo de uma das biografias consultadas neste trabalho.



Almanaque On-line Março/2020 V. 14 – Nº 24

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

Ludmila Féres Faria


Voilá! Chegamos à 24ª edição da revista Almanaque On-line, que tem a religião como tema principal. O mote da escolha foi a constatação do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil… [Leia Mais]

TRILHAMENTOS
Uma época fundamentalmente descrente – Dalila Arpin
Glosa Sobre uma bússola – Antônio de Ciaccia
ENTREVISTA
As religiões vêm no lugar das adições – Marie Hélène Brousse
A religião e a verdade – Frei Betto
ENCONTROS
Crença e Nome-do-Pai – Alessandra Rocha
INCURSÕES
O tempo faz sintoma no inconsciente à céu aberto – Fernando Casula

O tempo e o inconsciente – Guilherme Ribeiro

A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias – Cláudia Generoso

DE UMA NOVA GERAÇÃO
A solidão e o isolamento nas psicoses – Fernanda do Valle

Psicanálise nas instituições: relato de experiência Pai-PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Kelen Cristina Silva




Editorial – Ludmilla Féres Faria

Ludmila Féres Faria

 

 

Voilá! Chegamos à 24ª edição da revista Almanaque On-line, que tem a religião como tema principal. O mote da escolha foi a constatação do crescimento das igrejas evangélicas no Brasil — que, segundo o IBGE, terá uma população maior que a católica em 2030 — e, em especial, do uso crescente da religião em assuntos do Estado — na maioria das vezes, com um uso segregatório. Tais fenômenos vão ao encontro da afirmação de Lacan durante uma entrevista dada em Roma, em outubro de 1974, sobre o futuro da religião. Nela, o psicanalista francês afirma que a religião triunfará e acrescenta: “não apenas triunfará sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas também. É impossível imaginar quão poderosa é a religião”. Os desdobramentos dessa afirmação podem ser encontrados neste número da revista do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

Em Trilhamentos, no texto “Uma época fundamentalmente descrente”, Dalila Arpin distingue descrença de incredulidade, e mesmo de ateísmo, para mostrar que a descrença — a falta de uma crença ordenadora — dos dias atuais leva ao surgimento de sujeitos que demandam certezas. Em “Glosa sobre uma bússola”, Antonio di Ciaccia questiona a relação entre o sujeito e o Outro a partir da distinção entre duas bússolas humanas do homem religioso: a crença e a fé. Os dois autores procuram esclarecer a posição do psicanalista nessa seara.

Os entrevistados deste número são Marie-Hélène Brousse e Frei Betto. Brousse, de forma clara, como é seu estilo, esclarece que, embora a psicanálise não seja uma antirreligião, o psicanalista pode ler a religião como uma escolha sintomática. Um vício legal. Em seguida, a Almanaque pôde escutar a leitura de Frei Betto sobre o momento atual da religião do Brasil, por exemplo, sobre as consequências do que ele próprio chamou do “confessionalização da política”. Não deixem de ler.

Ainda sobre o tema da religião, o texto “Crença e Nome-do-Pai” de Alessandra Thomaz Rocha, em Incursões, trata da relação entre crença e Nome-do-Pai buscando elucidar a proximidade e a intimidade entre eles. Evidencia de que maneira ambos tocam a questão do saber e da autoridade, bem como a questão da verdade e da ficção e como se diferenciam.

Na rubrica Encontros, contamos com os trabalhos apresentados nos Núcleos de Pesquisa do IPSM-MG — todos sobre o tema da XXIII Jornada da Seção Minas da EBP, “O tempo na experiência analítica”. O texto de Guilherme Ribeiro, “O tempo e o inconsciente”, aborda as relações entre o tempo das sessões analíticas e o inconsciente. Fernando Casula parte do conceito lacaniano de “inconsciente a céu aberto” para elucidar a incidência do tempo, nesse inconsciente, que está descoberto da metáfora paterna, enquanto Cláudia Maria Generoso privilegia, em seu texto “A temporalidade do inconsciente na clínica das toxicomanias”, o questionamento da relação entre a passagem ao ato, o acting-out e a iteração do Um sozinho.

As contribuições de Fernanda do Valle, em “A solidão e o isolamento nas psicoses”, e de Kelen Cristina Silva, “Psicanálise nas instituições: relato de experiência PAI- PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais” são encontradas na rubrica De uma nova Geração, com a qual fechamos este número do Almanaque.

Mais uma vez, a equipe de publicação do IPSM-MG buscou escolher textos e imagens que despertem o desejo de trabalho em cada leitor. Agradecemos aos autores que enviaram seus textos e, em especial, aos artistas que nos cederam suas lindas imagens para deixar este número ainda mais rico.

Boa leitura!




