SUZANA FALEIRO BARROSO
Introdução
Para trabalhar o tema da imagem e do imaginário, escolhi um fragmento clínico do caso de Bruno, um menino autista que demonstra não ter podido se servir de nenhuma imagem estabelecida para construir seu corpo, tampouco obter sua inscrição no desejo do Outro. A construção do caso permitiu correlacionar esse problema ao encontro traumático da mãe com uma imagem do ultrassom do bebê, que contrariava todas as suas expectativas. A mãe de Bruno relata dois momentos impactantes nos quais seu filho foi falado e nomeado pelo discurso médico. O primeiro, por ocasião do exame de ultrassom do bebê, quando o médico lhe disse que era um menino, pois “sempre soube que era uma menina” e se preparou para ter uma menina. A imagem do ultrassom não correspondia, definitivamente, à imagem tecida pela fantasia materna. O segundo momento impactante foi quando recebeu o diagnóstico de autismo do filho. “Quando o médico me disse que era síndrome de Asperger não fiquei tão atordoada como quando o médico falou que era menino”.
O que foi para essa mãe o encontro com a imagem do ultrassom do bebê? Decepcionada com o exame, ela não aceitou o resultado, demandou novo exame e não queria abrir mão de sua inexplicável certeza. Vemos aqui uma discordância total entre a imagem apresentada à mãe e o seu imaginário, isto é, sua fantasia sobre o bebê, precisamente sobre o sexo do bebê. Segundo o psicanalista Roberto Assis, durante nossa conversa no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina, é importante pensar o estatuto dessa imagem pelos efeitos que ela produziu junto ao sujeito. Ele nos envia ao texto de Marie-Hélène Brousse (2014), “Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o Estádio do Espelho”, publicado na Opção lacaniana on-line, o qual discute o “poder real de uma imagem real”. Apesar de ser apenas uma imagem, ela não deixa de ter consequências reais, como no caso relatado, em que a imagem do ultrassom exerce um poder real traumático sobre a subjetividade materna.
A Criança e o Imaginário Materno
No texto de 1914, “Introdução ao narcisismo”, Freud comentava as relações entre pais e filhos, explicando o amor e o investimento libidinal dos pais nas crianças, segundo a política dos ideais, o que se repercute na relação do eu com sua imagem. “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (FREUD, 1014/1976, p. 108). A transformação em jogo do lado dos pais implica a substituição de uma satisfação autoerótica pelos ideais civilizatórios, que visa a amalgamar os ideais com as pulsões. A atitude dos pais afetuosos para com os filhos é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. Assim, eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele, o que pode explicar a negação da sexualidade nas crianças. Em nome da criança, os pais renovam as reivindicações por privilégios aos quais foram forçados a renunciar.
A criança terá mais divertimento que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação — ‘Sua majestade o bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos (FREUD, 1914/1976, p. 108).
Desse modo, supõe-se que a criança concretizará os sonhos dourados aos quais os pais jamais tiveram acesso. Ao menino caberá o destino de herói, e à menina, o de princesa. Podemos perguntar: qual a lógica dessa situação na qual a criança reinaria como ideal do eu do casal parental? Trata-se do regime de gozo paterno, segundo o qual é a política do ideal do eu que governa os laços de família com base na estrutura edipiana enquanto matriz organizadora do destino das pulsões tanto para o sujeito masculino quanto para o sujeito feminino.
Para Freud, “além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social, constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação” (FREUD, 1914/1976, p. 119). Em contraponto com a formulação freudiana descrita antes, pode-se pensar outra, mais lacaniana, a saber, “sua majestade o mais-de-gozar”, isto é, a criança capturada no gozo próprio e no de seus pais, porém como objeto e não como ideal, a exemplo de Bruno.
