A criança, seus delírios e os delírios de seus pais[1] 

Suzana Faleiro Barroso
Psicanalista
Membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai.

Palavras-chave: psicose infantil, delírio, lalíngua de família, tratamento do gozo.

THE CHILD, HIS DELUSIONS AND THE DELUSIONS OF HIS PARENTES

Abstract: Based on the notion of generalized delirium, the text discusses the question of the specificity of the delirium in childhood psychosis. According to the commentary on fragments from the clinic, it is possible to verify, in a paranoid childhood, different ways of treating jouissance without the Name-of-the-Father.

Keywords: child psychosis, delirium, family lalangue, treatment of jouissance.

 

Imagem: Sofia Nabuco

 

“O mal dos bichos foi aprender a falar conosco”
(GULLAR, 2010, p. 52)

Abordar a psicose a partir do ultimíssimo ensino de Lacan abre novos horizontes para a clínica da psicose infantil. A releitura dos fenômenos alucinatórios, do delírio e dos fenômenos do corpo e do gozo a partir das últimas formulações lacanianas sobre a linguagem parece nos liberar de antigos debates sobre a psicose infantil, além de nos relançar para uma clínica do pós-Édipo, que é a nossa atualmente. A inexistência do Outro e a forclusão generalizada implicando que todos deliram, nos dispensaria, por exemplo, do debate sobre a criança psicótica, se ela delira ou não; ou se o delírio seria apenas característico da psicose do adulto, ou ainda se haveria especificidade do delírio na infância?

Segundo Miller (2015, p. 309), a frase “Todo mundo é louco, isto é, delirante” é uma espécie de condensado do ultimíssimo ensino de Lacan, que contaminou a clínica estrutural, supondo mais uma continuidade do que uma descontinuidade entre as estruturas clínicas.

A articulação entre psicose e linguagem perpassa todo o ensino de Lacan. A perspectiva estrutural da linguagem, na década de 50, em contraponto a uma perspectiva psicogenética dominante até então na psicanálise com crianças, libertava a psicose infantil do campo das deficiências. Para além de uma clínica estrutural do delírio, a introdução da noção de lalíngua, tão bem transmitida no artigo “Falar é um transtorno de linguagem”, de Pascale Fari, tende a generalizar o delírio, até então considerado exclusividade da psicose.

Vemos que a linguagem no ultimíssimo Lacan foi distanciando-se da noção de estrutura para aproximar-se das noções de aparelho, órgão, parasita. Passamos então dos “distúrbios da linguagem” decisivos no diagnóstico diferencial da psicose na década de 50, a partir da releitura de Schreber, à “linguagem como distúrbio”, a partir da leitura de Joyce.

O conceito de lalíngua, que se elabora no Seminário 20, já implicava uma versão do Outro diferente daquela do grafo do sujeito, pois leva em conta a antecedência lógica do campo de gozo em relação ao campo da linguagem. Por não comportar a dimensão do sentido, lalíngua altera todo o panorama das relações do sujeito ao Outro e até mesmo a definição do Outro. Lalíngua diz respeito à dimensão inconsistente e múltipla da língua, isto é, massa sonora que antecede à captura na linguagem e que implica a inexistência do Outro. Lalíngua desconstrói o edifício teórico sustentado pela primazia do significante.

Apoiada na estrutura de linguagem do inconsciente, a teoria freudiana do delírio tem como causa o destino da libido na paranoia, cujo investimento, ao ser retirado do mundo externo e dos objetos, provoca uma catástrofe no mundo subjetivo, a dissolução do imaginário, que cabe ao delírio restaurar. “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1911/1996, p. 95). O trabalho do delírio é o modo do paranoico de reconstruir seu mundo de maneira a poder viver nele novamente, comparável à fantasia do neurótico.

Classicamente, o delírio constituiu-se como o ordenador maior do diagnóstico de psicose. Onde não havia delírio não havia psicose. O grau de paranoia, na qual os delírios estão sempre presentes, era um critério decisivo para o diagnóstico e tratamento possível da psicose, por ser considerado um índice importante da relação do sujeito com a linguagem e com o campo do Outro.

Segundo uma clínica estrutural, a paranoia constituiria um fraco diagnóstico na infância. Por exemplo, no artigo “Cura de un niño paranoico?”, François Leguil (1992) discute a pertinência desse diagnóstico para uma criança. Ele recupera a opinião de Clérambault, para quem os fenômenos psicóticos podem ser observados na criança, porém, sem que o delírio tome uma forma sistematizada nessa época da vida. Clérambault teria considerado as “regras da idade”, segundo as quais a criança não estaria submetida à necessidade imperiosa que move o adulto de conduzir o esforço de seu trabalho delirante até uma elaboração lógica de uma solução última.

François Leguil (1992) sugeriu que a observação de uma cura e de uma estabilização deve sempre levar em conta os efeitos do questionamento promovido pela confrontação real com o Outro sexo para além da infância. Apoiando-se na teoria da sexualidade, ele justifica a necessidade de uma prudência quanto ao diagnóstico de paranoia antes do encontro com a falta do significante fálico, o que não concerne mais à infância, pois supõe que o sujeito já se tenha colocado à prova em relação à castração no ato sexual. O capítulo do delírio na psicose infantil é, portanto, controverso, e não uníssono. De um modo geral, desde a psiquiatria, acreditava-se na precariedade das formações delirantes na infância e menos ainda na sua sistematização.

A sistematização delirante requer etapas nas quais ocorrem profundos remanejamentos do significante desencadeado. Com base na noção de “escala dos delírios” (LACAN, 1955-56/1985, p. 92), que supõe o avanço do delirante na evolução do trabalho de construção, J.-C. Maleval (2009) descreveu o percurso do delírio. Trata-se de quatro períodos, cada um com uma especificidade ao nível do gozo e da dinâmica da elaboração delirante, que pode ir da perseguição paranoica à parafrenia. O primeiro período se caracteriza pela deslocalização do gozo e pela perplexidade angustiante; o segundo corresponde à tentativa de significação do gozo do Outro; o terceiro período é o da identificação do gozo do Outro; e o quarto é o do consentimento ao gozo do Outro.

A tendência dos psiquiatras infantis, a exemplo de Ajuriaguerra (2007), é de afirmar que, nas crianças, os sentimentos delirantes estão mais presentes do que as ideias delirantes em seus aspectos fenomenológicos, isto é, convicção subjetiva, impenetrabilidade e impossibilidade de conteúdo. G. Heuyer (1951) descreveu o delírio de imaginação ou delírio de sonhos típico da infância, a saber, relato fantástico, mais ou menos sistematizado, quase sempre deslocado no tempo e no espaço, cujos temas podem ser grandeza ou filiação e no qual as ideias se confundem com a realidade.

A ampliação do conceito de delírio tributária das reformulações de Lacan sobre a linguagem, o gozo e o corpo estão presentes no artigo de Pascale Fari, no qual a linguagem como distúrbio do real explica o delírio generalizado. De maneira impactante, ela nos fala de lalíngua como o que arruína o ordenamento simbólico da linguagem, isto é, o núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana. Falamos a partir desse ponto excluído do simbólico, a partir da lalíngua de família e tentamos nos extrair desse lugar tecendo laços, articulando um discurso a partir desses significantes sozinhos, desses símbolos petrificados fora da cadeia. O delírio generalizado é isso. O delírio reconstrói uma trama discursiva a partir de elementos não simbólicos. É esse o trabalho de Samuel, caso tão bem conduzido por Patrícia Ribeiro, e que nos ensina sobre a invenção do sujeito no discurso analítico. É na medida em que Samuel vai tecendo sua trama que ele pode ir construindo uma posição de extimidade com relação à lalíngua que lhe agitava o corpo. Ele fala a partir do ponto de exclusão que marcou sua existência.

Com a noção de lalíngua, ganha-se também a condição de diagnosticar o estatuto dos distúrbios da fala e da linguagem na infância psicótica, que, a exemplo dos mutismos, dos distúrbios da comunicação, da presença dos significantes holofraseados, constituem índices da forclusão dos significantes fundamentais do sujeito e de sua desinserção no discurso.         

As câmeras de vigilância: tentativa de localizar o gozo, sem o Nome-do-Pai, no objeto olhar

A hipótese da inexistência do Outro indica o quanto a clínica do objeto torna-se fundamental para o tratamento psicanalítico das psicoses, visto que o problema maior a ser visado pelo tratamento é o gozo. Como então tratar o gozo não interditado pela lei do pai através de lalíngua e não da linguagem, a partir do objeto e não do Outro?

O trabalho clínico parece consistir em tentar localizar o que o sujeito psicótico traz como um possível esboço do que é, para o sujeito neurótico, o objeto a. A psicanálise pode então sustentar uma clínica do objeto visando à extração do excedente de gozo na psicose infantil. Trata-se de localizar o gozo fora do corpo por meio de uma redução do gozo, sem a qual não há laço social possível.

Considerando a prevalência dos distúrbios da estruturação corporal nas psicoses da criança, trata-se de priorizar as intervenções clínicas destinadas a promover alguma negativização do gozo, isto é, a separação entre o corpo e o gozo. O alvo principal da clínica do objeto é mais a deslocalização do gozo do que os fenômenos clássicos da forclusão do significante do Nome-do-Pai. Colocam-se então em primeiro plano os excessos relativos à positividade do gozo mais do que o déficit centrado sobre a escala fálica.

