FREDERICO FEU DE CARVALHO
O programa de trabalho anunciado para o VII Enapoli aponta um redirecionamento da investigação no Campo Freudiano, enfocando, desta vez, o registro do imaginário e sua inflação no século XXI. É o que podemos depreender das proposições que J-A Miller (2014) desenvolveu em sua conferência de apresentação do tema do X Congresso da AMP, “O inconsciente e o corpo falante”, pronunciada em Paris, em abril de 2014. Além da ênfase dada ao registro do imaginário, esse redirecionamento também privilegia o corpo falante (parlêtre), o corpo enquanto goza-de-si, estabelecendo diferenças importantes tanto em relação ao corpo metafórico da histeria quanto em relação ao corpo tomado na vertente especular e narcísica do gozo da imagem.
Para apresentar a temática do VII Enapol – O império das imagens, que vai orientar nossa pesquisa no Núcleo de Psicose do IPSM-MG este ano, pretendo comentar, de forma abreviada, dois textos de referência: “A imagem rainha”, de J-A. Miller (1997), e “O estádio do espelho como formador da função do eu”, de J. Lacan (1949/1998). Abordar o imaginário no século XXI pressupõe fazer o percurso que pode ser sintetizado pela introdução feita por Miller em sua conferência de 2014:
Freud inventou a psicanálise, se assim podemos dizer, sob a égide da rainha Vitória, paradigma da repressão da sexualidade, ao passo que o século XXI conhece a difusão maciça do que é chamado de pornô, ou seja, o coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a cada um pela internet por meio de um simples clique com o mouse. De Vitória ao pornô, não apenas passamos da interdição à permissão, mas à incitação, à intrusão, à provocação, ao forçamento. O que é o pornô senão uma fantasia filmada com uma variedade própria para satisfazer os apetites perversos em sua diversidade?
(…) A escopia corporal funciona na pornografia como uma provocação a um gozo destinado a se fartar sob o modo do mais-gozar, modo transgressivo em relação à regulação homeostática e precária em sua realização silenciosa e solitária. (…) O que diz, o que representa a onipresença do pornô no começo deste século? Nada se não: a relação sexual não existe. (MILLER, 2014)
No curso destes últimos 20 anos, passamos, portanto, do gozo privativo da fantasia para a ostentação e exibição de imagens de incitação do gozo, com repercussões evidentes sobre a sua regulação. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de que, entre a imagem rainha[2] e o império das imagens, passamos de uma serventia das imagens para a economia psíquica para uma maior servidão, caracterizada pela inflação das imagens pornô e por sua intrusão, tornando mais difícil a regulação pulsional.
A Imagem Rainha
Podemos tomar como ponto de partida para o comentário do texto de Miller a questão por ele proposta: haveria, no registro do imaginário, “imagens rainhas”, algo equivalente aos significantes mestres no registro do simbólico?
Na perspectiva freudiana, há um claro privilégio do simbólico. Na interpretação dos sonhos, por exemplo, Freud parte do relato do sonho e não das imagens do sonho, embora o sonho seja uma experiência predominantemente sensitiva e visual. Essa perspectiva está em contraste com a abordagem junguiana, que propunha um valor próprio da imagem inscrita no inconsciente.
Como Lacan esclarece em sua releitura estruturalista de Freud, as imagens do sonho funcionam como significantes. Elas não valem por si mesmas, mas pelo seu valor metafórico ou metonímico, sendo preciso percorrer a cadeia significante da livre associação para que se proceda à sua interpretação. Sendo predominantemente uma “realização do desejo”, o sonho depende de uma encenação, tal como uma fantasia. Mas o essencial, o ponto de partida do trabalho do sonho, assim como das fantasias, é um pensamento de desejo. É esse pensamento que é visado no curso do trabalho interpretativo a partir do duplo procedimento que vai da ampliação do sentido do sonho manifesto, sua expansão imaginária, à redução simbólica referida ao pensamento latente do sonho.
O campo do imaginário é caracterizado por sua vastidão. Podemos dizer que a proliferação está para o imaginário assim como a redução está para o simbólico, de forma que o simbólico seria uma espécie de detenção, de ponto de basta, em relação a essa proliferação do imaginário.