Uma época fundamentalmente descrente – Dalila Arpin

Resumo
A autora distingue descrença de incredulidade, e mesmo de ateísmo, para mostrar que a descrença — a falta de uma crença ordenadora — dos dias atuais leva ao surgimento de sujeitos que demandam certezas. Pergunta-se como a psicanálise pode responder a isso, já que um de seus conceitos fundamentais, a transferência, é posto em causa por todos desejarem ser sujeitos supostos saber. Os escritos de Franz Kafka comparecem como exemplos desse mundo angustiado onde falta a crença no Outro.

Palavras-chave: crença, descrença, certezas, Outro, angústia.

Abstract
A fundamentally disbelieving age
The author distinguishes between disbelief and incredulity and even atheism to show that disbelief — the lack of an ordering belief — nowadays leads to the appearance of subjects that demand certainties. She asks how psychoanalysis can respond to that because one of its main concepts — transference — is questioned since everybody wants to be a subject supposed to know. Franz Kafka’s writings come up as examples of this anxious world in which belief in the Other is missing.

Keywords: belief, disbelief, certainties, Other, anxiety.

 


Foto de Nelson de Almeida

 

 

DALILA ARPIN
Psicanalista, membro da Escola da Causa freudiana – ECF/AMP

 

Em nossos dias, fala-se da falta de confiança, da incerteza, da perda das ilusões — várias tentativas de reestabelecer a crença no Outro da boa fé. Uma leitura atenta demonstra que alguns fenômenos contemporâneos não se explicam por uma perda de crença, mas pela presença da descrença — Unglauben —, uma noção que a psicanálise ampliou para além do terreno religioso.

O mundo não é mais o que era

Muitos filósofos assinalaram a descrença, o ceticismo e até a ausência total de crença em nossa época. Nesse sentido, Jacques Bouveresse afirmava:

Mesmo ao se dizerem descrentes, alguns intelectuais colocam-se hoje como defensores da religião em nome de coisas como a necessidade de sagrado e de transcendência, ou o fato de que o laço social só pode ser, em última instância, de natureza religiosa. Mas o que se observa atualmente corresponde sem dúvida menos a um ‘retorno do religioso’ do que ao que Musil chamou de a ‘nostalgia da crença’, que uma época de outro modo fundamentalmente descrente tem uma desagradável tendência a confundir com a própria crença. E o que enfrentamos, na realidade, é mais um novo uso da religião — naquilo que ela pode comportar de mais tradicional e até mesmo de mais arcaico — pelo poder e a política, do que um renascimento religioso propriamente dito (BOUVERESSE, 2007, texto da contracapa).

Por sua vez, Marcel Gauchet apontava, em O desencantamento do mundo (1985), o luto necessário após o desmoronamento das utopias de 1968. Ele indicava que a saída da religião não significa a saída da crença religiosa, mas de um mundo no qual a religião é estruturante, onde ela comanda a forma política das sociedades e onde ela define a economia do laço social.

Estamos, definitivamente, na época d’O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se crer é crer no Outro, a crença está comprometida/prejudicada na sociedade contemporânea. “O Nome-do-Pai se trincou”, como disse Jacques-Alain Miller (2014, p. 22). As referências das quais dispúnhamos não estão mais ao nosso alcance, e assistimos à “grande desordem no real no século XXI” (Ibid., p. 23). Como psicanalistas, recebemos cada vez mais sujeitos que não creem no Outro, que demandam garantias, que são céticos, que exigem resultados… Na paisagem de descrença atual, a crença na psicanálise não constitui exceção. A transferência, conceito psicanalítico e pivô essencial de um tratamento, não é mais o que era. A questão se coloca agora: como operar nesse contexto com os meios da psicanálise?

Essa crença a meio-mastro determina o surgimento da angústia diante de um real desregulado, o ponto exato em que Freud localizou o nascimento das religiões (FREUD, 1927/1996). O homem primitivo, confrontado com as forças indomáveis da natureza, talhou divindades capazes de vir em seu auxílio no seu desamparo. Essa invenção foi extremamente tranquilizadora e lhe permitiu suportar a inclemência da natureza. Uma vez que somos confrontados à grande desordem do real, as soluções contemporâneas dão conta não mais do surgimento de crenças, mas da busca de certezas. Seguindo Freud e Lacan, constata-se que a certeza se distingue da crença; ela é própria da descrença.

