Do sentido à satisfação do sintoma[1]/ 

Kátia Mariás
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise /AMP
katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma.

Palavras-chave: sintoma; gozo; pulsão; sentido; referência; satisfação. 

FROM MEANING TO SYMPTOM SATISFACTION 

Abstract: The text addresses Freud’s XVII and XXIII Conferences on the meaning of symptoms and on the paths of symptom formation. In these conferences, by starting from the meaning – Sinn – and moving to the signification, the reference – Bedeutung –, Freud goes from the meaning to the jouissance of the symptom.

Keywords: symptom; jouissance; drive; meaning; reference; satisfaction.

Imagem: Renata Laguardia

O texto que fui encarregada de trabalhar é o único que não está na série de textos sobre os fundamentos da clínica psicanalítica publicados nas Obras Incompletas (FREUD, 2017). Ele compõe a série de conferências proferidas por Freud a um público de não analistas entre os anos 1915 e 1917, chamadas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”. O que Freud desenvolve ali não deixa de estar referido aos fundamentos da clínica e, inclusive, conversa com eles. De qualquer forma, como sugere Miller, o “perder-se um pouco” tem todo seu valor. Para estar bem orientado em um tema analítico é preciso também desorientar-se, quer dizer, não pensar no tema de forma demasiadamente familiar (MILLER, 2011, p. 11). Selecionei algumas passagens da Conferência XVII, “O sentido dos sintomas” (Der Sinn der Symptom) (FREUD, 1916-17/1990a), para que possamos extrair o que há de essencial nesse texto e o que podemos aprender com ele.

Num primeiro ciclo de conferências, Freud se ocupou dos sonhos e dos atos falhos. A fonte desse primeiro ciclo eram as obras da descoberta: “A interpretação dos sonhos”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e até “O chiste e sua relação com o inconsciente”. O segundo ciclo de conferências, presentes na parte III, dentre as quais está “O sentido dos sintomas”, trata dos sintomas neuróticos, as neuroses de transferência, como ele então as chamava: histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva. A conferência XVII é, então, uma aplicação aos sintomas neuróticos do que havia sido dito sobre os sonhos e atos falhos. É possível constatar que os sintomas são como os sonhos e atos falhos, ou seja, têm um sentido e podem ser interpretados (MILLER, 2011).

Esse texto já anuncia o que Freud vai complementar na Conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas” (Die Wege der Symptombildung) (FREUD, 1916-17/1990a)O que há entre as duas conferências? De que trata essas conferências que fazem ponte entre a XVII e a XXIII? Freud introduz aí o pulsional, a libido, o sexual e o perverso do sexual.

Vamos ao texto: “os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente” (FREUD, 1916-17/1990a, p.305).

Podemos observar que Freud aborda o sujeito em sua singularidade. O sintoma tem um sentido e se relaciona com a experiência do sujeito; não é possível tratar essa experiência como sendo da ordem do universal, do para-todos. O sentido deve ser interpretado no caso a caso, no um a um, no singular: “os sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos e, como estes, têm uma conexão com a vida de quem os produz” (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Mais uma vez, Freud conecta os sintomas à vida de quem os produz e não os liga a uma teoria geral, não universaliza os sintomas. Ele situa o sintoma dentro das formações do inconsciente, a saber, o lapso, o chiste, o ato falho, o sonho e o sintoma.

Para Freud, nesse momento, o sonho tem um “querer dizer”, tem um sentido, mas o sonho é efêmero, ao ser interpretado ele se esvai. O sintoma também tem um “querer dizer”, mas ele não é efêmero, ele não se esvai, ao contrário, ele se repete. O caráter de repetição pode levá-lo ao infinito, daí o termo “os etcéteras do sintoma”, que foi, aliás, título de um seminário que ocorreu nas XIV Jornadas do Campo Freudiano em Madrid, em 1997 (MILLER, 1997).

Freud vai tentar tornar a sua descoberta mais compreensível escolhendo exemplos de casos não de histeria, mas “de uma outra neurose muito mais extraordinária”, a neurose obsessiva.

A neurose obsessiva manifesta-se no fato de o paciente se ocupar de pensamentos em que realmente não está interessado, de estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e de ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe é totalmente impossível omitir. Os pensamentos (obsessões) podem ser, em si, carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Esses sintomas, geralmente, estão desprovidos de sentido, um sentido que não está dado de maneira imediata; ele tem que ser extraído. O sintoma aparece como um sentido recalcado, ele aparece como um enigma. O sintoma manifesta-se suportado por um significante cujo significado está recalcado, quer dizer, que não foi comunicado ao Outro ou por ele aceito.

Ao afirmar que a realização da ação obsessiva não lhe dá satisfação, é possível intuir algo que Freud só vai concluir na Conferência XXIII. Esse ciclo de conferências vai, portanto, do sentido ao gozo. Se o Sentido dos sintomas trata do sentido, O caminho da formação dos sintomas (FREUD, 1916-17/1990b, trata da libido, da satisfação, do gozo. Entre as conferências XVII e XXIII, trata-se exatamente do caminho que vai do sentido ao gozo do sintoma. É interessante destacar isso, porque vemos que já existia uma teoria da satisfação libidinal, do gozo, antes mesmo de “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/2020). 

Certamente, esta é uma doença louca. A imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria conseguido construir nada semelhante […] O que é posto em ação, em uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente não encontramos nada comparável na vida mental normal. […] A possibilidade de deslocar qualquer sintoma para algo muito distante de sua conformação original é uma das principais características desta doença. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 307)

Nada mais atual para nós do Campo Freudiano: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. O obsessivo não percebe o sofrimento de seu sintoma, ele o incorpora tão bem à sua personalidade que é motivo de prazer. Os sintomas obsessivos são prazerosos. O sujeito sofre como um condenado, mas não se queixa.

Toda a teoria freudiana dos sintomas, tal como está desenvolvida nas conferências, supõe que uma satisfação pode ser substituída por outra, supõe a possibilidade de substituição de satisfações. É o caráter metafórico do sintoma. Freud chama de Ersatz, uma satisfação nova, ou substitutiva, e isso faz pensar que o substituto não tem o mesmo valor que o original. Mas não é bem assim. A satisfação substitutiva é tão boa quanto a satisfação original. Não importa o objeto, a finalidade libidinal obtém-se custe o que custar e ela é sempre a mesma. A pulsão não conhece o semblante de gozar; a satisfação pulsional é um real.

O primeiro caso apresentado na Conferência XVII refere-se a uma mulher com uma ação compulsiva de proteger o marido impotente. O segundo consiste em um cerimonial de dormir que indica uma encenação da não-relação sexual, sustentada por um vínculo libidinal com o pai. A escolha desses casos talvez se deva ao fato de que Freud se dirigia a uma audiência de não praticantes e eram sintomas muito claros, que têm um sentido evidentemente sexual e se explicam por uma Bedeutung – termo difícil de traduzir por indicar, ao mesmo tempo, “significação” e “referência” –, pela referência a uma experiência anterior. A primeira mulher monta sua cena como repetição e correção de um evento anterior, traumático para ela. Através desses exemplos, Freud vincula o sentido e o libidinal. A Bedeutung é uma vivência anterior.

Retomemos o caso: uma mulher de 30 anos de idade, que sofria de graves sintomas obsessivos, realizava, várias vezes por dia, a seguinte ação obsessiva: corria do seu quarto até um outro cômodo, se colocava numa determinada posição ao lado de uma mesa no meio do aposento, soava a campainha chamando a empregada, lhe dava uma ordem qualquer ou a dispensava sem maiores explicações e, depois, corria de volta para seu quarto. Freud perguntava: “Por que faz isso? Qual o sentido disto?”. Ela respondia: “Não sei”. Certa vez, depois de Freud ter invalidado uma dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a resposta e lhe contou o que estava em conexão com o ato obsessivo. Freud realiza a seguinte leitura, a partir dos elementos fornecidos pela paciente: há 10 anos, na noite de núpcias, o marido, que era bem mais velho, se mostrou impotente e passou a noite correndo do seu quarto para o quarto da mulher, para renovar sua tentativa, mas sempre sem êxito. Na manhã seguinte, envergonhado perante a empregada que arrumaria seu quarto, pegou um frasco de tinta vermelha e derramou sobre o lençol, mas não no exato lugar em que uma mancha viria a calhar. A paciente leva Freud até uma mesa no segundo quarto e mostra-lhe uma grande mancha na toalha. Explicou-lhe que assumia sua posição em relação à mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não podia deixar de ver a mancha.

A explicação de Freud estabelece uma íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato obsessivo atual. Em primeiro lugar, fica claro que a paciente se identificava com seu marido; ela estava executando o papel dele, imitando suas corridas de um quarto a outro. Além disso, cama e lençol foram substituídos pela mesa e pela toalha. Mesa e cama, juntas, representam o casamento e, assim, podem facilmente tomar o lugar da outra.

O ato obsessivo tinha um sentido: uma representação, uma repetição daquela cena importante. Repetindo a cena, corrigia a falha do homem. Servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada. Separada há anos, debatia-se com a ideia de divorciar-se legalmente. Contudo, não havia como livrar-se dele. Era forçada a permanecer fiel; retirou-se do mundo para não ser tentada. Em sua imaginação, desculpava-o e engrandecia suas qualidades. O segredo de sua doença consistia em que, através da doença, protegia seu marido de comentários maldosos. Através do sintoma, a mulher faz o homem e, deste lugar, o protege e o sustenta na plena possessão de seus atributos. A leitura freudiana dessa ação obsessiva se limita a negar ou desmentir a impotência do marido.

A mulher se encontra, desde então, submetida à obrigação de chamar a empregada para corrigir a cena, convocando o olhar dessa mulher a se colocar sobre uma mancha na toalha da mesa e, assim, mostrando que não haveria de ter vergonha. Toda a cena é montada para corrigir a penosa impotência do marido.

Aqui, a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, sem qualquer influência ou interpretação do analista, e resultou de uma conexão com um acontecimento que não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente e permaneceu vivo em sua memória.

A pergunta que Freud faz ao seu público, nessa conferência é: foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida sexual?

O primeiro caso apresentado por Freud na Conferência XVII foi comentado por Esthela Solano (1993) e por Elisa Alvarenga (2019).

Cito Elisa Alvarenga (2019, p. 37), a propósito do comentário de Esthela Solano sobre essa cena que esconde algo, tanto quanto revela:

A mulher, colocando-se no lugar do marido, faz Um com ele, e a partir dessa solidariedade fálica, chama a empregada. A que lugar ela é convocada? Esta mulher obsessiva recorre a uma Outra mulher, não para interrogar nela o mistério da feminilidade, segundo a estratégia da histérica, mas para tomá-la como testemunha, como Outro diante do qual a mancha pode ser tomada como um semblante que faz valer seu poder de evocação do falo.

A mancha vela o recuo do marido diante do Outro sexo, tomando um valor de quase fetiche, que restitui ao marido seu ter para que ela possa assegurar, do seu lado o ser. Ela adivinha a posição do parceiro e a corrige através do seu sintoma.

Podemos concordar que esses dois casos de mulheres que Freud classifica como obsessão são, na verdade, fragmentos de casos de histeria e é o caráter de obrigação dos seus atos, Zwang, presentes nos dois casos descritos, o que o leva a caracterizar tais sintomas como obsessivos. O sentido do ato obsessivo escapa ao sujeito que se encontra, sempre, obrigado a executá-lo.

O sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente: “É necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir”. Ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. É a condição inconsciente do sintoma. “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (MILLER, 2011, p. 21).

Somente o sintoma nos introduz no mais íntimo da vida sexual. Os sintomas servem à mesma intenção: a satisfação de desejos sexuais. Para Freud, o uso do sintoma é sempre o mesmo – a satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida.

O caráter de formação de compromisso do sintoma revela a íntima conexão entre gozo e defesa. No sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dessa satisfação. Essa conexão leva Lacan a deduzir que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a defender-se do gozo que busca (MILLER, 2011).

O sintoma encontra sua significação (Sinn) e sua referência (Bedeutung) em seu a posteriori – Nachträglichkeit.

Um exemplo que nos ajuda a entender melhor essa temporalidade, considerando as duas indicações de Freud – o Sinn e a Bedeutung –, é o fragmento clínico que ele descreve como próton pseudos, a primeira mentira histérica (FREUD, 1895/1990c). O sintoma apresentado pela paciente Emma consistia na evitação de entrar sozinha nas lojas por temer os risos que sua roupa poderia suscitar. A agorafobia eclodiu a partir de uma primeira cena relatada pela jovem como motivo de seu adoecimento, na qual ela, então com doze anos, fugiu de uma loja ao perceber que dois vendedores riam de sua roupa. Um deles havia atraído Emma sexualmente. A análise com Freud promoveu o franqueamento das ideias recalcadas, possibilitando uma rearticulação dos enlaces associativos. A primeira cena evocou a lembrança de uma segunda cena, mais longínqua, datada de seus oito anos de idade, quando Emma havia sido molestada pelo dono de uma confeitaria. O riso dos vendedores atualizava o sorriso do proprietário da confeitaria que agarrou sua região genital através de seu vestido. Freud enfatiza a temporalidade Nachträglich estruturante das neuroses. Apenas mediante o estabelecimento de um elo entre a cena 1 e a cena 2, portanto só depois, o acontecimento primeiro adquire seu potencial traumático.

A angústia que leva Emma a erigir um sintoma fóbico não é experimentada na cena em que é assediada pelo dono da loja. A significação desse evento como traumático ocorre a posteriori. Apenas com a entrada na puberdade, no intervalo entre as duas cenas, a jovem se confronta com novas formas de satisfação a partir do despertar da sexualidade, se deparando com seu desejo, com o real da puberdade, o que acabou por ressignificar suas experiências anteriores.

Sem pretender fechar as inúmeras questões trazidas pela leitura das Conferências freudianas, podemos concluir que o estatuto do sintoma é problemático, ou melhor, há o que Lacan chamou de “o segredo do sintoma”, na medida em que se trata de um fenômeno articulado no significante e que tem um sentido. O valor metafórico de satisfação da pulsão encarna e eterniza sua exigência de satisfação (MILLER, 2008). É a vocação para mover-se, de ser errante, de mudar o objeto para permutá-lo por outro, para o deslocamento, para a substituição da libido que pode levá-la, inclusive, para a obra de arte. A libido pode, portanto, ser sublimada ou sintomatizada.

O trabalho de Elisa Alvarenga nos esclarece que, uma vez que a histérica não vai sem o Outro, na medida em que esse Outro muda no decorrer dos tempos, as manifestações da histeria também mudam. A neurose obsessiva feminina seria, portanto, uma resposta sintomática ou fantasmática, desencadeada por situações específicas relativas às experiências do sujeito, tal como Freud já havia postulado na Conferência XVII – resposta essa que encobre uma posição histérica.

Em 1978, Lacan manifestava sua incerteza quanto à existência da neurose histérica, mas afirmava a existência da neurose obsessiva, que teria sido descrita por Freud como um dialeto da histeria e seria, sim, a neurose contemporânea por excelência.

Diante do declínio da função paterna enquanto autoridade e de um Outro que se apresenta inconsistente, os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1 que nomeiam modos de gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço que tampa sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão; amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens para a neurose. (ALVARENGA, 2019, p. 26-27)

Enfim, são sujeitos que, devido à maior dificuldade de subjetivação da castração, apresentam, por sua vez, dificuldade também de dar sentido aos seus sintomas, o que nos leva a pensar a clínica a partir do uso que o sujeito faz dos sintomas, como cada sujeito amarra seu gozo ou, ainda, seria uma clínica dos modos de gozo.


 

Referências
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O sentido do sintoma). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990a, p. 305-322. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O caminho da formação dos sintomas). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990b, p. 419-439. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. A proton pseudos – a primeira mentira histérica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990c, p. 474-478. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
MILLER, J.-A. Síntoma, saber, sentido y real. Los etcéteras del síntoma. Rev. Folhas, n. 5/6, set. 1997.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. In: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. Seminário sobre os caminhos da formação dos sintomas. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 60, 2011.
SOLANO-SUAREZ, E. Névrose obsessionnelle et féminitéLa Cause freudienne, n.24, p. 16-19, 1993.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 13 de junho de 2023.



Construções e reminiscências[1] 

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
lucianasbl@gmail.com

Resumo: A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência.

Palavras-chave: construção, verdade histórica, rememoração, reminiscência.

CONSTRUTIONS AND REMINISCENCES 

Abstract: The author takes a journey through the text “Constructions in analysis”, working on the concepts of ultranitical memories, historical truth, remembrance, and reminiscence. Her hypothesis is that historical truth is conceptually equivalent to reminiscence. 

Keywords: construction, historical truth, remembrance, reminiscence.

Imagem: Renata Laguardia

“Construções em análise” foi publicado pela primeira vez em 1937 e, nele, Freud dá ênfase ao procedimento e à técnica analítica. Percebemos sua necessidade em defender a psicanálise, pois esta era alvo de ataques dos mais variados campos, e ele o inicia se referindo a um crítico que acusava os psicanalistas de se colocarem na postura daqueles que têm sempre razão, sem levar em conta o “não” do paciente. Para esse crítico, “se [o analisando] concorda conosco, estamos com razão; mas se ele nos contraria, então seria apenas um sinal de sua resistência e, portanto, também mostraria que temos razão” (FREUD, 1937/2017, p. 365).

No entanto, para a psicanálise, um simples “não” do paciente não abdica o psicanalista de sua interpretação, e é essa posição que pode servir de munição para a reprovação de tais críticos. Dessa forma, é necessário entrar em detalhes sobre como a psicanálise entende o “sim” ou o “não” do paciente.

Objetivo do trabalho analítico

O objetivo do trabalho analítico é a suspensão do recalque para substitui-lo por reações que correspondam a um estado de maturidade psíquica. Para que isso aconteça, é necessário que o analisando se recorde de determinadas vivências e moções de afeto que foram esquecidas. Qual seria o caminho para esse resgate? Freud responde que seria através dos fragmentos de lembranças nos sonhos, na associação livre e em alusões de repetições de afetos pertencentes ao recalcado. A transferência seria o caminho para alcançar a imagem dos anos esquecidos pelo paciente.

No entanto, temos que nos lembrar que o trabalho analítico é feito por duas partes – analista e analisando -, cada qual com uma função. Ao analisando, cabe a tarefa de se lembrar do material recalcado, e, ao analista, cabe interpretar esse material. O analista então, “terá de inferir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o esquecido” (FREUD, 1937/2017, p. 367).

Para caracterizar o trabalho do analista, Freud faz uma analogia com o do arqueólogo. Da mesma forma que o arqueólogo infere onde estaria uma parede em uma ruína, o analista faz o mesmo com as lembranças e associações do paciente. Outra fonte importante para a tarefa analítica de construção são as repetições “de reações oriundas de tempos primevos e tudo o que é revelado em termos de repetições através da transferência” (FREUD, 1937/2017, p. 368). Importante ressaltar que para Freud, nesse momento, há a aposta de ser impossível a destruição total das formações psíquicas. Ele acreditava que seria apenas uma questão de a técnica analítica conseguir trazer totalmente à tona o que está oculto.

Entretanto, é necessário levar em consideração que o objeto psíquico, diferentemente do arqueológico, é muito mais complicado que os restos arqueológicos. A construção é apenas um trabalho preliminar na análise de um sujeito.

O processo analítico, ou a construção, é feita passo a passo. Freud afirma que o analista

produz um pedaço de construção, comunica-o ao paciente, para que faça efeito sobre ele; depois, ele constrói mais um pedaço a partir do novo material que chega como um afluente e trabalha do mesmo jeito, e nessa alternância vai até o fim. (FREUD, 1937/2017, p. 369)

A grande questão é se o analista pegou o caminho certo em sua tentativa de fazer esse trajeto. Se não o tiver feito, poderá se retificar em momento oportuno quando nova construção puder ser feita.

O sim ou o não

Quanto ao “sim” ou ao “não” do paciente, esta é uma outra história, pois tanto um, quanto o outro, não garantem que a construção esteja correta. O que garante sua asserção é a produção, pelo analisando, de novas lembranças que complementam e ampliam a construção.

Importante ressaltar que, com frequência, o “não” do paciente pode ser um sinal de resistência, pois a construção analítica é sempre incompleta e abarca apenas um pequeno fragmento do acontecimento esquecido. Dessa forma, pode-se pensar que o analisando “fundamenta sua oposição com base na parte ainda não revelada” (FREUD, 1937/2017, p. 372). Para Freud, o analisando só dará a sua concordância quando souber de toda a verdade e esta, muitas vezes, é bastante ampla. “Portanto, a única interpretação segura do seu ‘não’ é aquela que aponta insegurança; que a construção certamente não lhe disse tudo” (FREUD, 1937/2017, p. 372).

Como saber se a construção tocou em um ponto importante? Podemos supor que seja através de tipos indiretos de comunicação, como, por exemplo, através da expressão idiomática “eu jamais pensei (ou teria pensado) isso (nisso)” (FREUD, 1937/2017, p. 373), que podemos traduzir por “Sim, nesse caso, você acertou o inconsciente na mosca”. (FREUD, 1937/2017, p. 373). Outra é a confirmação indireta através de associações que combinam com o conteúdo das manifestações. E, ainda, aquelas em que as confirmações se infiltram na oposição direta por meio de um ato falho.

Diante dessas constatações, Freud conclui que a crítica sofrida pela psicanálise não é devida, pois, ao se prestar atenção na resposta do analisando, pontos de apoio valiosos são retirados. Por outro lado, “essas reações do paciente geralmente têm múltiplos significados e não permitem uma decisão definitiva” (FREUD, 1937/2017, p. 375), o que nos leva a concluir que apenas a continuidade da análise vai provar se essas construções estavam corretas ou se foram inúteis.

Nem sempre uma construção feita pelo analista produz a recordação do recalcado, mesmo assim, em alguns casos, o paciente tem uma convicção segura da verdade da construção.

Recordações ultranítidas

Ocorre também que uma construção gere as chamadas recordações “ultranítidas” (überdeutlich) (FREUD, 1937/2017, p. 376). Nesse tipo particular de recordação, os pacientes não se lembram do acontecimento que fora o conteúdo da construção, e sim de detalhes muito nítidos: rostos, objetos no ambiente, espaço, etc. Como a elas nada é atrelado, o psicanalista sugere que foram resultado de um acordo em que a resistência conseguiu deslocar o recalcado para objetos secundários vizinhos.

Essas lembranças poderiam ser chamadas de alucinações, mas não apresentam a certeza característica do fenômeno e acontecem em casos que não podemos chamar de psicose. Por outro lado, há ocorrência ocasional de alucinações em casos de não psicóticos. Freud se pergunta se seria uma característica da alucinação que algo vivenciado nos primórdios e depois esquecido se insinue na consciência de forma deformada.

Talvez as formações alucinatórias, nas quais vemos inseridas essas alucinações, não sejam assim tão independentes da súbita vinda à tona do inconsciente e do retorno do recalcado. De forma geral, só sublinhamos dois fatores no mecanismo de uma formação alucinatória: o afastamento da realidade e a influência da realização de desejo sobre o conteúdo do delírio. Mas será que quando o recalcado emerge provocaria o afastamento da realidade, que, por sua vez, causaria a deformidade e o deslocamento do relembrado?

A verdade histórica

Freud sinaliza que o importante é que a loucura não só tem método como contém uma parte de verdade histórica.

Nos parágrafos finais de seu texto de 1937, assinala que, em casos patológicos, não se trata de demover o paciente do erro de seu delírio, de sua contradição diante da realidade, mas de encontrar

um fundamento comum no reconhecimento do cerne da verdade a partir do qual se poderá desenvolver o trabalho terapêutico. Esse trabalho consistiria em libertar aquela parte de verdade histórica de suas deformações e ligações [Anlehnungen] com o presente real, reconduzindo aquela parte do passado à qual pertence (FREUD, 1937/2017, p. 378).

Freud considera que as formações delirantes lembram as construções feitas pelo analista durante o tratamento analítico. Da mesma forma que a nossa construção só traz de volta uma parte da história de vida perdida, o delírio também deve o seu poder de convencimento à porção de verdade histórica que ele coloca no lugar da realidade rejeitada.

Ele conclui seu texto com o seguinte parágrafo:

Se abarcarmos a humanidade como um todo e a colocarmos no lugar de cada indivíduo humano, verificaremos que ela também desenvolveu formações delirantes inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, mesmo assim, elas puderem expressar um extraordinário poder sobre as pessoas, a análise levará à mesma conclusão que no caso de cada indivíduo. Elas devem o seu poder ao teor de verdade histórica que foram buscar lá no recalque dos tempos primordiais esquecidos. (FREUD, 1937/2017, p. 379) 

O que é verdade histórica?

Antes de finalizar, gostaria de voltar de forma mais detalhada ao termo “verdade histórica”. Ele aparece em alguns textos freudianos importantes, tais como “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936), “Moisés e o monoteísmo” (1938) e “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)” (1918).

Em “Um distúrbio de memória na Acrópole”, Freud relata sua peculiar experiência ao visitar a Acrópole. Seu primeiro pensamento ao vê-la foi: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!”. O que se segue é o sentimento de divisão do sujeito, pois era como se duas pessoas estivessem ali: “A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa”, e, a outra, “A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida” (FREUD, 1936/1976, p. 295).

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o psicanalista afirma:

Quando Moisés trouxe ao povo a ideia de um deus único, ela não constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana, alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma tradição. (FREUD, 1934/1975, p. 153)

E, em “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)”, há a seguinte passagem do paciente:

Quando eu tinha 5 anos de idade, estava brincando no jardim perto da minha babá e fazia cortes com meu canivete na casca de uma daquelas nogueiras, que também têm um papel em meu sonho. De repente percebi, com um terror indizível, que eu tinha cortado meu dedo mindinho da mão (direita ou esquerda?), de tal maneira que ele só estava pendurado pela pele. Eu não sentia dor nenhuma, mas uma grande angústia. Não me atrevia a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas poucos passos de distância, afundei no banco mais próximo e permaneci sentado lá, incapaz de olhar mais uma vez para o dedo. Finalmente me acalmei, olhei para o dedo, e, veja só, ele estava totalmente ileso. (FREUD, 1918/1976, p. 723)

Parece possível afirmar, a partir dos fragmentos apresentados, que, ao utilizar o conceito de “verdade histórica”, pode-se identificar uma estrutura que se repete, mas que é modificada pela realização de desejo e pelas percepções que são perturbadas pela linguagem. A repetição da representação deformada gera o delírio, mas, quando essa repetição compulsiva carrega consigo um retorno do passado, seria uma verdade histórica.