Retornando então à questão, podemos falar de imagens rainhas na perspectiva psicanalítica, de uma redução do mundo das imagens em que estamos mergulhados a algumas imagens cruciais? Tomando como referência o texto de Miller, podemos distinguir três imagens rainhas:
1- a primeira imagem rainha se refere ao corpo próprio, ou seja, “a ideia de si mesmo como corpo”, segundo a definição de Lacan. Trata-se, portanto, da imagem do corpo como matriz do Eu, à qual Lacan dá a notação i(a). Seu operador paradigmático é o espelho, e seu efeito imaginário é o duplo. Sua característica é dar ao sujeito uma visão de seu corpo como uma totalidade, no sentido de uma Gestalt (uma forma que se completa), e seu efeito no sujeito é de júbilo.
2- a segunda imagem rainha é a imagem da falta, a castração, cujo suporte é dado pela visão do corpo da mãe e pela ideia de que falta ali alguma coisa. Sua notação lacaniana é o (-fi). Temos, nesse sentido, alternância entre ausência-presença, o que, de certa forma, já nos remete ao simbólico. Aqui não há júbilo, mas horror. Por isso, o seu operador essencial é o véu, aquilo que recobre essa falta, em sua função de velar o nada, por assim dizer, a mesma função que podemos atribuir, por exemplo, ao vestuário. O campo perceptivo é orientado pelo que não se quer ver tanto quanto por aquilo que se deseja ver. Seu efeito no campo imaginário, portanto, é uma escamoteação e a supressão de uma imagem real, se pudermos nos referir assim a essa imagem, que é, na realidade, a falta de uma imagem, o furo da castração materna, e que surpreende o sujeito no lugar onde ele esperava encontrar a imagem do falo.
3- a terceira imagem rainha pode ser diretamente deduzida do véu, se acrescentarmos a este sua característica de poder ser também um ornamento (uma roupa serve tanto para cobrir e esconder quanto para embelezar). Trata-se do falo simbólico, enquanto “forma erigida e transformada em significante, conservando todas as suas articulações imaginárias” (MILLER, 1997, p. 579). Miller esclarece que “foi inclusive a propósito do falo que Lacan arriscou a expressão significante imaginário” (MILLER, 1997, p. 579). Sua imagem paradigmática é o fetiche. Refere-se, portanto, a uma imagem colocada em lugar da falta para obturá-la e que assume um valor fálico, ou seja, um valor de substituição e de tamponamento do furo. O recobrimento da falta aponta, nesse sentido, para a função de denegação que caracteriza o inconsciente. Algo é substituído. Mais precisamente: algo é recuperado. Se o encontro do sujeito com a primeira imagem produz um júbilo, se o encontro com a segunda imagem produz o horror, em relação ao fetiche podemos falar de uma recuperação de uma parcela do gozo perdido. É o que Lacan chamou do gozo fálico. É como passar por debaixo do véu para ir depositar alguma coisa no lugar da falta. Assim, o que provoca horror aparece sob a vestimenta do fetiche, do belo ou da fantasia, ou seja, como uma imagem à qual podemos agregar um mais-de-gozar. Seu operador lógico não é o espelho nem o véu, mas o quadro, ou melhor, o enquadre, a janela na qual se projeta a cena da fantasia que serve de cenário à imagem fetiche. Contrariamente ao espelho, que reflete uma imagem, uma janela pressupõe o furo onde se projeta a tela da fantasia. A variedade do que pode vir a assumir valor fálico para um sujeito é enorme: um carro para um homem ou um vestido para uma mulher, por exemplo, se nos referimos ao campo dos objetos de consumo que vêm agregar esse valor fálico à imagem de si; mas, também, um traço, uma forma ou mesmo um gesto que desperte o desejo em relação a um parceiro sexual, se nos referimos aos signos do objeto perdido que julgamos reencontrar no campo do Outro.
As imagens rainhas são, portanto, imagens que têm valor de significantes, na medida em que podem ser metaforizadas e metonimizadas. Mas elas “não representam o sujeito”, como faz o significante – que representa o sujeito para outro significante – e, sim, “se coordenam ao seu gozo” (MILLER,1997, p. 580). A imagem rainha é aquela que “realiza uma captura significante do gozo”, diz Miller (1997, p.580). É quando imaginário e gozo se enlaçam.