Uma descrença certa demais

O senso comum da descrença está relacionado à ausência de crença religiosa e é frequentemente considerado sinônimo de ateísmo (LE ROBERT, 1996). O termo “crer” (LE ROBERT, 1988) tinha, a princípio, significados profanos e se relacionava à confiança depositada em qualquer coisa ou pessoa. É a introdução do cristianismo que o circunscreve à esfera religiosa. O termo “descrença” é introduzido apenas no século XIX, pela mão de Chateaubriand. Essa palavra permanece pouco comum, frequentemente em concorrência com “incredulidade”, recusa a crer. O termo “descrente” fez sua aparição um século mais cedo, mas foi de repente abandonado em favor do termo “não-crente”. De tal modo que a descrença, termo tardio e pouco corriqueiro, não conseguirá, posteriormente, se livrar do sentido religioso. É a psicanálise que vai ampliar sua acepção para além do sentido religioso. Freud emprega o termo Unglauben — que é possível traduzir como descrença — a propósito da paranoia na qual, diferentemente da neurose obsessiva, nenhum crédito é dado à censura (FREUD, 1896/1996, p. 135). A censura volta-se para o exterior e o outro é considerado responsável por ela. O sintoma primário é, conforme o caso, a desconfiança. Na neurose obsessiva, mais caracterizada pela autocensura e pelo sintoma da escrupulosidade, a Unglauben aparece, então, como o que separa essas duas entidades clínicas.

Para Lacan, a descrença ocupa um lugar importante no início de seu ensino. No seminário sobre as psicoses afirma que o que caracteriza a psicose é que, entre as duas funções da fala, fides e fingimento, a segunda invadiu a primeira (LACAN, 1955-56/1988, p. 47). Na dimensão de um imaginário submetido, um exercício permanente do engano vai subverter toda a ordem, qualquer que seja. No Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a noção de Unglauben é mais bem esclarecida (LACAN, 1964/1996, p. 225). Na crença, dois elementos se separam: o sujeito dividido, que crê, e o sujeito suposto saber, aquele a que se dá crédito. Para um sujeito dividido — aquele para quem uma parte do aparelho psíquico é o inconsciente —, a crença nunca é plena nem absoluta. Ora, a descrença não é “não crer nisso”, mas a ausência do primeiro termo da crença: o sujeito dividido. Ela se define como uma apreensão em massa da cadeia significante que impede a abertura dialética própria à crença. A paranoia, que parece estar animada de crença, está mais do lado da descrença. Na medida em que a dialética está excluída dela, a descrença tende a deslizar em direção à certeza.

Assistimos atualmente a uma busca desenfreada de certezas. Assim como a escalada de fundamentalismos, que recrutam cada vez mais acólitos entre os jovens ocidentais. A religião é instrumentalizada em benefício de uma ideologia de dominação, de tal modo que aqueles que são seduzidos por ela seguem ensinamentos impregnados de certezas. A relação da certeza com a pulsão encontra sua expressão última na matança. A existência de enciclopédias na web constitui um outro exemplo. O leitor é também autor e pode modificar o texto que, em seguida, será compartilhado ou mesmo modificado por outros leitores dos quais não se requer nenhuma qualificação. Qualquer um pode contribuir para o saber planetário, de tal modo que somos todos sujeitos supostos saber.

Franz Kafka, poeta do extravio

Um escritor do século XX, pela errância que lhe era própria, soube antecipar nossa época fundamentalmente descrente. “Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (KAFKA, 1997, p. 9). É assim que começa O processo, uma das obras-primas do escritor tcheco. Ele é confrontado com um mundo e um tempo que o deixam perplexo. Um mundo hostil, de pesadelo e arbitrário:

[…] absorvi vigorosamente o elemento negativo do meu tempo, um tempo que me é muito próximo, que não tenho que combater, mas tenho o direito, até certo ponto, de representar. Em seus poucos elementos positivos — como ao negativo extremo que se torna positivo — não tive participação hereditária. Não fui como Kierkegaard guiado pela mão já bastante debilitada sem dúvida do cristianismo e nem como os sionistas agarrei a custo a última franja do xale de prece judeu que esvoaça” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 220).

O apelo à religião, fosse ela judaica, fosse cristã, não lhe deu nenhum auxílio. O historiador Saul Friedländer constata que, se Kafka se documentou abundantemente sobre a literatura ídiche de sua época, foi em busca de uma fonte de inspiração literária. Esse historiador se pergunta sobre as fontes judaicas da literatura de Kafka e conclui que apenas a novela intitulada “Em nossa sinagoga” lhe faz uma referência explícita. Um animal de tamanho e cor imprecisos a elegeu como domicílio. Sua infelicidade é habitar um lugar que é animado apenas temporariamente e fadado a transformar-se em celeiro. Como Friedländer sugere, a história poderia representar “o aspecto indeterminado e a ’cor’ incerta da judaicidade, tal como Kafka a percebia”, assim como a erosão do judaísmo europeu (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 98). Kafka ele próprio se considerava “excluído pelo seu judaísmo não sionista […] e não crente” (KAFKA, 1988, p. 696).

