PAULA PIMENTA
O caso de Ciroi, menino de cinco anos que nos foi apresentado pela equipe de saúde mental de um serviço público da cidade de Belo Horizonte, trouxe uma pergunta diagnóstica que levou a este trabalho. Ao encaminhá-lo ao referido serviço, a neurologia elaborou a hipótese diagnóstica de síndrome de Asperger. Em sua posição diante do Outro, demonstrada no dispositivo da Apresentação de Pacientes, Ciro nos fez considerar o diagnóstico de psicose e não de síndrome de Asperger. Mas qual a diferença entre eles?
A Síndrome De Asperger E O Campo Do Autismo
Foi em 1944 que o pediatra austríaco Hans Asperger descreveu uma condição que denominou psicopatia autística[2]. Essa publicação, editada ao final da Segunda Guerra Mundial por um autor germânico, ficou restrita à língua alemã até 1971, quando foi discutida, em inglês, por Van Krevelen[3], que a comparou com a descrição feita um ano antes, em 1943, por Leo Kanner, do autismo precoce infantil. Mas foi somente em 1981 que o estudo de Asperger se estendeu à comunidade científica, através da psiquiatra britânica Lorna Wing, que se tornou a grande divulgadora de suas ideias ao escrever seu trabalho Asperger’s syndrome: a clinical account.[4]
Acredita-se que Asperger desconhecia o trabalho de Kanner e que se utilizou do adjetivo “autista” de maneira diferente de seu colega austro-americano. Ele nomeava de psicopatia autística uma síndrome infantil que apresentava desvios importantes nas áreas de interação social e comunicação e nos jogos simbólicos, tal como ocorre no autismo de Kanner. Essas crianças, no entanto, apresentavam, de acordo com suas palavras, inteligência normal, boa criatividade e capacidade imaginativa. A fala também não se encontrava ausente, apesar da possibilidade de sua fluência se estabelecer mais tardiamente, por volta dos três ou quatro anos de idade. Não era incomum o aprendizado da leitura se dar espontaneamente, induzindo sua inscrição no rol dos superdotados.
A síndrome de Asperger apresenta dificuldades motoras, com nítido desajeitamento no andar, o que não é característico do autismo de Kanner (SCHWARTZMAN, 1991). A comunicação verbal daqueles pacientes demonstra-se por um extenso vocabulário, com uso de palavras incomuns para a idade da criança e construção de frases rebuscadas, configurando o que caracterizaria uma fala pedante. O bom desempenho da comunicação verbal é, no entanto, apenas aparente, pois as palavras e frases são utilizadas de maneira repetitiva e estereotipada, acompanhadas de alterações no ritmo, na entonação, na altura e no timbre da fala. A compreensão da linguagem também se encontra atingida, havendo um entendimento literal do que lhes é dito. Em paralelo, apresentam mímica facial reduzida e gestos pobres. Há a presença de contato visual, mas não de comunicação visual; não consideram ou mesmo percebem as expressões faciais de seus interlocutores. Há uma delimitação de um campo peculiar de interesse, o qual se atém, entretanto, a assuntos muito específicos e não usuais em sua faixa etária, como línguas mortas, tabelas numéricas, máquinas, meteorologia, calendários, entre outros. Vê-se uma superestima da inteligência dessas crianças por seu vocabulário rebuscado e interesses proeminentes.
Asperger enfatizava a inteligência preservada dessas crianças, sua excelente memória, e lhes concebia um bom prognóstico. Ao tomar conhecimento dos trabalhos de Kanner sobre o autismo infantil, insistiu que os casos que descrevera diferiam muito daqueles. A despeito da opinião de seu fundador, a maioria dos autores considera a síndrome de Asperger uma forma atenuada do autismo infantil, similar em suas manifestações, porém com sinais e sintomas mais sutis (SCHWARTZMAN, 1994).
Foi em função dessa similaridade que o DSM-Vv decidiu inserir a categoria da síndrome de Asperger no conjunto maior do autismo infantil. Essa inclusão se ampara no continuum patológico proposto por Lorna Wing (1993) — por ela chamado espectro das desordens autísticas e hoje consolidado como espectro autístico —, em que a síndrome de Asperger seria o extremo mais desenvolvido do autismo infantil de Kanner.