Com a expressão “sua majestade o bebê”, Freud (1914) propõe uma fórmula para situar a criança, seu lugar e seu valor na estrutura familiar quando ela é aí inserida. A imagem da “criança-majestade”, como toda imagem, mostra e esconde muitas coisas. Como toda imagem, ela também presentifica uma perda do ponto de vista do mundo real, pois a imagem jamais traduz completamente o que ela representa. O que escapa à captura da imagem é o resto que causa sua busca, que constitui seu valor libidinal e seu estatuto de recurso precioso para o sujeito para a construção do corpo e do laço social.
Há duas possibilidades de inscrição da criança no desejo materno conforme a particularidade da relação da mãe com uma das imagens estruturantes do campo da fantasia, a saber, a imagem fálica. A criança pode ter função de metáfora do amor da mãe pelo pai da criança. Enquanto esse objeto metafórico, ela é correlacionada ao dom fálico prometido pelo pai, sendo, portanto, apreendida na equação simbólica bebê = falo. Por outro lado, a criança pode ter a função de metonímia da demanda de falo que a mãe não tem e, enquanto objeto metonímico, ela é correlacionada às decepções vividas na relação da menina à sua própria mãe na etapa pré-edipiana propriamente dita.
A operação de falicização da criança, isto é, a conexão da criança real ao valor fálico que ela pode ter para a mãe, não é completa e deixa sempre um resto. De uma parte, a criança é semblant de um ideal e, de outra parte, ela permanece como objeto real. A falicização inscreve a criança num triângulo imaginário — mãe-criança-falo —, cujas relações têm sua coerência dada pela amarração proveniente do quarto elemento, o pai.
Trata-se de uma relação que se organiza em torno de uma falta, a falta fálica materna. Na tríade imaginária mãe-criança-falo encontramos, no mínimo, duas questões: a relação da mãe com o falo e a da criança com o falo. A relação da mulher com o falo está na base da função da maternidade, isto é, do Desejo da Mãe, e nos permite compreender as razões que levam uma mulher a acolher uma criança. Para uma mulher, de Freud a Lacan, o desejo de uma criança se apoia na reivindicação fálica feminina. Disso decorre que o ponto de partida da função do falo para o sujeito é o Desejo da Mãe. É pela via do desejo de falo da mãe que ela estabelece uma relação com a criança, e que esta, por sua vez, é confrontada com o significante falo na sua polaridade imaginária e simbólica. No início temos a relação da tríade mãe-criança-falo articulada pelo falo imaginário. A entrada do quarto elemento, o pai, introduz o estatuto simbólico do falo, condição de possibilidade do acesso do sujeito à posição sexuada.
Do fato que a mãe tenha certa relação com o falo, decorre que é nessa relação que a criança tem que se fazer valer. Trata-se então de como a criança experimenta o falo como o centro do Desejo da Mãe e de como vem a descobrir que o que é amado pela mãe é uma imagem fálica para além dela, criança. Encontramos aqui uma correlação entre a criança e o falo, em termos de conjunção e disjunção: criança falo. No caso de Bruno, verificamos um fracasso dessa correlação, com grande impasse na operação de falicização da criança.
No plano imaginário da dialética fálica, as relações entre mãe e criança são marcadas pela sedução como também pela agressividade, rivalidade e até angústia. O falo enquanto imaginário é tomado no jogo de presença e ausência. É um elemento móvel que circula entre mãe e criança, que pode ser tanto o falo da mãe quanto o da criança. Trata-se do jogo de engano quanto à falta do falo na mãe. Há, no entanto, uma consequência estruturante dessas relações, qual seja, o falo imaginário orienta a identificação formadora do eu, aquela que se monta no estágio do espelho e que será abordada a seguir.
A Constituição do Corpo no Espelho do Outro
O artigo de Freud “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1976) descreve os fundamentos da subjetividade infantil por meio do acesso a uma identificação com uma imagem organizadora do eu e da vida libidinal. Trata-se da imagem do corpo que confere ao eu a sua primeira forma e lhe permite situar-se do ponto de vista da alteridade, distinguindo o que é do eu e o que não é. Essa imagem promove a unificação da dispersão pulsional do autoerotismo obtida pelo eu, com consequente domínio do corpo e do outro, por meio de uma identificação estruturante.