Numa carta a seu amigo e biógrafo Max Brod, ele expressa a grande angústia que se apoderara dele uma noite, impedindo-o de dormir. Ele tem a impressão de viver uma “descida em direção aos poderes obscuros” (KAFKA, 1984, p. 1.156), onde os espíritos naturalmente acorrentados se soltam. É então que “o diabólico da coisa lhe parece bem claro. É a vaidade e o apetite de prazer” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 224). É nesse momento que, buscando uma saída, ele se volta para a escrita. No entanto, mesmo ela lhe parece fraca comparada às “forças do Mal”, considerando-a “um salário a serviço do diabo” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 223). Ele se vê sobre um “solo tão frágil, talvez totalmente inexistente, por cima de um buraco de sombra, de onde os poderes obscuros saem à vontade para destruir [sua] vida” (KAFKA, 1984, p. 1.155).

O tom é desesperado: “Tudo é quimera, a família, o escritório, os amigos, a rua, tudo é quimera e quimera mais ou menos distante, a mulher; mas a verdade mais próxima é que você bate a cabeça contra a parede de uma cela sem porta nem janela” (KAFKA, 1984, p. 514).

A oposição é clara entre o fundo de angústia, de depressão, de desencanto e o aparecimento da certeza: ele é presa de forças maléficas que se imiscuem até mesmo na sua esperança de saúde, a escrita.

Seja em O castelo, seja em O processo, o personagem principal está às voltas com uma autoridade que ele não chega a identificar nem a enfrentar (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 231). As prisões são arbitrárias, e, as condenações, inexoráveis. As narrativas descrevem o longo caminho do personagem, até sua queda. Nada pode ser contra a Lei, pois a própria existência da Lei pode ser questionada. Como sugeriu Éric Santner:

[O] discurso de mestre [que implica a existência da Lei] foi atenuado e disperso num campo de relés e pontos de contato que não possuem mais nenhuma coerência, nem mesmo na fantasia, como um “outro” consistente de possível endereçamento e reparação. Em Kafka, a Lei está em todo lugar e em lugar nenhum (SANTNER, 2006, p. 22).

Em Investigações de um cão, um dos últimos textos do escritor, um velho cão busca compreender diversos aspectos da “raça canina”, examinando o maior número de elementos que a concernem. “Onde estão, portanto, meus congêneres? Sim, esta é a queixa — precisamente esta” (KAFKA, 2002, p. 174), exclama o cão com amargura. O cão aqui pega o bastão de Diógenes, pois, em alemão — bem como nas línguas latinas —, uma aproximação é possível entre as palavras cão (Hund) e cínico (hündisch)[2] (KAFKA, 2002, p. 176). Por meio dessa parábola, o autor exprime sua incapacidade de reconhecer o mundo dos homens e de suas convenções. Essa história visa a provar, como sustenta Saul Friedländer, os limites do entendimento humano, a incapacidade de perceber certos aspectos da existência: “Essa busca pode não ter sido abandonada, mas ela tornou-se de agora em diante interminável, fonte de mais ceticismo ainda, de desencanto e ironia” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 235).

O cão constata: “Não; o que também objeto à minha época é que as gerações anteriores não foram melhores que as mais novas; num certo sentido foram muito piores e mais fracas. […] mas os cães ainda não eram – não consigo exprimi-lo de outro modo – tão caninos[3] como hoje em dia…” (KAFKA, 2002, p. 176). Atualmente, não obstante as tentativas de redourar o brasão da crença, reinstalar o Nome-do-Pai não é mais possível. Tornou-se difícil situar o Outro na cultura. Como consequência, é a busca de certezas que ameaça o sujeito. A descrença é, então, o destino comum dos sujeitos contemporâneos. Quase ouviríamos Kafka dizer que a ordem simbólica não é mais o que foi

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Michelle Sena

 

 

 


Referências
BOUVERESSE, J. Peut-on ne pas croire? Sur la verité, la croyance et la foi. Marseille: Editions Agone, 2007.
FREUD, S. (1896). “Manuscrit K”. In: Naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996.
FREUD, S. (1927). “O futuro de uma ilusão”. In: Obras completas de Sigmund Freud. vol XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FRIEDLÄNDER, S. Kafka, poète de la bonté. Paris: Seuil, 2014.
GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
KAFKA, F. Investigações de um cão. In: Narrativas do espólio. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KAFKA, F. Oeuvres completes III, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1984.
KAFKA, F. Oeuvres completes IV, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1988.
KAFKA, F. O processo. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LACAN, J, (1955-56) O Seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
LACAN, J, (1964) O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
Le Robert, dictionnaire de la langue française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1996.
Le Robert, dictionnaire historique de la langue française, sous la direction d’Alain Rey. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1988.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI: Apresentação do tema do IX Congresso da AMP.”, In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
SANTNER, E. On creaturely life, Rilke, Benjamin, Sebald. Chicago: The University Chicago Press, 2006.cado em La Cause Du Désir, nº 90, jun. 2015.
[2] Na edição em português, as palavras usadas são “cão” e “canino”. A tradutora manteve a palavra “cínico” por causa da referência ao filósofo cínico Diógenes. O termo grego kunikós, que originou o termo latino cynicus, significa “o que concerne a cachorro; cínico”. Os filósofos receberam esse nome porque viviam nas ruas “como cães” (N.T.).
[3] Ver nota 2.