O que se repete não é a representação ou o sentido ligado à representação, mas uma certa estrutura discursiva, que, no caso de Freud em Atenas, seria a reapresentação da dúvida sobre a existência da Acrópole, no monoteísmo, a reapresentação do chefe da horda no Deus único, e, no Homem dos Lobos, a reapresentação da castração na alucinação do dedo cortado.

Verdade histórica ou reminiscência em “O homem dos Lobos”?

Pretendo me ater aqui ao relato do dedo cortado do Homem dos Lobos para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana: a reminiscência e a rememoração. Minha hipótese é ser possível equiparar a reminiscência à verdade histórica.

Parece-me interessante neste ponto explorar a distinção feita por Lacan entre rememoração e reminiscência. No Seminário 23, o psicanalista afirma:

A reminiscência é distinta da rememoração. […] A rememoração é evidentemente alguma coisa que Freud obteve forçosamente graças ao termo impressão. Ele supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso, e lhes conferiu letras, o que já é dizer muito, porque não há razão nenhuma para que uma impressão se figure como alguma coisa já tão distante da impressão quanto uma letra. Já há um mundo entre uma letra e um símbolo fonológico.

A ideia testemunhada por Freud no Projeto é de figurar isso através de redes, e foi talvez o que me incitou a lhes dar uma nova forma, mais rigorosa, fazendo com isso alguma coisa que se encadeia, em vez de simplesmente se trançar.

A rememoração consiste em fazer essas cadeias entrarem em alguma coisa que já está lá e que se nomeia como saber […]. (LACAN, 1975-76/2007, p. 127)

Em “Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico”, Freud retoma o relato do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos. Cito-o: “Quando me achava brincando no jardim com um canivete (isso se deu quando eu tinha cinco anos de idade) e cortei fora meu dedo mindinho – oh, eu só pensei que ele fora cortado – mas já lhe falei sobre isso” (FREUD, 1914/1996, p. 209). No entanto, o psicanalista, ao ouvir aquele relato, responde-lhe que nunca o havia narrado, mas o paciente afirma ter certeza de já o ter contado. Porém, ao repetir a estória, ele percebe seu engano.

Aqui há um real que fala sozinho, a experiência não é testemunha de um significante que falta, há um aspecto de descontinuidade temporal – extratemporal, melhor dizendo. Nesse caso, o que retorna é um conteúdo que deixou de ser simbolizado, que escapou da simbolização primária e que não pôde ser historiado. Segundo Miller, trata-se de uma forma imemorial que aparece quando o texto, “interrompendo-se (fora do texto simbólico, portanto), deixa desnudo o suporte da reminiscência” (MILLER, 2009, p. 54).

A rememoração, em contraposição ao fenômeno descrito no caso freudiano, acontece quando um elemento esquecido encontra a sua articulação simbólica. Já a reminiscência tem relação com a concepção platônica, pois o indivíduo não pode elaborar uma verdade a partir de sua experiência, só lhe restando o eterno, o que está fora do tempo.

No caso do Homem dos Lobos, diante da emergência do real, só lhe restou o mutismo, o mutismo aterrorizado e a imagem alucinada do dedo cortado. Nesse caso, ao lembrar-se da experiência e relatá-la posteriormente ao analista, não se pode dizer que essa estava na ordem de um mero esquecimento, como no texto “O mecanismo psíquico do esquecimento”, de Freud. Trata-se de uma experiência com uma significação tão estranha que o sujeito não tem como comunicá-la ao Outro. Não estaria, portanto, no registro de uma lembrança esquecida que retorna, de uma rememoração. Para um elemento ser historiado, ele deve, antes de tudo, ter sido simbolizado, ou seja, só há historização secundária se houver uma simbolização primária. A “rememoração está situada do lado da rede significante, das cadeias que se formam com o simbólico, ao passo que a reminiscência, aqui, é deixada em branco” (MILLER, 2009, p. 54).

A questão que proponho aqui, no caso do Homem dos Lobos, é pensar que a alucinação do dedo cortado pode revelar algo que irrompe no discurso do sujeito sem que haja uma historização – ou o que carrega consigo uma história que pode ser contada –, mas revela o puro real sem palavras. Concepção que se aproximaria do conceito de “verdade histórica” como modo de resposta a incidência do real traumático sobre o ser falante.


 

Referências
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXIII, 1975, p. 165-329. (Trabalho original publicado em 1934).
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1976, p. 238-247. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Um distúrbio de memória na Acrópole. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXII, 1976, p. 291-303. (Trabalho original publicado em 1936).
FREUD, S. Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1996, p. 207-212. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Histórias clínicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 631-773. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Construções em análise. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 365-381. (Trabalho original publicado em 1937).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 27 de junho de 2023.



A escola, o instituto e a ética das consequências

Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023


Jésus Santiago
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo: No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto.

 Palavras-chave: Escola; Instituto; ética; teoria; prática clínica.

THE SCHOOL, THE INSTITUTE AND THE ETHICS OF CONSEQUENCES

Abstract: The present essay discusses the operation of the School and Institute of psychoanalysis taking into consideration that both the clinical practice and the psychoanalytical institution invested in the teaching of psychoanalysis share the same principle. The psychoanalytical way of perception has more to do with an ethical dimension than epistemic itself – it is about an ethical dimension that comes from the deduction of the fact that there is no theory of the unconscious without a practice that is able to take the experience of the unconscious into account. The author thus offers a reading on the contemporary psychoanalytical environments and on the difference between the psychoanalytical School and the Institute.

Keywords: School; Institute; ethics; theory; clinical practice.

Imagem: Sofia Nabuco

O que se impõe como princípio de orientação para a prática clínica impõe-se também para a prática institucional lacaniana voltada para a formação analítica. Vejamos como se pode formular esse princípio de orientação que, a meu ver, serve tanto para a prática clínica quanto para a nossa concepção do que é uma instituição psicanalítica a serviço do discurso analítico. O meu ponto de partida é admitir que, se a psicanálise ocupa uma posição singular no conjunto das ciências, é porque ela, apesar de se inspirar em seus fundamentos e seus métodos, é, antes de tudo, uma prática cujo fundamento é a experiência do ser falante com o inconsciente. Esclareço ainda que a psicanálise não é uma “teoria do psiquismo” e, tampouco, uma “teoria do inconsciente”, como se o psiquismo ou o inconsciente existissem em si e que seria apenas necessário desvelar o seu funcionamento intrínseco. A psicanálise recusa-se, assim, a abordar o inconsciente nos termos de uma cosmologia, ou seja, não se trata de tomá-lo como uma entidade substancial fechada em si mesma, como se fosse uma realidade qualitativamente determinada, hierarquicamente ordenada, submetida a leis diversas, cuja existência antecedesse o próprio surgimento da prática psicanalítica.

Renúncia da pressuposição cosmológica

Enquanto prática, o edifício conceitual da psicanálise é concebido como uma construção segundo o estilo work in progress, exatamente como na ciência da física, que não se constitui como um conhecimento em que seus objetos existiriam em si para além de suas produções conceituais e metodológicas. O que é característico da ciência que se faz presente entre nós desde o século dezesseis é deixar em aberto a abordagem cosmológica das coisas do mundo. A ideia de Cosmo teve o seu predomínio até o surgimento da física de Galileu, que contribuiu para desfazer o mundo da tradição, ordenado e limitado. O discurso da ciência está em marcha e progride inexoravelmente, transformando o mundo fechado da cosmologia no universo infinito da física.

O nosso ponto de partida é admitir que a existência do mundo[1] não nos assegura absolutamente acerca da existência de uma cosmologia. Muito antes pelo contrário, o próprio saber da ciência demonstra que não há avanços na apreensão das coisas do mundo sem a renúncia de toda pressuposição cosmológica.[2] Como se viu antes, a emergência da ciência exigiu o abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo enquanto unidade fechada de um Todo qualitativamente determinado e refratário aos acontecimentos contingentes oriundos do Real. Isso quer dizer que as coisas do mundo, com as quais a ciência lida, não são preexistentes ao saber da ciência.

A respeito do modo como a psicanálise trata essa objetividade do mundo, é preciso levar em conta o trabalho inaugural de Freud com a Interpretação dos sonhos, em que a conceituação do inconsciente se institui como um lugar que ele próprio denomina como uma Outra cena (eine anderer Schauplatz) (LACAN, 1962-63/2005). Introduzir a função do inconsciente como Outra cena a partir do sonho esclarece o que vem a ser, por sua vez, o tratamento que a psicanálise confere às coisas do mundo. Em segundo lugar, Lacan (1962-63/2005) propõe que essa dimensão da cena, que se apresenta como separada do mundo, aponta para a distinção radical entre o mundo e esse lugar impossível de ser simbolizado pela via das leis e do sentido, ao qual denominamos Real, lugar em que as coisas adquirem existência. Assim, as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis da linguagem, leis que, por consequência, não podem ser tomadas como inteiramente homogêneas ao Real (LACAN, 1962-63/2005).

O inconsciente é, portanto, exemplar acerca do modo como a psicanálise capta e apreende as coisas do mundo, distinguindo nelas o real que lhes é concernente. Mais do que uma questão epistêmica, há uma dimensão ética implícita na formulação de que a teoria psicanalítica do inconsciente não teria vindo à luz sem a interposição da prática clínica de Freud com o sujeito histérico. Trata-se da dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do sujeito com o inconsciente. Isso quer dizer que, se há uma teoria do inconsciente, ela é fruto da prática clínica e, nesse sentido, se há uma teoria em geral na psicanálise, ela se constitui sempre, segundo os termos do Lacan (1968-69/2008, p. 64), como “teoria da prática analítica”. Como ele próprio pôde sentenciar: “o caminho do inconsciente propriamente freudiano, foram as histéricas que o ensinaram a Freud” (LACAN, 1964/1988, p. 20). Com isso, reconhece-se a impossibilidade em instaurar uma teoria da prática – concebida como a definição máxima do discurso analítico –, por meio da mera especulação conceitual, notadamente, quando esses conceitos estão a serviço de uma Weltanchauung (“visão de mundo”).

A ética do primado da prática  

Ao delimitar o campo da prática analítica, por um lado, como um terreno fértil para as mais diversas invenções clínicas, e não apenas aquela concernente à histeria, postula-se, por outro lado, que a prática analítica é realista e, portanto, não-nominalista. O ensino de Lacan não esconde a sua filiação realista em razão da apreensão do real pela psicanálise se opor à separação radical entre os conceitos e as coisas. A prática analítica apenas é possível por sua concepção do sintoma, na qual se formula a conjunção entre o real e a linguagem. Isso, aliás, é da ordem das evidências: se a psicanálise busca modificar o real pela função da fala, é porque, segundo ela, a articulação entre o real e a linguagem é um pressuposto intransponível (SANTIAGO, 2007).

Vale dizer, por outro lado, que suas perspectivas inovadoras quanto ao tratamento do sintoma não emergem em estado bruto, sem a ação dos conceitos psicanalíticos. Afirmo que o valor ético do primado da prática diz respeito ao fato de que os conceitos e as categorias clínicas com as quais lidamos e cujo aggionarmento visamos não apenas atendem as exigências da prática analítica, mas também têm a sua origem nesse âmbito da prática.  Se Lacan chega a pôr em questão a existência de uma teoria do inconsciente – como ele o faz no transcurso do Seminário De um Outro ao outro , o faz na medida em que ele é apenas apreensível, conceitualmente falando, no campo da prática. Diante disso, pode-se inferir que o inconsciente é exemplar da dimensão consequencialista da ética, na medida em que sua conceituação não advém da mera especulação sobre a sua existência, mas, sim, da prática que o toma como objeto de uma experiência. A ética mostra-se implicada nessa formulação de que o inconsciente apenas é apreensível no campo da prática, considerando que a visada da psicanálise é a incidência efetiva no real do sintoma.

Se o princípio ético do primado da prática deve prevalecer, é preciso evitar o viés puramente especulativo, muito presente nos ambientes psicanalíticos contemporâneos, em que a psicanálise se transforma numa espécie de “sociologismo inflexível” (MILLER; MARTY, 2021) a serviço de uma causa política ideal. A psicanálise não pode acolher de modo imediatista e desprezando suas exigências éticas os significantes-mestres que passam a circular como resposta ao mal-estar da civilização. É sabido que o conceito de gênero assumiu uma importância capital para certos psicanalistas, tendo em vista que através dele foi possível contrapor ao reducionismo da questão sexual ao seu componente biológico. Em função da crítica à visão naturalista e biologizante dos corpos, passou-se a adotar a noção de gênero como uma construção social normatizada e que é convocada, por Judith Butler, a ser problematizada e criticada, como acontece em seu livro Problemas do gênero. Mais tarde, em seu livro Desfazer o gênero, essa mesma noção é objeto de uma consígnia de desconstrução.

Fazer incidir na psicanálise a concepção butleriana do conceito de gênero sem nenhuma crítica a empurra para uma visão puramente sociológica da diferença sexual, pois as posições sexuais tornam-se entidades socialmente construídas. Se, com Stoller, é em relação ao pai do par parental que o gênero se constrói, em Butler, o substrato da construção do gênero é social. Se, para a psicanálise, a posição sexual de um sujeito compreende um modo de gozo singular, para Butler, o gênero pertence à socialidade, ao socius. Por tomar o terreno das relações entre os sexos como um universo socialmente construído sem exterior, sem alternativa, sem escapatória é que se pode falar de uma sociologia inflexível. Nenhum sujeito pode escapar da performatividade social do gênero (não há sujeito e nem subjetividade). É apenas por meio da operação de disfuncionamento social promovida pelo ativismo militante dos grupos identitários que se pode gerar mudanças nas identidades de gênero e das normas heterossexuais dominantes. É notório que essa deriva para o sociologismo torna a psicanálise vulnerável a esse ativismo, em detrimento do que é a sua coluna vertebral, ou seja, a prática clínica.

Entre intensão e consequência

Dizer que a psicanálise é uma prática não a torna, portanto, uma disciplina refém da mera aplicação de regras técnicas rígidas, oriundas de uma suposta teoria psicanalítica. Uma das virtudes e resultados do Seminário da Ética da Psicanálise, que se desenvolve no início da década de 60, é contrapor-se a essa cisão entre teoria e prática e, segundo essa orientação, as questões técnicas são substituídas pela perspectiva ética. Logo, se a psicanálise não procede pela separação radical entre a teoria e a prática, se a empreitada psicanalítica se afirma como uma prática, essa prática não existe sem a dimensão ética. Se não há prática clínica sem ética, o mesmo acontece com a política, que visa constituir-se como o horizonte que organiza e anima a vida institucional de uma comunidade de analistas. Ou seja, não há uma prática institucional com a Escola e com o Instituto sem considerar a ética da psicanálise. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições que tentam se inspirar na prática institucional concebida, por Lacan, durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?

Em artigo publicado na revista La Cause freudienne, sob o título de “Política lacaniana”, Miller (1999) avança na ideia de que uma tal ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas perspectivas distintas: de um lado a “ética da boa intenção”, que não é freudiana, e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível com o campo conceitual freudiano. De outro lado, a “ética das consequências”, que sempre se julga pelo ato e, por meio do estatuto do ato, por seu valor e suas consequências. Para mim, não há dúvidas que essas duas perspectivas éticas sempre estão presentes como princípio para os que se dispõem na arte de governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.

Evidentemente que essas éticas aparecem como tendências que se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das questões que concernem as atividades cotidianas da instituição psicanalítica: a formação analítica, a admissão de novos membros, a autorização da prática clínica, o passe, a garantia, a produção, entre outras. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da boa-intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que seria uma instituição que, supostamente, responderia pelos fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra prisioneira dos limites da figura da hegeliana da “bela-alma”, que, no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação na qual estamos todos envolvidos.

Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura, necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de Escola importam muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no real de uma comunidade de analistas. É só observar o que nos últimos anos temos feitos com relação ao discurso analítico: mais do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade, dado provas de uma ação que visa injetar novos elementos nesse real.

Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de que o analista deve despojar-se de sua enfatuação, dando testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção, proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos a empreitada de dissolver os grupos e colocar em questão a lógica dos chefes e líderes, e passamos à fundação da Escola. E o que não poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de entrada, como uma forma de reconhecer que a autorização do analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto e de sua Seção Clínica.

A proposta do Instituto surge nos rastros do desejo de Lacan em criar um Departamento de Psicanálise, no contexto do ambiente universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos conhecem como sendo o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de re-fundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente do nosso Mestrado) e do Doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O próprio Miller (1997, p. 13) afirma que, se ele inventou o “Instituto foi para prosseguir, na França e em outros lugares, essa via que não é outra senão a de Lacan”. E a pergunta que emerge a partir daí é a seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, porque seria necessário criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de fundação que promoveu uma iniciativa institucional e a outra? Se trata simplesmente de espaços institucionais geográficos distintos? Claro que não! 

Duas lógicas distintas a serviço da formação analítica

Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende, invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia própria do discurso analítico se justifica em função de que é o saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que anima a existência da Escola e o que permite ter como seu sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe apenas existe porque a experiência analítica secreta essa forma de saber cuja lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e se produz por intermédio da transferência e é nisso que, enquanto modo de saber, ele está, genuinamente, ancorado na experiência analítica.

Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise, lhe é característico: o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio ao discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola na medida em que, ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação em detrimento daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a transferência de trabalho, transferência que apenas pode se personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto, entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que permanecerá para sempre como atópico: “Enquanto que a Escola se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região, país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo, tal como o matema” (MILLER, 1997, p. 13).


Referências
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
MILLER, J.-A. L’acte entre intention et conséquence. La Cause freudienne, n. 42, mai. 1999.
MILLER, J.-A. Ouverture de la surprise à lénigme. IRMA – Le Conciliabule d’Angers: Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma, 1997.
SANTIAGO, J. A querela atual do sintoma: o realismo lógico da psicanálise em face do nominalismo contemporâneo. Curinga, v. 24, p. 11-19, 2007.
[1] Conferência proferida em 15 de abril de 2023 durante atividade do IPSM-MG intitulada Para que serve o Instituto?
[2] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[3] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOYRÉ, 1982, p. 182)

 

Debate: 

Lilany Pacheco: Queria agradecer muitíssimo ao Jésus, um trabalho espetacular. Achei interessante isso de você enfatizar: a psicanálise não é, a psicanálise não é, a psicanálise não é… É parecido com o que Lacan fez nos seus Escritos para dizer o que o inconsciente não é. Achei essa pulsação importantíssima e que culminou nessa explicitação das duas lógicas de maneira espetacular, clara, marcada por esse percurso que nos deu o chão, para escutarmos a lógica que nos orienta em direção à Escola e a lógica que nos orienta em direção ao Instituto.

Jorge Pimenta: Jésus, quero agradecer a sua conferência. Eu gostaria que você voltasse a falar sobre o primado da prática, pois você citou a questão da militância no marxismo. Há um termo da dialética hegeliana retomada por Marx que é a práxis. Podemos pensar essa questão do primado da prática, ou a teoria da prática, em função desse termo, práxis. Achei interessante você ter feito essa referência à Weltanschaaung, na medida em que, em Freud, há uma distinção entre a prática da psicanálise daquela da filosofia que é essa de uma visão de mundo. Outra questão que eu faria é sobre a ética da psicanálise. Pode-se pensá-la não como uma deontologia, como é a ética das profissões; mas, o que seria a ética da psicanálise? Ela inclui o sujeito na sua vertente de parlêtre, o gozo, a pulsão?

Bruno Engler: Incialmente eu gostaria de te agradecer, Jésus, pelo esforço de demonstração do que para mim é o que fundamenta a nossa prática. Minha questão é a respeito do que eu entendi como uma ética do ato, uma ética em ato. Quero perguntar-lhe sobre o que estaria em jogo no ato de Lacan na dissolução da Escola tanto no que diz respeito à sua causa quanto em relação aos seus efeitos, como uma forma de pensarmos o lugar que estamos hoje.

Cristiana Pittella: Quero te agradecer muito, Jésus, por sua exposição. Você poderia retomar a questão da Escola como sujeito, a questão do ato e da ética própria da psicanálise? Poderíamos pensar assim também para o Instituto, pois, me pareceu que há algo que se conjuga com a Escola na forma do trabalho do Instituto.

Jésus Santiago: Antes de responder a sua questão, Cristiana, queria saber se você considera que o Instituto também deve ser concebido como um sujeito? Digo isso pois como se sabe, Jacques-Alain Miller propõe uma tese, na sua Teoria de Turim sobre o sujeito da Escola,  qual seja, que a Escola de Lacan deve ser tomada como um sujeito passível de interpretação. Como ele se exprime nesse texto: “a vida de uma Escola deve se interpretar. É interpretável. Interpretável analiticamente”.

Cristiana Pittella: Não sei e é exatamente isso que te pergunto: como considerar ou pensar Instituto? Por exemplo, chamou-me muito a atenção você destacar que “a jornada clínica incide na formação do analista”. Parece-me que há algo aí também do sujeito, do ato e da ética da psicanálise em jogo no Instituto.

Jésus Santiago: Sim, Cristiana, considero a sua questão de fundamental importância para pensarmos o futuro de nosso trabalho com o Instituto. Devo dizer-lhe que apesar das duas lógicas distintas, isto é, o saber suposto do lado da Escola e o saber exposto do lado do Instituto, penso que essas duas lógicas existem em função de um objetivo comum, que é a formação analítica. Isso quer dizer que a lógica do Passe e a do matema não existem na vida concreta desses dois sujeitos de Direito – Escola e Instituto – de forma separada e estanque. Logo, a vida coletiva do Instituto apenas tem lugar se estiver a serviço do discurso analítico. Concluo, portanto, de modo taxativo, que a vida coletiva do Instituto é tão interpretável quanto a vida coletiva da Escola.

Patrícia Ribeiro: Jésus, muito obrigada. Minha questão diz respeito ao que você sublinhou sobre o “risco de autofagia” no que toca ao discurso analítico. Seria possível pensar nesse risco a partir da leitura do texto de Miller (2005) “Uma fantasia”, especificamente quando ele afirma que o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista?

Jésus Santiago: É verdade, a hipermodernidade faz com que, de alguma maneira, o discurso da civilização passe a ser o discurso analítico, e não o discurso do mestre. Essa é a ideia central que Jacques-Alain Miller desenvolveu nesse texto ao qual você fez referência. Porém, explicite melhor o que você pensa sobre a relação dessa mudança com a tese da autofagia, ou seja, de que o discurso analítico tende ele próprio a se destruir.

Patrícia Ribeiro: Exatamente por isso, pelo fato de que não haveria mais, como esclarece Miller, uma relação de avesso da psicanálise, com o discurso do mestre, como havia antes, mas sim uma relação de afinidade, de convergência com a civilização.

Jésus Santiago: Bastante interessante a sua questão Patrícia. É verdade: se o discurso analítico – e não o discurso do mestre – passa a ser o discurso da civilização, pode-se conjecturar se isso não agravaria o processo da autofagia próprio do discurso analítico. Penso que, para avançarmos, teríamos que enfrentar o seguinte problema: para que a psicanálise possa exercer sua função de “lâmina cortante” das identificações subjetivas se faz necessário, ou não, uma relação de exterioridade da operação analítica com relação ao programa da civilização. Lembro-lhe que, nesse texto mesmo, Miller sugere a ideia de que o surgimento do discurso analítico trouxe consequências importantes no âmbito da sexualidade e da feminilidade. Em outros termos, desde o Século das Luzes não houve discurso mais potente do que a psicanálise para fazer vacilar os semblantes da vida civilizada. Assim, respondo a sua pergunta com uma outra pergunta: se a psicanálise não agisse de modo exterior ao programa dominante da civilização, ela teria desempenhado esse papel de fazer vacilar os semblantes nas esferas do sexual e do feminino?

Aluna do Instituto: Também quero te agradecer, Jésus. Fiquei pensando sobre essas perguntas que se fazem sobre a técnica da psicanálise, como, por exemplo, o manejo com o pagamento da sessão, fazendo acreditar que haveria respostas prontas para isso. Estamos hoje às voltas com isso, sobre como fazer operar, como obter respostas práticas, tais como cobrar a falta na sessão, sobre pagamento, etc.

Lilany Pacheco: Essa pergunta diz respeito aos jovens que demandam na supervisão, por exemplo, saber como agir nessas situações de falta à sessão, pagamento…

Aluna do Instituto: O que mais existe hoje são cursos que ensinam como cobrar a sessão, como se faz isso ou aquilo.

Jésus Santiago: As perguntas referentes ao modo como se analisa hoje são talvez as mais importantes e de mais difícil resposta. Não é à toa que tivemos inúmeras Jornadas e Encontros no Campo Freudiano que versam sobre o tema de como se analisa hoje. Na história do movimento freudiano, as questões que envolvem os procedimentos clínicos de intervenção segundo um conjunto de regras a serem seguidas denominava-se, até o surgimento do ensino de Lacan, “técnicas psicanalíticas”. Assim, as questões relativas à transferência e à contratransferência, à regra fundamental, à regra da abstinência e ao modo de intervenção (ativo ou passivo), à duração das sessões, à posição do analisante (frente a frente ou deitado no divã), entre outras, eram abordadas como se fossem questões de natureza puramente “técnica”. Foi Lacan quem trouxe um verdadeiro abalo nessa visão cristalizada do tratamento, em que as questões técnicas tornavam-se prevalentes com relação ao teor conceitual do que é o inconsciente, a transferência, a interpretação, a sessão analítica e etc. Por exemplo, ao abandonar a delimitação cronológica do tempo da sessão, submetendo-a a uma temporalidade variável ou curta, Lacan evidencia que as questões técnicas devem estar submetidas à perspectiva ética própria do discurso analítico. Ao ser portadora de uma temporalidade variável, a sessão analítica consiste em um modo de interpretação por meio do corte da sessão, sob a responsabilidade do analista.