Dentro dessa concepção de um espectro, que abrange um polo com o laço social um pouco mais estabelecido, e outro com um laço social frouxo ou ausente, cabe a tentativa de correlação entre a síndrome de Asperger e os autistas de alto-funcionamento, também denominados autistas-sábios ou autistas-eruditos (autistes savants).
Alguns clínicos insistem em diagnosticar diferencialmente a síndrome de Asperger do autismo, inclusive do autismo de alto-funcionamento, objetando que, além do Q.I. preservado e da ausência de todos os critérios diagnósticos de autismo — que seriam também observados no autismo de alto-funcionamento —, na síndrome de Asperger não se sobressairiam o atraso de linguagem e as anormalidades na comunicação. Já outros autores justificam a falta de empatia e de sentimento por outras pessoas, os estilos desviantes de comunicação, os interesses intelectuais incomuns e constritivos e os apegos idiossincráticos a objetos, apresentados pelos pacientes Asperger como sendo “uma variação mais benigna do autismo” (RUTTER, 1993, p. 75).
Síndrome De Asperger E Autismo De Alto-Funcionamento Para O Campo Freudiano
A discussão sobre a apropriação das nomenclaturas diagnósticas não passou ao largo da psicanálise de orientação lacaniana. Éric Laurent e Jean-Claude Maleval foram dois autores que se interessaram pela diferenciação entre elas, cada um a seu modo.
No que diz respeito à transferência no autismo, Laurent (2012) se mostra um tanto criterioso para afirmá-la, pois o autista, aparentemente, não se dirige ao Outro. E a transferência é um laço com o Outro. Indica que é preciso que o analista, no tratamento, trabalhe orientado pelas condições que possibilitem um laço com o autista, que seriam aquelas relativas aos dispositivos de tratamento da instância da letra[6].
Para Maleval (2009a), um canal para o estabelecimento da transferência seria dado pelo duplo. Uma de suas elaborações é a função do Outro de síntese. Este se configura sob duas modalidades: fechada e aberta. Fechada ao laço social, mas como recurso orientador para o autista, ou aberta ao mundo e à interação. Um enquadramento do gozo só se faz possível pela aquisição de algum dos dois modos.
Na proposta de Maleval (2009b), o Outro de síntese fechado é característico dos autistas eruditos (autistes savant), e o Outro de síntese aberto caracteriza a defesa dos autistas de alto nível[7] (haut niveau), que Laurent (2012) faz coincidir com os portadores da síndrome de Asperger. Por possuírem a mesma função de fazer vincular o autista ao mundo, as duas modalidades do Outro de síntese possibilitam que uma passagem entre elas possa ocorrer de maneira gradual. No entanto, é bastante incomum alcançar o modo aberto do Outro de síntese. Essa transição pode ser constatada pelas narrativas dos autistas de alto funcionamento, quando descrevem suas ilhas de competência da infância ou seus gostos por brincadeiras com a linguagem, que caracterizam o Outro de síntese fechado, prévio ao Outro de síntese aberto elaborado por eles posteriormente.
O Outro de síntese fechado se compõe de “um saber fechado e congelado, que lhe permite se orientar em um mundo rotineiro, limitado e sem surpresa” (MALEVAL, 2009b, p. 194), ordenando um mundo solitário e bastante circunscrito. A ele se relacionam os recursos à língua privada, idiossincrásica e com neologismos, apartada do Outro e envolvida pelo gozo do sujeito. Por outro lado, o Outro de síntese aberto é evolutivo, adquirindo determinada capacidade dinâmica que permite ao sujeito, “ainda que não sem esforços” (MALEVAL, 2009b, p. 194), se adaptar a novas situações e demonstrar uma criatividade. É o que ocorre com Temple Grandin, ao cunhar uma expressão criativa para designar-se como um “antropólogo em Marte” (SACKS, 1997). Por sua capacidade de relação, o Outro de síntese aberto se serve da língua do Outro, ainda que reduzida aos signos talhados do gozo, o que Maleval identificou como sendo uma língua funcional, afastada dos afetos.
Se, tradicionalmente, o centro de uma análise promove a interpretação da relação do sujeito com o objeto de seu gozo, considera-se que, com as crianças autistas, é necessária uma “contra-análise”. Nesses casos, o gozo não deve ser interpretado, mas, na proposta de Maleval, domesticado. Essa é a função do Outro de síntese: localizar o gozo do sujeito.