O Estádio Do Espelho
Proponho trabalhar a assunção para o ser falante da sua primeira imagem rainha, a imagem de si como um corpo, tomando como referência o texto de Lacan “O estádio do espelho como formador da função Eu”. Para tanto, vou me referir a outra citação da conferência de J-A Miller, “O inconsciente e o corpo falante”:
O imaginário é o corpo. E [essa equivalência] não é isolada; seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência. Em primeiro lugar, o corpo nele se introduz, inicialmente, como imagem, imagem no espelho. Disso decorre o fato de Lacan dar ao eu [moi] um estatuto que se distingue singularmente daquele que Freud lhe reconhecia em sua segunda tópica. Em segundo lugar, é ainda com um jogo de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalecente entre o Ideal do eu e o eu ideal, cujos termos ele toma emprestado de Freud, mas para formalizá-los de maneira inédita. Em terceiro, essa afinidade entre o corpo e o imaginário é também reafirmada em seu ensino dos nós. A construção borromeana enfatiza que é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo. Em quarto lugar, mais além, o corpo condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo. Aqui estão muitas razões para escolher que o próximo Congresso faça variar o tema do corpo na dimensão do imaginário. (MILLER, 2014)
Sabemos que o imaginário é uma das categorias lacanianas, ao lado do simbólico e do real, com os quais ele se enlaça, mas podendo também deles se desprender. Podemos dizer que a teoria lacaniana está sustentada por esta tríade, que ela perdura no ensino de Lacan, apesar de continuamente modificada, apesar de Lacan ter dado ênfase diferente a uma ou outra dessas categorias no decorrer de seu ensino. Como categoria lacaniana, o imaginário deve ser distinguido da faculdade de imaginação. Basta, para isso, lembrar que, de modo geral, a imaginação está referida à realidade por sua contraposição a ela, enquanto o imaginário lacaniano é o que sustenta o próprio campo da realidade para um sujeito. Por outro lado, o imaginário lacaniano se caracteriza por ser um modo de tratar, de se defender, de tornar suportável o real, se definimos o real como o impossível, aquilo que não tem imagem ou representação. Essa característica do imaginário é importante para nos orientarmos na clínica da psicose, na qual temos uma maior dificuldade com relação ao simbólico e à interpretação.
Para abordarmos o registro do imaginário em Lacan, convém, portanto, levar em consideração a articulação entre o Eu e a imagem do corpo, como vimos na citação de Miller. Essa articulação necessita de um terceiro termo, um termo medium: o espelho.
Podemos partir de uma distinção que é imediatamente perceptível: a distinção entre o corpo tomado como uma imagem e o corpo orgânico, o corpo concebido no funcionamento dos órgãos e perturbado em sua homeostase, seja pela urgência das necessidades que torna o sujeito dependente do Outro, seja pela incidência das pulsões que buscam se satisfazer aleatoriamente, sem uma relação direta com a homeostase ou a necessidade, e muitas vezes à revelia do sujeito. Tomado como uma imagem, o paradigma do corpo é a sua superfície, a sua forma projetada no espelho. Nessa projeção, o corpo perde a densidade que o caracteriza. Ele se esvazia, pode-se dizer assim, ao se destacar do organismo. A imagem especular do corpo está, portanto, destacada tanto da carne que preenche o corpo quanto das pulsões em sua busca de satisfação.
O que primeiro interessou a Lacan em sua teorização sobre o “estádio do espelho” (antes mesmo que ele se tornasse um psicanalista) foi a função da imagem, a sua operação real. Lacan se interessou particularmente pela etologia, que estuda o comportamento animal, e a teoria da forma, a Gestalt theory (que tem Köhler como um de seus expoentes), para mostrar como a imagem do corpo assume uma função no desenvolvimento orgânico, particularmente no campo da reprodução sexual. É o que mostra o exemplo da pomba, explorado por Lacan: a maturação da gônada sexual de uma pomba depende do fato de ela perceber, em seu campo visual, a imagem de outra pomba. Da mesma forma, há inúmeros exemplos nos estudos da etologia que mostram como no reino animal o comportamento sexual depende da exibição de uma imagem a partir de determinadas condições.