Glosa Sobre uma bússola – Antônio de Ciaccia

Resumo
Nas religiões monoteístas, há diferença entre crença e fé. A crença é uma opinião considerada verdadeira e a fé o efeito de um encontro entre um sujeito ou um povo com um Outro que lhe fala. No entanto, na psicanálise Lacan opera um deslocamento em relação ao pivô que organiza a fé. Esse ponto será a palavra enquanto tal e a única relação em jogo será a do sujeito com a palavra.

Palavras-chaves: crença, fé, palavra, psicanálise, religião

Abstract
In monotheistic religions, there is a difference between belief and faith. Belief is an opinion considered true and faith is the effect of an encounter between a subject or a people with an Other who speaks to them. However, in psychoanalysis Lacan operates a shift in relation to the pivot that organizes the faith. This point will be the word as such and the only relationship at stake will be that of the subject with the word.

Keywords: Belief, faith, Psychoanalysis, religion

 

 


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 ANTONIO DI CIACCIA
Psicanalista, membro da ECF.

 

Entre todas as bússolas humanas (cf. MILLER, 2015), há uma que denota o homo religiosus: a fé. A palavra adquire uma conotação precisa no âmbito das três religiões monoteístas, a saber, de todos aqueles que seguem os passos de Abraão, que é “o pai de todos os que aderem” (Rm., 4,11).

As palavras para dizê-lo

No monoteísmo, se desdobram o sentido e a significação de uma verdadeira constelação que gira em torno do termo “fé”, e entram em jogo dois polos que nomearemos, para simplificar, o sujeito e o Outro.

Em geral, os termos “fé” e “crença” são usados como sinônimos, mas, enquanto a fé diz respeito a esses dois polos, a crença diz respeito a apenas um, o sujeito. De fato, a crença, encontrada em todo homem e em toda comunidade, implica uma opinião considerada verdadeira e segura. Ela diz respeito tanto ao indivíduo quanto à coletividade e se refere a noções ou conceitos cuja demonstração não pode ser produzida. Trata-se, em suma, de uma convicção de um sujeito ou de uma comunidade inteira em relação à existência de algo ou de alguém. Na maioria das vezes, no que diz respeito a assuntos religiosos, a crença está presente em toda teoria. A crença, definitivamente, está ligada ao pensamento.

A fé, ao contrário, é uma questão de palavra. É o efeito de um encontro de um sujeito ou de um povo com um Outro que lhe fala. Para permanecer na tradição judaico-cristã, é pela palavra que Yahvé se anuncia a Moisés (Ex., 3, 1-15), o qual irá lhe responder através de uma fé sólida (Hb., 11, 23-29), e, no Novo Testamento, em sua “Epístola aos Romanos”, São Paulo insiste na fé como efeito da palavra (Rm, 10, 17). Desde então, se toda fé comporta a crença, nem toda crença comporta a fé.

Partamos do texto bíblico. No Antigo Testamento há uma variedade de vocábulos que refletem a complexidade da atitude do crente e que, fundamentalmente, estão correlacionados a duas raízes: aman, que remete à firmeza e à certeza, e batah, que remete à confiança.

No século III antes de Cristo, os tradutores judeus da Bíblia para a versão grega, a Septante, tiveram que inventar os termos, pois os gregos acreditavam em deuses e não tinham palavras apropriadas para expressar a crença em um só Deus. Eles então traduziram a raiz –batah pelos termos elpis, elpizo, pèpoitha, que São Jerônimo fez, na versão latina, a Vulgate, por spes, sperare, confido, que foi traduzida em francês por “espoir”, “espérer”, “avoir confiance”, “se fier en[1]. A raiz –aman, ainda presente em nosso amém, foi traduzida em grego pelos termos pistispisteuoaletheia, em latim, na Vulgate, por fides, credere, veritas, e enfim, em francês, por “foi”, “croire”, “verité[2].