O objeto não está conectado à função fálica na psicose. Ele se encontra, portanto, em seu pleno caráter de substância, isto é, de substância real e não de consistência lógica. Segundo Miller (2005), há duas vertentes do objeto a: 1) extração corporal; 2) consistência lógica. Na neurose, o objeto a definido como um furo no Outro, um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar. Nas psicoses, verificam-se os fenômenos de corpo tributários da substância gozante, isto é, o objeto não dessubstancializado cujo gozo irrompe no corpo sem a negatividade que lhe seria conferida pela castração.

Na conjuntura psicótica, o objeto está à mão, o que implica o corpo na sua dimensão absolutamente substancial. A voz e o olhar comparecem como objetos privilegiados da substancialidade do corpo fora da lei do pai. A voz áfona emerge como audível, e o olhar se torna visível. “A voz, que ninguém escuta, e o olhar, que ninguém vê, existem, portanto, na experiência do sujeito psicótico” (NAVEAU, 2006, p. 76). Os objetos tendem à multiplicação quando não há a extração do excedente de gozo. Tanto as vozes como os olhares se multiplicam. Manifestam-se sob formas separadas com um evidente caráter de exterioridade em relação ao sujeito. Trata-se da exterioridade dos objetos e não de extimidade.

O caso clínico de Samuel, um menino de 9 anos, apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças, me pareceu bastante importante seu singular interesse pelas câmeras de vigilância. No primeiro encontro com a analista, ele pergunta se no consultório existiriam câmeras de vigilância. Ao desenhar, parece esboçar a localização do gozo no objeto olhar. Desenha a “garagem de um prédio onde há um porteiro que não vê o que a câmera – que está em destaque no desenho – do prédio vê: uma sombra que se esgueira pelo muro e esfaqueia e esquarteja alguém, deixando um rastro de pedaços de corpo e muito sangue, como ele me mostra desenhando e colorindo de vermelho”. Noutra sessão, relata ter pedido a avó materna uma mini câmera portátil de presente para vigiar o lugar, isto é, “um barracão nos fundos que… teria algo de estranho, certos ruídos”.

Mais adiante, no relato da analista que o atende, encontramos novamente a presença da câmera de vigilância. Ele falou de sua proposta “de ajudar a vigiar as crianças no recreio para que elas não entrem com bebidas escondidas, como ele supõe que possa acontecer, chegando mesmo a propor a câmera de vigilância para ajudá-lo”. Essa demanda, dessa vez visando o laço social no contexto da escola, não consiste na possibilidade do tratamento do gozo por meio do objeto olhar?  

A lalíngua de família e o não lugar do intruso 

O caso de Samuel nos coloca a par de sua lalíngua de família, uma língua da exclusão e da violência. Conforme queixa dos pais, o irmão mais velho do menino não suporta a presença do caçula: “Essa rivalidade com Samuel se manifesta sem tréguas: o irmão nunca o chama pelo nome, atrapalha quando ele está brincando, mal lhe dirige a palavra e quando o faz, geralmente, é com muita raiva”. 

Nos desenhos do menino o tema de um Outro mau, intrusivo e mortífero, que mata e trucida, é frequente. Segundo a analista, em determinada sessão “ele desenha um personagem que descreve como um ser parasita, explicando que ele costuma entrar nos corpos das pessoas e quando o faz, ela se transforma em um monstro e morre, ambos, a pessoa e o parasita”.

A figura do “ser parasita” sobre a qual Samuel fala me pareceu bem lacaniana, pois evoca a noção de falasser e da linguagem, provenientes do último ensino. Como foi dito antes, desde a leitura da escrita de Joyce por Lacan passamos a trabalhar com a hipótese da linguagem como parasita. O sujeito psicótico é o mais indicado para testemunhar isso, tal como o fez Samuel. Disse Lacan: “a questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-76/2007, p. 92). É o que nos permite sustentar que todo mundo delira.  No melhor dos casos, pode-se fazer disso um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.

Se extraindo do núcleo de real que o constituiu, Samuel faz a ficção da família de um desenho animado, uma versão na qual o tema do excluído toma forma: nessa família, haveria um membro rejeitado, uma porquinha relegada a ficar abandonada em casa, por ser doente com câncer e que, por isso, seus pais decidiram escondê-la do mundo”.

Samuel testemunha a marca da transmissão da lalíngua de família e nos permite retomar Lacan na Conferência de Genebra. O que retorna nos sonhos e no sintoma, enfim, nas formações do inconsciente, sob o formato de tropeços os mais diversos e de vários tipos de formas de dizer, depende de como a lalíngua foi falada e entendida pelo outro.  Ele afirma que os pais instilam um modo de falar na criança:  “A forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais a aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9). A linguagem interpreta as marcas de lalíngua, que vão sendo depositadas sobre o corpo do infans.

O tema do excluído e do intruso aparece em vários contextos tanto da família quanto da escola de Samuel. No ambiente escolar, que põe a prova a inserção desse sujeito num laço social, destaco a figura de um colega de sala, um duplo de Samuel, que, segundo ele, está na escola onde não deveria estar por ser uma criança doente, “cujo lugar deveria ser em uma escola especial, pois ele não é como os outros”. Esse colega parece viabilizar uma certa recomposição da imagem do eu, que por ser constantemente invadida pelo gozo escópico deslocalizado promove a inquietante estranheza.

Aqui pretendo articular o ultimíssimo Lacan com o primeiríssimo, pois recorrerei à teoria dos complexos familiares como chave de leitura do problema do intruso, tão patente no caso do Samuel.

Desde 1938, no artigo “Os complexos familiares”, Lacan problematizou a paranoia estruturante do eu por meio do complexo de intrusão, segundo o qual a imagem do outro em relação à qual o eu se aliena tem um caráter estrangeiro e intrusivo. É nesse complexo que se funda o alicerce de temas delirantes da paranoia pela dominância do imaginário.

As ligações da paranoia com o complexo fraterno manifestam-se pela frequência dos temas da filiação, da usurpação e da espoliação, assim como sua estrutura narcísica se revela nos temas mais paranoides da intrusão, da influência, do desdobramento, do duplo e de todas as transmutações delirantes do corpo. (LACAN, 1938/2003, p. 51)

Lacan discute o papel traumatizante do irmão no complexo familiar de intrusão: “A intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante; na família, em regra geral, trata-se de um nascimento, e é o primogênito que desempenha, em princípio, o papel de paciente” (LACAN, 1938/2003, p. 50).

O transitivismo paranoico, no qual o eu regride a um estágio arcaico de sua constituição, pode explicar a tendência à agressividade, por vezes necessária a separação entre o eu e o outro. A afinidade da paranoia com o eu especular foi retomada na lição de 08/04/1975, do Seminário RSI, em que é definida como um visgo imaginário. A paranoia estrutura-se, pois, sobre a base de uma proliferação do imaginário e sobre a fixação do sujeito no estágio do espelho. 

A invenção do projeto pedagógico: uma saída esboçada pela via do Ideal? 

Um projeto pedagógico proposto por Samuel, “para ajudar Lucio a se sair melhor nas notas já que ele tem dificuldades de aprender”, me pareceu uma outra maneira de tratar o real do gozo, dessa vez por meio do Ideal, não sem conexão ao destino do objeto olhar. Se, até então, Samuel e o colega compunham o eixo imaginário a-a’, no qual Samuel sofre do ódio e da intrusão sem a mediação do Outro, a invenção do saber pedagógico entre eles promove o ideal pedagógico no lugar do Nome-do-Pai forcluído. Com o Lacan dos complexos familiares diríamos que a estagnação da sublimação do complexo de intrusão cede à ação do simbólico. Samuel assumiria o lugar do educador ideal.

Essa solução, que no caso do Samuel parece uma missão, mais do que um ideal, evoca o Emílio de Rousseau e suas lições de educação. Rousseau inscreveu seu nome no campo do Outro mediante a escrita de seu tratado de educação. Ele pretendia uma espécie de pedagogia capaz de eliminar o gozo. Propôs inclusive a eliminação de qualquer lição verbal, de maneira que o educando mantivesse sua natureza pura sem contaminação pela linguagem, ainda que isso lhe custasse o próprio laço social.

Para concluir, recorro ao comentário de J.-A. Miller (2015, p. 308) em “Todo el mundo es loco” sobre uma pergunta-título de um colóquio, a saber, “o que pode esperar o psicótico hoje?”.  Miller sugeriria já à entrada do colóquio a frase “Todo mundo é louco, quer dizer, delirante”. A tendência à generalização do delírio implica, certamente, o seu declínio, e articula-se a uma mudança na própria concepção de loucura.


Referências 
AJURIAGUERRA, J. Psicoses infantis. In: MARCELLI, D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Editora Artmed, 2007, p. 201-226.
FARI, P. Lalíngua. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
GULLAR, F. Zoologia bizarra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1938).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LEGUIL, F. Cura de un niño paranoico? In: Niños en psicoanálisis. Buenos Aires: Manantial, 1992, p. 127-133.
MALEVAL, J.C.  Locuras histéricas y psicosis disociativas. Buenos Aires: Paidós, 2009
MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Opção Lacaniana, n. 43, p. 7-81. mai. 2005.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
NAVEAU, P. L´extraction de l´objet a et le passage à acte. La Cause Freudienne, n. 63, p. 75-78, 2006.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 16 de junho de 2023



Supereu solúvel no álcool?[1]

Miguel Antunes
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
miguelfigueiredoantunes@gmail.com

Resumo: A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo.

Palavras-chave: imperativo categórico; imperativo de gozo; supereu.

SUPEREU SOLUBLE IN ALCOHOL?

Abstract: From the proposal “return to the classics”, made by the Center for Investigation and Research in Drug Abuse and Alcoholism, the text proposes to comment on the famous phrase “the alcoholic superego is soluble in alcohol”. For this, the concept of superego will be worked on both in Freud and in Lacan, going beyond the “heir of the Oedipus complex” towards his imperative of jouissance.