Lucia Mello: Eu peço a você, Jésus, um comentário a respeito da Conversação Clínica, sobre a sua importância.

Jésus Santiago: Eu proporia uma distinção entre uma Conversação que teria incidência, de preferência, epistêmica, e outra, que teria um alcance mais clínico. Tomaria como exemplo da modalidade epistêmica a Conversação de Arcachon, que criou as condições para Jacques-Alain Miller formular a noção de “psicose ordinária”. Permito-me falar do alcance clínico da Conversação a partir da experiência que a Ana Lydia Santiago pôde desenvolver no contexto de projetos de pesquisa-intervenção que aconteceram no âmbito da rede pública de ensino. Segundo o método da Conversação, buscou-se intervir nesses sintomas da modernidade que são os problemas e impasses que atingem a vida escolar, na infância, como é caso do fracasso escolar, da segregação e da violência presente nas escolas.[i] É sabido que a escola lida muito mal com as particularidades da subjetividade, seja na infância, seja na adolescência. Nesse caso, o interesse maior da Conversação é resgatar a singularidade do sujeito e o modo como o coletivo pode abrir espaço, a partir da conversa, para que cada sujeito produza novas enunciações e práticas.

Como define Miller (2003), uma Conversação estimula a série de associações livres. A associação livre poder ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um dado momento. O intuito de uma Conversação não é produzir uma enunciação coletiva – pois, do ponto de vista da psicanálise, isso é impossível –, senão uma associação livre coletivizada, da qual se espera um certo efeito sobre o saber. Outros analistas fizeram uso do método da Conversação com o objetivo também clínico, como é o caso do Phillipe Lacadée, no âmbito dos jovens adolescentes e da variedade de sintomas que lhes concernem.   

Maria Rita Guimarães: Faço coro aos agradecimentos e cumprimentos a Jésus, sua conferência foi muito esclarecedora. O que me interessou muito diz respeito ao ato. Se eu me recordo da leitura desse texto ao qual você fez referência – Política lacaniana –, Miller (1997-98/2017) vai trazer uma pergunta: “como se reconhece um ato?”. E responde: “por seus efeitos”.

Então, me parece que, numa sessão clínica, o analista tem condições de reconhecer esse ato de um modo mais evidente na próxima sessão, no que vai se seguindo aí na análise. No CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) é possível a gente perceber que houve um efeito desse ato, mediante o impasse apresentado, quando, através da Conversação, esboça-se alguma saída. Como se poderia reconhecer o ato em suas consequências, segundo a política lacaniana, no coletivo institucional?

Jésus Santiago: Aparentemente, a pergunta da Maria Rita exigiria uma resposta que sairia do escopo de nossas discussões sobre o Instituto e a Escola. Porém, não! A própria existência da primeira Escola de Psicanálise, isto é, a Escola Freudiana de Paris, acontece como fruto de um “ato” – o ato solitário de fundação de Lacan. Entendo que o ato no plano do coletivo institucional supõe o desejo do analista, que, por sua vez, se define como a “pura enunciação” que visa a “diferença absoluta”. O ato de fundação vem para impedir aquilo que é um pressuposto da própria constituição da IPA (International Psychoanalytical Association), a saber: criar um coletivo que congregue todos os analistas do mundo. Sendo que não existe todos os analistas e tampouco o analista. “Só existe um analista, mais outro, mais outro, mais outro analista, tem mille e tre analistas” (MILLER, 1984, p. 15).

Há ainda o fato de que esse conjunto de todos os analistas está referido – porque não dizer “identificado” – ao Outro que se situa fora dele: o pai morto. Para Miller (1984, p. 15), “a IPA é um coletivo de analistas fundado pela identificação ao pai morto”. A Escola de Lacan não se constitui como um conjunto fundado no culto da memória e tampouco no apego ao legado de seu ensino. O ensino de Lacan existe de modo vivo, entre nós, orientando-nos em nossas práticas clínicas e institucionais, em que cada analista entra com a singularidade própria de sua experiência do inconsciente e do modo como cada um fez a passagem de analisante e analista. Vale dizer que constituímos um conjunto paradoxal e sem uniformidade e homogeneidade, um conjunto à la Bertrand Russell que tem como ponto de partida o axioma:  “o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos”. Considere que o conjunto P é: o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos. Se todos os conjuntos estão formando outro conjunto, então ele não pode ser um conjunto, daí surge o paradoxo inerente à orientação lacaniana: não existe conjunto de todos os conjuntos, nem classe de todas as classes.

Tânia Abreu: Jésus, é sempre um prazer te ouvir. Eu estou trabalhando em minha tese de doutorado sobre a experiência analítica e seus efeitos de formação, e ela tem relação com o que você falou, sobre o fato de que o analista se autoriza de si mesmo. Achei fantástico você fazer essa diferença entre o Instituto e a Escola a partir do Passe, nesses termos: “O instituto, que não tem o Passe, mas o matema, pode ser interpretado?”. A Escola pode ser interpretada, pois ela é sujeito, ela é dividida.

Você colocou o matema do lado do Instituto e o Passe do lado da Escola. A interpretação, a meu ver, só pode mesmo estar do lado da Escola. Mas o Instituto precisa avançar também, precisa ser revisto o seu mecanismo. Qual a ferramenta que podemos pensar para esse aguilhão?

Jésus Santiago: Tânia, creio que já pude responder a sua pergunta quando tratei da questão formulada por Cristiana Pittella. Mesmo que a interpretação esteja preferencialmente do lado da Escola e, sobretudo, porque no seu coração temos o Passe e o AE – cuja função principal, como temos visto em nossas discussões, é interpretá-la –, isso não invalida que o coletivo de analistas que assumem responsabilidades possa lançar mão da interpretação no trabalho do Instituto. Afirmo isso na medida em que o trabalho de transmissão do saber analítico no Instituto se faz sob os auspícios dos princípios e meios que se veicula no próprio discurso analítico. Nesse sentido, o instrumento com o qual contamos para fazer valer a função de aguilhão do Instituto é tanto a transferência de trabalho quanto a interpretação – notadamente, quando esta última incide sobre os efeitos de grupo e ao mutualismo inerente à vida associativa das instituições psicanalíticas.

Marcia Mezêncio: Agradeço por sua exposição. Eu também estou às voltas com esse tema sobre o qual discuti nas Lições Introdutórias, bem como na Diretoria de Cartéis. São questões sobre o saber suposto e o saber exposto, a elaboração provocada do saber e o aguilhão. Mas fiquei me perguntando, diferentemente dessa distinção, sobre o que haveria em comum entre a Escola e o Instituto. E se a resposta não seria a transferência de trabalho, porque ela está em questão no Passe, no Cartel e no Instituto. Se o Instituto está articulado à vertente do saber exposto, como ele poderia fazer uso da transferência de trabalho?

Jésus Santiago: Vou dar continuidade às minhas respostas com a questão do Jorge. É interessante porque ele faz uso do termo práxis, que foi muito corrente num momento em que, tanto ele como eu, estávamos imersos numa prática política militante contra o regime de ditadura militar que tomou conta do Brasil a partir de 64. Aliás, nós exercíamos uma militância em um grupo político revolucionário – Ação Popular Marxista-Leninista – que, inicialmente, adotava uma orientação maoísta e, pouco a pouco, migrou para uma perspectiva leninista e com forte influência do marxista italiano Antônio Gramsci. A questão das relações entre a prática e a teoria sempre foi uma questão importante para os militantes da esquerda revolucionária em ação sob o regime da ditadura militar. Havia toda uma polêmica sobre a questão da prática, sobre o voluntarismo, o “tarefismo” e, também, sobre o lugar da teoria e da formação teórico-política do militante. É verdade que, nesse momento dramático de nossa história política, surge, entre nós, o uso corrente dessa categoria práxis. Como explicar esse uso? Penso que se tratava de encontrar uma relação “dialética” entre a teoria e a prática, uma vez que nos defrontávamos com o que, para nós, era o desvio do “tarefismo”, ou do voluntarismo, ou seja, para a militância, a ação política tendia a se tornar uma “prática sem teoria”.

Do lado do marxismo também chamado de estrutural, aquele propugnado por Louis Althusser (1977), buscava-se resolver esse problema do voluntarismo do militante por meio do que ele designava como a “prática teórica”. Ele próprio foi levado a fazer uma “autocrítica” porque isso levou a um outro tipo de desvio: o do teoricismo, ou seja, uma “teoria sem prática”. No fundo, sob o nome de “teoria”, Althusser aposta em algo inteiramente diverso do que o surgimento da psicanálise pode promover a esse respeito, pois, segundo ele, a “prática teórica” seria capaz de gerar algo novo no domínio do pensamento e da ação.

No terreno da psicanálise, me parece curioso o fato de que o termo práxis surge, logo no início do Seminário 7, A ética da psicanálise”, provavelmente, porque Lacan (1959-60/1988) debatia com o ambiente psicanalítico de sua época a questão da redução da prática analítica a um protocolo de regras técnicas. Um ano após, durante o Seminário 8, A transferência, Lacan (1960-61/1992, p. 85) esclarece que o emprego do termo práxis se justifica pelo fato “de que o acesso ao real não deve ser concebido como correlativo da busca de um tema” – que seria teórico – “ainda que este seja universal”. Ele é explícito a esse respeito, ao dizer, que a “théoria […] por mais contemplativa que possa ser, ela não é somente isso, e a práxis da qual ela se extrai […] o demonstra de modo suficiente. Sob esse ponto de vista, a ideia de uma “prática teórica”, como sugere Althusser, constitui-se, para o campo freudiano, um disparate. A teoria não é, portanto, “uma mera abstração da práxis, nem sua referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação” (1960-61/1992, p. 85). Em suma, com o termo práxis, Lacan mostra que, em psicanálise, o surgimento da teoria não se faz sem a interveniência da prática, e a teoria, por sua vez, se confunde com o exercício e o poder – to pragma – do fazer e do ato analítico. A meu ver, é insuficiente o simples apelo à interação dialética entre a teoria e a prática, a exemplo do que faz o marxismo, como argumento para manter o emprego do termo práxis. Tenho a impressão que a vertente mais autêntica do que vem a ser a práxis apenas se mantém no horizonte de práticas que se sustentam no âmbito da experiência, como é o caso, na psicanálise, da experiência do inconsciente.

Por outro lado, as práticas que se alimentam pela via dos ideais, por exemplo o ideal de transformação do mundo, com vistas a atingir uma sociedade justa, sem oprimidos e exploradores – tendem rebaixar a prática ao plano de um ativismo com conotações messiânicas. Para Walter Benjamin, marxismo e messianismo, revolução e redenção, seriam duas faces de uma só e mesma pessoa, ou de um só e mesmo pensamento. Segundo ele, “a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da redenção” (BENJAMIN, 1940/2012, p. 242). Portanto, que laço se pode estabelecer entre esses dois aspectos, em que um se qualifica como “política” e o outro como “religião”? Longe de se excluírem, esses dois aspectos parecem se reforçar mutuamente, encontrando no pensamento de Benjamin analogias surpreendentes, que chega a falar de “paradoxal reversibilidade recíproca” do religioso no político e do político no religioso. Ao contrário do evolucionismo de esquerda, Benjamin não concebe a revolução como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso econômico e técnico (ou da contradição entre forças e relações de produção), mas como interrupção de uma evolução histórica criando as condições para uma sociedade sem classes, sem Estado e sem dominação patriarcal. Contrário a uma visão linear e quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da temporalidade fundada por um lado na rememoração, por outro na ruptura messiânica e revolucionária da continuidade. A revolução é o equivalente profano da interrupção messiânica da história, e também, como se disse antes, “suspensão messiânica do devir” (LÖWY, 2012, p. 135).

Por outro lado, entendo que a questão da prática assume uma especificidade própria em função desse viés profundamente anti-messiânico que circunscreve o fazer clínico do psicanalista a uma operação sobre o sintoma. Meu ponto de vista é que isso introduz na relação entre teoria e prática uma perspectiva pragmática no fazer clínico do psicanalista que provém do último ensino de Lacan. É o que permite referir-se ao primado da prática sobre a teoria psicanalítica que assume o valor de um princípio epistêmico que se faz presente desde o momento em que a psicanálise desponta na cena do mundo enquanto um tratamento ofertado ao ser falante. Assim, a via pragmática se afirma, uma vez que, para Lacan, não há uma psicanálise teórica que se diferencie de uma psicanálise aplicada e que esteja completamente separada desta última. Se não existe uma teoria psicanalítica propriamente dita, é com efeito certo que, em Freud, a clínica da histeria apenas venha à tona segundo uma “teoria da prática psicanalítica” (LACAN, 1968-69/2008, p. 64).

Sobre a questão da deontologia, posso responder a partir do que disse antes: a deontologia considerada como um conjunto de regras e de deveres que regem a prática analítica seria o avesso da dimensão propriamente ética da psicanálise. Se a deontologia constitui um conjunto de regras a ser seguida, ela é, portanto, exatamente o contrário do que são os princípios que orientam a ação do analista. A esse respeito, vale a pena recuperar o que Miller aborda em seu curso “Donc” acerca do paradoxo do cético de Wittgenstein enunciado pelo lógico Saul Kripke (MILLER, 2011). Em termos analíticos, eu traduziria esse paradoxo assim: nenhum ato analítico pode ser determinado por um protocolo de regras a serem seguidas, pois não há como garantir, por meio de um saber seguir regras, um saber fazer futuro consoante com supostas regras.

Houve um momento em que o campo analítico se viu ameaçado pela vontade do Estado-providência de regulamentar a psicanálise, e, nesse momento, fomos levados fazer um esboço de um código deontológico que expusesse os princípios e procedimentos da prática analítica. Tendo em vista que esses projetos de regulamentação não foram adiante, esse código foi para gaveta.

Lilany Pacheco: E está na gaveta….

Jésus Santiago: Sim! Ficou na gaveta. Com isto quero dizer que não é possível conduzir um tratamento analítico no horizonte de um código deontológico. Vou aproveitar para responder à aluna do Instituto que fez uma questão importante sobre a técnica. Evidentemente que as questões sobre a técnica psicanalítica surgem quando estamos em dificuldades com algum problema no tocante ao atendimento de um paciente. Muitas vezes, procura-se resolver essas dificuldades por intermédio de um fazer sob o comando de um conjunto de regras prescritivas. Lacan propõe que as questões técnicas devem estar submetidas aos princípios que conferem substância à chamada ética da psicanálise. Isso significa que não há como dirigir um tratamento analítico por meio de um protocolo de regras técnicas a serem seguidas. A medicina hoje, a tão propalada “medicina baseada em evidências”, é marcada pelo uso de guidelines, pelo emprego rotineiro de protocolos e, em suma, por princípios de caráter estritamente técnicos. Parecem-me importantes os questionamentos e as investigações, que já têm lugar no terreno da medicina, sobre o emprego do protocolo na atividade clínica do médico.

É possível afirmar que na prática psicanalítica, em contraste com essa disseminação do uso dos protocolos na medicina, exige-se uma relação íntima entre teoria e prática, e tendo a considerar que esse ponto se constitui como algo inédito no campo dos saberes em geral.  À luz do ponto da psicanálise, pode-se dizer que uma questão que emerge na atividade clínica do analista não se resolve sem a dimensão teórica, sem a dimensão conceitual. Porém, é preciso admitir, por sua vez, que essa mesma dimensão conceitual apenas adquire consistência e valor epistêmico, se ela emana a partir de uma problematização que tem lugar no seio da prática analítica.

A meu ver, é nessa interação dialética entre teoria e prática que reside o precioso aforisma enunciado por Miller: “não há clínica psicanalítica sem ética”. Vale dizer que as relações entre teoria e prática são um dos principais princípios éticos da psicanálise. Aliás, é no interior desse problema que se pode inserir a importância da prática da supervisão. A supervisão entendida não apenas como um trabalho dirigido à construção do caso, mas, também, como espaço para a interpretação da prática do analista e do desejo do analista. Por exemplo, é o trabalho da supervisão que pode lançar-se na questão: temos nesse caso clínico o funcionamento do desejo do analista como motor do tratamento?

Sobre a pergunta do Bruno Engler, sobre a questão da dissolução, parece-me interessante colocá-la como uma referência para se pensar a dimensão do ato, sobre a dimensão ética do ato, como você mesmo se expressou. O interessante no caso do ato da dissolução é constatar o que diz Miller no texto que citei antes: “Um ato entre a intenção e a consequência”. Afirma-se assim: não é que não haja nele o componente da intenção. No fundo, todo ato é portador de uma intenção. E respondendo também à Maria Rita: no entanto, o que importa destacar na concepção lacaniana do ato analítico é a sua consequência. Permanece, para todos nós, a questão: quais são as consequências do ato da dissolução? Portanto, apenas se obtém o alcance do ato por intermédio de suas consequências. É o caso também da interpretação! Só se pode aquilatar o alcance de uma intepretação a partir de seus efeitos. Assim, a interpretação apenas existe em relação com os seus próprios efeitos. Por essa razão, é quase impossível querer fazer uma teoria exaustiva do que vêm a ser as diversas modalidades da interpretação na prática analítica.

Agora, eu acho que há um outro ponto importante no ato da dissolução, promovido por Lacan, ponto que Miller aborda, nesse texto, e que, para mim, permanece em aberto. Trata-se do que num dado momento desse texto ele se propõe a esclarecer, que é a orientação que Lacan adotava para a sua prática institucional. Ele se pergunta se Lacan não mantinha um respeito excessivo para os grupos existentes no interior de sua Escola. É quase como se ele tomasse a formação de grupos num coletivo de analistas como um real insurgente. De alguma maneira, isso se constitui como um problema para a política de Escola, tendo em vista que esses grupos muitas vezes incorrem em perspectivas incompatíveis com os princípios do que o próprio Lacan ensinava.

Vejam, por exemplo, a importância que psicanalista de confissão católica Françoise Dolto assumiu no ambiente da Escola Freudiana de Paris. Em uma entrevista de Jacques-Alain Miller (2022, p. 425) recentemente publicada no livro Lacan Redivivus sobre o ato de dissolução em Lacan, ele revela a formação de um grupo que ele nomeia como o “partido jesuíta”, ou o “partido católico”, que assume claramente uma perspectiva que degrada sobremaneira as finalidades do discurso analítico. Aponta-se, inclusive, que o grande líder dessa tendência católica dentro da Escola Freudiana de Paris era o grande teórico, especialista em história e na mística cristã, o jesuíta Michel de Certeau. Então, o que aconteceu naquela ocasião é que a dissolução privilegiou o funcionamento do tipo Escola e buscou intervir nos efeitos de grupo que, de alguma maneira, degradavam a própria finalidade da Escola que é a formação analítica.

É nítido que, ao longo de sua trajetória, Lacan sacrifica a iniciativa institucional em nome do discurso analítico. Respondendo ao Bruno Engler, eu diria que a dissolução é um momento crucial para entendermos o que vem a ser o ato analítico propriamente dito. E diria mais: o ato da dissolução de Lacan encarna o essencial do ato analítico, que é a passagem de analisante à analista. Digamos que a Escola Freudiana de Paris estava voltada muito mais para favorecer e alimentar o discurso do mestre do que dar sustentação ao que designamos como discurso psicanalítico.

Acho importante a lembrança de que a dissolução se constitui como um momento exemplar do que seria o ato analítico e que o ato não é apenas o ato de fundação. E, sob essa ótica, o ato de fundação traz nele próprio a dissolução.

Por outro lado, se a Escola de Lacan deve estar a serviço do discurso analítico e se, por definição, todo discurso é o que faz laço social, deve-se levar em conta a relevância de sua inserção legal/jurídica na sociedade civil. Diante disto, se pode ter uma ideia da importância dos estatutos jurídicos tanto para a Escola, quanto para o Instituto. Na minha opinião, a importância do pertencimento simbólico de uma instituição psicanalítica no terreno do público é tal que ela só passa a existir no momento em que se torna detentora de um estatuto legal, jurídico. Por isso Lacan estimulava que as instituições psicanalíticas deveriam buscar o reconhecimento de utilidade pública junto dos órgãos competentes.

Retorno, agora, à questão da Cristiana Pittella que, a meu ver, converge com a pergunta da Tânia. Acredito que esse ponto é fundamental para as nossas discussões sobre as relações entre Escola e Instituto ao assumir uma posição de que o Instituto é tão sujeito quanto a Escola e, portanto, como a Escola, o Instituto é também interpretável. Posso dar um exemplo do quanto o Instituto também é interpretável. É inevitável para todo aquele que assume tanto responsabilidades de condução dos trabalhos, quanto tarefas com a transmissão da psicanálise no seu interior, se perguntar se o trabalho desenvolvido se mostra compatível, ou não, com o discurso analítico. Se a lógica do Instituto é a do saber exposto, é a do matema, evidentemente que corremos riscos de nos confundirmos com o que fazem os universitários. Sempre me chamou a atenção a frase inicial do escrito de Lacan (1975/2003, p. 316) “Talvez em Vincennes”: “Talvez em Vincennes venham a se reunir os ensinamentos em que Freud formulou que o analista deveria apoiar-se, reforçando ali o que se extrai de sua própria análise, isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu”. Ainda que se tratasse da criação de uma Seção Clínica, Lacan formula, nessa passagem, que o trabalho de transmissão do saber analítico deve se apoiar na experiência do inconsciente que teve lugar no transcurso de uma análise. Por mais que o foco do que se transmite na Seção Clínica passe preferencialmente pelo saber exposto, é preciso concebê-la como permeável àquilo que Freud inventa como a base da clínica psicanalítica, a saber, a experiência do inconsciente. Por consequência, a Seção Clínica deve ser considerada como uma extensão da sessão analítica, tendo em vista que consiste em mais “uma maneira de interrogar o psicanalista, de lhe forçar declarar suas razões” (LACAN, 1977, p. 14). Minha hipótese é de que o Instituto, o nosso Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, tornar-se-á mais suscetível de interpretação caso ele se aproxime ainda mais dos princípios de funcionamento do que Lacan chamou de Seção Clínica.

Acrescento ainda que, em Minas Gerais, temos uma situação muito favorável, pois o Instituto e a Escola existem como espaços institucionais conectados um ao outro. Penso, inclusive, que devemos favorecer, cada vez mais, essa interação entre essas duas instituições. Não devemos, de modo algum, manter o funcionamento dessas duas modalidades de coletivos de analistas como formas institucionais estanques. Ressalto, por último, que uma outra razão que torna interpretável o Instituto é o fato de que este se apresenta, de alguma maneira, subordinado à lógica da Escola. Portanto, devemos favorecer o processo de interação entre Escola e Instituto, na medida em que, no tocante ao discurso analítico e às exigências próprias da clínica analítica, o saber exposto apenas encontra suas razões considerando a prevalência do saber suposto.

Com relação à pergunta da Márcia Mezêncio acerca da função do aguilhão do Instituto com relação ao discurso analítico, eu entendo da seguinte forma: se você se dirigir à Universidade fazendo o uso dos termos conceituais como o objeto a ou a função do S1 no tratamento analítico, será preciso detalhar e explicitar do modo o mais transparente possível o valor desses termos. Já em nossas discussões clínicas, quando fazemos uso deles, não se faz necessário explicitá-los e detalhá-los. No terreno de uma discussão clínica, em nossas Jornadas ou Congressos, a conversação flui e avança, pois o que anima essas discussões são os interesses imediatos, ou não, relativos à prática da psicanálise.

Na Universidade não é assim, pois ela se mantém em função de uma exigência e rigor com relação ao que denominamos de saber exposto. No meu ponto de vista, e conto, a esse respeito, com muitos anos de experiência como professor universitário, essa exigência concernente ao saber exposto se constitui de um modo radicalmente outro, no âmbito do Instituto de Psicanálise. Se o Instituto lida preferencialmente com o saber exposto, ele, ao mesmo tempo, reconhece a primazia do saber suposto na operação analíticaPorém, como questiona Márcia, porque afirmar que o Instituto funciona como um aguilhão? Eu penso que o uso da figura do aguilhão para caracterizar o estilo de trabalho do Instituto apenas se esclarece se o colocarmos diante da tese da autofagia inerente ao discurso analítico. O fator de aguilhão próprio do saber exposto existe para estabelecer alguma medida ao efeito de dissipação ou corrosão próprio do que é basal na experiência analítica, isto é, o saber suposto. Em outras palavras, se aquilo que se conquista na análise, se a especificidade do saber que se adquire na experiência viva da análise, tende a se esvair, se faz necessário ao coletivo de analistas o saber exposto como meio de preservação do discurso analítico.

A esse propósito, considero os testemunhos de Passe como uma manifestação exemplar do que acabo de dizer. Não sei se os colegas AE que estão presentes nesta sala vão estar de acordo, mas eu julgo que há uma diferença substancial entre os primeiros e os últimos testemunhos de um AE. À proporção que avança o que acostumamos chamar entre nós de “ensino do AE”, o teor de enunciação dos testemunhos tende a reduzir sua força e sua intensidade. Segundo o vocabulário empregado nesta manhã, eu arrisco dizer que à medida que os testemunhos se avolumam, o saber do AE tende a tornar-se saber exposto. Ou seja, passa-se a falar da passagem de analisante à analista em termos mais conceituais, com uma perda significativa, em suas construções, do valor e do alcance de sua experiência mais íntima com o inconsciente.

Maria José Gontijo SalumAgradeço pelo que você trouxe. Concordo com o que você falou sobre privilegiar a Seção Clínica e, especialmente, dando esse passo, que é o de propor a Conversação Clínica. Ela traduz uma maturidade nas discussões clínicas no interior do Instituto em Minas Gerais, após todos esses anos de funcionamento. O que eu queria perguntar – e me parece fundamental quando se retoma a discussão do saber exposto a partir da relação da psicanálise com a ciência – seria sobre o uso que a psicanálise pode fazer da ciência, no sentido de se abrir para os procedimentos da ciência. Isso não seria também uma forma de responder à pergunta dessa atividade de hoje sobre “Para que serve o Instituto?”, ou seja, se essa operação seria possível de ser feita no interior do Instituto?