O estudo dos termos bíblicos apresenta, portanto, a fé segundo estas duas vertentes: por um lado, a confiança, colocada pelo sujeito, dirigida a esse Outro que lhe fala e que é fiel à sua palavra, e, por outro lado, um certo passo do sujeito que lhe permite aceitar essa palavra vinda do Outro, uma palavra que lhe dá acesso ao que São Paulo chama de “a prova das realidades que não se vê” (Hb., 11:1). Nas línguas romanas, o termo em latim fides está na origem do termo “fiel”, empregado em geral como sinônimo de crente. No texto bíblico, entretanto, esse termo é inicialmente uma prerrogativa de Yahvé, definido quando de sua revelação a Moisés como “rico em graça e em fidelidade” (Ex., 34, 6). A fidelidade (emet) quer dizer que a palavra de Yahvé não mente e não se retrata (Nm., 23, 19), embora não houvesse meios de discutir com ele, como o diz Jó em sua aflição (, 9,32). De fato, entre a palavra de Yahvé e a do homem, existe uma profunda imparidade, se quisermos utilizar um termo caro a Lacan. Se Yahvé é fiel, seu povo, ao contrário, oscila entre uma irredutível infidelidade, que o deixa surdo e cego (Is., 42, 18ss). Essa é a origem da cólera divina, pois a fidelidade que Yahvé exige de seu povo é que tenham um pacto de aliança (Jó, 24, 14). Finalmente, é pela contiguidade com a fidelidade divina que o homem pode se dizer fiel. No cristianismo, essa fidelidade é encarnada, por antonomásia, por Cristo.

No entanto, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o crente não pode ser fiel sem receber essa fides, essa fé, como um dom que lhe chega por parte de Deus, dom gratuito que provém de Yahvé, o Fiel, mas também aquele que é rico em graça (ben), uma outra das prerrogativas divinas. Esse termo, que se diz em árabe, no islã, pela palavra “misericordioso”, se tornou, em grego, Karis e foi traduzido em latim por gratia. É pela graça de Deus que o fiel recebe o dom da fé em Deus.

Vamos compartilhar esses termos de acordo com os dois polos da experiência religiosa. A graça é uma prerrogativa de Deus. A fé é um dom que a graça de Deus faz ao homem, que lhe permite aceitar a palavra de Deus, a saber, a revelação. De sua parte, o homem pode ser um homem de fé, ou seja, capaz de confiar na palavra de Deus, de ter confiança nele, como o profeta sugere (Jr., 17, 5-7), mas também de ser fiel a sua própria palavra: “Que vossa linguagem seja: Sim? Sim. Não? Não.” (Mt., 5, 37). Ora, essa confiança na palavra do Outro, a própria possibilidade de receber essa palavra, não deixa de ter uma prerrogativa, dessa vez, tipicamente humana, a humildade, cujo paradigma é dado por Moisés, “o homem mais humilde que a terra tenha criado” (Nm., 12, 3). Somente a humildade permite ao homem ouvir a palavra de Yahvé, “devorá-la em êxtase e alegria”, usando as palavras de Jeremias (Jr., 15, 16). “Confiança e humildade são de fato inseparáveis”[3], lembra o monge Marc-François Lacan.

E a psicanálise? Não há conexão…entre o sujeito e o Outro

Lacan, Jacques, desta vez, não sem conhecer essas indicações, vai operar um deslocamento essencial em relação ao ponto pivô que organiza a fé. Esse ponto deixa de ser a relação entre o sujeito e o Outro. Será a palavra enquanto tal, e a única relação em jogo consistirá, de agora em diante, essa do sujeito à palavra, “que se revela na questão do que falar quer dizer” (LACAN, 1998, p. 332–333). Todavia, é por uma “verdadeira” humildade (Ibid.) que cada um poderá acolher um discurso. No entanto, acolher o que o sujeito “quer dizer” já deixa claro que ele não o diz. Mas o que quer dizer esse “quer dizer” é uma dupla escuta que compete ao ouvinte: escutar o que o falante quer lhe dizer pelo discurso que lhe dirige ou o que esse discurso lhe ensina sobre a condição do falante.

Assim, não somente o sentido desse discurso reside naquele que o escuta, como é também de sua acolhida que depende quem o diz, ou seja, ou é o sujeito a quem ele dá sua confiança e autorização, ou é esse outro que lhe é dado por seu discurso como constituído. […] Ora, o analista apodera-se desse poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência (Ibid. p. 331).

É, pois, a palavra que tem o poder de distribuir as cartas, embora os atores em jogo permaneçam os mesmos: o locutor e o ouvinte. Não é mais o poder de Deus, mas o poder da palavra enquanto tal que exige a humildade da acolhida, a confiança e a fé nela. E é em nome da palavra que o analista toma esse poder até o ponto que “ele impõe ao sujeito, no dito de seu discurso, a abertura própria da regra que lhe atribui como fundamental” (Ibid. p. 333).