Soa paradoxal pensar que aquilo que interessa a Lacan é o estatuto real da imagem ou os seus efeitos no real, quando, de um modo geral, associamos a imagem especular a seus efeitos ilusórios sobre o sujeito (BROUSSE, 2014). Nesse sentido, interessa a Lacan o elo entre a visão do corpo como um perceptum, um dado exterior, na medida em que a imagem do corpo se torna objeto do olhar, e os seus efeitos no corpo, seja em relação ao comportamento ou à evolução sexual, seja no campo da subjetividade humana, como uma espécie de organizador da experiência subjetiva.
Portanto, a oposição inicial entre o corpo orgânico e a imagem do corpo projetada em um espelho revela-se, ao final, como um modo de interseção. Mais exatamente: a projeção da imagem do corpo nada mais é do que o envoltório libidinal e narcísico a partir do qual eu posso nomear aquele corpo como o “meu corpo”, esse acontecimento primordial da nomeação a partir do qual o meu corpo poderá ser abarcado pelo simbólico e, assim, tornar-se objeto de uma regulação que afeta o seu funcionamento orgânico e pulsional. Por outro lado, essa imagem captura o interesse libidinal do sujeito de forma que ele possa gozar narcisicamente de ser essa imagem refletida no olhar do Outro. Essa simetria e o gozo aí depositado formam a matriz que condiciona a visão do mundo como um reflexo do Eu, à sua imagem e semelhança.
Como se transpõem essas descobertas da etologia para o sujeito humano? Quais as consequências, para o sujeito humano, dessa projeção e do reconhecimento, em um momento datado do seu desenvolvimento, entre 6 e 18 meses, da imagem especular? É o que mostra esse texto lacaniano de 1949, “O estádio do espelho como formador da função do eu”.
1- Esse reconhecimento implica uma identificação com a própria imagem, aspecto que vai além do que é possível no caso do animal (à exceção talvez dos chimpanzés), que apenas reconhece o semelhante; é o que justifica o uso do termo “imago” por Lacan.
2- Esse reconhecimento também implica a “matriz simbólica em que o [eu] se precipita em uma forma primordial antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito” (LACAN, 1949/1998, p. 97). Ela assume, portanto, um valor significante a partir do qual o sujeito se apreende (‘aquele sou eu’) como um eu-ideal, antes mesmo de assumir as suas determinações sociais.
3- Tal identificação, por sua vez, implica uma duplicação (a-a´, de acordo com a notação de Lacan) a partir da qual essa imagem se reflete no espelho. Podemos então falar de uma relação ambígua e problemática entre o sujeito e sua imagem, na medida em que ele ao mesmo tempo se reconhece e se aliena nessa imagem refletida, exterior a ele mesmo; sendo assim, pode-se dizer que o sujeito é e, ao mesmo tempo, não é essa imagem.
4- Essa forma totalizada (Gestalt) na qual o sujeito se apreende é uma antecipação em relação ao estado atual da experiência de seu corpo orgânico (a imaturidade anatômica do sistema piramidal; a prematuração específica do nascimento no homem), ou seja, de sua experiência motora de fragmentação corporal, uma vez que esse corpo é comandado pelos circuitos parciais da pulsão que emanam de suas zonas erógenas. Tal antecipação não deixa de ter correspondência com o que Freud chamou de “nova ação psíquica”, necessária para a passagem do autoerotismo ao narcisismo, cujo desdobramento será central em sua teorização sobre as psicoses. A imagem especular se sobrepõe ao corpo fragmentado; o narcisismo seria, assim, o efeito no sujeito do contorno libidinal de seu corpo no espelho na medida em que ele se aliena nessa imagem.
5- É o que em parte explicaria o júbilo, a expressão de satisfação que acompanha esse reconhecimento da imagem especular e que permanece depositada em nossa experiência cotidiana, na medida em que “amamos” essa imagem. Mas, para além desse júbilo da imagem pelo fato de que a apreensão da totalidade do corpo permite ao sujeito ultrapassar a sua experiência de fragmentação, pode-se ligar esse júbilo à fascinação e aos efeitos de captura que essa imagem tem para o sujeito. Refiro-me à distinção entre o gozo do corpo e o gozo da imagem. De certa maneira, o gozo é sempre gozo do corpo, exige sempre um corpo, mesmo na sublimação. Mas, no estádio do espelho, trata-se de captura do gozo pela imagem, ou seja, de um efeito no corpo da captura da imagem especular.