Eu pergunto pois a maioria dos jovens que chegam ao Curso de Psicanálise do Instituto, e ouvimos isso ao fazermos as entrevistas, demandam localizar no Curso, por exemplo, a possibilidade de não simplesmente estudarem a psicanálise, mas de uma certa sistematização. E, quando perguntamos sobre o que é essa sistematização, o ponto ressaltado por eles é a articulação da prática com a teoria psicanalítica.

Outro ponto que eu queria também destacar, a partir da relação Escola-Instituto, é que não há a menor dúvida de que o Instituto só existe a partir da Escola, sustentado pelos membros da Escola. Acho isso fundamental e, nesse sentido, me parece que um modo de o Instituto não ficar repetindo um modelo de mestria e de grupos é por meio de sua relação com a Escola, pois a política da psicanálise se faz a partir da Escola. Sendo assim, o Instituto conectado à Escola é fundamental.

Jésus Santiago: Para responder à questão da Maria José – “Para que serve o Instituto?” –, vou retomar a questão da Conversação. Digo isto pois tenho a convicção de que qualquer aggiornamento possível do Instituto terá que passar pelo que chamaria de método da Conversação. Acredito que por essa via nós teríamos mais chances de aproximar a oferta de formação que dispensa o Instituto daquilo que se constitui como o seu sustentáculo, que é a Seção Clínica. Voltemos, portanto, sobre o modo como se pode conceber a Conversação tal como ela vem sendo praticada entre nós. Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela é um dispositivo que foi criado, alguns anos atrás, por Jacques-Alain Miller, com o intuito de dar conta das grandes questões clínicas geradas pela desordem do real que se instalou com o advento do século XXI. A problematização da atualidade clínica que o psicanalista enfrenta, em seu cotidiano, culminando com a invenção da chamada psicose ordinária, é decorrente da Conversação de Arcachon. Devo destacar aqui todo um campo de elaboração acerca do tema da Conversação, sendo que a mais conhecida é a que surge com um dos ícones da filosofia pragmática, nos Estados Unidos, que é o Richard Rorty. É possível extrair elementos sobre a teoria da Conversação em sua concepção pragmática da linguagem, pois o interesse da filosofia, segundo o filósofo, não é epistêmico, mas ético. O objetivo da conversação não é atingir a verdade, mas fazer existir a série potencialmente infinita que por si só é o signo de um progresso, para o saber, e não de uma regressão (RORTY, 1961).  Devo referir também, a partir de sugestão que me foi transmitida pela Ana Lydia, ao escritor e ensaísta francês Marc Fumaroli (1994), que em seu livro Trois institutions littéraires trata do assunto. O autor se dedica a explicitar a ideia de que a Conversação, concebida como uma instituição privada, é elevada, na França, à categoria de uma arte: ela impulsiona a criação de um “fórum de espíritos”, em que o lugar e o laço comum era a literatura. A “arte da conversação” é vista, por Fumaroli, como um dos alicerces da cultura clássica francesa, pois designa uma prática desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, caracterizada pela busca de uma dimensão estética e hedonista nas trocas mundanas. A expressão concerne originalmente à conversação mundana, mas suas práticas e seus valores se estendem para o conjunto da sociedade culta e tiveram grande influência na literatura clássica francesa.

Um bom exemplo do que vem a ser o uso do princípio da Conversação no Campo Freudiano é o livro, recentemente publicado na França, que trata do tema da solução trans. Esse livro, que em breve será traduzido para o português, é o estabelecimento da Conversação de UFORCA (Union pour la Formation en Clinique Analytique) tal como ela aconteceu, sob a base do dizer de seis sujeitos que se veem ocupados por uma problemática trans e que decidiram falar com um psicanalista inserido nos trabalhos e atividades de uma Seção Clínica. Esclareço que a Conversação de UFORCA se realiza em torno Seções Clínicas francófonas que, como se disse antes, não se confundem com a Escola. Pois a Seção Clínica é um Instituto de formação no qual os docentes e responsáveis são de orientação lacaniana. Ela propõe, portanto, o ensino fundamental de psicanálise, que se estrutura em torno de três eixos: seminários teóricos, seminários práticos e conversações clínicas com os pacientes. Parece-me decisivo para o futuro do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais a introdução desse método da Conversação Clínica. Porém, é preciso considerar que a realização de uma Conversação Clínica, segundo esse método, praticado nas Seções Clínicas francófonas, passa por algumas exigências, a saber: a escolha de uma temática clínica rigorosamente escolhida e que concerne uma problemática pertinente à prática analítica; os casos clínicos escolhidos deverão ser previamente discutidos e construídos; realização de uma brochura contendo o relato dos casos, a ser distribuída com alguma antecedência; e, por fim, a conversação deve visar a extração de teses, hipóteses e, sobretudo, uma orientação clínica para o nosso trabalho analítico cotidiano.

Henri Kaufmanner: Você formalizou duas questões sobre as quais venho pensando, pois, nesses últimos anos, tenho acompanhado a formação dos novos Institutos e das novas Seções – Sul, Nordeste, Leste-Oeste – como êxtimo, inicialmente, e, depois, como presidente da Escola Brasileira de Psicanálise. No entanto, há algo aqui em Minas que fazemos há muito tempo e que é interessante nessa discussão da construção dos Institutos: trata-se de um certo tensionamento quanto à oferta de cursos de formação. É claro que há uma demanda financeira, os cursos permitem sustentar a estrutura da Escola. Mas, mais do que isso, há uma relação com o saber e com o ensino que constitui um caminho complicado nessa discussão que você traz de maneira tão clara e brilhante.

Quando você afirma sobre a importância de se criar espaços e investir, prioritariamente, na dimensão da clínica – e minha participação nessas reuniões sempre foi apontando a importância da Seção Clínica –, você não falou sobre a psicanálise em intensão e em extensão. Mas parece que há algo em que o Instituto pode operar, nisso que chamamos da psicanálise em extensão, que é a inscrição do Instituto na cidade, nos serviços, nas redes.  É algo que em Minas já existe há muito tempo, embora já tenha sido muito maior, pois as condições políticas hoje não são tão favoráveis como já foram. Contudo, temos sempre que tender a expandir. E, então, quando você formaliza o Passe, isso esclarece algo que tem relação com a pergunta da Tânia Abreu e que seria o seguinte: qual o real em jogo em cada uma dessas formulações. Se a pergunta da Escola é sobre o que é um analista, o que o matema traz é uma tentativa de formalização da nossa prática, de inscrever algo da nossa prática, de escrever de alguma forma o real, fazer uma fórmula do real, o que é da ordem do impossível também.

Nós sabemos que isso inspirou Lacan a fazer uma matematização da psicanálise, ainda que o matema não seja uma fórmula. O que interroga o Instituto é seu enfrentamento do real da cidade, dos seus espaços e da tentativa de matemizar isso que é da ordem do impossível. É importante que tenhamos essa clareza, pois, se a Escola é sujeito e é interpretável, o Instituto pode se apresentar dividido a partir desse encontro com esse real da experiência. Isso está ligado a uma maior participação do Instituto nos espaços mais diversos, o que a gente já fez aqui em Minas, mas que hoje vive um refluxo.

Jésus Santiago: Sou bastante sensível a essa formulação proposta pelo Henri Kaufmanner de que é preciso contar com a presença do real em nossa política institucional dirigida seja à Escola, seja ao Instituto. Diante disto, é preciso ter uma certa atenção como os rumos da oferta de formação analítica que ele intenciona fazer. Esse cuidado com o Instituto diz respeito ao fato de que se faz necessário introduzir esse real da clínica, considerando que o seu forte é transmissão por meio do saber exposto. Quando falei de aproximação do Instituto com a Seção Clínica pensava exatamente nesse ponto de que as nossas atividades visando a formação não podem se restringir à transmissão do saber exposto, sem o concurso do real da clínica. Tendo a considerar que, sem a introdução desse real da clínica, como se referiu anteriormente Henri, nós abrimos as portas para a lógica de grupo, ou mesmo para a lógica de reconhecimento que se faz a partir da formação de grupos no interior da instituição psicanalítica. É sabido que Lacan não considerava que, ao constituir um funcionamento do tipo-Escola para um coletivo de analistas, que isso eliminaria, como num estalar de dedos, os efeitos de grupo. Em nossas conversas sobre a orientação lacaniana concernente à instituição psicanalítica, Antônio Benetti sempre enfatiza que, diante do real em jogo no próprio funcionamento do tipo Escola, é inevitável a formação de grupos mutualistas como uma das respostas possíveis. Se o grupo traz em seu cerne uma consistência que é própria do imaginário, evidentemente que ele se presta a ser utilizado como resposta ao real em jogo na formação infinita do analista. Se, por um lado, é quase inevitável a tendência à formação de grupos, por outro lado, a criação da Escola visa, em última instância, o tratamento desses efeitos de grupo. Assim, se os grupos não são elimináveis, eles terão que ser tratados, inclusive interpretados pela própria Escola-sujeito. Se, de um lado, eu estou inteiramente de acordo com o Henri, de que se faz necessário fazer valer o real no cerne das atividades do Instituo, de outro, discordo dele quando nomeia como sua tarefa principal o enfrentamento do real da cidade. Penso que o objetivo a ser buscado pelos responsáveis do Instituto é, sim, tensionar os seus cursos, seminários clínicos e outras atividades através do real da clínica.

É sob esse viés que temos que adotar um olhar crítico sobre o que é um curso ou um seminário clínico articulado à concepção lacaniana da formação analítica. Por exemplo, um curso do Instituto se distingue da gama de cursos que surgem na cidade pelo simples fato de que um curso do Instituto toma a psicanálise como uma prática. A dimensão da prática tem que ser muito bem exposta num curso de formação. Portanto, não podemos fazer um curso como os demais cursos de especialização ligados às Universidades. Não podemos fazer um curso sobre o conceito de inconsciente, conceito de pulsão, conceito de estruturas clínicas, etc.

Nós temos que trabalhar melhor entre nós para criar uma alternativa que seja inovadora e compatível com aquilo que é o objetivo da psicanálise e que é tratar o sintoma. Estou insistindo muito nesse ponto, mas, se a gente não levar isso em consideração, simplesmente a psicanálise vai sofre os mesmos abalos que um dia sofreu o marxismo.

A psicanálise não deve, por exemplo, se tornar uma mera ideologia de defesa das questões de gênero, das questões segregativas – e não digo que a questão da segregação não tenha a sua importância, mas não é a Escola que tem que abraçar essa causa. A causa da Escola é a formação do analista. Se abdicarmos desse ponto, a psicanálise vai acabar, vai se extinguir. Se a psicanálise se transformar numa ideologia, se ela perder o seu teor subversivo, que é o de tratar o sintoma, ela vai se fragilizar enquanto discurso. Desse modo, eu penso que temos uma responsabilidade em não deixar reduzir a psicanálise a mais uma cosmologia ou a uma ideologia sobre a modernidade, sobre o contemporâneo, sobre as questões da segregação racial e sexual! Essas questões existem e temos que encontrar as formas mais compatíveis com o discurso analítico para tratá-las. Por essa razão, considero que deveríamos favorecer a perspectiva da Seção Clínica no contexto do funcionamento do Instituto.

Lilany Pacheco: Nesse sentido, me parece importante pensar, em relação à Seção Clínica, que os Núcleos de Pesquisa não se constituam em grupos de especialistas.

Jésus Santiago: O problema é que trabalhar no sentido da aproximação do Instituto e da Seção Clínica não é nada simples. Em primeiro lugar, porque temos que conviver pela frente com a proibição da apresentação de enfermo, que é o elemento fundamental na estrutura da Seção Clínica. De toda forma, devemos fazer todos os esforços de invenção para fazer prevalecer os princípios que orientam a tese lacano-milleriana da Seção Clínica.

Maria de Fátima FerreiraJésus, obrigada por sua conferência. Me chamou a atenção o modo como funciona a Conversação Clínica, especialmente a discussão do caso clínico. Eu quero te perguntar sobre o seu modo de funcionamento, pois não é o psicanalista que trouxe o caso clínico quem o apresenta, não é? Conforme você diz, há um modo de funcionamento anterior à Conversação em Cartéis, nos quais se discutem os casos clínicos, mas, no momento da Conversação, me parece que o analista responsável pela condução do tratamento, bem como os debatedores que intervêm na discussão, acionam um funcionamento bem parecido com a lógica do Passe. Teríamos um passante (o analista) que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado.

Jésus Santiago: Você tem toda razão sobre o modo como as Conversações Clínicas acontecem na França, elas têm um funcionamento que contém particularidades que dificultam muito o emprego desse mesmo dispositivo entre nós. Aliás, é preciso dizer que, quando a Maria José era a Diretora Geral do Instituto, nós iniciamos uma discussão para avaliar a viabilidade de uma Conversação nos moldes das Jornadas Clínicas do UFORCA. É claro que a realização dessas Jornadas, no contexto do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, requereria de nossa parte uma capacidade inventiva para encontrar soluções compatíveis com as circunstâncias particulares de nosso funcionamento. Nesse sentido, Fátima, eu considero bastante pertinente a sua hipótese sobre a analogia do funcionamento das Jornadas UFORCA com a lógica de transmissão do Passe. Penso, no entanto, que essa analogia não se justifica apenas pela similaridade do modelo organizacional desses dois dispositivos. Parece-me que o mais decisivo diz respeito à sua colocação de que analista que conduz o caso funciona como uma espécie de passante que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado. Depreende-se, da formulação desse funcionamento, que em ambos os dispositivos estamos diante do problema do que é a transmissão de um saber a partir de uma experiência do real. É bem provável que para realizar no Instituto uma Jornada, segundo essa modalidade da Conversação, será preciso aprofundar a reestruturação do Instituto segundo o princípio da Seção Clínica, isto é, introduzir, de modo calculado, em nossos dispositivos de transmissão do saber analítico, o real da clínica. Devo destacar, por último, que convivemos no momento atual com um enorme obstáculo para efetivar a implantação de algo próximo da Seção Clínica, obstáculo oriundo dos tempos da despatologização, pois somos o alvo de uma proibição implacável das apresentações de enfermo.

Paula Pimenta: Eu te agradeço e falo em nome da Diretoria de Ensino do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Acrescento um ponto que diz respeito à questão do discurso da ciência. Nós recebemos no Instituto os candidatos ao Curso de Psicanálise e vários trazem a pergunta sobre a “formação” que nosso curso virá lhes propiciar. Eu acho que você já se antecipou à minha pergunta ao diferenciar os cursos de psicanálise que existem e o que seria a proposta dos Institutos parceiros da Escola Brasileira de Psicanálise, que é a abordagem da prática. Achei isso essencial. O que eu acrescentaria, para retomar esse ponto, seria que, recentemente, no último mandato de governo federal que acabou em 2023, foi aprovada a proposição da graduação em psicanálise. As associações de psicanálise de todo o Brasil investiram esforços por longo tempo para que isso não ocorresse, mas foi autorizada, em uma etapa preliminar, pelo Ministério da Educação, a graduação em psicanálise. Em que medida isso interferirá no tipo de aluno que o Instituto passará a receber? Como você vê a repercussão dessa autorização no Instituto?

Jésus Santiago: Paula, é sempre nocivo para a psicanálise essas tentativas de regulamentar sua prática, seja pelo ordenamento jurídico exercido sob o controle das corporações profissionais, seja pela concessão de diplomas, via o sistema universitário, que, em última análise, objetivam outorgar uma suposta habilitação do que eles próprios denominam como exercício profissional. Não é sem razão o fato de que tanto Freud, quanto Lacan, fizeram de tudo para preservar a formação e a autorização da prática analítica fora do domínio e do controle do Estado. A razão principal é que a base de sustentação da formação de um psicanalista é a exigência de que o candidato à prática tenha passado pela experiência do inconsciente. E essa exigência concernente à experiência da análise não tem outra forma de controle que não seja os próprios analistas. Sem sombra de dúvidas, a aprovação dessa proposta de graduação em psicanálise trará consequências nefastas tanto para o Instituto, quanto também para a Escola. Ela é incompatível com o pressuposto lacaniano de que, apoiado em sua experiência do inconsciente, é o psicanalista que se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Diante dessa medida governamental contrária à concepção lacaniana da formação analítica, não nos resta outra saída senão fazermos a nossa parte, aprofundando ainda mais a nossa prática institucional inspirada na ética da psicanálise.

Ram Mandil: Achei interessante a referência à autofagia do saber suposto e fiquei me perguntando o que justificaria essa autofagia. Podemos considerar que uma análise tende à dissolução do saber suposto implicado naquela experiência, mas que haveria também um cuidado em manter uma relação com o saber, inclusive com o saber suposto, pois, de alguma forma, a transferência se funda mais sobre a suposição de saber do que sobre a exposição de saber.

Nesse sentido, achei fundamental isso que você trouxe para pensar a articulação entre o Passe e o matema, de modo que o testemunho de um AE não deixe em segundo plano os problemas cruciais da psicanálise, inclusive como experiência de Escola.

Em relação ao ensino da psicanálise: partindo da questão de Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, considero essa pergunta fundamental uma vez que, a meu ver, ela também interroga a tendência em tomar o discurso universitário como referência de ensino, inclusive nos Institutos. Por essa via, o que se ensina tende a virar matéria, tende a virar objeto, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia, da didática ou coisa dessa ordem e, realmente, para nós, isso não é o principal, uma vez que tende a excluir a dimensão da prática e aquilo que, da experiência analítica, não se concentra em matéria ou disciplina. Isso me fez lembrar de uma expressão que Miller utilizou em algum momento e que permite pensar não apenas o ensino no Instituto, mas também a sua relação com a Escola, que é a noção de imersão.

Pode-se pensar que a transmissão da psicanálise se dá num ambiente de imersão. Existe aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é fundamental na formação, o de estar imerso em uma experiência em curso e que mobiliza a cada vez novos elementos para nossa consideração.

Em relação do ensino da psicanálise, partindo dessa mesma questão do Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, acho que essa é uma pergunta fundamental pois a tendência, não só dos Institutos, é a de tomar como referência alguma coisa do discurso universitário. Então, como eu disse, o que se ensina tende a virar matéria, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia e da didática e realmente para nós isso não interessa. Exclui a dimensão da prática e daquilo que propriamente não se concentra em matérias e objetos. Por isso, lembrei de uma expressão que Miller usou e que acho que permite pensar a relação Instituto-Escola, que é a noção de imersão.

Você pode pensar que, na entrada na prática analítica, você está entrando em um ambiente de imersão. Tem aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é o fundamental na formação, que é o de estar aqui imerso em uma experiência que não se conclui e que mobiliza elementos que seguirão.

Jésus Santiago: Talvez nós possamos encerrar a nossa discussão com esse comentário agudo de Ram Mandil sobre esse verdadeiro paradoxo segundo o qual, em psicanálise, ensina-se o que não se ensina. Por meio do problema do que é ensinar psicanálise, o comentário elucida e aprofunda diversos aspectos do que pude abordar no tocante às relações entre Instituto e Escola. Eu ainda reforçaria a ideia fundamental de que a entrada na prática analítica se faz por meio de um lançar-se em um ambiente de imersão que confunde com a Escola e o Instituto. Como conclui Ram, é por estarmos imersos numa experiência de formação interminável que, por consequência, nunca se conclui, que é preciso manter viva a interação inspirada entre o Passe e matema, entre a Escola e o Instituto, animado pelo espírito da Conversação e da Seção Clínica.

Ainda temos a pergunta da Renata Mendonça e, portanto, vamos escutá-la!    

Renata Mendonça: Eu também gostaria de te agradecer. A minha pergunta, eu a faço a partir do Ateliê de Psicanálise e Segregação, do qual sou uma das responsáveis. Você traz questões extremamente pertinentes para separar o Instituto do mundo das pós-graduações e isso implica diretamente o desejo do analista. Digo isso porque o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica. Penso aqui nos jovens que estão às voltas com as redes, sendo capturados pelas ofertas de vários cursos, vários saberes técnicos sobre psicanálise. E agora, com a graduação em psicanálise, isso se complica ainda mais.

Por outro lado, o psicanalista, ao tomar uma posição na clínica de defesa de um determinado grupo, isso levaria, a meu ver, ao apagamento seu desejo, por excluir a singularidade de cada sujeito na experiência analítica. Isso é muito importante em um momento em que estamos às voltas com questões fundamentais, como, por exemplo – e no caso que me cabe –, a questão do racismo e as questões trans.

A pergunta que faço é no sentido de como manejar para incluir essas questões na clínica sem perder de vista o desejo do analista e, consequentemente, a singularidade de cada caso clínico. Isso é algo novo para a Escola e para o Instituto. 

Jésus Santiago: Antes de responder a pergunta da Renata Mendonça, gostaria de ainda tecer algumas palavras aos questionamentos que Maria José e Paula Pimenta fizeram, anteriormente, sobre a questão formação analítica e suas relações com a ciência. É interessante observar que, quando Lacan (1971/2003, p. 237) funda a Escola Freudiana de Paris, ele cria uma Seção de Psicanálise Aplicada, que porta como subtítulo: “O que significa de terapêutica e clínica médica”. De alguma maneira, desde a fundação da Seção de Psicanálise Aplicada, no interior da Escola, já se faz presente algo do espírito da Seção Clínica. Chama a atenção o destaque que é dado à medicina como campo de elaboração para o que é, nesse momento, a aplicação terapêutica da psicanálise. Seu pensamento é que nessa Seção da Escola estarão “grupos médicos […] que estejam em condições de contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a linha direta da práxis freudiana” (LACAN, 1971/2003, p. 237).

Impressiona a antevisão de Lacan acerca do impacto da ciência como discurso, e não tanto como saber, impacto que, para ele, se presentifica de modo contundente no terreno da clínica médica. É provável que com essa proposta Lacan antecipava a necessidade de atualização de nossa prática analítica tendo em vista as grandes mudanças que já se anunciavam no momento de fundação de sua Escola. Evidentemente que a maneira voraz com a qual a ciência invade o campo da medicina, em detrimento de sua vertente propriamente clínica, constitui-se no fator fundamental para entrever as mudanças necessárias em nossa prática. Faz-se necessário renovar nossa prática no mundo, visto que é o próprio mundo que se reestrutura provocado pela aliança dos dois mais eminentes fatores históricos: o discurso da ciência e o do capitalismo. Segundo Miller (2014), a prevalência desses dois discursos na modernidade constitui o principal móvel de destruição da estrutura tradicional da experiência humana. A consequência da ação combinada e corrosiva desses dois discursos, atingindo os fundamentos mais profundos de tal tradição é o que ele pôde designar como a “grande desordem no real (MILLER, 2014, p. 23). É pela via da aliança da ciência e do capitalismo, que “o real escapou da natureza (MILLER, 2014, p. 23), instalando a desordem que afetou a reprodução, a sexualidade, a família, a ordem paterna, etc. A psicanálise de orientação lacaniana vem se mostrando um discurso potente para contrapor e ultrapassar os discursos velhos e retrógrados que protagonizam a ordem natural do real.

Nossa política para a formação analítica não poderia permanecer impassível e indiferente a essa desordem que, de algum modo, torna pensável o que antes era apenas uma ideia-limite e, por isso mesmo, impensável, a saber, o real sem lei e sem sentido. Aproveitando o que disse nesta manhã, é preciso considerar que o real, entendido desse modo, não é um cosmo, não é um mundo e, tampouco, uma ordem de saber ainda não revelável. O real é peça solta, é pedaço, um fragmento assistemático, separado do saber ficcional que se produz a partir do encontro entre lalíngua e o corpo, encontro que faz do real sem lei prévia uma pura contingência.

Retornemos à nossa política para a formação analítica sabendo que, ao contrário da ciência, na psicanálise não há saber no real. Se a ciência pode demonstrar o real pela via do necessário, pela via desse alojar um saber no real, a psicanálise não, a psicanálise precisa do singular, ela precisa do sintoma, porque ela demonstra o real pela via da contingência, pela via do um a um, do caso a caso. E toda a nossa questão é como inserir esse real da clínica em nossos cursos teóricos, em nossos cursos práticos, em nossas apresentações de caso. Caso venhamos abrir mão do ponto de vista clínico, embasado por esse real arriscado da contingência, estaremos, em breve, confundidos com mais uma visão sociológica do mundo.

Agora sim vou tentar responder a questão, a meu ver crucial, da Renata Mendonça, sobre como manter vivo o desejo do analista em formação, como manter viva a práxis analítica considerando o dever que lhe compete de não ceder aos desvios e concessões que amortecem o seu avanço e degradam o seu emprego (LACAN, 1971/2003). Você tem toda razão em trazer para essa discussão sobre os novos rumos para o Instituto a função do desejo do analista em sua relação com um mundo em que os processos de segregação se ampliam e se agravam cada vez mais. E isso tem consequências para a diversidade das mutações que incidem sobre as novas modalidades do envoltório formal do sintoma. Torna-se claro que o seu questionamento, Renata, toca no problema da formação analítica que o Instituto deve ofertar, considerando as novas configurações do mal-estar da civilização. A formação analítica no Instituto deve se mostrar, assim, compatível com as exigências colocadas à prática analítica que acontece em um mundo que caminha no sentido do abandono das normas neuróticas, fazendo valer o sintoma menos como mensagem do inconsciente recalcado, e mais como defesa do real do gozo. A formação deve, assim, incluir um saber fazer com essas novas formas do sintoma que se apresentam como meio de gozo e deve incluir, também, um saber analisar o falasser (parlêtre), no sentido de que, além de falar, ele tem um corpo.

Porém, não é apenas esse saber fazer com o sintoma que gera a distinção entre o ensino no Instituto e a oferta de cursos de psicanálise no âmbito da Universidade. Não é apenas o saber que está em jogo nessa distinção entre o Instituto e a Universidade, pois o foco fundamental dessa diferenciação é o desejo do analista compreendido como “pura enunciação”. Mais precisamente, o desejo do analista é uma incógnita, um “x” que se coloca em sua própria enunciação (LACAN, 1967/2003, p. 257). Segundo esclarecimento recente de Miller (2023), esse “estar em posição de incógnita (x) em sua própria enunciação” se ilustra pela figura do Che vuoi?, que, por sua vez, assume a forma de uma pergunta: “que quer me dizer um analista quando fala e também quando não fala?”. Se desejo não se confunde com a fala, o analista no plano de seu desejo se mantém em uma posição de incógnita (x), ou seja, “não se sabe o que ele quer”. Segundo ele, se pode dizer que o analista pratica a “arte do enigma”, ou seja, “o enigma está para além do enunciado, porém, não se sabe”. E continua essa elaboração a partir da diferença entre a demanda e o desejo, visto que “a demanda é sempre a demanda de algo; o desejo do analista não é nunca o desejo de algo para os seus analisantes”. Conclui-se, assim, que “o desejo do analista se confunde com o desejo de nada”.