O céu esvaziou-se do poder da palavra. Ela está esvaída e seu poder se reduz à relação que o homem mantém com ela. Da mesma maneira, Lacan desloca a constelação em torno da fé tal como declina a tradição religiosa no que chamamos virtudes teológicas: a fé, a esperança e a caridade. Da esperança, Lacan fala, em “Televisão”, respondendo pessoalmente a seu interlocutor, Jacques- Alain Miller, que lhe havia proposto as três questões retomadas por Kant do dominicano Agostinho de Dácia para a formação dos irmãos pregadores. Uma das quais foi formulada nestes termos: “O que me é lícito esperar?”. Sua resposta é: “Espere o que lhe aprouver” (LACAN, 2003, p. 540).

Ainda em “Televisão”, Lacan trata também da caridade. Falando do psicanalista e nomeando-o segundo o termo de “santo”, emprestado da tradição religiosa, ele diz que, como este último, o psicanalista “não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade” (Ibid, p. 518). Lacan joga com o equívoco e com os deslizamentos entre as línguas. Se a palavra “caridade” provém do latim, significa amor ao próximo que nos é carus e pode se abrir para uma reciprocidade que São Tomás de Aquino chama de amizade, retomando a philia aristotélica. O termo charitas também ressoa do termo grego Karis, que significa graça. O analista não se situa em relação a seu analisante do lado de quem faz caridade, que esbanja ao próximo um amor que seria um efeito do dom da graça. Tampouco precisa se situar como alguém que expande a graça feita ou não ao sujeito, salvo se for louco. Mas ele deve se ater ao que a estrutura da linguagem impõe, ou seja, “permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa de seu desejo” (Ibid, p. 518).

Enfim, a fé. Lacan dirá que o analista não tem que tomar posição sobre a conveniência ou não de uma crença. Neste breve artigo, eu me referirei a uma passagem de Lacan na qual é esclarecida a utilização do verbo crer, limitando-me às significações de “croire à” e “croire en[4]. Esse verbo, assim utilizado, se situa, de fato, no cruzamento dos dois termos de fé e de crença, e pode se aplicar tanto a um quanto a outro. Essa possibilidade de mal-entendido inclusa na língua resultou em grandes disputas entre Roma, Lutero e Calvino no que concerne notadamente à exegese dos textos de São Paulo. Não é o mesmo dizer, por exemplo, que acreditamos “nos deuses” e de dizer que acreditamos “em Deus”. A expressão “croire à” quer dizer que o sujeito está convencido da conveniência de uma proposição, de uma descoberta ou de uma hipótese, enquanto que a expressão “croire en” quer dizer “ter confiança em”, “se fiar a”, portanto, ter a fé, entendida aqui como uma virtude teológica.

No seminário Mais ainda, Lacan, após ter falado da existência de Deus e de ter sido zombado pelos teólogos, pouco inclinados a crer nisso, exclama: “vocês vão ficar todos convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo da mulher no que ele é a mais, com a condição de que esse a mais, vocês coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem” (LACAN, 1985, p. 103).

O céu esvaziou-se. Para o falasser, resta a função e o poder da palavra, sem outra garantia senão sua ocorrência, seja sua imanência.

 

Tradução: Maria de Fátima Ferreira
Revisão: Luciana Silviano Brandão

 

 


Referências

 

LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
LACAN, J. “Televisão”. Outros escritos. In: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. O Seminário, livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER J-A. “Uma fantasia”. In: Mental, n. 15. fev. 2015.
[1] Em português, respectivamente, “esperança”, “esperar”, “ter confiança”, “confiar em”.
[2] Em português, respectivamente, “fé”, “crer”, “verdade”.
[3] Cf. deste autor os artigos “Confiança”, “Fidelidade”, “Alegria”, “Humildade”, Vocabulário de Teologia bíblica, Paris.
[4] Em francês, o verbo croire (crer) prevê as preposições “à” e “en”, cujo uso se adequa a variações semânticas. Em português, no entanto, utilizamos o verbo “crer”, como TI, apenas sob a regência da preposição “em”.



As religiões vêm no lugar das adições – Marie Hélène Brousse

ALMANAQUE ENTREVISTA MARIE-HÉLÈNE BROUSSE

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Foto de Nelson de Almeida

 

 

ALMANAQUE: Temos hoje uma diminuição da crença e um aumento da fé. O que você poderia nos dizer sobre o crescimento das religiões, das seitas ultraconservadoras e do fundamentalismo?

MARIE-HÉLÈNE BROUSSE: O que a psicanálise pode dizer? Eu me lembrava de um pequeno texto de Lacan, o “Triunfo da religião” (LACAN, 2005).