Em termos freudianos, essa assunção da imagem equivale, portanto, ao narcisismo, na medida em que designa um investimento libidinal no Eu. Dito de outro modo, é importante levar em conta a mudança de estatuto do gozo implicada na passagem do gozo autoerótico, mais referido às zonas erógenas, para o gozo da imagem, mais referido ao Eu. Em relação ao gozo do corpo, podemos pensar no corpo enquanto goza-de-si, independentemente, mesmo que o sujeito seja sempre responsável por esse gozo. Mas é importante ressaltar que esse corpo que goza de si, conforme a imagem do circuito pulsional de uma boca que beija a si mesma, foi primeiramente objeto de gozo do Outro, uma espécie de brinquedo sexual dos pais que manipulam e libidinizam o corpo da criança. De forma que, na captura fascinada da imagem, é como se a criança pudesse enfim dizer: “então, é disso que eles gozam”.
A vertente transicional da formação do eu (quando a criança se toma por um “ele”), tanto quanto a vertente paranoica do narcisismo, está subjugada a essa captura na medida em que o objeto e o Eu são formas reversíveis, ou seja, o Eu (como matriz-corporal) pode ser tomado como um objeto e vice-versa. Para concluir sobre esse ponto: o objeto olhar, que designa uma zona erógena, é o que faz mediação entre o corpo orgânico (erógeno) e a imagem do corpo (especular). Na sequência, se esse olhar não for extraído do campo da realidade (no sentido do Eu não ser sempre o objeto de um olhar), o sujeito fica aprisionado a essa captura e temos os efeitos no real disso, como vemos na paranoia, na qual o sujeito se sente sempre visto. Diferentemente da paranoia, a extração do olhar funciona na histeria como uma forma de compensar a falha de representação no Outro, levando ao extremo a significantização da imagem.
6- Tudo isso revela o “drama” dessa ambiguidade da apreensão especular da imagem de si, na medida em que, por meio dela, o sujeito se vê também ameaçado por sua degradação, seu desinvestimento ou seu despedaçamento. É o que observamos em várias formas clínicas e nos fenômenos de estranhamento, quando o sujeito não reconhece o seu duplo. Lacan se refere a essa ameaça como uma “regressão mortífera ao estágio do espelho”.
7- Podemos ainda associar a esse “drama” à tensão agressiva que resulta primordialmente da relação do sujeito ao semelhante (como observa Freud, o outro é, antes de tudo, objeto de meu ódio, justamente por ser meu semelhante), uma vez que essa “matriz imaginária” determina a percepção do outro como uma extensão e um reflexo de si, logo, como um rival.
8- Da mesma forma, essa matriz imaginária é o que comanda, grosso modo, a apreensão da realidade e o conhecimento do mundo (que só o advento da ciência permite ultrapassar, na medida em que esta sobrepõe, ao imaginário, relações simbólicas). Sendo assim, a formação do eu seria coextensiva à “função de desconhecimento” implicada em nossa percepção da realidade; é a função da negação (Verneinung) que caracteriza nossa relação com o campo da realidade. Em outros termos, o campo da realidade só se mantém para um sujeito devido à estabilidade do eixo imaginário, estabilidade esta que depende tanto da extração do objeto (no caso que estamos examinando, do olhar) quanto de sua inserção no discurso estabelecido.
9- Na esteira do mesmo drama, pode-se evocar ainda a “inércia própria das formações do [eu]” que caracteriza as neuroses de um modo geral. Foi o que levou Lacan a opor o eixo imaginário ao eixo simbólico (ver, por exemplo, o esquema “L” tal como trabalhado por Lacan no Seminário, livro III: as psicoses). Essa inércia seria um efeito do gozo que preenche a relação especular a-a`. No eixo simbólico A-$, Lacan localiza as formações do inconsciente, recobertas pelo recalque, e as determinações simbólicas do sujeito. Mais adiante, essa oposição será pensada como um enodamento, mas, em 1957-8, o campo da realidade ainda é abordado na interface do simbólico com o imaginário. Por isso, a estabilidade do imaginário depende tanto de coordenadas simbólicas quanto da extração do objeto olhar.