É essa articulação acerca do desejo do analista que permite estabelecer a diferença fundamental entre os cursos universitários e o ensino do Instituto, pois este último tem como horizonte a formação analítica, cujo princípio orientador é a passagem de analisante à analista. Nos cursos universitários de psicanálise, em seus programas, prepondera o saber em detrimento do desejo do analista, desejo este que, em última instância, concerne à passagem do analisante a analista. Mais ainda, constata-se que os cursos universitários se mostram fortemente atraídos pelos significantes-mestres que circulam, em nossa época, como eixos orientadores da civilização contemporânea. Daí a importância que assume, nesses cursos, o saber sociológico que busca interpretar, por exemplo, o fenômeno da segregação racial ou sexual. Acoplados a esses saberes, destaca-se inclusive a relevância da atividade militante de grupos que buscam a defesa das causas qualificadas como identitárias.

Nesse sentido, estou inteiramente de acordo quando você afirma que “o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica”. Em termos conceituais, eu afirmaria que: se o desejo do analista é o desejo de nada, se o desejo do analista é manter-se em posição de incógnita (x) para sua própria enunciação, isto supõe evitar posições e defesas animadas pelas identificações. Se a Escola e o Instituto se tornarem um sindicato em defesa das identidades, elas correm o risco, como você mesma afirma, de apagar aquilo que é o motor da clínica psicanalítica, ou seja, o desejo do analista. A psicanálise opta por não tratar, seja o problema do racismo, seja a questão trans, por meio do ativismo militante, reduzindo essas questões decisivas, para o rumo da civilização ao problema de defesa das identidades.

A operação analítica lida com o sintoma e, paradoxalmente, o sintoma é concebido, por Miller (1998, p. 55), por nada menos que “uma identidade a mais segura” de alguém”. A identidade, em psicanálise, não é da ordem de uma relação de si mesmo consigo próprio e, tampouco, da ordem de si mesmo a um grupo identitário; porém, ela é uma relação com algo. A identidade em psicanálise pode ser vista como uma relação singular à existência, relação que se faz por meio de um sintoma. Se o sintoma testemunha nossa inadaptação às normas e às exigências do Outro, ele testemunha também nossa verdade secreta, bem como nossa singularidade última. O sintoma, enquanto manifestação de um sofrimento, de um mal-estar, de uma dificuldade profunda na existência, é um obstáculo à toda transparência na relação do sujeito consigo próprio. Ao mesmo tempo, se o sintoma é o que o há de mais singular no ser falante, ele é o que vem perturbar a relação que cada um mantém com sua própria existência. É o sintoma que abala toda crença numa identidade determinada, identidade que supostamente nos tornaria transparentes para nós mesmos. Se a psicanálise toma o sintoma como seu meio de operação, é porque ela testemunha a incidência de um discurso – discurso do Outro – que marcou o nosso corpo, à revelia de nós mesmos. Compete a nós mesmos, portanto, buscar ler e tratar, de outro modo, esse enigma que é a escritura do sintoma.

Transcrição: Beatriz Espírito Santo, Daniela Gontijo de Souza, Jônatas Casséte, Luciana Romagnolli.

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[1] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[2] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOIRÉ, 1982, p. 182)



Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses[1] 

Sérgio de Castro
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
sdcastro54@gmail.com

Resumo: O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade.

Palavras-chave: psicoses; desencadeamentos; metáfora paterna; psicoses contemporâneas.

NEO-TRIGGERS: BETWEEN DISCRETION AND EXUBERANCE IN PSYCHOSES  

Abstract: the author goes through different moments of Lacan’s teaching to address the triggering of psychoses, taking his conception in the classical or structuralist period of this teaching as a result of the absence of the paternal metaphor, and then examines another way in which psychoses and their triggers are present more frequently in contemporary times.

Keywords: psychoses; triggering; paternal metaphor; contemporary psychoses.

Imagem: Sofia Nabuco

O tema de minha intervenção, “Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses”, já nos introduz numa questão mais ampla, título do Congresso da AMP que acontecerá em 2024, Todo mundo é louco. Vejam que tal tema já é tributário de uma leitura da contemporaneidade que não se compatibilizaria inteiramente com os primeiros anos do ensino de Lacan, mesmo não havendo entre os diversos períodos de tal ensino propriamente rupturas.

Pois bem, quando falo em primeiros anos do ensino de Lacan, no tema que nos toca hoje, refiro-me, em especial, a “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Ali, como sabemos, há contrastes e diferenças nítidas, fundamentos mesmo da voga estruturalista que encontrava na França daquele período seu ápice. Eles serão então típicos do paradigma apresentado em “A instância da letra ou a razão desde Freud”, que inaugura a relação de Lacan com, justamente, a linguística estrutural. Estamos aí no cerne do que se convencionou chamar de Lacan clássico.  Como sabemos, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” os contrastes clínico/conceituais são sempre acentuados, fundados como estão nas premissas de articulação e diferença próprios da definição de estrutura. E aqui, a noção de simbólico, depositária que será da própria linguagem, estará, hierarquicamente falando, numa posição determinante com relação ao imaginário e ao real. Ou, se preferirmos, nesse momento do ensino de Lacan poderemos falar de um domínio do simbólico sobre o imaginário e o real. Pensaremos portanto ali num desencadeamento a partir de um encontro do sujeito com Um pai, numa solicitação proposta pela vida (a paternidade/maternidade, a perda de um ente querido, uma situação profissional imprevista, etc.) muitas vezes objetiva, à qual, no plano da subjetividade, aquele sujeito não foi capaz de responder recorrendo ao que chamaremos aqui de “ padrão” então vigente. Ou seja, responder a partir de uma posição terceira, fora do eixo a…..a’, como vemos no esquema L apresentado naquele momento por Lacan,  próprio da dualidade especular/imaginária. E isso, justamente por não dispor de recursos para, nessa resposta, sustentar-se no Nome-do-Pai, inscrito como poderia estar, no Outro. O Nome-do-Pai então deve ser pensado então como um significante especial e operador privilegiado para lidar com o real do gozo que teria emergido naquela solicitação feita àquele sujeito naquele momento. Ele será, portanto, o sustentáculo mínimo de toda a ordem simbólica. Falar então em hegemonia do simbólico, como podemos falar desse período do ensino de Lacan, resultaria nisso, em se tratando de um desencadeamento clássico de uma psicose: num dado momento da vida daquele sujeito ele terá sido solicitado a responder, subjetivamente, desde uma posição simbólica (aliás, desde esse significante privilegiado e dos recursos simbólicos transmitidas por ele), e, por não ter acontecido de aquele significante ter se inscrito no estoque significante daquele sujeito (inscrito no grande Outro, que será também um nome do inconsciente), haverá um desencadeamento. Ou, o que não estava inscrito no simbólico, por estar nele foracluído, retornará do real, na forma de fenômenos elementares, as alucinações sendo aqui o paradigma de tal retorno.

O que nos levaria então a um desencadeamento claramente marcado por um antes e um depois, em muitos casos só sendo possível um diagnóstico de psicose uma vez ocorrido tal desencadeamento. Tudo isso a partir deste significante (o Nome-do-Pai) que, em tese (ou, se se tratasse de uma estrutura neurótica), deveria estar inscrito no Outro para aquele sujeito, ali onde a linguagem e a fala, como instâncias simbólicas, se sustentariam. Daí as consequências por nós exploradas há muitos anos: sem a inscrição desse significante privilegiado no campo do Outro ou, a partir de sua formulação lacaniana clássica, com a foraclusão do Nome-do-Pai do simbólico, (P o) Pai zero e suas consequências imediatas: (Ф o), falo (simbólico) zero.

O caso paradigmático de então, como todos sabemos, será o de Schreber, que, justamente no momento em que recebe, em sua carreira jurídica, uma promoção há muito tempo almejada, perde o chão e não segura com a firmeza fálica que seria necessária, quer dizer, a partir do falo simbólico inscrito no Outro (justamente o que não havia em Schreber), o cargo de Presidente daquele tribunal. De onde a célebre fórmula já citada aqui de Lacan: o que é foracluído do simbólico (o Nome-do-Pai, nessa foraclusão maior indicada então por Lacan) retornará no real, quer dizer, enquanto fenômenos ruidosos e elementares, especialmente nas alucinações. Esse é, portanto, o desencadeamento clássico, contemporâneo de uma época – e aqui tocamos no que me parece ser o ponto principal da questão – em que esse significante privilegiado, sustentáculo mesmo de toda a ordem simbólica como Lacan a formulava então, estaria mais ou menos disponível, e de forma hegemônica, na cultura. Daí a nitidez e o contraste acentuados entre uma neurose, quando, então, naqueles sujeitos, o modo “padrão” se transmitiria (ainda que, é claro, a partir das singularidades do romance familiar de cada um), sendo esse modo padrão o Nome-do-Pai, urdido especialmente (mas não exclusivamente) a partir de uma organização patriarcal das famílias e uma psicose, onde tal transmissão não teria se dado.

O que gostaria de acentuar é que, com a famosa tese de Miller e Laurent (extraída de Lacan por certo) de um declínio do Nome-do-Pai, tal “modalidade padrão” de resposta deixa, gradativamente, de ser hegemônica na cultura. Até então teríamos o contraste e a nitidez típicos de uma clínica estrutural, na qual uma sustentação subjetiva daquele sujeito referida no Nome-do-Pai, ou não, fará a diferença entre uma psicose ruidosa, e o extraordinário daquele desencadeamento, no qual as formas delirantes agudas ou as psicoses alucinatórias crônicas seriam nítidas, e uma neurose, em sua suposta discrição e maior extensão social. No entanto, para tentarmos nos aproximar da questão das psicoses ordinárias, acho que seria importante enfatizar um outro ângulo de tais elaborações.  Isso dado o que me parece ser a complexidade da questão e um certo avanço mesmo que foi possível fazer sobre elas a partir de suas formulações iniciais no Conciliábulo de Angers, na Conversação de Arcachon e na Convenção de Antibes, todos eventos e elaborações feitos no final do século passado.

Ora, um ponto que me parece importante termos em mente é o de que tais elaborações serão tributárias, mais ou menos diretamente, das elaborações feitas por Jacques-Alain Miller e por Éric Laurent no curso psicanalítico de 1996/1997 que eles dividiam, intitulado O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se falei um pouco antes de uma “modalidade padrão” de resposta do sujeito a questões que a própria vida se lhe apresentava, será justamente o alcance e a extensão desse dito padrão que será examinado e posto em questão em tal curso. Pois, se o Outro não existe mais (e o advérbio mais aqui é fundamental), como propõem e examinam Miller e Laurent no curso citado, isso quer dizer que algo, no campo do Outro, mudou. E onde localizaremos tal mudança? Justamente em seu ponto de sustentação mínimo e fundamental: a inscrição ali do Nome-do-Pai. O declínio do Nome-do-Pai então (ou, se preferirmos, sua não inscrição, ao menos se tomarmos como referência a dita “modalidade padrão”) será correlativo e elucidará o que chamaremos de emergência do UM, tanto quanto da frase de Miller que já se tornou famosa, a saber, de que o objeto encontra-se hoje em seu zênite social.

Tentemos dar mais uma volta: o inconsciente estruturado como uma linguagem, esse inconsciente próprio do famoso retorno a Freud empreendido por Lacan, se sustentará no dispositivo do recalque, ou da Verdrangung freudiana. A partir de um recalque primário, teremos todos os recalques secundários, sempre compostos de material significante e que encontrarão em suas diversas modalidades de retorno – as famosas formações do inconsciente – as manifestações registradas por Freud e inaugurais mesmas da própria psicanálise. Aqui, nas formações do inconsciente, de um inconsciente portanto estruturado como uma linguagem, teremos os sintomas (sem a letra h), os famosos atos falhos e os sonhos, tal como apresentados por Freud na obra inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos e, posteriormente, em Psicopatologia da vida cotidiana. Ora, tal inconsciente, (e, portanto, toda a ordem simbólica que se desdobra e se sustenta aí) estará assentado no dispositivo do recalcamento e será inteiramente tributário da incidência do Nome-do-Pai sobre o desejo da mãe, naquela fórmula inicial de Lacan, a da metáfora paterna, apresentada em A instância da letra ou a razão desde Freud. O resultado de tal operação será tanto a significação como fálica, quanto a própria constituição do inconsciente como Outro. Ou seja, a constituição do sujeito como neurótico e a inscrição do falo enquanto falo simbólico nesse mesmo campo.

Ora, apresentar a tese (ou a constatação, para melhor dizê-lo) de que o grande Outro não existe mais (ou existe de forma tão fragmentada que não será mais entendido da mesma maneira) será afirmar que a metáfora paterna, constituída a partir do protagonismo do Nome-do-Pai, aquele recurso simbólico até então típico para lidar com o gozo, não opera mais a contento.

No Seminário 21, de 1973/74, Os não tolos erram, ainda inédito, Lacan descreverá uma situação em que certas mutações (justamente as indicadas aqui), que se articulam e se imbricam à própria constituição do sujeito (ou do falasser), produzirão novas modalidades de laço social (mas não fica claro se podemos falar aqui em laço social, tributário que é da noção de discurso, o que justamente parece estar afetado numa época em que o UM inteiramente só, em sua vocação autista, encontra-se numa espécie de zênite de cada falasser).

Ora, toda uma indistinção entre termos até então contrastantes e nítidos, veiculados mesmo por certas tradições e constitutivos do próprio pensamento estruturalista tal como operado por Lacan no início de seu ensino, simplesmente se pulverizam, ou se pluralizam. Podemos abordar tais mudanças de diversas maneiras possíveis, e as psicoses ordinárias serão, num plano clínico, uma maneira de constatá-las. Lacan afirmará no referido Seminário 21 que o sucedâneo a uma ordem articulada a partir do Nome-do-Pai e sua Lei simbólica será muito mais feroz e rígida, muito mais imperativa e normativa do que a ordem simbólica que lhe antecedeu. E a chamará de “ordem de ferro”. Portanto, tal “ordem de ferro” será um dos nomes do que se constata a partir da inexistência do Outro. Será a partir dela que tentaremos indicar algumas questões relativas às psicoses ordinárias em sua extensão contemporânea.

Desde o Seminário inacabado (ou apenas iniciado), que se chamaria justamente Os Nomes-do-Pai, até suas elaborações finais, em especial nos Seminários 23 e 24, o que veremos em Lacan será a desmontagem gradativa, correlata do próprio “movimento do mundo”, de uma ordem na qual o simbólico seria hegemônico e dominante. Quer dizer, Lacan passa a orientar e a repensar seu próprio ensino a partir de tais constatações nas quais, de uma ordem em que o Nome-do-Pai seria a modalidade predominante de sustentação subjetiva, passava-se a um entendimento no qual esse recurso simbólico para lidar com o gozo perde sua hegemonia, tornando-se apenas uma modalidade possível entre outras. A essa des-hierarquização radical constatada e então promovida por Lacan no âmbito de seu próprio ensino, veremos, por exemplo, o recurso aos nós serem produzidos. Aqui, simbólico, imaginário e real estarão num mesmo plano. O que permitirá, sem que se prescinda de um diagnóstico referido numa clínica estrutural, que seus termos possam ser fortemente nuançados.

A partir de tais referências, e do que Lacan permite que se extraia delas, é possível sair de uma distinção por demais mecânica, como dirá Laurent (2022),  entre as psicoses e as neuroses. Poderemos a partir daí ultrapassar parcialmente esse regime de contrastes nítidos e acentuados, por exemplo entre foraclusão e não foraclusão do Nome-do-Pai, ou mesmo que se fale e se localize outros tipos de foraclusão, como a foraclusão generalizada ou a foraclusão de fato. Talvez aqui possamos ir além da própria noção de psicose ordinária, quando tratar-se-ia, ainda seguindo Laurent (2022), de, em cada caso, encontrar a pequena e singular montagem dos nós que cada sujeito produziu para dar conta de si mesmo no mundo e na vida.Quer dizer, cada arranjo, cada pequeno arranjo que tão frequentemente se construirá a partir de recursos distintos do que chamei de padrão, articulado ao Nome-do-Pai. Pois, uma vez que os recursos disponíveis na cultura hoje para a sustentação de cada falasser sejam tantos, e tão distintos da modalidade clássica chamada Nome-do-Pai, basta que pensemos rapidamente nas redes sociais, na internet, na deep internet e na IA – cujos efeitos e consequências mal pressentimos – para nos darmos conta de que ali se oferecem infindáveis termos e recursos de amarração subjetiva fora da modalidade clássica, para constatarmos que as consequências e funcionamento do que poderíamos então chamar de “ordem de ferro” são de alcance amplo e ainda mal vislumbrados. E, se falávamos de uma Lei simbólica enquanto um certo padrão da cultura, uma vez que referida no Nome-do-Pai, talvez possamos falar hoje de uma norma psicótica (LAIA, 2023), que não seria simplesmente sinônimo de psicose, mas do que indiquei como “ordem de ferro”, quer dizer, uma ordem que não oferecerá, predominantemente, operadores simbólicos para lidar com o real do gozo.  Ou seja, cada um hoje tem que se valer de normas que proliferam no lugar da falta da Lei simbólica, que não será mais passível de ser definida como um universal, ou articulada a um suposto Discurso Universal, uma vez que tal Lei deixa de ser típica da cultura, ou das culturas, de um modo geral. Para pressentirmos o alcance da questão podemos pensar, por exemplo, no próprio avanço da extrema direita (não da direita, mas da extrema direita) tal como se constata hoje em várias partes do mundo. Ou seja, o recurso ao cassetete, como antevê Lacan em “Televisão” (LACAN, 1973/2003), ou à força bruta, na medida em que algo da ordem simbólica se desarranje gravemente, como se constata hoje, ou nos fundamentalismos religiosos, no próprio triunfo da religião,[2] nas radicalizações em tantas áreas e atividades humanas (os jogos eletrônicos, o vício numa academia de ginástica, a posição subjetiva do adicto enfim), poderão  ser pensados como consequências dessa desregulação de uma Lei simbólica até então tida como fundamental. Pois essa “desregulação” da Lei simbólica, escrita assim com maiúscula, trará efeitos agudos em diversos campos e domínios, como o da diferença sexual, uma vez que, como também aprendemos em “Televisão”, tal diferença será tributária e se fundamentará mesmo no recalcamento primário[3] e secundários que lhe seguirão.

Então, creio que podemos dizer que a questão do ordinário, nessa era pós-Nome-do-Pai, ou das psicoses ordinárias, tem a ver com o comum, com o que se estabeleceu, com o que é veiculado nas rotinas dos discursos, ou do desfalecimento dos discursos operado pelos jogos eletrônicos, pela IA, pela internet, etc. Isso talvez relativize um pouco a questão do extraordinário enquanto, em se tratando de uma psicose, remeta apenas ao extraordinário de uma sintomatologia. É possível que possamos dizer aqui, no domínio da “ordem de ferro”, que é o da contemporaneidade, que, sim, muitos sujeitos ainda se sustentam a partir de uma amarração subjetiva a partir do Nome-do-Pai, mas que em outros, muito discretamente às vezes, um pequeno desenganche – para usarmos um termo ao qual recorremos numa clínica dos nós – acontecerá e será importante detectá-lo, e nosso trabalho seria o de acompanhar ou até possibilitar que um outro tipo de enganche ou de grampo, para usar outro termo que nos é caro hoje, se produza. Seriam, estes últimos, falasseres passíveis de serem situados no campo das psicoses, ordinárias certamente, mas, especialmente, contemporâneas. Portanto, não parece suficiente dizer que uma psicose ordinária seria uma psicose que não desencadearia, ou que não se desencadeou ainda. Não; se tomarmos a questão pelo prisma da norma psicótica, uma psicose ordinária poderia sim se desencadear ou já ter se desencadeado. Não me pareceria essa a distinção principal a ser feita. A questão do ordinário, então, e das psicoses ordinárias, talvez seja a questão das psicoses contemporâneas, em que a extensão delas é, sem dúvida, muito maior, e teriam a ver com os recursos dos quais os falasseres lançam mão nas normas que passam a vigorar na atualidade, que são recursos muitas vezes precários de regulação do gozo. Ou, se não precários, inéditos, invenções contemporâneas (porque alguns são razoavelmente estáveis, inclusive, ainda que invenções contemporâneas). Para concluir: tal regulação precária do gozo, ou o ineditismo dos arranjos para lidar com ele, é que definirá e esclarecerá o ordinário de uma psicose típica de nossa época.


 

 Referências
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LAIA, S. Por que as psicoses…  ainda. Revista Curinga, n. 55, p. 164-175, 2023.
LAURENT, É. O inconsciente e o acontecimento de corpo. ECOS – Boletim da 25a Jornada EBP-MG, n. 3, 2002. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2021/o-inconsciente-e-o-acontecimento-de-corpo/. Acesso em: 01 jul. 2023.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanalise e Saúde Mental em 23 de maio de 2023.
[2]  Como indica Lacan (1974/2005, p. 65): “[a religião] não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre inúmeras outras coisas também. […] O real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender, e a religião terá então muito mais razões para apaziguar os corações. A ciência é novidade, e introduzirá um montão de coisas perturbadoras na vida de todos. Ora, a religião, sobretudo a verdadeira, tem recursos de que sequer se suspeita. Por enquanto ela fervilha”.
[3] Lacan (1973/2003, p. 530) dirá que Miller, seu entrevistador, se “resvalou no esquerdismo”, não o terá feito no “sexo-esquerdismo”. Parece-me que hoje lidamos com algo que na década de 1970 chamava-se de “sexo-esquerdismo”, mas com as diferenças produzidas e acentuadas pelo discurso da ciência, quando, por exemplo, cirurgias de mudança de sexo são cada vez mais banais e acessíveis. Será algo, portanto, do recalque primário e da própria constituição do inconsciente que estará concernido aqui. E, no horizonte, o afã humano de fazer existir a relação sexual. Como lidaremos com tais questões, tais como se apresentam hoje, possivelmente definirá todo o porvir da psicanálise no mundo.



O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares[1]

Alejandra Glaze
Psicanalista
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana/AMP
aglaze@gramaediciones.com.ar

Resumo:  Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. 

Palavras-chave: delírios familiares; imaginário desenfreado; objeto a. 

THE OBJECT a AS A COMPASS IN TIMES OF FAMILY DELUSIONS 

Abstract: In her investigation into the particularity of current family delusions, the author takes as her starting point the location of a delusion linked to an unbridled imaginary that, for this very reason, is profoundly standardizing and invasive for the child. And it points out how psychoanalysis can take advantage of another perspective of reconfiguration of families, taking as reference the object a, by nature antinomic to the current lifestyles traced with the mark of the universal. 

Keywords: family delusions; unbridled imaginary; object a.

Imagem: Sofia Nabuco

O tema proposto para esta apresentação me fez pensar muito, pois, para mim, era um obstáculo a ideia de que, para além da época, haveria algo de delírio nos assuntos familiares, ao menos no sentido que costumamos dar ao delírio quando dizemos “Todos loucos” ou “Todo mundo é louco”.

Portanto, para além da questão da época, sabemos que cada criança provém de um delírio familiar, se pensarmos que dizer “todos delirantes” nada mais é do que afirmar que não há possibilidade de alcançar normas comuns. Ou seja, cada um faz obstáculo, ou mesmo, é um obstáculo à norma para todos. Mas não proponho isso considerando a via de uma despatologização (como faz hoje a clínica moderna ligada ao DSM[2] e às neurociências), mas como forma de dizer que a exceção não faz a regra.

Esse é o caminho atualmente aberto em direção aos estilos de vida que, como disse Jacques-Alain Miller no texto de apresentação do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, implica “uma liberdade imprescritível porque é a dos sujeitos de direito” (MILLER, 2022, p. 17), quando sabemos que hoje são os direitos humanos que regem a subjetividade moderna.

Para chegar rápido ao ponto, esse delírio familiar que vocês localizam como uma questão de época, no caso da neurose, ele descreve mais um imaginário, de certo modo, um tanto desenfreado. Considero que esta é a questão da época: um delírio ligado a um imaginário desenfreado.

Vou ler uma citação de Laurent, retirada de seu artigo “Responder al niño de mañana”, referente à narrativa pós-moderna sobre a criança:

A criança e o adolescente se veem submersos em uma produção industrial de ficções romanceadas que os ocupam enormemente, pois temos que contar as horas de televisão, de ficção televisiva, para sonhar sua vida frente a uma tela. Se somarmos a isso os videogames e os jogos de encenações, vemos que a criança está ligada a toda uma trama ficcional, narrativa, romanceada, que invade a sua vida como nunca. Ela lhe proporciona, amplificando, todos os elementos que a ficção edípica não pode transmitir. (LAURENT, 2001, p. 98)

Isto é o que podemos chamar de imaginário desenfreado.

Embora o delírio familiar seja o próprio Édipo, devemos nos perguntar sobre a particularidade de nossa época para esse delírio familiar, que nada mais é do que a multiplicação deslocalizada do núcleo familiar e dispersa no tecido do mundo ao qual a criança chega. É assim que eu respondo o porquê de vocês localizarem o delírio familiar em nossa época. Nessa deslocalização. E isso tem suas consequências subjetivas e clínicas. Um imaginário que, muitas vezes, é profundamente invasivo, no qual a criança é aprisionada e de onde é difícil retirá-la.

Mas vamos abordar essa questão sob outra perspectiva: sabemos que o que deve ser feito como homem ou como mulher, o ser humano terá que apreender inteiramente com o Outro, pois pertence “ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro”, como disse Lacan (1964/1988, p. 194) no Seminário 11, acrescentando que “o Édipo é propriamente isso”, essa captura nessa trama que vem do Outro. 