A teoria do narcisismo levou Lacan a propor o dispositivo do espelho como operador dessa primeira identificação alcançada pelo acesso a uma imagem. O conjunto do dispositivo especular descrito por Lacan contém, primeiramente, o espelho côncavo e, em seguida, o espelho plano, que correspondem respectivamente às imagens reais e às imagens virtuais e implicam uma topologia da subjetividade designada como topologia de superfície. A formação da imagem real e da imagem virtual opera, respectivamente, na base da formação da imagem do próprio corpo e da imagem do corpo do Outro. A imagem do próprio corpo é a imagem especular, a matriz do eu, que implica a ideia de si mesmo como corpo. A imagem do corpo do Outro é aquela cuja especificidade é apresentar ao sujeito uma falta, a castração, através do encontro do sujeito com o que não é especularizável, um buraco na imagem; encontro que se refere, essencialmente, à diferença de sexos.
De início, Lacan destacou como o recurso à imagem se contrapõe a um fator de ordem biológica, isto é, a condição de prematuração na qual nasce o ser falante. O funcionamento neurofisiológico ainda não permite ao eu integrar as funções motoras, aceder a um domínio real do corpo e promover a satisfação de suas necessidades no infans. É essa prematuração que explica a preferência pela imagem, uma vez que somente ela, com seus efeitos de ilusão, atenua o desamparo primordial do ser falante. Na verdade, a imagem do quadro “Sua majestade o bebê” esconde todo o desamparo infantil decorrente da prematuração real.
A alienação à imagem é solidária da alienação à cadeia significante. A imagem da criança é assujeitada ao ponto de vista do Outro, o que se encontra representado no esquema ótico pelo espelho plano. A mensagem do Outro constitui uma espécie de molde da imagem do eu. A criança tenta igualar seu eu a essa imagem para se sentir amável. A criança só se vê no espelho através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte de uma identificação simbólica ao ideal do eu. O poder da imagem reside em sua eficácia simbólica, na relação com os significantes que conformam, no corpo, a unidade imaginária que chamamos eu.
A criança se fixa na imagem que ela é sob o olhar do Outro, ponto de onde ela pode se ver amável. Isso quer dizer que a imagem do eu ideal somente se legitima e se estabelece mediante o reconhecimento de um terceiro, o Outro, lugar de onde a criança espera que seu ser seja colocado sob uma perspectiva norteadora do ideal do eu. É pela intervenção do espelho do Outro, ao nível do espelho plano, que a imagem real ganha o estatuto de imagem virtual, i’(a), correspondente ao narcisismo secundário. Um nó então se faz entre o real do corpo do qual o sujeito não pode ter ideia, o imaginário da forma que aparece no espelho e o sentido simbólico que o Outro lhe dá. Ter um corpo supõe que esse nó se faça (NOMINÉ, 1999).
Do estádio do espelho decorre uma noção de corpo equivalente ao imaginário. A primeira dentre as teses lacanianas sobre o corpo demonstra a solidariedade entre o corpo e o imaginário, a saber, não se tem um corpo sem a imagem do corpo. O acesso à imagem na infância é fundante da forma do corpo, de uma identificação, do laço ao outro e de um modo de gozo. A imagem é um elemento não anatômico, não incluído entre os órgãos do corpo, um elemento extracorpo, mas que, no entanto, é a condição para a constituição desse corpo. O estádio do espelho tem um duplo valor, a saber, histórico e libidinal. Do ponto de vista histórico, marca uma virada decisiva no desenvolvimento mental da criança, além de representar uma relação libidinal essencial com a imagem do corpo. E é por isso que podemos dizer que a imagem do corpo é uma das imagens rainhas no tanto que ela viabiliza a localização da libido numa imagem, portanto, fora do corpo real.