Keywords: categorical imperative; imperative of jouissance; superego.

Imagem: Renata LaguardiaA famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool” (LECOUER, 1992) é de autoria de Ernest Simmel, psicanalista que criou e fundou uma clínica em Berlim, em 1926, para tratar principalmente de alcoolistas. Vale ressaltar que ele contou com amplo apoio de Freud. Por motivos de guerra, foi preciso mudar duas vezes de país, indo para a Suíça e depois Estados Unidos. Dessa experiência inovadora temos poucas informações.

A palavra “solúvel”, nos dicionários on-line, remete à dissolução, a algo ou questão para a qual há resolução, algo que é solucionável, o que nos leva a perguntar se esse é o estatuto do supereu para a psicanálise.

Neste texto, trataremos de comentar as elaborações de Bernard Lecouer (1992) em “Porque o supereu não é solúvel no álcool”, que se encontra no livro O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo, organizado pelo Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), em 1992, reunindo os textos de uma jornada de trabalhos acerca da toxicomania orientados pela psicanálise. Destacaremos alguns pontos do texto de Lecouer para fazermos um breve percurso no tema do supereu, e, assim, discutirmos sobre a dissolução, ou não, do supereu tanto nas toxicomanias, quanto nas mais diversas apresentações clínicas.

Em um primeiro momento, essa frase não deve ser totalmente descartada: há algo no álcool que pode atenuar o mal-estar e lançar um sujeito ao agir, possibilitando-lhe atravessar a inibição que tanto o paralisa. Em “O mal-estar na civilização”, Freud (1930/1996) já havia mencionado tanto a eficácia, quanto também os danos, ao se lançar mão do recurso da intoxicação para tratar o mal-estar. E é considerando essa vertente danosa do supereu que Lacan (1953-54/1986, p. 123) o chamou de “figura feroz”, versão que interessa a este trabalho.

Começarei com uma brevíssima vinheta clínica. Após sua mãe lhe proibir de beber durante uma festa, o sujeito resolveu experimentar alguma droga industrializada e acabou perdendo o controle, tendo uma “bad trip”. Ao tentar enganar a censura materna, ele se depara com a culpa que, segundo afirma, é a origem de sua “ansiedade”. Com isto, ele começa a se dar conta de que repete a mesma cena sempre: bebe para tratar a ansiedade, mas, ao invés de aproveitar a festa, muitas vezes acaba por perdê-la. Tal ato nos faz lembrar Lacan (1969-70/1992, p. 68) quando ele diz que o gozo “começa com uma cócega e termina em labareda de gasolina”.

Parece ser essa versão superegóica que interessa em nosso cotidiano clínico, pois acarreta muito sofrimento ao sujeito e pode, ocasionalmente, levá-lo a buscar uma análise. Freud (1920/1996), em “Além do princípio do prazer”, menciona essa linha imaginária entre o prazer e o desprazer. Para o autor, após o sujeito ultrapassar o princípio do prazer, ele se depara com o desprazer marcado pelo excesso. Podemos dizer que o desprazer é exatamente o gozo que vai contra o bem-estar.

Voltando à frase de Simmel, e indo além, é possível estabelecer que ela se aproxima muito mais da possibilidade de um drible ao supereu do que sua diluição. Os casos que nos chegam aos consultórios e, principalmente, nas instituições, não se referem ao chamado uso recreativo, mas, sim, a um uso muito mais devastador, acarretando no apagamento não do supereu, mas do sujeito.

Miller (2009), em “Clinica del superyó”, afirma que o supereu instala a divisão do sujeito e insere uma lógica que não estaria de acordo com o bem, ainda mais se o confundirmos com o bem-estar. Segundo ele, o paradoxo do supereu está ligado ao apego do sujeito em relação a algo que não lhe faz bem, indo de encontro com seu bem-estar. O supereu está muito mais ligado à pulsão, ao mais de gozar. Todavia, esse gozo constitui um bem para o sujeito, na direção de um bem absoluto. Vale ressaltar a passagem de Lacan (1973/2003, p. 525) em “Televisão”, em que ele define o sujeito como “feliz”, sobretudo porque na repetição o que está em jogo é satisfação da pulsão.

O gozo é antinômico ao desejo e ao bem-estar. O desejo conduz rumo à civilização, enquanto o primeiro não conhece limites, não proporciona prazer, está evacuado do saber, sendo necessário o Nome-do-Pai para que algo desse gozo desmedido tenha chance de se coordenar. É o falo que pode temperar o gozo, porque o gozo enquanto tal, não tem medida. Para se dar conta do quão intolerável pode ser um gozo desregulado, basta ler As Memórias de um doente de nervos, de Schreber. Nessa direção, ainda com Miller (2009), podemos dizer que o supereu é uma lei absoluta articulada ao gozo, melhor dizendo, um imperativo: Goze!

Mas, antes de adentrarmos no imperativo do gozo, faremos um retorno a um grande clássico, ou seja, a Freud. Para ele, o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e sinônimo do ideal do eu. Em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914/1996) assinala a presença de um “agente psíquico especial” que funciona para alimentar o que estava determinado pelo campo do ideal, aumentando as exigências para com o eu. E alerta que não se trata de uma descoberta, mas de um reconhecimento clínico (CAMPOS, 2015).

Esse “agente psíquico especial” tem a função de vigilância e auto-observação, sendo uma voz alta e clara, falando na terceira pessoa – quando se trata de uma psicose, especialmente da paranoia –, ou de modo silencioso – no caso das neuroses, principalmente a obsessiva. Contudo, mesmo silenciosa, ela se mostra bastante eficaz, pois julga, antecipa, recrimina, etc. Enfim, trata-se de um grande tribunal instalado no pensamento dos sujeitos, em funcionamento permanente, mostrando toda a sua ferocidade. De certa maneira, podemos dizer que o supereu impulsiona o sujeito à ação para depois reclamar por punição (CAMPOS, 2015).

Retomando a proposta de comentar o texto de Lecouer, e nos distanciando da fórmula de Simmel, o autor nos diz:

a posição do bebedor é aquela de uma fundamental submissão a um apelo, de uma obediência sem pertinência a uma ordem, aquela que articula a injunção “Beba!”. O ato de beber, antes de ser um gozo, consiste em ceder às ordens de um imperativo de gozo. […] Beba, para esquecer! Enfim, beba! Mas sempre para seu bem. (LECOUER, 1992, p. 75)

E continua:

assim considerado, o supereu não é mais solúvel, ele não desaparece na solução alcóolica. O álcool torna-se, ao contrário, portador de um apelo, assegura a imanência da voz, de uma voz que governa um retorno incessante do sujeito ao mesmo, um retorno que se encarna e toma sentido numa face a face com o mesmo copo. (LECOUER, 1992, p. 75)

Na passagem acima, Lecouer nos aproxima bastante do termo “iteração”, trabalhado no seminário de Miller (2021) intitulado “O Um sozinho”, quando ele diz que na adicção bebe-se sempre o mesmo copo, sendo uma adicção à qual não se adiciona nenhum saber, em que 1 + 1 + 1 é igual a 1. Na iteração, o objeto é um fim em si mesmo, diferente da repetição, em que o objeto é um meio e há uma história, um enredo, uma cena que cristaliza o sujeito, ou seja, há a fantasia.

O ponto central que nos interessa ao trabalhar o supereu é poder ir além do herdeiro do complexo de Édipo, momento em que sua vertente reguladora se fazia mais presente. Foi com Lacan que pudemos acessar um supereu sem sentido, severo, ingovernável e destruidor que é muito mais próximo ao imperativo: Farás!

É na passagem do imperativo categórico ao imperativo de gozo que reside a figura voraz e feroz. Se o primeiro, o imperativo categórico, está ligado ao campo moral, da regulação, o segundo, o imperativo de gozo, traz a injunção ao gozo. Primeiro, vem o imperativo categórico (beber para desinibir, por exemplo), e, em seguida, opera o imperativo do gozo (punição por perder a festa). Assim, se por um lado há um imperativo que exige sacrifício, por outro, há o que impele ao masoquismo. Essa elaboração pode ser extraída de Lacan (1962/1998) quando ele trabalha o texto “Kant com Sade”.

É em Kant que Lacan localizou o imperativo categórico, em que o sujeito tenta atingir o bem e a dignidade pela virtude moral, se deparando com um impedimento ou mesmo com a censura. Já em Sade, ele se deparou com um direito ao gozo do corpo do outro. Ambos os imperativos se complementam, uma vez que levam o sujeito ao extremo, em um mais-além do bem-estar.

Mas o que faz a passagem do prazer ao seu além? O que acontece que uma simples cócega pode se tornar uma labareda de gasolina? Ou, o que faz com que o supereu não seja diluído no álcool e nem regulado?

Podemos pensar que se trata da questão da implantação da voz enquanto objeto a, pois tanto o supereu, quanto o objeto a, se impõem como modo de gozo. É extremamente comum escutarmos na clínica, e na nossa própria vida, as vozes do supereu em ação em sua vertente de duplo comando que se apresenta como dois imperativos: um que impele ao movimento e outro em vetor contrário. Se considerarmos a lei da física, o encontro da força de ambos causa uma paralisia (BARROS, 2015).