Isso nos coloca diretamente no que podemos chamar de a trama do familiar, a maneira pela qual se tece aquilo que dá forma a nossa vida, isso que nos faz sujeitos tal como o somos, embora sempre haja um resto… Resto com o qual também tecemos, nem mais nem menos, aquilo que nos define. Um modo de sermos nomeados pelo outro, de onde cai essa peça indizível como produto do que eu chamaria a operação do familiar sobre cada um. O não familiar, que também opera como esse lugar no qual não podemos nos reconhecer a partir dos brasões que vêm do outro, desde essas marcas que vêm do outro familiar.

Mas vamos por partes, porque estou lhes contando o final desse percurso.

Até mesmo Jacques-Alain Miller – na mesma linha de Laurent –, em seu artigo “Em direção à adolescência”, disse que

A incidência do mundo virtual […] faz com que o saber, antes depositado nos adultos, esses seres falantes que eram os educadores, incluindo aí os pais – era necessária a mediação deles para aceder ao saber –, esteja agora automaticamente disponível mediante uma simples demanda formulada à máquina. O saber está no bolso, não é mais o objeto do Outro. [E isso me parece fundamental para o tema que me propuseram para esta atividade.] Antes, o saber era um objeto que era preciso buscar no campo do Outro, era preciso extraí-lo do Outro pelas vias da sedução, da obediência ou da exigência, o que exigia que se passasse por uma estratégia com o desejo do Outro. (MILLER, 2015, p. 24.)

Poderíamos dizer que este é um outro modo de definir a decadência do patriarcado.

A internet é povoada por manuais que sempre tentam, sem sucesso, e às vezes até com consequências dramáticas, funcionar como o Outro que define a maneira de ser homem ou mulher, de adquirir algum tipo de identidade, às vezes baseada em ideais, mas muitas vezes também em gozos.

Vocês podem ver um exemplo no WikiHow, uma página na qual existem diferentes manuais para adolescentes, eu apenas listo alguns:  Como agir de forma inteligente frente aos seus amigos, Como aparentar ser meiga, Como beijar um rapaz, Como pegar na mão pela primeira vez (apenas para meninas), Como conseguir um namorado no ensino médio, Como flertar com os olhos,  Como saber se uma garota gosta de você, Como abraçar seu namorado/namorada pela primeira vez, Como agir como uma adolescente normal, Como agir quando o cara que você gosta está por perto, Como ser uma garota perfeita, ou até mesmo Como ser uma garota má.

Pois bem, os manuais, os protocolos, os costumes – mas também o Édipo como trama – vêm tentar preencher esse furo que Lacan definiu com a frase: não há relação sexual.

Mas o que isso significa? Significa que o que faz objeção ao pleno dizer é o mesmo que se opõe ao encontro harmônico entre os sexos e provém da captura do ser humano na linguagem, do caráter do inconsciente estruturado como linguagem. É uma outra forma de enunciar a castração freudiana.

Mas sigamos com o nosso tema. Um famoso slogan dizia: “Pertencer tem seus privilégios”: a uma família, a um grupo, a uma tribo, a uma fraternidade, a uma escola… e um longo etcetera, o que conduz ao ponto do primado do Outro do lado do amor e, por conseguinte, aos assuntos de família. Pois bem, hoje em dia, em muitos casos, esse gosto pelos privilégios que advinham do pertencimento foi perdido? Já que isso que interpela como sendo o estranho/o diferente, que retira da série e reenvia a um lugar Outro que aquele da cena familiar, parece ser o que rege hoje a vida dos sujeitos. Qual seria a nossa prática nesses casos? Todas essas são perguntas pertinentes aos tempos em que vivemos.

Outra perspectiva que aponta para o mesmo: em nosso tempo, a paternidade foi substituída pelas chamadas parentalidades, que não é mais do que um outro nome para o concebido mal-entendido dos sexos.

Desse modo, o planejamento familiar hoje responde ao legítimo direito ao gozo, pelo qual o sujeito contemporâneo defende seu direito de ter e formar uma família segundo as suas condições de gozo. Em suma, a conformação da família continua respondendo à deriva do sintoma como maneira de responder à inexistência da relação sexual para cada um. Portanto, longe de uma leitura conservadora dessas mudanças na estrutura familiar, devemos pensar em suas consequências sobre os sujeitos e na clínica que a acompanha. É onde está a psicanálise. É a de seguir pensando a resposta do sujeito como um modo de lidar com o mal-entendido entre os sexos, enfim, com a ausência da relação sexual. E, nesse sentido, orientar-se em direção ao real da família, é colocar – frente ao mal-entendido dos sexos – o sintoma como suplência da não relação sexual. E, nessa linha, o Édipo não seria mais que um sintoma do sujeito. Seria sua maneira de fazer com esse mal-entendido e com o gozo, com aquele hetero que aparece e não é dialetizável, que não entra em nenhuma forma de troca.

Como aludi anteriormente, passamos da autoridade paterna para a autoridade parental. E o que emerge dessa modificação é a parentalidade que, sem dúvida, teve consequências no modo de constituição da família.

A parentalidade repousa sobre a exclusão de toda combinação ou complementaridade de funções, implicando em uma simetria e uma igualdade entre o pai e a mãe no que diz respeito à ordem familiar. Dessa forma, a família vem substituir o pai e a mãe. E o termo parentalidade vem para substituir o termo família. E também o do parentesco. Ele advém da mudança de autoridade no núcleo da família no marco da lei.

Há pouco tempo, a lei argentina substituiu o conceito de patria potestad[2] pelo de responsabilidade parental. A palavra potestad se conecta com o poder que evoca a potestad do direito romano, centrado na ideia da dependência absoluta da criança em uma estrutura familiar hierárquica, enquanto a responsabilidade “implica o exercício de uma função encabeçada por ambos os progenitores, que se manifesta num conjunto de faculdades e deveres destinados, primordialmente, a satisfazer o superior interesse da criança ou do adolescente”. (Isso na terminologia jurídica, é claro.)

Parentalidades? Claramente se trata de um neologismo cunhado há pouco tempo e destacado por M.-H. Brousse em 2005, que dá conta da manifestação dos efeitos sobre a ordem familiar produzidos pela mutação da civilização, assinalada por Lacan a partir dos anos 70.

Antes se falava em guarda, agora em dever de assistência, e isso era decidido pelos pais com a concordância de um juiz. Agora, dependendo da idade da criança, ela pode pedir para falar com o juiz e ter o direito de expor os seus desejos. E é interessante o que essa mudança de paradigma produz no âmbito do núcleo familiar. Enquanto o Édipo, baseado na autoridade do pai, marcava uma relação que consistia na pregnância de uma lei velando a ausência da relação sexual, a parentalidade produz uma equivalência entre mãe e pai. Mas nesse apagamento da diferença pai/mãe e, por conseguinte, de suas funções, vemos também que a diferença homem/mulher também é afetada, assim como todo o sistema de parentesco.

Ser falado pela família, pelo desejo do Outro, fazer parte de um discurso familiar, é uma tentativa de dar sentido ao segredo sobre o gozo que os une, é cernir o real tratado por esse discurso e se encontrar com a estrutura ficcional de toda verdade. Em suma, toda família é um aparato de gozo, uma forma de salvaguardar o segredo do gozo como indizível.

Ressaltemos também que o ensino de Lacan desfamiliarizou a doxa freudiana do Édipo, desalojando a metáfora paterna para, assim, afastar-se do mito e da determinação do destino, orientando nossa clínica para além de Édipo. O ponto central de seu ensino foi o de localizar o gozo e orientar-se para Um real que as ficções do mito e da lei do pai para todos pretendiam cobrir.

A questão é que justamente o que uma análise propunha como desfamiliarização, uma clínica mais além do gozo como separação dos significantes que vêm do Outro, hoje vemos isso em ato no social, de modo que talvez pudéssemos dizer que os sujeitos chegam ao consultório desfamiliarizados.

A partir do último ensino de Lacan, somos alertados para uma teoria que poderíamos chamar de pós-edípica do inconsciente, que separa o modo de gozo do sujeito e do Outro, da função paterna.

Já em 1970, nas Jornadas da Escola Freudiana de Paris, Lacan sustenta o declínio do pai e desenvolve as suas consequências, que não são poucas. Poderíamos defini-la como uma ordem de vizinhança, que vem romper com aquela ordem hierárquica que implicava a autoridade única.

Ele postula a fragmentação do Nome-do-Pai (um multiculturalismo que empuxa para modos segregativos de gozo) e, em 1974, o associa a extensão do domínio do real produzido pela ciência ao desenvolvimento do poder da religião, um poder que não é o mesmo de antes, uma vez que se tornou a religião dos irmãos e não do Pai, produzindo-se, assim, o que Brousse chama de “multirreligiosismo”. O Islã é o contraexemplo disso, e assim Miller diz em seu texto “Em direção à adolescência”: “O Islã talvez seja o discurso que tem melhor em conta que a sexualidade faz um furo no real, que coagula a relação sexual e que organiza o laço social na não-relação” (MILLER, 2016, p 27.). É aquele discurso que diz exatamente o que é ser mulher, homem, mãe, etc. Ou seja, no Islã não há lugar algum para o mal-entendido.

À diferença da força que tem a identificação com um S1, à maneira do Islã, na modernidade as insígnias são etéreas. E assim esse neologismo das parentalidades descreve uma modificação no laço social contemporâneo que se sobrepõe à família, referindo, de alguma maneira, a um sonho de universalismo e à fragmentação do Nome-do-Pai. A parentalidade implica que o pai seja substituído pelos pares, e a monoparentalidade ou co-parentalidade provém desse princípio.

Mas saibamos que a previsão de Lacan sobre a ascensão da segregação é correlativa a esse apagamento da diferença em favor da semelhança: os mesmos com os mesmos. Deste modo, podemos dizer que é a família que vem substituir o pai e a mãe, apagando o resto real que assegurava a diferença. Assim, se confia à ciência o real da reprodução, separada do simbólico da filiação.

A parentalidade é o nome que vem deslocar os significantes anteriores de autoridade, tal como eles se desprendiam de um sistema de parentesco fundado na diferença dos sexos e no intercâmbio de mulheres. Dessa forma, podemos considerar a parentalidade como um sintoma que surge da modificação desse sistema. 

Porém, o segredo que cobre a estrutura familiar, seja homossexual ou heterossexual, monoparental ou não, é o de velar sempre o hetero do gozo feminino, o gozo do Outro que habita em cada unidade familiar. Todas essas formas que hoje chamamos de parentalidades são formações familiares que se ordenam em torno desse gozo como hetero, como heterogêneo a qualquer ordenação governada pelo significante do Nome-do-Pai.

Seguindo Bassols (2016, s/p), cito: “se a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo reordena hoje a família, e isso em formas tão díspares como equivalentes entre si”.

Esse segredo do gozo é o umbigo do real em torno do qual giram as novas formações familiares com todas as suas múltiplas variações, fazendo-se e desfazendo-se em função das formas cada vez mais singulares de gozo sintomático. Então, podemos definir a família como o resultado de um mal-entendido entre os gozos, ou um mal-entendido entre os sexos, diante do qual o sintoma se coloca como suplência da não relação sexual. E é assim que a instabilidade nos vínculos familiares de hoje segue a lógica de uma equivalência entre significantes mestres que são trocados segundo as condições de gozo.

Porém, há outra faceta dessa parentalidade: ela gira em torno da criança como objeto fundamental, definindo a nova família. Uma parentalidade como sintoma, que se impôs nas sociedades modernas, tendo a criança em seu centro como objeto, o que configura outro sintoma da época. O abuso, devido ao qual decorre essa atenta vigilância em nossa época, pois, mais do que nunca, é necessário reafirmar o tempo todo a criança como sujeito, frente a esse empuxo de tomá-los como meros objetos de troca, em uma encarnação do objeto a, e, por conseguinte, tomados pela pulsão em seu estado puro, com suas consequências no corpo. Um objeto apaixonadamente desejado e rejeitado ao mesmo tempo, disse Laurent (2010) em “A criança como real do delírio familiar”.

Na época do sujeito “familiarizado” (e digo isso um pouco comicamente), dizíamos que o sujeito consultava um analista quando a determinação significante falhava, furava. Nessa diferença entre o dever ser (em geral atormentado por Ideais que vem do Outro) e o que se é. Bem, qual seria a diferença nessa época do imaginário desenfreado? Às vezes simplesmente se trata de desembaraçar-se dele. Éric Laurent disse muito bem:

“Diante da falha nos semblantes, que se aprofunda, um duplo desejo vem à luz, de acordo com a lei de ferro do superego. De um lado, um chamado invasivo à segurança e seu corolário: a instalação de uma sociedade de vigilância com seu panóptico maluco. De outro, o fascínio de viver como uma máquina finalmente liberta dos semblantes.” (LAURENT, 2012, p. 58)

É o que Miller havia dito sobre a palavra do pai que adoece, que o pai é traumático. E aqui se abre uma nova perspectiva para a época. O espectro de respostas é variado é vai desde a violência desencadeada até a criação de novas formas de existência.

Vejamos um exemplo. Sacha, um jovem de São Francisco, busca desembaraçar-se disso que vem do Outro em uma nova maneira de se vestir: saia de mulher e camisa de homem. Não buscava provocar, senão mostrar que não se identifica nem com o sexo feminino nem com o masculino, e assegurava não pertencer a nenhuma condição sexual. São vários os que o seguem, e um deles define sua posição do seguinte modo: “Não binários em um mundo binário”. O que destacam é “poder tomar decisões no seu dia a dia sem se sentirem deslocados”. Que o mundo não se divida em “para meninos” ou “para meninas”, mas que haja um leque mais amplo de possibilidades. Ou como escreve um deles: “bonecas são para meninas, caminhões são para meninos, quebra-cabeças são neutros… Meu gênero é um puzzle”.[4]

Essa identidade puzzle é o ajustamento, com a ajuda do discurso da ciência, do homem “liberado” dos semblantes. Mas que, muitas vezes, se constitui também como um fantasma, na medida em que regularia o mal-estar na relação sexual como uma nova forma de normativização.

Nesse sentido, é interessante o que formula Paula Sibila em seu livro La intimidad como espectáculo, em que diz que há uma permanente incitação à criatividade pessoal, à excentricidade e à busca de diferenças, que, sem dúvida, não cessa de produzir cópias descartáveis do mesmo. Uma capacidade de criação que se vê sempre capturada sistematicamente pelos tentáculos do mercado, desativando permanentemente essa invenção. Uma época em que qualquer demanda vinda do Outro, aparece como uma exigência tirânica que nem sempre é respondida da melhor maneira.

Disso também dão conta os novos libertários, um extremo liberalismo baseado na ideia de uma liberdade sem vínculos com o outro, inclusive sem responsabilidade social e rechaçando a política, muito distante do liberalismo que se baseava nas liberdades individuais e que foi a pedra fundamental para a queda dos absolutismos, constituindo cidadãos com direito a uma autoridade política por consenso. Pois bem, hoje muitos jovens na Argentina se dizem libertários, e, inclusive, um de seus líderes chega a propor a venda gratuita de órgãos (“Cada um é dono do seu corpo”).

Porém, seu outro lado é que o sujeito deve ser deixado “livre” em relação às suas contingências, de modo que o que eles propõem é um país sem Estado, cada um por sua conta e risco. Ou seja, algo da ordem de um mundo sem Outro em uma meritocracia levada ao extremo. Um deserto do real. Às vezes, inclusive, conduz a uma violência de tom reivindicativo que não chega a tomar a forma de um chamado ao Outro, mas como uma denúncia.

Seria realmente muito simples se houvesse uma força exterior que nos oprimisse, família, Édipo, etc., e que, libertando-nos dela, acessaríamos a um outro estatuto de existência. É uma ideia determinista distante do que a psicanálise sustenta, pois por mais determinados que sejamos por nossa história, regras de família, Édipo, construção fantasmática, etc., sempre estará em jogo algo que está mais além das determinações e que é a escolha contingente por parte do sujeito a partir de um elemento que não é feito para dominar, comandar, submeter, mas para causar o desejo: o que Lacan chamou de objeto a, que obstrui toda ordem e norma. O objeto a como causa, esse obscuro objeto do desejo, uma parte do corpo que foi cedida ao campo do Outro e que faz furo. Uma falta com a qual desejamos. Uma cessão ao Outro que depois iremos buscar, justamente, no campo do Outro.

É, sem dúvida, a única aposta possível na clínica desse delírio generalizado, desse imaginário desenfreado: construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço, em uma época na qual o sujeito se vê obrigado a se tornar o inventor de seu próprio modo de ser e estar no mundo.

Para terminar, e seguindo Laurent, trata-se de propor, a partir de nossa clínica, uma reconfiguração das famílias em torno daquele objeto que descompleta, que não tem nada de universal, que é sempre hetero e propor uma nova forma de abordagem do sintoma, diferente daquela clínica que despatologiza o sujeito ancorando-o nos estilos de vida, sintagma com o qual J.-A. Miller lê um traço da época; essas formas diversas, mas também unificadoras, com os quais se apresentam os estilos de vida atuais.

Menos do que um mundo de desejo, este é o mundo do gozo, uma disjunção que implica um empuxo para entender as mutações e multiplicação de desorientações e estilos de vida, levando a graves fundamentalismos ou explosões de violência, bem como ao chamado desencadeamento da questão de gênero. 

Tradução: Patrícia Ribeiro
Revisão: Maria Rita Guimarães

Referências 
BASSOLS, M. Famulus.  Lacan XXI – Revista FAPOL Online, ago. 2016. Disponível em: <https://www.lacan21.com/sitio/famulus/?lang=pt-br>. Acesso em: 13 jul. 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LAURENT, É. Responder al niño de mañana. Carretel – Revista de la Diagonal Hispanohablante, Nueva Red Cereda, n. 4, 2001.
LAURENT, É. A criança como real do delírio familiar. In: KUPERWAJS, I. (org.). Psicanálise com crianças 3. Tramar lo singular. Grama Ediciones: Buenos Aires, 2010.
LAURENT, É. A ordem simbólica no século XXI: consequências para a cura. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 12, 2012.
MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 72, mar. 2016.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 32, 2022.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 02 de junho de 2023.
[2] DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na edição em português.
[3] Patria potestad, ou, conforme o direito brasileiro,  “pátria potestade”, é um instituto jurídico originário da Roma Antiga e adotado por alguns países, com diferentes abrangências, para regular as relações entre o genitor ou genitores com seus filhos não emancipados. (PATRIA postestad. Disponível em:  <https://es.wikipedia.org/wiki/Patria_potestad>. Acesso em: 13 jul. 2023.)
[4] N.T.: Quebra-cabeça.



A locução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano[1]

Tereza Facury
Psicanalista
terezafacury@gmail.com

 

Resumo:  A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos.

Palavras-chave: segregação; gozo; criança generalizada; psicose.

ALLOCUTION ON PSYCHOSES IN CHILDHOOD: A READING OF THE LACANIAN TEXT

Abstract: The author makes a commented reading of Lacan’s text “Allocution on psychoses in childhood”, from 1967, in which he warns us that there is a segregation that expands as an effect of the progression of science. He anticipates the events we witness today, such as segregation, racism and regulation by the norm that does give rise to exception, themes that interest us especially in the case of the children we assist in our clinical practice.

Keywords: segregation; jouissance; generalized child; psychosis.

Imagem: Sofia NabucoNo ano de 1967, Maud Mannoni organiza o “Congresso sobre a Infância Alienada”, um colóquio muito eclético que aglutinou psicanalistas de horizontes extremamente diversos em torno da clínica das psicoses na infância.

 

Primeira psicanalista a se dedicar à escuta das crianças débeis e a problematizar a questão do corpo na debilidade, ela supunha que as crianças débeis e suas mães viviam em uma fusão de corpos associada à presença de um ponto obscuro, não simbolizado na subjetividade materna e que por isso retorna no real do corpo do sujeito. Dessa forma, o enfoque da debilidade recai sobre a dualidade do vínculo da mãe com a criança débil, no qual ocorre uma prevalência do imaginário fantasmático da mãe como um orientador para a identificação da criança no espelho, em detrimento da ação do simbólico sobre essa identificação. O livro de Maud Mannoni, A criança atrasada e a mãe, marca a entrada do débil na psicanálise. Até então, por um erro de interpretação, ela estaria reservada às pessoas inteligentes.

Lacan valoriza essa abordagem de Maud Mannoni, porém, faz um contraponto ao propor uma causa significante para a debilidade. Trata-se, para ele, conforme nos diz Suzana Barroso (2014, p. 49), dos “efeitos no plano do imaginário corporal da criança do mecanismo da holófrase, a saber, a fusão ao nível da cadeia significante […], pois implica a posição de criança-objeto condensador de gozo do Outro.”

Entretanto, para Lacan, não se trata de uma fusão entre o corpo da mãe e o da criança, mas, sim, da primeira dupla de significantes que se solidificam, ou seja, uma fusão ao nível da cadeia significante e seus efeitos, tal como encontramos no Seminário 11:

Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar. (LACAN, 1964/1985, p. 231)

O Congresso sobre a Infância Alienada

Convidado a falar de improviso no encerramento desse Congresso, Lacan (1967/2003, p. 361) se refere a esse convite como “a este lugar, […] de ter que nos interrogar […], sobre o que fazíamos em decorrência dessa obra, e, para tanto, remontar a ela”. Ele se referia, é claro, à obra de Freud, se colocando em desacordo com os pós-freudianos ao argumentar: “Não menos notável é que nada tenha sido mais raro, em nossas colocações destes dois dias, do que o recurso a um desses termos que podemos chamar relação sexual (para deixar de lado o ato), inconsciente e gozo”. Destaca, ainda, que o fato de não levarem em conta a presença do gozo e da linguagem na relação mãe-criança fornece sustentação à “uma fantasia postiça – a da harmonia no habitat materno”.

Nos anos 1970, Maud Mannoni assume uma posição crítica com relação ao diagnóstico e à clínica estrutural, assim como em relação às instituições para psicóticos. Defensora de uma prática libertária, ela distanciou-se da orientação lacaniana, identificando-se com a proposta existencialista.

Essa prática libertária é exatamente um dos pontos observados por Lacan quando, ao final do Congresso, ele é convidado a se pronunciar. Ele adverte quanto ao fato de que essa liberdade, sugerida por uma prática dirigida a esses sujeitos, traz em si seu limite e seu engodo. A questão é como podemos apreender a referência a partir da qual podemos tratá-los sem cairmos nesse engodo.

Ele evoca os debates ocorridos entre ele e Henri Ey, sobre a associação entre loucura e liberdade. Evocar a liberdade como forma de tratamento da psicose é acreditar que o psicótico sofreria de uma repressão social. Liberdade em nome de experimentar sem empecilhos o gozo. Temos um exemplo disso na suposição dos pós-freudianos de que a relação da mãe com a criança se daria em um ambiente de total harmonia. Pelo contrário, entre a mãe e a criança há o Outro. Lacan não pensava que a loucura era um insulto à liberdade, ao contrário, ele pensava que liberdade e loucura eram indissoluvelmente ligadas. O que Lacan escreve é que toda “formação humana” tem de refrear o gozo. O aporte de Freud não diz respeito a uma ética do princípio do prazer, ao contrário, é saber através do discurso qual a relação do sujeito com o gozo. É por isso que Lacan retoma junto aos psicanalistas a importância do princípio da ética, tal como colocado pela psicanálise.

Quando Lacan (1967/2003) nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência, ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos – a segregação, o racismo, a regulação pela norma que não dá lugar à exceção – e que nos interessam especialmente no caso das crianças que atendemos. E, continua, trata-se de saber como nós psicanalistas responderemos à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes.

Ao tomar a segregação como efeito da universalização, entram em jogo modificações nas estruturas sociais e, consequentemente, na vida das pessoas, e isso incide na nossa prática analítica ao tratarmos o gozo em questão no sintoma. Lacan se pergunta como os psicanalistas vão responder a essa segregação posta na ordem do dia por uma subversão sem precedentes. A segregação faz parte de toda operação simbólica e faz-se presente na alteridade do gozo na tentativa de resistir a integrar a própria rede de referência e significações a partir de um não-saber sobre o gozo (MACÊDO, 2017).

Segundo Laurent (1999), Lacan já enfatizava que, para localizar o gozo em questão para a criança, somos obrigados a levar em conta o tratamento do gozo em uma escala que não é a escala familiar de tratamento do gozo pela metáfora paterna, o Édipo. Os Seminários de Lacan posteriores a essa época apontam um caminho teórico que nos conduz a como os psicanalistas têm abordado o gozo e o falo imaginário, uma vez que já se apresentavam insuficientes. O estatuto do pai moderno é do pai falido, humilhado, do qual se espera que trabalhe e promova o sustento da casa. Ele tem um estatuto que se reorganiza para assegurar a distribuição do gozo de maneira conveniente e, para tal, já não contamos com o pai. Os discursos organizam o mundo e o sujeito vai se inscrever aí apesar do pai (LACAN, 1967/2003).

Parece ficar claro que Lacan, ao perguntar sobre como nós psicanalistas podemos estar nesse mundo de mudança e ao mesmo tempo tomar uma distância para que seja possível tratar o gozo em questão no sintoma, nos aponta que o caminho é a ética acompanhada da construção de uma teoria a partir de Freud que nos oriente para que possamos acompanhar os efeitos no real das mudanças que ele predizia nesse momento. Porém, não é sem alegria. Uma pergunta a ser atualizada à atualidade do nosso tempo.

A criança, seu corpo e a mãe

A abordagem dos temas pertinentes à relação mãe-criança e dos efeitos na civilização do progresso da ciência convergem na expressão “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Lacan fala sobre tais temas – o lugar de objeto da criança na relação com a mãe, o gozo, o inconsciente, o corpo, a relação sexual que não existe, o real como impossível articulado ao discurso da ciência e ao discurso do analista – como sendo uma bússola que orienta nosso trabalho na clínica com crianças e, nesse sentido, as psicoses infantis são, para nós, um campo fértil de aprendizagem.