O Caso Ciro: Síndrome De Asperger Ou Psicose?
Ciro é uma criança “estranha” em seu modo de apresentação, mas que se utiliza da fala. Até mesmo consegue ler, com um uso bem singular dessa habilidade, adquirida aos quatro anos.
Ser estranho no trato com as coisas do mundo, mas conseguir interagir de algum modo pelo uso da linguagem e por interesses delimitados pode ter sido o que levou a neurologia a considerar o diagnóstico de síndrome de Asperger para essa criança. Viu-se que diagnosticar como Asperger, nos dias de hoje, é pensar em um autismo com inteligência preservada, uso da linguagem e capacidade de se relacionar com o mundo, mesmo que de maneira atípica e estranha.
Porém, a psicanálise se utiliza de outro critério para realizar o diagnóstico: a posição do sujeito diante do Outro e sua relação com o saber e com o gozo.
Diferentemente de um autista, Ciro faz um laço com o Outro, se interessando por seus objetos (sua casa, suas fotos do celular, sua netinha[8], sua bolsa…)[9]. Mesmo os autistas com síndrome de Asperger demonstram certo corte nesse laço com o Outro, apesar de terem recursos mais elaborados promovidos pelo Outro de síntese aberto, de acordo com a teorização de Maleval.
O retorno do gozo, em Ciro, vem no corpo, promovendo a agitação corporal que o caracteriza e que nos remete à descrição que Ziraldo dá de seu Menino Maluquinho, que tinha “vento nos pés”, não mais se encontrando no lugar de onde se expressara segundos atrás.
Tanto para o autismo quanto para a psicose na criança, o trabalho do sujeito com os objetos pulsionais será privilegiado. O olhar, a voz, os alimentos, os excrementos têm um estatuto próprio e nos indicam o modo como a criança é afetada por eles. No caso de Ciro, vê-se como a criança se mostra sensível à voz do Outro e como parece ser, por essa via, sua tentativa de se orientar no mundo.
Considerações Finais
Este breve trabalho, escrito para a discussão clínica do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, adverte que alguns casos de psicose infantil podem estar sendo classificados “cientificamente” como síndrome de Asperger. Uma vez que a categoria de psicose na criança foi banida das classificações psiquiátricas atuais, ela acaba por se ver incorporada, desavisadamente, por alguma outra que lhe seja assemelhada.
A psicanálise, atualmente, tende a não confundi-las, mas não deixa de indicar suas semelhanças e as sutilezas que as diferenciam.x O que importa, entretanto, para o psicanalista, é a construção do caso com base na posição do sujeito, nas soluções que ele encontra para lidar com o mundo e seus objetos e em seu trabalho de apropriação de um corpo que lhe é, sempre, estranho.
(1) Nome fictício.
(2) ASPERGER, H. Psicopatias Autísticas na Infância. Arch. Psychiatr. Nervnk., 1944. 117:76-136. (título traduzido do alemão, para melhor entendimento).
(3) VAN KREVELEN, D.A. Early Infantile Autism and autistic psychopathy. J. Autism Childhood Schizophrenia, 1971. 1(1):82-86.
(4) WING, L. Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychol. Med. 1981. 11:115-129.
(5) O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da Associação Americana de Psiquiatria, é um dos tratados diagnósticos mais utilizados pela psiquiatria no mundo, ao lado do CID (Classificação Internacional das Doenças), estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
(6) Como exemplo tem-se a escrita, o cálculo, o desenho, dentre outros.
(7) Ou de “alto funcionamento”, na expressão mais corrente em português.
(8) Ciro perguntava com frequência à entrevistadora sobre seus objetos, inclusive sobre “sua netinha” (sic), que ele supunha que ela tinha.
(9) Esses foram elementos presentes na Apresentação de Pacientes realizada com a criança, a qual, no entanto, não será detalhada aqui.
(10) Sobre esse assunto, o leitor pode consultar o texto de PIMENTA, P. & DRUMMOND, C. “Pode o autismo ser diferenciado da esquizofrenia?”, publicado no Almanaque Online no 5, de jul/dez 2009.