Trata-se de uma voz desincorporada, ou seja, não se trata do falar ou da entonação. Lacan atribui ao supereu um caráter de imperativo e o transforma em exigência impossível de contornar. Tal imperativo se presentifica como uma voz desencarnada, atribuída ao Outro,  não experimentada como vinda de outra pessoa, mas do Outro (ASSIS; VIEIRA, 2019). O que demonstra o caráter de objeto a da voz é o fato de ser atribuída ao Outro, por isso uma voz desincorporada. Nessa direção, o supereu lacaniano, ou o supereu como voz, incide muito mais em sua vertente de imperativo de gozo do que de imperativo moral (CORDEIRO, 2011).

Considerando a clínica da toxicomania, para não fugirmos tanto de nosso tema, ela é uma clínica do supereu (ALVARENGA, 2005) em sua vertente de gulodice. Em seu aspecto de imperativo de gozo, os toxicômanos vão em direção à ruptura fálica, o que não conduz necessariamente à forclusão do Nome-do-Pai, mas ao encontro com um gozo que desconheces limites, um gozo que pode ser destruidor e aniquilar o sujeito.

Lecouer (1992, p. 74) menciona que “o sujeito que se decide, em vão, a renunciar à bebida, não faz senão relançar, com ainda mais força, aquilo que, afinal, o empurra a beber”. Ou seja, o supereu alimenta-se da renúncia pulsional. Talvez por essa razão nos deparamos com recaídas cada vez mais devastadoras.

Em direção à conclusão, podemos dizer que a relação estabelecida com o supereu lacaniano não está ligada à identificação, mas, sim, a uma voz de comando sem corpo e sem nenhum contorno. Já o supereu freudiano é diferente, ele está ligado ao ideal do eu e ao imperativo moral e mantém uma vinculação com a identificação. Tal identificação é consequência da saída do complexo de Édipo e implica na incorporação da voz. O que Lacan desvela é “essa voz que diz ‘goza’ é o objeto a voz como presença, ou seja, a presença do Outro sob forma vocal maciça, experimentada como imperativo” (ASSIS; VIEIRA, 2011, p.274), que reclama obediência e convicção. Tal obediência é a característica mais marcante do supereu, pois trata-se de uma obediência que não deixa margem para questionamentos.

O supereu lacaniano se situa ali onde o complexo de Édipo não recobre nos termos identificatórios e normativos, atestando um certo fracasso estrutural ao Édipo. E aquilo que não é recoberto pelo complexo de Édipo, Freud, de maneira genial, já havia localizado como algo de uma instância crítica, principalmente na melancolia, em que está em jogo identificações mais primitivas e arcaicas.

Com Lacan, afirmamos que “nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (1972-73/1985, p. 11). Enfim, podemos perguntar: o supereu freudiano, aquele do casamento feliz com a garrafa, é muito diferente do supereu lacaniano, em que o que está em jogo é a ruptura com o faz-pipi?

O supereu faz jus ao ditado popular: o que não tem remédio, remediado está. E uma análise pode promover algum alívio à submissão ao imperativo do gozo, podendo promover um novo laço, um laço responsabilizado com seu desejo e seu modo de satisfação (BARROS, 2015).

Concluindo,

um problema que não tem solução não é um problema, é uma estrutura do impossível […] na psicanálise não se trata de curar a fantasia ou de tratar o supereu, como já disse Lacan, mas de atravessá-los e identificá-los como o osso de uma cura. (CAMPOS, 2015, p. 155)


Referências 
ALVARENGA, E. Do gozo do pai à melancolia. Papers del CA – Nova Epoca, n. 5, nov. 11 – 2005 Disponível em: <https://wapol.org/pt/articulos/Template.asp>. Acesso em: 22 jun. 2023.
ASSIS, G. K. O. de; VIEIRA, M. A. Supereu: a voz de um imperativo interrompido. Psicologia em Revista, v. 25, n. 1, p. 258-277, 2019. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682019000100015>. Acesso em: 22 jun. 2023.
BARROS, R. R. Prefácio. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CAMPOS, S. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CORDEIRO, N. M. O supereu: imperativo de gozo e voz. Tempo psicanalítico, v. 43, n. 2, 2011.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1996. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1962).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LECOUER, B. O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de Toxicomania, 1992.
MILLER, J.-A. Clinica del superyó. In: Conferencias Porteñas. (Tomo 1). Buenos Aires: Paidós, 2009.
MILLER, J.-A. Aparelhos da escuta, lição de 23.03.2011 do Curso “O Um sozinho”. Opção Lacaniana, n. 83, p. 54-66. São Paulo: Eolia, set. 2021.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação nas Toxicomanias e Alcoolismo em 06 de junho de 2023.



A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo

Paulo Henrique Assunção Rocha
Formado em Filosofia (UFMG) e em Teatro (CEFART/Palácio das Artes)
Aluno do Curso de Formação em Psicanálise do IPSM-MG
paulohassuncao@gmail.com

Resumo: No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. 

Palavras-chave: O Cheiro do Ralo; literatura; psicanálise; neurose obsessiva.

THE OBSESSIONAL NEUROSIS SURROUNDING THE SMELL OF THE DRAIN 

Abstract: In the novel O Cheiro do Ralo (in literal translation: “The Smell of the Drain”), written by Lourenço Mutarelli, a nameless man, owner of a pawn shop, starts to become haunted by the fetid smell that escapes the bathroom’s drain at his shop, while also becoming obsessed with a lady’s ass, a lady who works in the cafeteria he attends daily. It is from this plot that we intend to approach significant aspects of the obsessional neurosis, such as its debt position towards the father, the serial objects, the relationship between the gaze and the anal object, the repetition, as well as the postponement and the metonymic slide of compulsive thoughts. 

Keywords: O Cheiro do Ralo; literature; psychoanalysis; obsessional neurosis.

 

Imagem: Renata Laguardia

É notório o campo aberto por Freud na aproximação entre literatura e psicanálise, no interior da qual uma das suas perspectivas mais importantes se dá pela possibilidade de que o texto literário possa nutrir o campo psicanalítico. Lacan também constantemente utilizou-se de obras literárias e artísticas para, segundo ele, “tomar a lição” (LACAN, 1973-74, aula de 09/04/1974, tradução nossa, s/p).

O romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, parece assim ser uma obra instigante para examinar a questão da neurose obsessiva, como a posição em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição cerimonial, o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos e o desejo postergado.

Narrado todo em primeira pessoa, o protagonista do livro de Mutarelli, que não tem seu nome invocado em nenhum momento do romance, é dono de uma pequena loja de objetos usados. As pessoas que vão até o seu empreendimento estão sempre em condições financeiras deploráveis e de extrema necessidade, oferecendo muitas vezes mercadorias singelas, que o personagem principal faz questão não apenas de comprar pelo menor preço, mas também de insultar quem as vende. É a partir do momento em que é afetado pelo cheiro que sai do seu banheiro, da aquisição de um olho de vidro vendido por um cliente e da obsessão com as nádegas da atendente da lanchonete, que ele tem seu previsível cotidiano perturbado. Esses três objetos – o ralo, o olho e a bunda – são os pontos em torno dos quais o protagonista gira por toda a trama e que buscaremos desdobrar em nossa análise.

Grande parte do romance se passa no empreendimento do protagonista, para o qual diversos clientes se dirigem para penhorar uma série de artefatos, que podem ser de um violino, livros e vinis raros a objetos valiosos, mas frequentemente são apetrechos sem nenhum valor. Mais do que ser um colecionador, o personagem central busca retirar, por meio dos “objetos”, a dignidade de seus “clientes”, incitando uma posição de dúvida e aviltamento, oferecendo mais dinheiro por coisas banais ou uma miséria por artefatos valiosos. Procura constantemente humilhá-los ao ouvir suas histórias de vida e da relação deles com esses objetos que levam para vender, e assim tentar arrancar sempre mais através dessa negociação um a um, procedimento que parece enaltecer seu narcisismo e buscar aniquilação desse outro.

Você nunca me deu nada.

Eu sempre paguei.

É. Tudo o que eu tinha eu vendi para o senhor.

Eu pedi para você me vender?

Não. Pedir não pediu.

Então por que vendeu?

Porque eu precisava.

Não. Vendeu porque quis.

Foi ou não foi?

Foi.

Então diga, eu vendi porque quis.

Eu vendi porque eu quis.

Muito bem. (MUTARELLI, 2011, p. 96)

Nessa coleção de objetos e nas injúrias do narrador, uma série se forma e vai se deslocando, como aquilo que Lacan caracterizou como uma “metonímia permanente” do sintoma obsessivo (LACAN, 1960-61/2010). Romildo do Rêgo Barros (2015, p. 46) definiu como, na neurose obsessiva, “o sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões”. Já não importa mais para o protagonista quais são as bugigangas vendidas, as histórias que as pessoas contam, as humilhações que provoca, tudo se torna apenas uma infinita e interminável lista de coisas a serem adquiridas.

No momento em que começa a ter problemas com o cheiro horrível que exala do ralo no banheiro do trabalho, algo que acontece já na primeira página do romance, o protagonista tem sua falsa normalidade abalada. Desse incômodo constante com o ralo e do receio do cheiro ser associado a ele (“Só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”), algo em sua vida passa a falhar, a sair do rumo ordinário que tentou construir e manter.

Aqui cheira a merda.

É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo.

Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro?

Eu.

Quem mais?

Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta: E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 16)

É Lacan quem magistralmente vai revelar sobre a “evacuação da merda”, afirmando que “o homem é o único animal para quem isso apresenta um problema, mas prodigioso” (LACAN, 1967-68/2006, p. 74). Isso fica evidente para a neurose obsessiva, cuja relação sádico-anal é apontada por Freud (1926/1996) em Inibições, sintomas e ansiedade como essencial para entender a escolha dessa neurose pelo sujeito. A regressão da pulsão ocorre por meio de um conflito psíquico e da ambivalência, na qual as ideias contraditórias sucedem-se e anulam-se. Além disso, se, no estágio anal, a possibilidade de dar ou não algo ao Outro é apenas uma possibilidade, para o obsessivo o imperativo de dar tudo ao Outro é levado às últimas consequências. Se sentir “um merda” ganha equivalência com a merda com a qual o obsessivo metrifica o outro. Lacan afirma que o “tudo para o outro” do obsessivo é “a perpétua vertigem da destruição do outro, ele nunca faz o bastante para que o outro se mantenha na existência” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255). Segundo Miller (1986, p. 140, tradução nossa) em H²O, há muito tempo os psicanalistas já haviam notado a afinidade do caráter obsessivo com “a vertente do erotismo anal, o espirito da economia e até mesmo da avareza”.

Esse ímpeto de destruir o Outro, ao mesmo tempo em que lhe dá enorme consistência, estabelece uma peculiar estratégia de rebaixamento dos seus pequenos outros. É justamente essa a maneira como o protagonista de O Cheiro do Ralo lida com todos que o cercam, demonstrando uma incapacidade ímpar para estabelecer vínculos afetivos. É curioso que comece a se importar com os outros, seus semelhantes, somente na medida em que concebe incomodá-lo com o próprio cheiro. Talvez não estejamos tão distantes de Lacan quando ele diz que “A civilização, lembrei lá como premissa, é o esgoto” (LACAN, 1971/2003, p. 15). É na sua não capacidade de acobertar o que tem de mais íntimo, o que faz no âmbito privado (“o banheirinho”), que nosso protagonista passa a se envergonhar com o olhar e a expectativa alheia: “Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim” (MUTARELLI, 2011, p. 9).

O que se segue são inúmeras e desesperadas tentativas de tamponar o ralo, ele chega mesmo a retirar o vaso e concretar o buraco, tentando assim aniquilar o que lhe assombra. Sua reação acaba por levar a um entupimento do cano do escritório e a um aumento ainda maior do cheiro insuportável. A tentativa obsessiva de tamponar o furo acaba por entupi-lo com a própria merda, a merda do seu ser, ou, como diz Lacan (1960-61/2010), seu ser de merda.

Refaz então o buraco e passa a se deitar para aspirar o vapor que sai dele: “Rastejo até o banheirinho. Tiro a toalha do ralo. Cheiro, cheiro, cheiro…” (MUTARELLI, 2011, p. 122). Há claramente um gozo nisso, seu corpo goza com essa ação de agachar e inalar compulsivamente o vapor do ralo, algo proibido, excessivo e que deve ser feito apenas escondido, longe dos olhares de todos. É nessa ação sem sentido, que faz envergonhado e solitariamente, que parece, enfim, se reconhecer:

Deitado de bruços, inalo. Trago. Para ele o ralo sou eu. Observo, atento, o buraco. Nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo. Só há o escuro que sou. E isso é tudo o que me resta para amar. (MUTARELLI, 2011, p. 176)

Podemos notar também nas ações do protagonista de obstruir e reabrir o ralo que, mais que agir, o que ele faz é um enorme esforço para desfazer o que foi feito, um contra-ato que mantém tudo imutável. Há nisso uma similaridade com o procedimento de anulação de um evento, denominado como “mágico” por Freud (1926/1996, p. 120):

Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas bifásicos, nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram.

O segundo ponto de inflexão no romance se dá quando um homem chega ao escritório e oferece ao protagonista um olho de vidro. Ele fica fascinado e chega mesmo a estabelecer uma equivalência entre o olho e as nádegas tão desejadas da funcionária da lanchonete: “Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.” (MUTARELLI, 2011, p. 36). Por isso, já não é capaz mais de negociar, pagando um alto preço pelo objeto desejado. O olho passa a ser um objeto que traz sempre no bolso, levando-o para ver a bunda da atendente, deixando-o em cima de sua mesa de trabalho, assistindo TV, conversando com ele. Passa a mostrar para os clientes e outras pessoas, dizendo: “Era do meu pai” (MUTARELLI, 2011, p. 37). O olho começa a ver pelo narrador, a ser seu companheiro, sendo levado a todos os lugares em que ele vai e, cada vez que fala sobre ele, inventa e aumenta a história do olho paterno, dando enorme densidade a esse Outro. É exatamente como na neurose obsessiva, cuja questão é a relação com o objeto olhar, e não o pai. Miller (apud SIRIOT, 2020, s/p), em seu ensino inédito O Ser e o Um, afirma: “O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”. E, ainda sobre a função escópica, Cristiane Barreto (2017, s/p) ressalta que:

O neurótico obsessivo, em dívida, sem o ‘bolso’ do psicótico para carregar seus objetos seriados, faliciza-os e os carrega na fantasia, fixa-se onde a fantasia encontra satisfação, ou, ao invés de fixar, poder-se-ia dizer, com Schejtman, que o sujeito adormece onde encontra satisfação na fantasia. Esse mecanismo pode ser relacionado com o lugar que o escópico ocupa para o sujeito obsessivo, a potência (ilusória) atribuída ao lugar do Outro, dessa forma, o olhar ganha uma dimensão de gozo proporcional à consistência atribuída ao Outro, que, permanece em sua censura perene.

Adiante no romance, quando ao protagonista é oferecida a prótese de uma perna, compra-a sem hesitar. Decide, então, montar um pai:

Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que, com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse. Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez. Eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou. Ele nunca me viu. Eu só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto. Não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites. Ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara. Nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança. Não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez, ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein. (MUTARELLI, 2011, p. 141)

Desde Freud e o caso do Homem dos Ratos é destacada a centralidade da questão paterna na neurose obsessiva. Gazzola (2002, p. 42), em seu comentário sobre o pai de Ernst Lanze, enfatiza que, nesse caso, “é um pai que não termina nunca de morrer”, e que “esse pai volta sempre, como um fantasma, para assombrar o sujeito, quando se trata de gozar”. Em O Cheiro do Ralo acompanhamos, através do olho de vidro e da perna protética, não a tentativa de criar um novo pai para se servir dele, mas um pai que “imaginou” e que, como o personagem, nem nome tem, nada sabe, nada transmitiu, é apenas um esboço de pai advindo de objetos comprados.

A bunda é outro objeto em torno do qual o romance e o protagonista giram. O personagem se vê perdidamente apaixonado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta todos os dias. Com a desculpa de ir ver a bunda, passa a consumir todos os dias um hambúrguer (X-Tudo), o que piora ainda mais seus problemas intestinais e consequentemente o cheiro ruim do ralo.

Ao se deparar com a garçonete, é incapaz de compreender seu nome e reter seu rosto, não se interessa por nada mais além de sua bunda. Chega a nomeá-la de Rosebud, em alusão ao trenó, grande mistério de Cidadão Kane de Orson Welles, e que guarda curiosa homofonia com o objeto desejado pelo protagonista. Suas investidas na garçonete levam a uma obsessão: sonha com a bunda, alucina, ensaia diversas maneiras de enfim possuir esse objeto. A garçonete também está interessada, mas a inabilidade social do protagonista o leva sempre a adiar o encontro e, mais do que isso, sua obsessão com a bunda destrói a própria possibilidade de que o encontro aconteça, tornando-o impossível. No seu constante cálculo dos objetos e das relações, há o receio de que, fora das suas fantasias previsíveis, essa satisfação irá ser corrompida: “Mas, se eu for, estrago tudo. Depois vem as cobranças. Eu sei. Mulher é tudo igual. Não adianta você ser sincero. Elas sempre querem mais. E aí logo mandam o convite pra gráfica” (MUTARELLI, 2011, p. 36). O personagem só é capaz de imaginar a possibilidade de uma relação mediada pela relação mercantil: “Se começar dessa forma, ela virá com as cobranças. E eu prefiro pagar para ver”. Como Lacan afirma no Seminário 6 (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), para o neurótico obsessivo trata-se de manter o desejo como instituído na sua impossibilidade: “É sempre para amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo”.

Após uma série de desencontros, a garota da lanchonete consente em agir conforme a fantasia do narrador, aceita fazer como ele quer, ser paga para mostrar sua bunda. Ela vai ao seu trabalho e, diante dele, abaixa as calças e exibe a bunda. Ele caminha até ela e chora copiosamente agarrado às nádegas.

A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível. Essa bunda era, enquanto impossível, enquanto alheia, o contraponto do ralo. Mas o que eu realmente buscava não estava ali. Tampouco em outro lugar. O que eu buscava era só a busca. Era só o buscar. E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço. Só o vazio. Só a certeza do incerto. Agora é preciso encontrar algo novo, de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais. Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não. O mentiroso sou eu. (MUTARELLI, 2011, p. 171)

O objeto antes tão precioso, ao ser confrontado degrada-se rapidamente e vira nada: “E, assim, mais uma coisa a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na sala ao lado” (MUTARELLI, 2011, p. 173).

É também aqui que se articula a questão entre os objetos olhar e anal, ou entre o ideal e a merda. O obsessivo reveste o objeto anal falicamente e também o encobre com o olhar. O “olhar envelopa a merda” (BARRETO, 2017, s/p), fazendo do objeto malcheiroso uma preciosidade, como o personagem faz com o ralo, o olho e a bunda. Mesmo assim, mesmo quando ele parecia ter tudo o que queria, não havia mais nada ali para ele desejar: “Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu” (MUTARELLI, 2011, p. 179).

O verdadeiro estatuto do desejo na neurose obsessiva, diz Lacan (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), é que “o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente aí, no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado: ‘seu desejo’. Onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí que ele está”. 