Os analistas pós-freudianos não falaram durante o Congresso sobre esses temas e por isso eles atraíram a atenção de Lacan. Sua crítica em relação à existência de um mito, preconizada por eles, de uma fantasia postiça na relação mãe-criança, se deve ao fato deles não se darem conta, na relação mãe-criança, da presença da dimensão do gozo e da linguagem e da fantasia como aquilo que articula o desejo e o gozo. Por isso, Lacan aponta o preconceito irredutível de que é sobrecarregada a referência ao corpo enquanto esse mito não for suspenso. Esse mito produz uma elisão que pode ser notada a partir da noção de objeto a, embora seja ele mesmo o que é elidido. A elisão só é compreendida ao “se opor que seja o corpo da criança o que corresponda ao objeto a” (LACAN, 1967/2003, p. 366).

Para Laurent (1999), o deslocamento da criança do falo ao objeto a tem na teoria uma função de báscula que afeta, inclusive, o fim da análise da criança. São duas formas de conceber os problemas, a realização fálica e a separação do objeto.

Lacan é muito mais prudente nesses anos, o que o leva a pensar que, para assegurar-se de que o corpo da criança não corresponda ao objeto a, é necessário algo mais do que apostar no pai. Não se trata de anular a teoria fálica precedente, “Este valor fálico tipifica a criança no sexo, dá à criança uma orientação sobre o sexo e é o que a permite apostar no pai” (LAURENT, 1999, p. 42). Se separa por construções de ficção, ficções reguladoras que permitam operar de algum modo a separação.

“A questão está em saber se, pelo fato da ignorância em que é mantido esse corpo pelo sujeito da ciência, haverá direito de fazer a esse corpo pedaços para o intercâmbio” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Assim, ele pensava que o problema da época seria o recorte do corpo em pedaços que circulariam em nome do liberalismo. Nos anos 90 ele anuncia os colóquios sobre ética da ciência e a bioética.

No caso específico da criança, a construção da fantasia consiste em um modo dela se assegurar de que seu corpo não vá responder ao objeto a, que não seja o objeto de gozo da mãe. Portanto, construir uma fantasia que o anima, com a versão do objeto que disponha segundo sua idade, é uma possibilidade.

Aqui nos cabe perguntar qual tratamento podemos deduzir para a psicose infantil. Para Laurent (1999, p. 42), seria dar uma versão do objeto a. Ou seja, que a criança, inclusive a criança psicótica, dê uma posição de gozo, não de seu inconsciente; posição de gozo tal como Lacan utiliza em “Posição do inconsciente”.

Criança generalizada

O que está em questão no uso do termo “criança generalizada” é a relação do sujeito com o gozo, seja ele o adulto ou a criança. Se não existe “gente grande”, como confessa o capelão ao poeta André Maulraux, todos somos crianças? Portanto, o que separa o adulto da criança não seria a cronologia, nem a puberdade, mas, sim, a responsabilidade do sujeito com relação ao seu modo de gozo. O que separa uma criança da pessoa maior é a ética que cada um faz de seu gozo. A grande pessoa é aquela que se faz responsável pelo seu gozo.

François Leguil (2001, p. 145), em seu texto “As crianças contumazes”, diz que:

A grande pessoa desaparece na criança e, por “necessidade”, a contingência passa ao contingenciamento. As crianças, as ciências da educação as classificam, avaliam-nas, ordenam-nas, comparam-nas, separam-nas, emparelham-nas, repartem-nas […], isso é um encarceramento e, mesmo sendo epistemológico, não deixa de ser segregativo.

A psicologia com seus mitos de harmonia e desarmonia evolutivas, está de acordo com um tempo em que essa era a norma que faz de um sujeito uma grande pessoa. O que Lacan propõe é que o sujeito enfim em questão

não é mais o sujeito que a religião do pai cernia em sua dignidade, e sim o sujeito do inconsciente, … , esse sujeito do inconsciente é o sujeito da ciência. E este é a “resposta do real”. (LEGUIL, 2001, p. 145)

Mas, então, o que é uma grande pessoa?

Leguil (2001, p. 146) discute se a grande pessoa seria determinada pela condição “ser pai” e, nessa ocasião, evoca a noção de autoridade:

o saber sobre o pretenso “desenvolvimento” da criança se edifica no lugar do que se poderia, de outro modo, construir da ação paterna. O pai, sua autoridade, hoje já não é mais isso que faz de uma criança uma grande pessoa. E de nada serve ir contra, tal como aqueles que pensam que a solução é “institucional” e que é necessário “restaurar a lei do pai”.

Sabemos que Lacan, em vários lugares de seu ensino, mencionou que o respeito que o pai pode obter de seus filhos depende da demonstração que ele soube lhes transmitir, ou seja, de que a mãe deles causava seu desejo. Ou seja, que a mãe deles não era toda mãe. Portanto, o que faz uma grande pessoa é a relação que ele entretém com o gozo.

Leguil (2001, p. 146) arrisca um palpite e tenta adivinhar porque Lacan se distancia de alguns autores com quem ele mantinha uma interlocução. Para ele, o que estaria em questão nesse debate é que “quando o gozo se torna pecado, o sujeito que se coloca na medida do dever prescrito pelo Outro ‘experimenta’ naturalmente sua indignidade”.

A idade do sujeito, para a psicanálise, depende da demanda mesma, e os sujeitos têm a idade da sua demanda. Para Leguil (2001, pp. 150), “a-grande-pessoa-que-não-há” é o sujeito das teorias sexuais infantis de FreudSua ideia é a de que “Além da fantasia existem de fato grandes pessoas, de quem o particular, enfim reconhecido dos resíduos do recalque, não torna tão fácil catalogá-las, como os psiquiatras acreditaram pode realizar com os fatos da perversão” (LEGUIL, 2001, p. 147). E lança uma pergunta: o que a psicanálise tem a propor no lugar do mal-estar na civilização, em que “o declínio da autoridade paterna, numa metamorfose social atravessada pela aceleração das técnicas, abandonará os sujeitos aos efeitos de um saber sempre mais segregativo?” (LEGUIL, 2001, p. 147).

Não há, assim, a grande pessoa, a não ser que, com Freud, “não sem alguma antinomia com a segurança da ética utilitarista, coloquemos o gozo no seu lugar que é central, para apreciar tudo que, ao longo da história, se afirma como moral” (LACAN, 1967/2003, p. 299).

O que seria então? Do que a psicanálise poderia dispor para responder a esse desafio coletivo de que não há mais grandes pessoas, uma vez que sua experiência repousa somente sobre a palavra?

Os imperativos taxinômicos são cúmplices do poder segregativo, e com as crianças “a coisa é mais sensível”, seja com as crianças como infância, seja com as crianças da “grande-pessoa-que-não-há”. O saber constituído em uma norma funciona como significante mestre, por isso a consequência é sempre política, e Lacan a nomeia segregação.

Já a prática da transferência desorganiza todos os saberes. O psicanalista opera sobre a fantasia a partir de sintoma, esse é a sua referência, e só temos conhecimento dele porque ele nos é endereçado. É o que Miller nomeava em 1982 como “clínica sob transferência”, e essa clínica, por sua natureza, interdita qualquer classificação.

Para Leguil (2001, p. 150), “a segregação começa com a negação do ‘isso se endereça a mim’, a mim que sou constituído por este endereçamento, quando minha oferta mesma o produziu”. E a demanda se constitui com o desejo inconsciente. Considerar a presença do sujeito do desejo pode interditar a edificação do saber normatizado, pois o “desejo é articulável e não articulado”. Somente a difusão de um saber extraído da prática de uma transferência pode ir contra a segregação.

A combinação dos dois discursos, o da ciência e o do capitalismo, se tornou mais frequente, de tal forma que conseguiu romper os fundamentos de uma tradição como a do Nome-do-Pai. Segundo Miller (2014), o próprio Lacan rebaixou essa função, Nome-do-Pai, ao fazer dela não mais do que um sinthoma, uma suplência do furo. Esse rebaixamento na clínica introduz algo inédito como perspectiva, expresso por Lacan ao dizer “Todo mundo é louco, isto é, delirante”. Tal aforismo é a tradução da categoria da loucura estendida a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber concernente à sexualidade. E isso abala a base do diagnóstico psicanalítico, que é a diferença entre neurose e psicose.

Palomera (2019) comenta que Lacan, ao escrever a frase “Todo mundo é louco”, quis ser provocativo frente aos ideais coletivos da saúde mental, o que não significa uma abolição da clínica, mas, sim, que não há nenhuma possibilidade de alcançar normas comuns e que, quanto mais globalizados os ideais da civilização, mais comuns serão os espaços de civilização, e lembra que, se algum dia chegarmos ao ponto de fazer uma norma para tudo, o pesadelo “Todo mundo está louco” será realizado.


 

Referências
BARROSO, S. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
LACAN, J. Alocução sobre as psicoses das crianças. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original proferido em 1967).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1964).
LAURENT, É. Hay um fin de analisis para los niños. In: Hay um fin de analisis para los niños. Buenos Aires: Coleccion Diva,1999.
LEGUIL, F. As crianças contumazes. Revista Curinga – Lacan e a lei, n. 17, nov. 2001.
MACÊDO, L. Lacan e a segregação. Revista Curinga – Tempos de Segregação, n. 44, jul/dez. 2017.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
PALOMERA, V. Prólogo. In: Un psicoanalista, intérprete em la discórdia de los discursos. Barcelona: Gredos, 2019.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças em 19 de abril de 2023.



A criança, seus delírios e os delírios de seus pais[1] 

Suzana Faleiro Barroso
Psicanalista
Membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai.

Palavras-chave: psicose infantil, delírio, lalíngua de família, tratamento do gozo.

THE CHILD, HIS DELUSIONS AND THE DELUSIONS OF HIS PARENTES

Abstract: Based on the notion of generalized delirium, the text discusses the question of the specificity of the delirium in childhood psychosis. According to the commentary on fragments from the clinic, it is possible to verify, in a paranoid childhood, different ways of treating jouissance without the Name-of-the-Father.

Keywords: child psychosis, delirium, family lalangue, treatment of jouissance.

 

Imagem: Sofia Nabuco

 

“O mal dos bichos foi aprender a falar conosco”
(GULLAR, 2010, p. 52)

Abordar a psicose a partir do ultimíssimo ensino de Lacan abre novos horizontes para a clínica da psicose infantil. A releitura dos fenômenos alucinatórios, do delírio e dos fenômenos do corpo e do gozo a partir das últimas formulações lacanianas sobre a linguagem parece nos liberar de antigos debates sobre a psicose infantil, além de nos relançar para uma clínica do pós-Édipo, que é a nossa atualmente. A inexistência do Outro e a forclusão generalizada implicando que todos deliram, nos dispensaria, por exemplo, do debate sobre a criança psicótica, se ela delira ou não; ou se o delírio seria apenas característico da psicose do adulto, ou ainda se haveria especificidade do delírio na infância?

Segundo Miller (2015, p. 309), a frase “Todo mundo é louco, isto é, delirante” é uma espécie de condensado do ultimíssimo ensino de Lacan, que contaminou a clínica estrutural, supondo mais uma continuidade do que uma descontinuidade entre as estruturas clínicas.

A articulação entre psicose e linguagem perpassa todo o ensino de Lacan. A perspectiva estrutural da linguagem, na década de 50, em contraponto a uma perspectiva psicogenética dominante até então na psicanálise com crianças, libertava a psicose infantil do campo das deficiências. Para além de uma clínica estrutural do delírio, a introdução da noção de lalíngua, tão bem transmitida no artigo “Falar é um transtorno de linguagem”, de Pascale Fari, tende a generalizar o delírio, até então considerado exclusividade da psicose.

Vemos que a linguagem no ultimíssimo Lacan foi distanciando-se da noção de estrutura para aproximar-se das noções de aparelho, órgão, parasita. Passamos então dos “distúrbios da linguagem” decisivos no diagnóstico diferencial da psicose na década de 50, a partir da releitura de Schreber, à “linguagem como distúrbio”, a partir da leitura de Joyce.

O conceito de lalíngua, que se elabora no Seminário 20, já implicava uma versão do Outro diferente daquela do grafo do sujeito, pois leva em conta a antecedência lógica do campo de gozo em relação ao campo da linguagem. Por não comportar a dimensão do sentido, lalíngua altera todo o panorama das relações do sujeito ao Outro e até mesmo a definição do Outro. Lalíngua diz respeito à dimensão inconsistente e múltipla da língua, isto é, massa sonora que antecede à captura na linguagem e que implica a inexistência do Outro. Lalíngua desconstrói o edifício teórico sustentado pela primazia do significante.

Apoiada na estrutura de linguagem do inconsciente, a teoria freudiana do delírio tem como causa o destino da libido na paranoia, cujo investimento, ao ser retirado do mundo externo e dos objetos, provoca uma catástrofe no mundo subjetivo, a dissolução do imaginário, que cabe ao delírio restaurar. “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1911/1996, p. 95). O trabalho do delírio é o modo do paranoico de reconstruir seu mundo de maneira a poder viver nele novamente, comparável à fantasia do neurótico.

Classicamente, o delírio constituiu-se como o ordenador maior do diagnóstico de psicose. Onde não havia delírio não havia psicose. O grau de paranoia, na qual os delírios estão sempre presentes, era um critério decisivo para o diagnóstico e tratamento possível da psicose, por ser considerado um índice importante da relação do sujeito com a linguagem e com o campo do Outro.

Segundo uma clínica estrutural, a paranoia constituiria um fraco diagnóstico na infância. Por exemplo, no artigo “Cura de un niño paranoico?”, François Leguil (1992) discute a pertinência desse diagnóstico para uma criança. Ele recupera a opinião de Clérambault, para quem os fenômenos psicóticos podem ser observados na criança, porém, sem que o delírio tome uma forma sistematizada nessa época da vida. Clérambault teria considerado as “regras da idade”, segundo as quais a criança não estaria submetida à necessidade imperiosa que move o adulto de conduzir o esforço de seu trabalho delirante até uma elaboração lógica de uma solução última.

François Leguil (1992) sugeriu que a observação de uma cura e de uma estabilização deve sempre levar em conta os efeitos do questionamento promovido pela confrontação real com o Outro sexo para além da infância. Apoiando-se na teoria da sexualidade, ele justifica a necessidade de uma prudência quanto ao diagnóstico de paranoia antes do encontro com a falta do significante fálico, o que não concerne mais à infância, pois supõe que o sujeito já se tenha colocado à prova em relação à castração no ato sexual. O capítulo do delírio na psicose infantil é, portanto, controverso, e não uníssono. De um modo geral, desde a psiquiatria, acreditava-se na precariedade das formações delirantes na infância e menos ainda na sua sistematização.

A sistematização delirante requer etapas nas quais ocorrem profundos remanejamentos do significante desencadeado. Com base na noção de “escala dos delírios” (LACAN, 1955-56/1985, p. 92), que supõe o avanço do delirante na evolução do trabalho de construção, J.-C. Maleval (2009) descreveu o percurso do delírio. Trata-se de quatro períodos, cada um com uma especificidade ao nível do gozo e da dinâmica da elaboração delirante, que pode ir da perseguição paranoica à parafrenia. O primeiro período se caracteriza pela deslocalização do gozo e pela perplexidade angustiante; o segundo corresponde à tentativa de significação do gozo do Outro; o terceiro período é o da identificação do gozo do Outro; e o quarto é o do consentimento ao gozo do Outro.

A tendência dos psiquiatras infantis, a exemplo de Ajuriaguerra (2007), é de afirmar que, nas crianças, os sentimentos delirantes estão mais presentes do que as ideias delirantes em seus aspectos fenomenológicos, isto é, convicção subjetiva, impenetrabilidade e impossibilidade de conteúdo. G. Heuyer (1951) descreveu o delírio de imaginação ou delírio de sonhos típico da infância, a saber, relato fantástico, mais ou menos sistematizado, quase sempre deslocado no tempo e no espaço, cujos temas podem ser grandeza ou filiação e no qual as ideias se confundem com a realidade.

A ampliação do conceito de delírio tributária das reformulações de Lacan sobre a linguagem, o gozo e o corpo estão presentes no artigo de Pascale Fari, no qual a linguagem como distúrbio do real explica o delírio generalizado. De maneira impactante, ela nos fala de lalíngua como o que arruína o ordenamento simbólico da linguagem, isto é, o núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana. Falamos a partir desse ponto excluído do simbólico, a partir da lalíngua de família e tentamos nos extrair desse lugar tecendo laços, articulando um discurso a partir desses significantes sozinhos, desses símbolos petrificados fora da cadeia. O delírio generalizado é isso. O delírio reconstrói uma trama discursiva a partir de elementos não simbólicos. É esse o trabalho de Samuel, caso tão bem conduzido por Patrícia Ribeiro, e que nos ensina sobre a invenção do sujeito no discurso analítico. É na medida em que Samuel vai tecendo sua trama que ele pode ir construindo uma posição de extimidade com relação à lalíngua que lhe agitava o corpo. Ele fala a partir do ponto de exclusão que marcou sua existência.

Com a noção de lalíngua, ganha-se também a condição de diagnosticar o estatuto dos distúrbios da fala e da linguagem na infância psicótica, que, a exemplo dos mutismos, dos distúrbios da comunicação, da presença dos significantes holofraseados, constituem índices da forclusão dos significantes fundamentais do sujeito e de sua desinserção no discurso.         

As câmeras de vigilância: tentativa de localizar o gozo, sem o Nome-do-Pai, no objeto olhar

A hipótese da inexistência do Outro indica o quanto a clínica do objeto torna-se fundamental para o tratamento psicanalítico das psicoses, visto que o problema maior a ser visado pelo tratamento é o gozo. Como então tratar o gozo não interditado pela lei do pai através de lalíngua e não da linguagem, a partir do objeto e não do Outro?

O trabalho clínico parece consistir em tentar localizar o que o sujeito psicótico traz como um possível esboço do que é, para o sujeito neurótico, o objeto a. A psicanálise pode então sustentar uma clínica do objeto visando à extração do excedente de gozo na psicose infantil. Trata-se de localizar o gozo fora do corpo por meio de uma redução do gozo, sem a qual não há laço social possível.

Considerando a prevalência dos distúrbios da estruturação corporal nas psicoses da criança, trata-se de priorizar as intervenções clínicas destinadas a promover alguma negativização do gozo, isto é, a separação entre o corpo e o gozo. O alvo principal da clínica do objeto é mais a deslocalização do gozo do que os fenômenos clássicos da forclusão do significante do Nome-do-Pai. Colocam-se então em primeiro plano os excessos relativos à positividade do gozo mais do que o déficit centrado sobre a escala fálica.

O objeto não está conectado à função fálica na psicose. Ele se encontra, portanto, em seu pleno caráter de substância, isto é, de substância real e não de consistência lógica. Segundo Miller (2005), há duas vertentes do objeto a: 1) extração corporal; 2) consistência lógica. Na neurose, o objeto a definido como um furo no Outro, um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar. Nas psicoses, verificam-se os fenômenos de corpo tributários da substância gozante, isto é, o objeto não dessubstancializado cujo gozo irrompe no corpo sem a negatividade que lhe seria conferida pela castração.

Na conjuntura psicótica, o objeto está à mão, o que implica o corpo na sua dimensão absolutamente substancial. A voz e o olhar comparecem como objetos privilegiados da substancialidade do corpo fora da lei do pai. A voz áfona emerge como audível, e o olhar se torna visível. “A voz, que ninguém escuta, e o olhar, que ninguém vê, existem, portanto, na experiência do sujeito psicótico” (NAVEAU, 2006, p. 76). Os objetos tendem à multiplicação quando não há a extração do excedente de gozo. Tanto as vozes como os olhares se multiplicam. Manifestam-se sob formas separadas com um evidente caráter de exterioridade em relação ao sujeito. Trata-se da exterioridade dos objetos e não de extimidade.

O caso clínico de Samuel, um menino de 9 anos, apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças, me pareceu bastante importante seu singular interesse pelas câmeras de vigilância. No primeiro encontro com a analista, ele pergunta se no consultório existiriam câmeras de vigilância. Ao desenhar, parece esboçar a localização do gozo no objeto olhar. Desenha a “garagem de um prédio onde há um porteiro que não vê o que a câmera – que está em destaque no desenho – do prédio vê: uma sombra que se esgueira pelo muro e esfaqueia e esquarteja alguém, deixando um rastro de pedaços de corpo e muito sangue, como ele me mostra desenhando e colorindo de vermelho”. Noutra sessão, relata ter pedido a avó materna uma mini câmera portátil de presente para vigiar o lugar, isto é, “um barracão nos fundos que… teria algo de estranho, certos ruídos”.

Mais adiante, no relato da analista que o atende, encontramos novamente a presença da câmera de vigilância. Ele falou de sua proposta “de ajudar a vigiar as crianças no recreio para que elas não entrem com bebidas escondidas, como ele supõe que possa acontecer, chegando mesmo a propor a câmera de vigilância para ajudá-lo”. Essa demanda, dessa vez visando o laço social no contexto da escola, não consiste na possibilidade do tratamento do gozo por meio do objeto olhar?  

A lalíngua de família e o não lugar do intruso 

O caso de Samuel nos coloca a par de sua lalíngua de família, uma língua da exclusão e da violência. Conforme queixa dos pais, o irmão mais velho do menino não suporta a presença do caçula: “Essa rivalidade com Samuel se manifesta sem tréguas: o irmão nunca o chama pelo nome, atrapalha quando ele está brincando, mal lhe dirige a palavra e quando o faz, geralmente, é com muita raiva”. 

Nos desenhos do menino o tema de um Outro mau, intrusivo e mortífero, que mata e trucida, é frequente. Segundo a analista, em determinada sessão “ele desenha um personagem que descreve como um ser parasita, explicando que ele costuma entrar nos corpos das pessoas e quando o faz, ela se transforma em um monstro e morre, ambos, a pessoa e o parasita”.

A figura do “ser parasita” sobre a qual Samuel fala me pareceu bem lacaniana, pois evoca a noção de falasser e da linguagem, provenientes do último ensino. Como foi dito antes, desde a leitura da escrita de Joyce por Lacan passamos a trabalhar com a hipótese da linguagem como parasita. O sujeito psicótico é o mais indicado para testemunhar isso, tal como o fez Samuel. Disse Lacan: “a questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-76/2007, p. 92). É o que nos permite sustentar que todo mundo delira.  No melhor dos casos, pode-se fazer disso um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.

Se extraindo do núcleo de real que o constituiu, Samuel faz a ficção da família de um desenho animado, uma versão na qual o tema do excluído toma forma: nessa família, haveria um membro rejeitado, uma porquinha relegada a ficar abandonada em casa, por ser doente com câncer e que, por isso, seus pais decidiram escondê-la do mundo”.

Samuel testemunha a marca da transmissão da lalíngua de família e nos permite retomar Lacan na Conferência de Genebra. O que retorna nos sonhos e no sintoma, enfim, nas formações do inconsciente, sob o formato de tropeços os mais diversos e de vários tipos de formas de dizer, depende de como a lalíngua foi falada e entendida pelo outro.  Ele afirma que os pais instilam um modo de falar na criança:  “A forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais a aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9). A linguagem interpreta as marcas de lalíngua, que vão sendo depositadas sobre o corpo do infans.

O tema do excluído e do intruso aparece em vários contextos tanto da família quanto da escola de Samuel. No ambiente escolar, que põe a prova a inserção desse sujeito num laço social, destaco a figura de um colega de sala, um duplo de Samuel, que, segundo ele, está na escola onde não deveria estar por ser uma criança doente, “cujo lugar deveria ser em uma escola especial, pois ele não é como os outros”. Esse colega parece viabilizar uma certa recomposição da imagem do eu, que por ser constantemente invadida pelo gozo escópico deslocalizado promove a inquietante estranheza.

Aqui pretendo articular o ultimíssimo Lacan com o primeiríssimo, pois recorrerei à teoria dos complexos familiares como chave de leitura do problema do intruso, tão patente no caso do Samuel.

Desde 1938, no artigo “Os complexos familiares”, Lacan problematizou a paranoia estruturante do eu por meio do complexo de intrusão, segundo o qual a imagem do outro em relação à qual o eu se aliena tem um caráter estrangeiro e intrusivo. É nesse complexo que se funda o alicerce de temas delirantes da paranoia pela dominância do imaginário.

As ligações da paranoia com o complexo fraterno manifestam-se pela frequência dos temas da filiação, da usurpação e da espoliação, assim como sua estrutura narcísica se revela nos temas mais paranoides da intrusão, da influência, do desdobramento, do duplo e de todas as transmutações delirantes do corpo. (LACAN, 1938/2003, p. 51)

Lacan discute o papel traumatizante do irmão no complexo familiar de intrusão: “A intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante; na família, em regra geral, trata-se de um nascimento, e é o primogênito que desempenha, em princípio, o papel de paciente” (LACAN, 1938/2003, p. 50).

O transitivismo paranoico, no qual o eu regride a um estágio arcaico de sua constituição, pode explicar a tendência à agressividade, por vezes necessária a separação entre o eu e o outro. A afinidade da paranoia com o eu especular foi retomada na lição de 08/04/1975, do Seminário RSI, em que é definida como um visgo imaginário. A paranoia estrutura-se, pois, sobre a base de uma proliferação do imaginário e sobre a fixação do sujeito no estágio do espelho. 

A invenção do projeto pedagógico: uma saída esboçada pela via do Ideal? 

Um projeto pedagógico proposto por Samuel, “para ajudar Lucio a se sair melhor nas notas já que ele tem dificuldades de aprender”, me pareceu uma outra maneira de tratar o real do gozo, dessa vez por meio do Ideal, não sem conexão ao destino do objeto olhar. Se, até então, Samuel e o colega compunham o eixo imaginário a-a’, no qual Samuel sofre do ódio e da intrusão sem a mediação do Outro, a invenção do saber pedagógico entre eles promove o ideal pedagógico no lugar do Nome-do-Pai forcluído. Com o Lacan dos complexos familiares diríamos que a estagnação da sublimação do complexo de intrusão cede à ação do simbólico. Samuel assumiria o lugar do educador ideal.

Essa solução, que no caso do Samuel parece uma missão, mais do que um ideal, evoca o Emílio de Rousseau e suas lições de educação. Rousseau inscreveu seu nome no campo do Outro mediante a escrita de seu tratado de educação. Ele pretendia uma espécie de pedagogia capaz de eliminar o gozo. Propôs inclusive a eliminação de qualquer lição verbal, de maneira que o educando mantivesse sua natureza pura sem contaminação pela linguagem, ainda que isso lhe custasse o próprio laço social.