10- Também é importante destacar os fenômenos de estranheza que caracterizam a vacilação da imagem especular para um sujeito. A angústia não deixa de ter relação com a incidência da castração sobre o eixo a-a´. Mas, paradoxalmente, é a castração o que de fato mantém o campo da realidade estabilizado para um sujeito. Em outros termos, a estrutura neurótica implica que o sujeito não esteja completamente identificado com sua imagem especular, que ele se divida quanto a essa identificação. Nesse sentido, a angústia na neurose se caracteriza pelo fato de que o objeto a vem no lugar de uma falta. Lacan dizia que a experiência da angústia ocorre quando a falta vem a faltar, e o objeto do desejo aparece no campo da realidade. Em muitos casos graves de histeria, como vimos, o superinvestimento na imagem se relaciona diretamente à falta de um significante que represente o sujeito ($) no campo do Outro (A). É como se a imagem especular assumisse então um valor significante e rígido para o sujeito, de forma que o sujeito se faz representar no campo do Outro pela imagem de seu corpo próprio para fazer frente a essa falta de representação do sujeito dividido. O sujeito é, assim, ameaçado o tempo todo pela angústia de sua afânise. De toda forma, isso pressupõe uma divisão subjetiva.
11- A psicose, por sua vez, se caracteriza pela instabilidade do imaginário devido a uma falta de sustentação simbólica. Essa sustentação simbólica implica um passo a mais em relação à captura da imagem do corpo no espelho. Na verdade, implica em sua destituição. É isso que está em jogo na trama edipiana, que é outro drama do sujeito, mas cujo desenlace pressupõe uma terceira localização do gozo, o gozo fálico, que é um gozo que se desprende do corpo. Por estar condensado em um órgão-fora-do-corpo, o falo pode ser tanto objeto de uma perda, por tê-lo, como objeto de uma reivindicação, por não tê-lo. Por se tratar de um significante, o falo é tanto o resultado de uma metáfora, a metáfora paterna, como é susceptível de deslocamentos ao infinito. É a esse gozo que se articula o desejo. A significação fálica é o que responde à falta materna e, portanto, ao enigma do desejo da mãe, possibilitando à criança se deslocar da posição de objeto que responde a esse desejo – como vimos na posição da criança que antecede a sua identificação especular – para se identificar às insígnias do ideal do eu que, como uma matriz simbólica, possibilitam a inserção do sujeito no campo do Outro.
Portanto, o que caracteriza a trama edipiana é a “visão da castração”, que vem de encontro à totalidade da imagem do corpo, na medida em que essa imagem se sustenta por sua carga libidinal. Em outros termos, a partir da trama edipiana, haverá tanto investimento libidinal no eu quanto nos objetos.
A psicose pode ser assim compreendida como uma dificuldade em relação a essa disposição, a essa distribuição libidinal. A loucura pode ser definida como uma forma de adesão ao imaginário que faz obstáculo à castração simbólica. Nesse sentido, a perda da realidade na psicose, da qual fala Freud, corresponderia ao desastre do imaginário que caracteriza o desencadeamento psicótico. O fato de “termos um corpo”, de termos que nos conectar com o corpo em vez de “sermos um corpo”, é velado pela consistência do imaginário que caracteriza as neuroses, mas é desvelado na experiência psicótica, em especial na esquizofrenia. Por isso, no tratamento psicanalítico das psicoses devemos estar atentos à maneira como o sujeito reconstrói imaginariamente o campo da realidade, seja fazendo uso do delírio, seja por meio de objetos ou artefatos de arte, seja por meio de outras invenções através das quais ele poderá se reconectar com seu corpo, com o Outro ou com a linguagem.
(1) VII Enapol. O império das imagens. Programado para ocorrer em São Paulo, nos dias 4, 5 e 6 de setembro de 2015.
(2) A imagem rainha foi o título do V Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que celebrou a fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, em abril de 1995.