Referências
BARRETO, C. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. 2017. (Inédito).
BARROS, R. do R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926).
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 6: Le désir et son interprétation. (Trabalho original proferido em 1958-59). (Inédito).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Trabalho original proferido em 1973-74). (Inédito).
LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Trabalho original publicado em 1971).
LACAN, J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. (Trabalho original publicado em 1967-68).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. (Trabalho original publicado em 1960-61).
MILLER, J.-A. H²O. In: Matemas II. Buenos Aires: Manantial, 1986.
MUTARELLI, L. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SIRIOT, M. O gozo feminino: uma orientação em direção ao real. In: XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Boletim Infamiliar. 2020. Disponível em: www.encontrobrasileiro2020.com.br/ o-gozo-feminino-uma-orientacao-em-direcao-ao-real. Acesso em: 30 set. 2022.



Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves
Psicóloga clínica
Mestre em Psicologia (PUC/MG)
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
edwigespsique@yahoo.com.br

Resumo: Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea?

Palavras-chave: psicose ordinária; paradigma; clínica contemporânea. 

ORDINARY PSYCHOSIS: PARADIGM OF CONTEMPORARY CLINIC? 

Abstract: It is a consensus among analysts that hypermodern subjects present themselves in the clinic somewhat refractory to the traditional intervention patterns of an interpretive psychoanalytic clinic, which had Oedipus as its central theory. With the fall of ideals, transference does not operate in the same way and the symptoms, no longer interpretable, come now labeled as disorders. In times when the Other does not exist, subjects can find other ways to stabilize themselves and to form a social bond beyond the Name-of-the-Father. Therefore, we ask ourselves: how can ordinary psychosis contribute to contemporary clinical practice? 

Keywords: ordinarypsychosis; paradigm; contemporary clinic.

 

Imagem: Renata Laguardia

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, que a transferência não opera da mesma forma e que os sintomas se apresentam sob outras roupagens.

Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social, para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, questionamos se a psicose ordinária seria o paradigma da clínica contemporânea. 

Psicose ordinária 

Fruto de um movimento iniciado em 1996, o termo criado por Jacques-Alain Miller, e que foi tornado público em 1998, questiona a clínica estruturalista inicialmente proposta por Lacan e estaria em consonância com seu último ensino.

A expressão “psicose ordinária” não possui uma definição rígida. Não se trata de um novo conceito, mas de um significante cuja aposta é fazer eco na prática clínica. Uma tentativa de resposta diante da impossibilidade de classificar alguns casos dentro do binarismo neurose ou psicose.

Na primeira clínica, Lacan admite a metáfora paterna como a operação que irá trazer uma estabilização ao registro imaginário no início da vida psíquica. Na segunda clínica, a metáfora paterna perde o status de nomeação e ganha o lugar de predicado, passando a designar uma das muitas possíveis amarrações dos três registros. O sujeito pode nunca desencadear uma psicose fazendo uso de outras soluções que fazem as vezes do Nome-do-Pai.

Nesse sentido, a introdução da categoria clínica “psicose ordinária” tem, segundo Miller (2010) duas consequências em direção oposta: por um lado, uma maior precisão no diagnóstico da neurose e, por outro, uma generalização do conceito de psicose.

No que se refere à primeira consequência, Miller (2010, p. 20) afirma:

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa.

Quanto à generalização do conceito de psicose, Miller (2010) nos esclarece que a concepção de Nome-do-Pai enquanto predicado implica em um apagamento das fronteiras entre neurose e psicose, uma vez que todo ordenamento é delirante: todo mundo é louco. Na neurose, a fantasia. Na psicose, o delírio.

Trata-se, então, de que alguns sujeitos encontram em outro significante uma suplência ao Nome-do-Pai, permitindo-lhes viver experiências no laço social com alguma estabilização. Neuróticos ou psicóticos, cada sujeito cria a sua solução, uma invenção.

Na perspectiva milleriana, seja na neurose, seja na psicose, o sujeito criará maneiras de se defender do real do gozo. Na neurose, o sintoma vem como suplência à insuficiência do pai real. Já na psicose, a solução vem em suplência ao Nome-do-Pai.

Uma vez que não será a presença ou a ausência do Nome-do-Pai que definirá se um sujeito é neurótico ou psicótico – mas, sim, sua posição de gozo no mundo, bem como aquilo que pode grampeá-lo ao seu corpo e permitir-lhe localizar-se no laço social –, interessa-nos saber o que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a direção do tratamento psicanalítico dos sujeitos sob transferência em tempos em que o Outro não existe.

Paradigma 

Agamben (2009), após vasta pesquisa sobre a utilização da terminologia “paradigma” por diferentes filósofos, define o conceito, aproximando sua pesquisa à de Michel Foucault. O paradigma agambeniano seria um exemplo, um modelo que, ao mesmo tempo em que expõe a categoria a qual pertence, não exclui sua particularidade. Exclui a dicotomia entre universal e particular. Trata-se de um método (de pesquisa) que não é dedutivo, nem indutivo, e que parte da singularidade em direção a ela mesma.

Tratar um fenômeno como paradigmático seria concebê-lo como uma figura epistemológica. Uma ilustração que explica, por si só, o conjunto do qual faz parte, sem, contudo, transformá-lo em regra geral ou em categoria replicável. Assim, o panóptico seria paradigma da sociedade de controle e o shopping center o paradigma da sociedade de consumo. Seria a psicose ordinária o paradigma de uma era que denuncia a falência do Nome-do-Pai?

O paradigma enquanto via alternativa que comporta um indecidível entre o particular e o universal, pode se alojar no intervalo, na lacuna que marca a condição de existência do sujeito freudiano. Como esclarece Miller […], por sujeito entendemos o “efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra”. Se no reino animal cada indivíduo é exemplar perfeito de sua espécie, realizando exaustivamente o universal, o ser atingido pela linguagem nunca realizará exaustivamente nenhuma classe nosológica. Se é justamente ao efeito deste hiato que chamamos sujeito, consideramos que o paradigma, ao se afastar do positivismo que explora a antítese entre o particular e o universal, resguarda o negativo que sustenta o sujeito do inconsciente. (CARVALHO, 2020, p. 60)

Inferimos que a psicose ordinária pode ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea, apoiados na seguinte declaração de Laurent e Miller (1998, p. 9):

Como operar todos os dias na prática, sem inscrever o sintoma no contexto atual do laço social que determina sua forma, na medida em que ele o determina na sua forma? Temos a intenção, Eric Laurent e eu, de afirmar este ano a dimensão social do sintoma. Afirmar o social no sintoma, o social do sintoma, não é contraditório com a inexistência do Outro. Ao contrário, a inexistência do Outro implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela abre.

Clínica contemporânea 

Miller (2005, p. 7) considera que haveria um consenso entre os psicanalistas de que “os sujeitos contemporâneos, pós-modernos e até mesmo hipermodernos são desinibidos, neo-desinibidos, desamparados, desbussolados” e que, na tentativa de identificar um marco para o início deste desbussolamento ele acabou por levantar uma segunda questão: será que não temos bússola ou temos outra bússola? A partir dessa pergunta, ele levanta a hipótese de que a bússola atual é o objeto a e que, sendo assim, o discurso de nossa época remonta à estrutura do Discurso do Analista, assim como o discurso do inconsciente remonta à estrutura do Discurso do Mestre.

Para Miller (2005), à época de Freud, o mal-estar produzido pela civilização nos sujeitos vitorianos se devia à imposição de um recalcamento de gozo. Entretanto, o mal-estar que vivemos hoje diz respeito a um imperativo de gozo. A que se deve tal mudança? Segundo a hipótese milleriana, instituída a psicanálise com Freud, antecipa-se, de alguma maneira, a ascensão do objeto mais-de-gozar ao zênite social. A elevação do objeto a ao status de bússola em nossos dias seria uma das repercussões de um século de exercício da psicanálise.

As condições de possibilidade para a criação da psicanálise foi o sintoma histérico: um real que faz furo no discurso da ciência. Dar sentido ao real do sintoma, tomá-lo como verdade foi o saber-fazer instituído e transmitido por Freud. Entretanto, o sintoma não se apresenta mais da mesma maneira. Ali, o sintoma era o efeito de uma moral civilizada, o resto de uma operação que tentava domar as pulsões. Se hoje o imperativo é “Goze!”, os sintomas não se apresentarão da mesma forma:

Nos dias de hoje, acrescentando-se ao mal-estar da psicanálise, produziu-se uma cisão do ser no sintoma. […] O sintoma tinha algo a dizer. Era definitivamente a intencionalidade inconsciente que fazia consistir o sintoma. Pois bem, na palavra sintoma, o “sin” se foi e só restou o “toma”. Doravante, o sintoma foi reduzido a distúrbio. (MILLER, 2005, p. 15)

Segundo Laurent e Miller (1998), a subjetividade contemporânea está submersa, em escala industrial, por semblantes, sob um movimento difícil de ser resistido. Acrescentam que o simbólico contemporâneo está escravizado pelo imaginário, submetido a ele. À psicanálise resta convocar o real.

Se na era vitoriana havia uma identificação vertical ao líder, às instituições, o que vivemos no capitalismo tardio é uma identificação horizontal. Como ”sequelas da escalada do objeto a ao zênite social” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 15), temos homens e mulheres determinados pelo isolamento, cada um com seu gozo, bem como a proliferação dos comitês de ética.

Se hoje “pode-se dispensar o Nome-do-Pai enquanto real com a condição de dele se servir como semblante” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 6) e se uma psicose pode estabilizar-se através de um substituto do Nome-do-Pai, entendemos que a clínica pode se servir da psicose ordinária, em sua pluralidade de amarrações, como paradigma para o tratamento de sujeitos que apresentam sintomas decorrentes da queda do Pai.