A questão principal que as psicoses, particularmente a esquizofrenia e o autismo, colocam à tese do corpo imaginário é a de como se ter um corpo sem o recurso do espelho plano do Outro. Sem a imagem, portanto, sem o semblant, o corpo tende à dispersão característica do real. O psicótico sofre a constante ameaça de que seu corpo não se mantinha junto enquanto uma unidade. Ele se depara com a iminência permanente do corpo restar como peça solta, disjunta do todo. Isso foi descrito por Lacan, na década de 50, como uma vicissitude particular do estádio do espelho e, duas décadas depois, como sendo a própria desamarração borromeana.
O Espelho Real Do Autista E O Regime Do Um Sozinho: O Sujeito Sem O Recurso De Uma Imagem Estabelecida
Se a imagem do corpo é o que constitui o modelo do mundo para o sujeito, como fica o mundo do autista? Como o sujeito poderá se orientar e se deslocar no espaço sem a imagem? No autismo, diz Éric Laurent, o sujeito permanece “sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida” (2014, p. 97). A não formação dessa imagem, i(a), que implica as fronteiras do corpo, pode ser explicada também “como um problema de fronteiras: essas crianças teriam uma falha no balizamento das fronteiras entre seu corpo e o corpo do Outro” (SOLER, 1999, p. 227). O problema na constituição da imagem para o autista é que o resto que sobra da tradução do corpo em imagem e que dá à imagem seu valor libidinal não opera no autismo. O não investimento libidinal na imagem causa o desinteresse do sujeito por sua imagem no espelho.
As condições necessárias à formação da imagem especular implicam uma superfície que possa refletir a imagem, ou seja, uma superfície que suporte a projeção e a representação. A função do conjunto dos dispositivos do espelho introduz a dimensão de um lugar outro, espaço virtual em oposição ao espaço real, espelho plano em oposição ao espelho côncavo, ou antinomia entre i(a) e i’(a). A estrutura do espelho requer a duplicidade abolida pelo autista devido a sua submissão ao império do Um sozinho, cuja lógica é, portanto, avessa à estrutura especular. Uma superfície unilateral, sem duplicidade, não se especulariza. A superfície de uma só face é correlata ao funcionamento do signo fora da lógica oposicional do significante, isto é, apenas enquanto significação absoluta, mecânica ou imperativa.
Para oferecer à criança as condições favoráveis à duplicidade especular, torna-se preciso constituir uma espacialidade que indique outro lugar, ou seja, alojamento da alteridade. Introduzir a dimensão da outra coisa no regime do Um sozinho. A introdução da duplicidade leva à demarcação de um espaço especular. “No ser vivente, o enlaçamento do simbólico a outro plano, redobramento do espaço na imagem — sob o modo de uma inversão — é o que gera o nó do especular” (VITA, 2008, p. 24, tradução nossa). Esse nó não se amarrou no caso do menino Bruno. Por estar tomado no registro do Um sozinho, sem o recurso de uma imagem estabelecida, Bruno vai recorrer à tela e ao mundo virtual. Ele demonstra grande interesse pela pesquisa de imagens na internet, fazendo do computador seu objeto autístico privilegiado. De modo bastante singular, ele visita repetidas vezes cemitérios, cenários de enterro e de nascimento e passa a falar de seus parentes que já morreram, indicando com suas pesquisas sobre os mortos e os vivos numa tentativa de amarrar os elementos dispersos do corpo e conectá-lo ao campo do Outro.
No decorrer das sessões de Bruno, para quem disponibilizamos o computador desde que descobrimos o valor desse objeto para o menino, ele escolhe ser um doublé, particularmente das cenas do filme “Meninas super-poderosas”, que passam a funcionar como seu duplo real. O objeto autístico, o duplo real e o engajamento da voz como doublé fazem parte da construção do corpo para esse autista. Sem um operador simbólico da falta capaz de permitir a interrogação e a significantização do desejo do Outro, sem a marca do traço unário que faz consistir a imagem do corpo, sem um discurso estabelecido, Bruno se faz doublé e rompe seu mutismo, podendo começar a falar de si para o Outro.