Então, o que as religiões têm de novo? Elas são cada vez mais fundamentalistas. Não todas! Mas aquela que chama maior atenção sobre si neste momento, a religião muçulmana, é fundamentalista.

Quanto maior o saber científico — esse saber ligado à combinatória da escrita matemática, privada de sentido —, maior a aspiração a encontrar o sentido e, sobretudo, o sentido religioso. Há uma grande aspiração a encontrar o sentido e, mesmo que as religiões mudem, há sempre o sentido religioso. Agora, o que as religiões têm de novo?

Eu faço uma distinção nítida entre Deus, de um lado, e as religiões, de outro. As religiões são discursos de dominação: dos corpos, dos atos e do pensamento. A crença em Deus, a fé, é outra coisa. Deus é outra coisa, Deus é muito mais um enigma. Não há um crescimento de Deus, há um crescimento das religiões.

Vivemos em um período no qual isso que chamamos de modo de gozar, ou seja, todas as novas formas de satisfação, é aquele do Um sozinho. É como se fosse uma espécie de sede de marcas. As tatuagens, os piercings, as maneiras de customizar. Tudo isso são tentativas de fazer entrar os Uns sozinhos sobre a cena. Diante disso, as religiões tentam colocar uma ordem. As religiões vêm no lugar das adições. Aliás, há muitas assim! Os renascidos (born again), os arrependidos… Eles são todos ex-aditos do sexo, da droga, etc.

Então, a religião é uma solução que se propõe sob a mesma versão que as adições. É um vício legal.

A: Você disse isso em seu texto, “O temor a Deus libera de todos os outros” (2019, p. 135).

M-HB: Sim!

A: Como enfrentar o crescimento das políticas do medo, ou seja, o medo como instrumento para gerir os seres humanos, os estados religiosos?

M-HB: Como a psicanálise não é um discurso da dominação, não há nada a dizer sobre o fato de as pessoas serem religiosas ou não. É a escolha delas…

Eu vejo essa escolha como uma solução sintomática. A psicanálise não é antirreligião. Ela é fora da religião. Não é a mesma coisa, porque o sentido religioso é sempre o sentido sexual, e a psicanálise tem por objetivo fazer cair o sentido — o sentido sexual, evidentemente! E a metáfora e a metonímia e tudo isso…

Não há um cenário de combate ateísta na psicanálise. Trata-se de interpretar o grande A barrado como tentativa de vislumbrar um Outro, mais além do Outro da linguagem — o que as religiões fazem. Ou quer dizer o inverso, isto é, um tipo de vazio… nas nem todo mundo tem acesso a ele nem ao porquê. Há toda uma orientação na psicanálise antes de Lacan e depois de Lacan. Nós vimos isso no nosso país, a França, na ocasião do “Casamento para todos”, em que há toda uma orientação na psicanálise — que é uma orientação paternalista — que vai decididamente contra a modernidade e que combina perfeitamente com a ascensão das religiões. Acontece que a orientação lacaniana não vai nesse sentido. Se nós estamos mais-além do Pai, se vislumbramos ir mais-além do Pai em uma análise, forçosamente deixamos cair o Deus eterno. Mas não sob a versão do não ser tolo dele.

Enfim, é preciso suportar que as pessoas tenham necessidade disso para viver, por que não? Poder-se-ia transformar a religião em sinthoma. E a psicanálise é um outro sinthoma, diz Lacan.

A: A religião é o universal, quer dizer o “para todos”. É absolutamente uma criação da linguagem. Mas sob a versão do misticismo, do êxtase, é outra coisa! Temos, atualmente, além do crescimento de religiões, o interesse pelas filosofias orientalistas e espiritualistas… Como você percebe esse fenômeno?

M-HB: Como Freud de O futuro de uma ilusão: uma ilusão sempre do futuro! A religião é o futuro, mesmo que, como Freud o diz, ela seja uma ilusão. Mas é difícil fazer a diferenciação entre um semblante, de um lado, e uma ilusão, de outro. Enfim, a perspectiva freudiana é extremamente ateia. A posição de Lacan é mais complexa, puxa Deus mais em direção ao conceito de gozo do que em direção ao conceito de Lei.

 

 

Por Alessandra Thomaz Rocha
Novembro de 2019, São Paulo

Referências
LACAN, J. “O triunfo da religião”. Discurso aos católicos. RJ: JZE, 2005. (pp.55-83)
BROUSSE, M.-H. “To exorcise that Good Old God”. InMulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, Coleção Opção Lacaniana, v.15, 2019. pp. 129-144.
Transcrição e tradução: Alessandra Thomaz Rocha
Revisão : Lúcia Grosssi
 [Vídeo e áudio com a entrevista:  https://www.youtube.com/watch?v=Fj8En7amUCA&t=39s]