Assim, a leitura binarista da clínica estrutural se mostra insuficiente para abordar os sujeitos hipermodernos e seus sintomas pulverizados. Laurent (2020) afirma que Lacan, em seu último ensino, nos deixa indicações para reinventar a psicanálise e compreendemos que nosso ponto de partida é, portanto, a clínica borromeana.

De acordo com Laurent (2020, p. 49, tradução nossa), Lacan nos aponta que há “uma estabilização da metáfora delirante graças a uma ficção não edípica” e que esse apontamento pode ser generalizado quando o relemos a partir da segunda clínica. Se na psicose não existe um Outro bem construído, a direção do tratamento dos sujeitos psicóticos nos serve como baliza para o manejo clínico psicanalítico dos sujeitos na contemporaneidade:

A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do Nome-do-Pai. (LAURENT, 2018, p. 49)

Se, na primeira clínica lacaniana, a psicanálise só seria possível a partir da transferência, que, por sua vez, só existe com um Outro bem estabelecido, como a psicanálise pode operar em tempos em que o Outro não existe? Isso significa dizer que o saber não está suposto no analista e que este, então, operará seguindo o saber do analisante.

Seguindo esta trilha, a posição de sujeito suposto saber é substituída pela posição daquele que segue o analisante. É o analisante quem sabe. Essa mudança de estatuto da transferência, relacionada à inexistência do Outro, implica em irmos na contramão da primeira clínica.

Baseado na fórmula geral da comunicação, de que recebemos a própria mensagem de maneira invertida, o analista será esse Outro que produzirá o efeito de retorno do saber que é próprio do analisante. Entretanto, nos adverte Laurent (2020, p. 44, tradução nossa), “isso só pode funcionar na condição de dar a esse saber seu alcance de singularidade radical. Não se pode saber o que é antes que esse saber chegue a ser recebido em sua forma invertida”.

Nesse sentido, necessita-se do analista para um acréscimo de sentido que faça verdadeiro o tropeço. Uma significação que provoque o despertar. Um significante novo. Assim, o analista secretaria o falasser:

Nos fazemos de destinatário do sujeito que nomeia o gozo não negativizável. Procedemos destacando as nominações mais singulares feitas pelo sujeito. […] Onde havia a hiância no Outro obstruída pelo objeto a não extraído, se constrói uma borda desse Outro pela série de nominações. A série responde ao real sem lei. (LAURENT, 2020, p. 51, tradução nossa)

Na primeira clínica, o analista se colocava como secretário do alienado no campo das psicoses; hoje, tal papel cabe também nas neuroses.

Considerações finais 

Vivemos em um momento em que as fronteiras entre neurose e psicose não são tão claras. A horizontalidade das relações no laço social faz com que o analista não opere mais a partir do lugar de suposição de saber, mas como aquele que secretaria o analisante, auxiliando-o a construir uma série de nomeações que façam borda em sua defesa contra o real do gozo, seja ele neurótico ou psicótico.

O analista, como aquele que devolve ao sujeito, de forma invertida, o que ele lhe diz, será o destinatário que fará um acréscimo de sentido que eleve o saber do analisante à sua singularidade radical, provocando-lhe um despertar, como um significante novo. Para cada sujeito, neurótico ou psicótico, a amarração dos registros real, simbólico e imaginário será uma invenção absolutamente particular. É o que nos ensinam os psicóticos ordinários.


Referências
AGAMBEN, G. ¿Qué es un paradigma? Fractal: Revista de Psicologia, n. 53-54, v. 14, 2009.
CARVALHO, S. O caso paradigmático e a nosologia estrutural. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana II: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 45-72.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 79, p. 52-63. jul. 2018.
LAURENT, É. Tratamiento psicoanalítico de la psicosis e igualdad de las consistencias. In: MILLER, J.-A.; BRIOLLE, G. La conversación clínica. Olivos: Grama Ediciones, 2020, p. 41-54.
LAURENT, E.; MILLER, J.-A. O Outro que não existe e seus comitês de ética. Curinga, n. 12, p. 4-18, 1998.
MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 42, p. 7-18, 2005.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana On-line, n. 3, 2010. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br/nranterior. Acesso em: 14 set. 2021.



Do dom de Mauss ao inominável da pulsão 

Laydiane Pereira de Matos
Psicóloga
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
laydianep.matos@gmail.com

Resumo: Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. 

Palavras-chave: dom; objeto; pulsão; Outro; assentimento. 

FROM MAUSS’S GIFT TO THE UNNAMEABLE OF THE DRIVE 

Abstract: This article aims to revisit the foundations of the gift concept in Marcel Mauss’ theory and articulate its logic with Freud and Lacan’s transmission about the object theory. To this end, it contrasts the usefulness of this concept in the structuring of the first Lacanian clinic with its fundamental disagreement, which resides in the impossibility of the significant determination provided by the access to the symbolic in being able to embrace the real of the drive, since its character is always casuistic, using of the concept of assent to support this argument. 

Keywords: gift; object; drive; Other; assent.

 

Imagem: Renata Laguardia

Introdução

Segundo Lacan, Freud referiu-se ao conceito de objeto em diversos momentos de sua obra, e sua importância percorre toda a psicanálise. Com vistas a retornar a Freud e corrigir possíveis deturpações desse conceito por psicanalistas pós-freudianos, ele enfatiza que falar da relação de objeto é falar de sua falta, posto que esse objeto é inapreensível e que dele temos apenas noções parciais. Tendo entrado na dialética do dom, o objeto não é de relação harmônica com o sujeito, mas, sim, de natureza enigmática, remetendo ao falo simbolizado enquanto significante do desejo do Outro (LACAN, 1956-57/1995). É esse Outro, fonte de dom, que propicia a transmissão de uma falta e o aparecimento do sujeito, efeito da imersão do homem na linguagem e que existe ao preço de uma perda (SANTIAGO, 2008). Porém, ainda que tenha se apoiado no conceito de dom – tema de pesquisa de Marcel Mauss –, Lacan já dava sinais da insuficiência do simbólico em dar conta da pulsão, apontando seu caráter casuístico, que, articulada ao Outro da linguagem, não garante seu assentimento com a lei simbólica (SALUM, 2009). Assim, este artigo visa percorrer o conceito de dom trabalhado por Mauss e sua articulação com a noção de objeto em Freud e Lacan, caminhando para o conceito de assentimento.

Dom em Mauss

Lacan, no Seminário 4, menciona por vezes o conceito de dom, remetendo-o à relação dialética entre sujeito e objeto. Segundo ele, não é possível tomar o objeto de dom sob uma perspectiva harmoniosa, visto que ele se apresenta como a possibilidade de um objeto intermediário que só surge no tensionamento que se abre quando a mãe, em sua relação com o filho, se apresenta como potência real (LACAN, 1956-57/1995). E por que Lacan o utilizou em seu ensino?

Segundo o dicionário, a palavra “dom” se origina do latim dominus, i, que significa “senhor de”, e remete tanto à posse de uma qualidade inata do sujeito, quanto à um título de honra a ele designado exprimindo homenagem e respeito. O dom seria uma espécie de dádiva, de presente, donde sua tomada de posse e usufruto faz do sujeito alguém importante (DOM, 2023). Foi o etnólogo Marcel Mauss, com seu Ensaio sobre a dádiva, que contribuiu para que o conceito tivesse maior consistência nas ciências sociais (MARTINS, 2012). Antes do surgimento da moeda, os serviços, trabalhos e alianças entre os indivíduos e seus clãs eram pautados por um caráter mágico de comum acordo (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), e Mauss expõe um conjunto de pesquisas empreendidas sobre as características do sistema de trocas em sociedades arcaicas (mais especificamente na Polinésia, Melanésia e Noroeste americano), nas quais o objeto de troca tinha seu valor delimitado não em sua utilidade, mas na crença universal de que o espírito do doador ficava na coisa dada. Isso fazia com que os grupos obrigatoriamente se presenteassem e se endividassem, uma solidariedade forçada pela qual quem recebia era obrigado a retribuir. O que era trocado não era apenas de ordem material, mas também se trocavam gentilezas, festas e feiras, evidenciando que a circulação das riquezas era apenas um dos termos de um contrato mais geral e mais permanente (MAUSS, 1923-24/1950). Assim, esse contrato compartilhado pautado num significado oculto resultava na filiação e no funcionamento social entre coletividades, denotando o valor do simbolismo nas sociedades (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011).

Claude Lévi-Strauss é quem escreve a introdução à obra de Mauss, e nela aponta a relevância de seu estudo para a psicanálise e demais áreas. Ele comenta que a recepção do trabalho de Mauss se deu de forma não acolhedora na época, visto que, enquanto escrevia, as ideias de Freud ainda não haviam chegado na França, e seu trabalho foi uma primeira manifestação de evolução objetiva nas ciências psicológicas. Tomando como o marco de seu estudo o apontamento de que o inconsciente e a relação com o outro são o que explicam os fatos sociais, ele chega a referenciar um artigo de Lacan – L’agressivité en psychanalyse, de 1948 – para apoiar tal concepção. Mais à frente, aponta para o papel da linguagem na articulação entre o eu e o outro, sendo possível apenas através dela que o pensamento simbólico se exerça. Para Strauss, o social é uma realidade autônoma, em que o significante precede e determina o significado. No que remete ao trabalho de Mauss, ele inova dizendo que o que está em jogo na dádiva que obriga a dar, receber e retribuir não é, como Mauss apontou, o espírito da coisa que ainda paira sob ela, mas, sim, que esta é a forma consciente pela qual a sociedade pôde apreender algo que está além, no campo do inconsciente (MAUSS, 1923-24/1950).

Dom e o objeto em psicanálise

Santiago (2008) aponta que a importância do dom para a psicanálise vem da forma como Lacan o pôde apreender na pesquisa de Mauss enquanto sistema de trocas simbólicas. O que importa é que o simbólico suprime o gozo sob o objeto, passando a denotar seu caráter mítico. Da perda de gozo, assume-se o significante do desejo do Outro, enigmático, e essa é a dimensão essencial do objeto na experiência analítica. Em Lacan (1956-57/1995), temos que toda relação objetal é fundamentalmente imaginária, e que desde o início das origens dos objetos eles já são considerados outra coisa para além do que são: são objetos trabalhados pelo significante, cuja estrutura é impossível de se extrair.

Associando com o conceito de objeto em Freud, o caráter de mais além da coisa referenciado no dom equipara-se com o objeto que está para sempre perdido, o objeto das primeiras satisfações, que sempre deixa uma hiância entre o que se procura e o que se encontra. No primeiro ensino de Lacan (1956-57/1995), o objeto associa-se ao falo, objeto imaginário privilegiado, que perpassa a relação dual entre mãe e filho. A passagem do objeto de necessidade para o objeto de dom pode ser ilustrada no exemplo da mãe que alimenta o filho com o objeto seio. A mãe, submetida à sua própria falta, nutre um interesse particular pela criança e lhe oferta o seio como objeto simbólico, de dom, visando mais além da necessidade. Porém, a essa mãe simbólica contrapor-se-á a mãe real, que é a face da mãe que ameaça no filho sua possibilidade de querer, tomando-o como sutura daquilo que lhe falta (SANTIAGO, 2008). Miller (2014) sinaliza que frente à potência devoradora da mãe, a criança ou a preenche, ou a divide. Preenchê-la significa suturar sua falta e anulá-la enquanto mulher, ao passo que a dividir seria o seu oposto, não ser o falo que lhe falta e se deparar com a insuficiência em dar conta de seu desejo. Quando a criança não sutura a falta em que se apoia o desejo da mãe, abre-se espaço para que os objetos dessa relação tomem forma de dom.

É nesse jogo de presença e ausência – em que a criança acredita que é amada por si mesma, mas que na ausência da mãe o objeto intermediário sob forma de dom se apresenta – que o falo enquanto objeto imaginário, signo de dom, aparecerá tanto do lado da mãe quanto do lado da criança, orientando a identificação formadora do eu, e alienando não mais ao desejo da mãe, mas, à cadeia significante (BARROSO, 2015). A partir dessa mãe real, ameaçadora e não toda fálica, a criança vai tecer sua questão sobre como saciar o desejo da mãe sem por ela ser devorada, e o seio, os excrementos e o falo entrarão no circuito de mais além do objeto, permitindo o acesso à realidade simbólica e ao desejo (SANTIAGO, 2008). A partir daí, Miller (2014, p. 7) lembra que é “o desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico”, desembocando em uma espécie de construção delirante mítica acerca do enigma do desejo do Outro.

O Outro e o assentimento

Tais associações entre dom, objeto e falo vão ao encontro do que Mauss e Strauss apontaram em seus trabalhos, no sentido que diante uma coletividade há uma organização simbólica inconsciente que não se reduz ao individual e ao concreto das ações, mas que remete à uma submissão, a um mais além compartilhado. Esse mais além pode ser tomado aqui como a lei do Outro, que preexiste ao sujeito e que lhe veda, a partir da perda que há na articulação entre significante e significado, o acesso a uma relação dual com a coisa (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Assim, será a partir do Outro, que se particulariza em cada sociedade segundo sua versão imaginária, que as coisas ganharão valor na cadeia de trocas e onde a estrutura poderá se desenrolar (SANTIAGO, 2008; SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), permitindo ao sujeito apoiar seu fantasma na parte de real que foi destacada deste, e fazer dela seu mito individual (SALUM, 2009).

Porém, é importante apontar que mesmo se utilizando do conceito de dom para pensar o acesso ao simbólico e a relação de objeto, Lacan já no início de seu ensino discordava dos estruturalistas apontando que não basta o Outro preexistente para garantir a admissão à lei (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Além da estrutura significante, é preciso levar em conta uma abertura para o real, pois o mito não o esgota e tem em seu correlato um sujeito com seu corpo, sua pulsão e seu gozo, que não se deixam abarcar por completo pelo significante (SALUM, 2009).

Pensando a causalidade da pulsão em contrapartida com a determinação significante, podemos recorrer ao conceito de assentimento,[1] definido aqui como a crença na estrutura combinatória significante que preexiste (crença no Outro). Há primeiro um reconhecimento desse encontro com o simbólico, mas é preciso também que se tenha uma admissão inicial, o assentimento por parte do sujeito. É a crença nessa inscrição que permitirá a simbolização, uma maneira de se estabelecer dentro da lei do Outro. Assentir à causa é sacrificar-se em nome de um Outro que não existe e que permitirá alguma legalização do gozo (SALUM, 2009).

Assim, na dialética do dar-receber-retribuir, não basta que o simbólico se apresente para que o sujeito assinta em entrar nesse jogo. Existe nesse desenrolar o papel ativo tanto da pulsão quanto do arcabouço simbólico previamente construído, no qual o sujeito será forçadamente inserido. Há o Outro como suporte do significante, e neste ponto Lacan pôde recorrer a Mauss para se apoiar no conceito de dom em jogo nas trocas simbólicas, mas há, também, o sujeito e seu inominável da pulsão e do gozo, que pode assentir ou não com essa inscrição. Portanto, a estrutura significante do Outro e o assentimento do sujeito são suplementares, e não justapostos, e é isso que Lacan aponta desde o início de seu ensino (SALUM, 2009). 

Conclusão

As menções de Lacan ao conceito de dom no que se refere à relação de objeto parecem encontrar apoio no que se pode chamar de mais além da coisa. No estudo de Mauss, o que está em jogo entre os povos é a crença de que o espírito do doador fica na coisa dada, levando, através da obrigação consentida de dar-receber-retribuir, à criação de laços e contratos sociais firmados sob um pacto simbólico. Strauss amplia essa visão ao comentar que, mais além do espírito do doador sempre presente na coisa dada, o que está em jogo nessa dinâmica é o quê de inconsciente os povos apreendem sob a forma consciente do espírito, assinalando o caráter de primazia do significante na construção da realidade e dos fatos sociais (MAUSS, 1923-24/1950). Já em Freud e em Lacan, o que está em jogo na dialética do dom é a nostalgia do objeto perdido, restando dele apenas uma marca, um resto de real que o sujeito circundará em sua crença e em sua busca sem sucesso (LACAN, 1956-57/1995).

Apesar da aproximação com o conceito de dom, aponta-se que já no início de seu ensino Lacan diverge de estruturalistas como Lévi-Strauss ao defender que há no sujeito algo para além da determinação significante, não totalmente abarcado pelo simbólico, e a isso nomeia de real (SALUM, 2009). Segundo Lacan (1956-57/1995, p. 92), é o real que “oferece sempre, no momento exato, tudo aquilo de que se necessita quando se foi, enfim, regulado pelos bons caminhos, à distância correta”. Portanto, é ao real que o simbólico se constitui como resposta, e não, como totalidade (SALUM, 2009).

De Mauss até hoje, o discurso do Outro mudou. Se antes o ideal e a crença num Outro mítico organizavam o mundo, hoje estamos no tempo do Outro que não existe, em que o assentimento declina e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos de gozo ofertados. Não pretendendo apelar para o saudosismo, é preciso verificar como o sujeito se relaciona com esse Outro da contemporaneidade, sem eximi-lo de ser responsável por sua posição, mas, verificando como ele assim o faz (SALUM, 2009). Essa talvez seja a aposta da psicanálise: permitir que algo do singular, do real da pulsão e do gozo apareçam sem desconsiderar o universal da lei e do discurso.

Sob forma de abertura para o real que convoca ao saber fazer, convidamos o leitor ao fim deste artigo a pensar como se daria a leitura dos modos de subjetividade contemporâneos sob a ótica dos conceitos de dom, objeto, Outro e assentimento: estariam eles hoje sustentados pelas mesmas premissas descritivas?


Referências:
BARROSO, S. F. A imagem e o imaginário: quando o sujeito é excluído do imaginário materno e permanece sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2015. Disponível em: www.institutopsicanalise-mg.com.br. Acesso em: 17 de set 2022.
DOM. In: Aulete Digital. 2023. Disponível em: < https://www.aulete.com.br/dom>. Acesso em: 25 maio 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, 45-66, out. 2012. Disponível em: journals.openedition.org. Acesso em: 17 de set. 2022.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva, com introdução à obra de Marcel Mauss por Claude Lévi-Strauss. Lisboa: Edições 70, 1950. (Trabalho original publicado em 1923-24).
MILLER J.-A. A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana On-line, n. 15, 1-15, 2014. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 28 de set. 2022.
SALUM, M. J. G. A psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos, agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea.  Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica), Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
SANTIAGO, A. L. Dom e oblatividade. Scilicet. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda., 2008, p. 97-100.
SARTI, M. M; COUGO, R. H. F. A; TFOUNI, L. V. O simbólico, o imaginário e o dom. Intersecções, v. 4, n. 2, 237-254, nov. 2011. Disponível em: revistas.anchieta.br/. Acesso em: 28 de set. 2022.
[1] Difere do conceito de consentimento por não operar a partir da instauração de um acordo com o campo do Outro, tendo como funcionamento a vertente do gozo (SALUM, 2009).