Para concluir, recorro ao comentário de J.-A. Miller (2015, p. 308) em “Todo el mundo es loco” sobre uma pergunta-título de um colóquio, a saber, “o que pode esperar o psicótico hoje?”.  Miller sugeriria já à entrada do colóquio a frase “Todo mundo é louco, quer dizer, delirante”. A tendência à generalização do delírio implica, certamente, o seu declínio, e articula-se a uma mudança na própria concepção de loucura.


Referências 
AJURIAGUERRA, J. Psicoses infantis. In: MARCELLI, D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Editora Artmed, 2007, p. 201-226.
FARI, P. Lalíngua. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
GULLAR, F. Zoologia bizarra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1938).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LEGUIL, F. Cura de un niño paranoico? In: Niños en psicoanálisis. Buenos Aires: Manantial, 1992, p. 127-133.
MALEVAL, J.C.  Locuras histéricas y psicosis disociativas. Buenos Aires: Paidós, 2009
MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Opção Lacaniana, n. 43, p. 7-81. mai. 2005.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
NAVEAU, P. L´extraction de l´objet a et le passage à acte. La Cause Freudienne, n. 63, p. 75-78, 2006.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 16 de junho de 2023



Supereu solúvel no álcool?[1]

Miguel Antunes
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
miguelfigueiredoantunes@gmail.com

Resumo: A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo.

Palavras-chave: imperativo categórico; imperativo de gozo; supereu.

SUPEREU SOLUBLE IN ALCOHOL?

Abstract: From the proposal “return to the classics”, made by the Center for Investigation and Research in Drug Abuse and Alcoholism, the text proposes to comment on the famous phrase “the alcoholic superego is soluble in alcohol”. For this, the concept of superego will be worked on both in Freud and in Lacan, going beyond the “heir of the Oedipus complex” towards his imperative of jouissance.

Keywords: categorical imperative; imperative of jouissance; superego.

Imagem: Renata LaguardiaA famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool” (LECOUER, 1992) é de autoria de Ernest Simmel, psicanalista que criou e fundou uma clínica em Berlim, em 1926, para tratar principalmente de alcoolistas. Vale ressaltar que ele contou com amplo apoio de Freud. Por motivos de guerra, foi preciso mudar duas vezes de país, indo para a Suíça e depois Estados Unidos. Dessa experiência inovadora temos poucas informações.

A palavra “solúvel”, nos dicionários on-line, remete à dissolução, a algo ou questão para a qual há resolução, algo que é solucionável, o que nos leva a perguntar se esse é o estatuto do supereu para a psicanálise.

Neste texto, trataremos de comentar as elaborações de Bernard Lecouer (1992) em “Porque o supereu não é solúvel no álcool”, que se encontra no livro O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo, organizado pelo Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), em 1992, reunindo os textos de uma jornada de trabalhos acerca da toxicomania orientados pela psicanálise. Destacaremos alguns pontos do texto de Lecouer para fazermos um breve percurso no tema do supereu, e, assim, discutirmos sobre a dissolução, ou não, do supereu tanto nas toxicomanias, quanto nas mais diversas apresentações clínicas.

Em um primeiro momento, essa frase não deve ser totalmente descartada: há algo no álcool que pode atenuar o mal-estar e lançar um sujeito ao agir, possibilitando-lhe atravessar a inibição que tanto o paralisa. Em “O mal-estar na civilização”, Freud (1930/1996) já havia mencionado tanto a eficácia, quanto também os danos, ao se lançar mão do recurso da intoxicação para tratar o mal-estar. E é considerando essa vertente danosa do supereu que Lacan (1953-54/1986, p. 123) o chamou de “figura feroz”, versão que interessa a este trabalho.

Começarei com uma brevíssima vinheta clínica. Após sua mãe lhe proibir de beber durante uma festa, o sujeito resolveu experimentar alguma droga industrializada e acabou perdendo o controle, tendo uma “bad trip”. Ao tentar enganar a censura materna, ele se depara com a culpa que, segundo afirma, é a origem de sua “ansiedade”. Com isto, ele começa a se dar conta de que repete a mesma cena sempre: bebe para tratar a ansiedade, mas, ao invés de aproveitar a festa, muitas vezes acaba por perdê-la. Tal ato nos faz lembrar Lacan (1969-70/1992, p. 68) quando ele diz que o gozo “começa com uma cócega e termina em labareda de gasolina”.

Parece ser essa versão superegóica que interessa em nosso cotidiano clínico, pois acarreta muito sofrimento ao sujeito e pode, ocasionalmente, levá-lo a buscar uma análise. Freud (1920/1996), em “Além do princípio do prazer”, menciona essa linha imaginária entre o prazer e o desprazer. Para o autor, após o sujeito ultrapassar o princípio do prazer, ele se depara com o desprazer marcado pelo excesso. Podemos dizer que o desprazer é exatamente o gozo que vai contra o bem-estar.

Voltando à frase de Simmel, e indo além, é possível estabelecer que ela se aproxima muito mais da possibilidade de um drible ao supereu do que sua diluição. Os casos que nos chegam aos consultórios e, principalmente, nas instituições, não se referem ao chamado uso recreativo, mas, sim, a um uso muito mais devastador, acarretando no apagamento não do supereu, mas do sujeito.

Miller (2009), em “Clinica del superyó”, afirma que o supereu instala a divisão do sujeito e insere uma lógica que não estaria de acordo com o bem, ainda mais se o confundirmos com o bem-estar. Segundo ele, o paradoxo do supereu está ligado ao apego do sujeito em relação a algo que não lhe faz bem, indo de encontro com seu bem-estar. O supereu está muito mais ligado à pulsão, ao mais de gozar. Todavia, esse gozo constitui um bem para o sujeito, na direção de um bem absoluto. Vale ressaltar a passagem de Lacan (1973/2003, p. 525) em “Televisão”, em que ele define o sujeito como “feliz”, sobretudo porque na repetição o que está em jogo é satisfação da pulsão.

O gozo é antinômico ao desejo e ao bem-estar. O desejo conduz rumo à civilização, enquanto o primeiro não conhece limites, não proporciona prazer, está evacuado do saber, sendo necessário o Nome-do-Pai para que algo desse gozo desmedido tenha chance de se coordenar. É o falo que pode temperar o gozo, porque o gozo enquanto tal, não tem medida. Para se dar conta do quão intolerável pode ser um gozo desregulado, basta ler As Memórias de um doente de nervos, de Schreber. Nessa direção, ainda com Miller (2009), podemos dizer que o supereu é uma lei absoluta articulada ao gozo, melhor dizendo, um imperativo: Goze!

Mas, antes de adentrarmos no imperativo do gozo, faremos um retorno a um grande clássico, ou seja, a Freud. Para ele, o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e sinônimo do ideal do eu. Em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914/1996) assinala a presença de um “agente psíquico especial” que funciona para alimentar o que estava determinado pelo campo do ideal, aumentando as exigências para com o eu. E alerta que não se trata de uma descoberta, mas de um reconhecimento clínico (CAMPOS, 2015).

Esse “agente psíquico especial” tem a função de vigilância e auto-observação, sendo uma voz alta e clara, falando na terceira pessoa – quando se trata de uma psicose, especialmente da paranoia –, ou de modo silencioso – no caso das neuroses, principalmente a obsessiva. Contudo, mesmo silenciosa, ela se mostra bastante eficaz, pois julga, antecipa, recrimina, etc. Enfim, trata-se de um grande tribunal instalado no pensamento dos sujeitos, em funcionamento permanente, mostrando toda a sua ferocidade. De certa maneira, podemos dizer que o supereu impulsiona o sujeito à ação para depois reclamar por punição (CAMPOS, 2015).

Retomando a proposta de comentar o texto de Lecouer, e nos distanciando da fórmula de Simmel, o autor nos diz:

a posição do bebedor é aquela de uma fundamental submissão a um apelo, de uma obediência sem pertinência a uma ordem, aquela que articula a injunção “Beba!”. O ato de beber, antes de ser um gozo, consiste em ceder às ordens de um imperativo de gozo. […] Beba, para esquecer! Enfim, beba! Mas sempre para seu bem. (LECOUER, 1992, p. 75)

E continua:

assim considerado, o supereu não é mais solúvel, ele não desaparece na solução alcóolica. O álcool torna-se, ao contrário, portador de um apelo, assegura a imanência da voz, de uma voz que governa um retorno incessante do sujeito ao mesmo, um retorno que se encarna e toma sentido numa face a face com o mesmo copo. (LECOUER, 1992, p. 75)

Na passagem acima, Lecouer nos aproxima bastante do termo “iteração”, trabalhado no seminário de Miller (2021) intitulado “O Um sozinho”, quando ele diz que na adicção bebe-se sempre o mesmo copo, sendo uma adicção à qual não se adiciona nenhum saber, em que 1 + 1 + 1 é igual a 1. Na iteração, o objeto é um fim em si mesmo, diferente da repetição, em que o objeto é um meio e há uma história, um enredo, uma cena que cristaliza o sujeito, ou seja, há a fantasia.

O ponto central que nos interessa ao trabalhar o supereu é poder ir além do herdeiro do complexo de Édipo, momento em que sua vertente reguladora se fazia mais presente. Foi com Lacan que pudemos acessar um supereu sem sentido, severo, ingovernável e destruidor que é muito mais próximo ao imperativo: Farás!

É na passagem do imperativo categórico ao imperativo de gozo que reside a figura voraz e feroz. Se o primeiro, o imperativo categórico, está ligado ao campo moral, da regulação, o segundo, o imperativo de gozo, traz a injunção ao gozo. Primeiro, vem o imperativo categórico (beber para desinibir, por exemplo), e, em seguida, opera o imperativo do gozo (punição por perder a festa). Assim, se por um lado há um imperativo que exige sacrifício, por outro, há o que impele ao masoquismo. Essa elaboração pode ser extraída de Lacan (1962/1998) quando ele trabalha o texto “Kant com Sade”.

É em Kant que Lacan localizou o imperativo categórico, em que o sujeito tenta atingir o bem e a dignidade pela virtude moral, se deparando com um impedimento ou mesmo com a censura. Já em Sade, ele se deparou com um direito ao gozo do corpo do outro. Ambos os imperativos se complementam, uma vez que levam o sujeito ao extremo, em um mais-além do bem-estar.

Mas o que faz a passagem do prazer ao seu além? O que acontece que uma simples cócega pode se tornar uma labareda de gasolina? Ou, o que faz com que o supereu não seja diluído no álcool e nem regulado?

Podemos pensar que se trata da questão da implantação da voz enquanto objeto a, pois tanto o supereu, quanto o objeto a, se impõem como modo de gozo. É extremamente comum escutarmos na clínica, e na nossa própria vida, as vozes do supereu em ação em sua vertente de duplo comando que se apresenta como dois imperativos: um que impele ao movimento e outro em vetor contrário. Se considerarmos a lei da física, o encontro da força de ambos causa uma paralisia (BARROS, 2015).

Trata-se de uma voz desincorporada, ou seja, não se trata do falar ou da entonação. Lacan atribui ao supereu um caráter de imperativo e o transforma em exigência impossível de contornar. Tal imperativo se presentifica como uma voz desencarnada, atribuída ao Outro,  não experimentada como vinda de outra pessoa, mas do Outro (ASSIS; VIEIRA, 2019). O que demonstra o caráter de objeto a da voz é o fato de ser atribuída ao Outro, por isso uma voz desincorporada. Nessa direção, o supereu lacaniano, ou o supereu como voz, incide muito mais em sua vertente de imperativo de gozo do que de imperativo moral (CORDEIRO, 2011).

Considerando a clínica da toxicomania, para não fugirmos tanto de nosso tema, ela é uma clínica do supereu (ALVARENGA, 2005) em sua vertente de gulodice. Em seu aspecto de imperativo de gozo, os toxicômanos vão em direção à ruptura fálica, o que não conduz necessariamente à forclusão do Nome-do-Pai, mas ao encontro com um gozo que desconheces limites, um gozo que pode ser destruidor e aniquilar o sujeito.

Lecouer (1992, p. 74) menciona que “o sujeito que se decide, em vão, a renunciar à bebida, não faz senão relançar, com ainda mais força, aquilo que, afinal, o empurra a beber”. Ou seja, o supereu alimenta-se da renúncia pulsional. Talvez por essa razão nos deparamos com recaídas cada vez mais devastadoras.

Em direção à conclusão, podemos dizer que a relação estabelecida com o supereu lacaniano não está ligada à identificação, mas, sim, a uma voz de comando sem corpo e sem nenhum contorno. Já o supereu freudiano é diferente, ele está ligado ao ideal do eu e ao imperativo moral e mantém uma vinculação com a identificação. Tal identificação é consequência da saída do complexo de Édipo e implica na incorporação da voz. O que Lacan desvela é “essa voz que diz ‘goza’ é o objeto a voz como presença, ou seja, a presença do Outro sob forma vocal maciça, experimentada como imperativo” (ASSIS; VIEIRA, 2011, p.274), que reclama obediência e convicção. Tal obediência é a característica mais marcante do supereu, pois trata-se de uma obediência que não deixa margem para questionamentos.

O supereu lacaniano se situa ali onde o complexo de Édipo não recobre nos termos identificatórios e normativos, atestando um certo fracasso estrutural ao Édipo. E aquilo que não é recoberto pelo complexo de Édipo, Freud, de maneira genial, já havia localizado como algo de uma instância crítica, principalmente na melancolia, em que está em jogo identificações mais primitivas e arcaicas.

Com Lacan, afirmamos que “nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (1972-73/1985, p. 11). Enfim, podemos perguntar: o supereu freudiano, aquele do casamento feliz com a garrafa, é muito diferente do supereu lacaniano, em que o que está em jogo é a ruptura com o faz-pipi?

O supereu faz jus ao ditado popular: o que não tem remédio, remediado está. E uma análise pode promover algum alívio à submissão ao imperativo do gozo, podendo promover um novo laço, um laço responsabilizado com seu desejo e seu modo de satisfação (BARROS, 2015).

Concluindo,

um problema que não tem solução não é um problema, é uma estrutura do impossível […] na psicanálise não se trata de curar a fantasia ou de tratar o supereu, como já disse Lacan, mas de atravessá-los e identificá-los como o osso de uma cura. (CAMPOS, 2015, p. 155)


Referências 
ALVARENGA, E. Do gozo do pai à melancolia. Papers del CA – Nova Epoca, n. 5, nov. 11 – 2005 Disponível em: <https://wapol.org/pt/articulos/Template.asp>. Acesso em: 22 jun. 2023.
ASSIS, G. K. O. de; VIEIRA, M. A. Supereu: a voz de um imperativo interrompido. Psicologia em Revista, v. 25, n. 1, p. 258-277, 2019. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682019000100015>. Acesso em: 22 jun. 2023.
BARROS, R. R. Prefácio. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CAMPOS, S. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CORDEIRO, N. M. O supereu: imperativo de gozo e voz. Tempo psicanalítico, v. 43, n. 2, 2011.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1996. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1962).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LECOUER, B. O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de Toxicomania, 1992.
MILLER, J.-A. Clinica del superyó. In: Conferencias Porteñas. (Tomo 1). Buenos Aires: Paidós, 2009.
MILLER, J.-A. Aparelhos da escuta, lição de 23.03.2011 do Curso “O Um sozinho”. Opção Lacaniana, n. 83, p. 54-66. São Paulo: Eolia, set. 2021.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação nas Toxicomanias e Alcoolismo em 06 de junho de 2023.



A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo

Paulo Henrique Assunção Rocha
Formado em Filosofia (UFMG) e em Teatro (CEFART/Palácio das Artes)
Aluno do Curso de Formação em Psicanálise do IPSM-MG
paulohassuncao@gmail.com

Resumo: No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. 

Palavras-chave: O Cheiro do Ralo; literatura; psicanálise; neurose obsessiva.

THE OBSESSIONAL NEUROSIS SURROUNDING THE SMELL OF THE DRAIN 

Abstract: In the novel O Cheiro do Ralo (in literal translation: “The Smell of the Drain”), written by Lourenço Mutarelli, a nameless man, owner of a pawn shop, starts to become haunted by the fetid smell that escapes the bathroom’s drain at his shop, while also becoming obsessed with a lady’s ass, a lady who works in the cafeteria he attends daily. It is from this plot that we intend to approach significant aspects of the obsessional neurosis, such as its debt position towards the father, the serial objects, the relationship between the gaze and the anal object, the repetition, as well as the postponement and the metonymic slide of compulsive thoughts. 

Keywords: O Cheiro do Ralo; literature; psychoanalysis; obsessional neurosis.

 

Imagem: Renata Laguardia

É notório o campo aberto por Freud na aproximação entre literatura e psicanálise, no interior da qual uma das suas perspectivas mais importantes se dá pela possibilidade de que o texto literário possa nutrir o campo psicanalítico. Lacan também constantemente utilizou-se de obras literárias e artísticas para, segundo ele, “tomar a lição” (LACAN, 1973-74, aula de 09/04/1974, tradução nossa, s/p).

O romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, parece assim ser uma obra instigante para examinar a questão da neurose obsessiva, como a posição em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição cerimonial, o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos e o desejo postergado.

Narrado todo em primeira pessoa, o protagonista do livro de Mutarelli, que não tem seu nome invocado em nenhum momento do romance, é dono de uma pequena loja de objetos usados. As pessoas que vão até o seu empreendimento estão sempre em condições financeiras deploráveis e de extrema necessidade, oferecendo muitas vezes mercadorias singelas, que o personagem principal faz questão não apenas de comprar pelo menor preço, mas também de insultar quem as vende. É a partir do momento em que é afetado pelo cheiro que sai do seu banheiro, da aquisição de um olho de vidro vendido por um cliente e da obsessão com as nádegas da atendente da lanchonete, que ele tem seu previsível cotidiano perturbado. Esses três objetos – o ralo, o olho e a bunda – são os pontos em torno dos quais o protagonista gira por toda a trama e que buscaremos desdobrar em nossa análise.

Grande parte do romance se passa no empreendimento do protagonista, para o qual diversos clientes se dirigem para penhorar uma série de artefatos, que podem ser de um violino, livros e vinis raros a objetos valiosos, mas frequentemente são apetrechos sem nenhum valor. Mais do que ser um colecionador, o personagem central busca retirar, por meio dos “objetos”, a dignidade de seus “clientes”, incitando uma posição de dúvida e aviltamento, oferecendo mais dinheiro por coisas banais ou uma miséria por artefatos valiosos. Procura constantemente humilhá-los ao ouvir suas histórias de vida e da relação deles com esses objetos que levam para vender, e assim tentar arrancar sempre mais através dessa negociação um a um, procedimento que parece enaltecer seu narcisismo e buscar aniquilação desse outro.

Você nunca me deu nada.

Eu sempre paguei.

É. Tudo o que eu tinha eu vendi para o senhor.

Eu pedi para você me vender?

Não. Pedir não pediu.

Então por que vendeu?

Porque eu precisava.

Não. Vendeu porque quis.

Foi ou não foi?

Foi.

Então diga, eu vendi porque quis.

Eu vendi porque eu quis.

Muito bem. (MUTARELLI, 2011, p. 96)

Nessa coleção de objetos e nas injúrias do narrador, uma série se forma e vai se deslocando, como aquilo que Lacan caracterizou como uma “metonímia permanente” do sintoma obsessivo (LACAN, 1960-61/2010). Romildo do Rêgo Barros (2015, p. 46) definiu como, na neurose obsessiva, “o sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões”. Já não importa mais para o protagonista quais são as bugigangas vendidas, as histórias que as pessoas contam, as humilhações que provoca, tudo se torna apenas uma infinita e interminável lista de coisas a serem adquiridas.

No momento em que começa a ter problemas com o cheiro horrível que exala do ralo no banheiro do trabalho, algo que acontece já na primeira página do romance, o protagonista tem sua falsa normalidade abalada. Desse incômodo constante com o ralo e do receio do cheiro ser associado a ele (“Só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”), algo em sua vida passa a falhar, a sair do rumo ordinário que tentou construir e manter.

Aqui cheira a merda.

É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo.

Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro?

Eu.

Quem mais?

Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta: E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 16)

É Lacan quem magistralmente vai revelar sobre a “evacuação da merda”, afirmando que “o homem é o único animal para quem isso apresenta um problema, mas prodigioso” (LACAN, 1967-68/2006, p. 74). Isso fica evidente para a neurose obsessiva, cuja relação sádico-anal é apontada por Freud (1926/1996) em Inibições, sintomas e ansiedade como essencial para entender a escolha dessa neurose pelo sujeito. A regressão da pulsão ocorre por meio de um conflito psíquico e da ambivalência, na qual as ideias contraditórias sucedem-se e anulam-se. Além disso, se, no estágio anal, a possibilidade de dar ou não algo ao Outro é apenas uma possibilidade, para o obsessivo o imperativo de dar tudo ao Outro é levado às últimas consequências. Se sentir “um merda” ganha equivalência com a merda com a qual o obsessivo metrifica o outro. Lacan afirma que o “tudo para o outro” do obsessivo é “a perpétua vertigem da destruição do outro, ele nunca faz o bastante para que o outro se mantenha na existência” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255). Segundo Miller (1986, p. 140, tradução nossa) em H²O, há muito tempo os psicanalistas já haviam notado a afinidade do caráter obsessivo com “a vertente do erotismo anal, o espirito da economia e até mesmo da avareza”.

Esse ímpeto de destruir o Outro, ao mesmo tempo em que lhe dá enorme consistência, estabelece uma peculiar estratégia de rebaixamento dos seus pequenos outros. É justamente essa a maneira como o protagonista de O Cheiro do Ralo lida com todos que o cercam, demonstrando uma incapacidade ímpar para estabelecer vínculos afetivos. É curioso que comece a se importar com os outros, seus semelhantes, somente na medida em que concebe incomodá-lo com o próprio cheiro. Talvez não estejamos tão distantes de Lacan quando ele diz que “A civilização, lembrei lá como premissa, é o esgoto” (LACAN, 1971/2003, p. 15). É na sua não capacidade de acobertar o que tem de mais íntimo, o que faz no âmbito privado (“o banheirinho”), que nosso protagonista passa a se envergonhar com o olhar e a expectativa alheia: “Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim” (MUTARELLI, 2011, p. 9).

O que se segue são inúmeras e desesperadas tentativas de tamponar o ralo, ele chega mesmo a retirar o vaso e concretar o buraco, tentando assim aniquilar o que lhe assombra. Sua reação acaba por levar a um entupimento do cano do escritório e a um aumento ainda maior do cheiro insuportável. A tentativa obsessiva de tamponar o furo acaba por entupi-lo com a própria merda, a merda do seu ser, ou, como diz Lacan (1960-61/2010), seu ser de merda.

Refaz então o buraco e passa a se deitar para aspirar o vapor que sai dele: “Rastejo até o banheirinho. Tiro a toalha do ralo. Cheiro, cheiro, cheiro…” (MUTARELLI, 2011, p. 122). Há claramente um gozo nisso, seu corpo goza com essa ação de agachar e inalar compulsivamente o vapor do ralo, algo proibido, excessivo e que deve ser feito apenas escondido, longe dos olhares de todos. É nessa ação sem sentido, que faz envergonhado e solitariamente, que parece, enfim, se reconhecer:

Deitado de bruços, inalo. Trago. Para ele o ralo sou eu. Observo, atento, o buraco. Nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo. Só há o escuro que sou. E isso é tudo o que me resta para amar. (MUTARELLI, 2011, p. 176)

Podemos notar também nas ações do protagonista de obstruir e reabrir o ralo que, mais que agir, o que ele faz é um enorme esforço para desfazer o que foi feito, um contra-ato que mantém tudo imutável. Há nisso uma similaridade com o procedimento de anulação de um evento, denominado como “mágico” por Freud (1926/1996, p. 120):

Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas bifásicos, nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram.

O segundo ponto de inflexão no romance se dá quando um homem chega ao escritório e oferece ao protagonista um olho de vidro. Ele fica fascinado e chega mesmo a estabelecer uma equivalência entre o olho e as nádegas tão desejadas da funcionária da lanchonete: “Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.” (MUTARELLI, 2011, p. 36). Por isso, já não é capaz mais de negociar, pagando um alto preço pelo objeto desejado. O olho passa a ser um objeto que traz sempre no bolso, levando-o para ver a bunda da atendente, deixando-o em cima de sua mesa de trabalho, assistindo TV, conversando com ele. Passa a mostrar para os clientes e outras pessoas, dizendo: “Era do meu pai” (MUTARELLI, 2011, p. 37). O olho começa a ver pelo narrador, a ser seu companheiro, sendo levado a todos os lugares em que ele vai e, cada vez que fala sobre ele, inventa e aumenta a história do olho paterno, dando enorme densidade a esse Outro. É exatamente como na neurose obsessiva, cuja questão é a relação com o objeto olhar, e não o pai. Miller (apud SIRIOT, 2020, s/p), em seu ensino inédito O Ser e o Um, afirma: “O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”. E, ainda sobre a função escópica, Cristiane Barreto (2017, s/p) ressalta que:

O neurótico obsessivo, em dívida, sem o ‘bolso’ do psicótico para carregar seus objetos seriados, faliciza-os e os carrega na fantasia, fixa-se onde a fantasia encontra satisfação, ou, ao invés de fixar, poder-se-ia dizer, com Schejtman, que o sujeito adormece onde encontra satisfação na fantasia. Esse mecanismo pode ser relacionado com o lugar que o escópico ocupa para o sujeito obsessivo, a potência (ilusória) atribuída ao lugar do Outro, dessa forma, o olhar ganha uma dimensão de gozo proporcional à consistência atribuída ao Outro, que, permanece em sua censura perene.

Adiante no romance, quando ao protagonista é oferecida a prótese de uma perna, compra-a sem hesitar. Decide, então, montar um pai:

Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que, com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse. Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez. Eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou. Ele nunca me viu. Eu só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto. Não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites. Ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara. Nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança. Não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez, ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein. (MUTARELLI, 2011, p. 141)

Desde Freud e o caso do Homem dos Ratos é destacada a centralidade da questão paterna na neurose obsessiva. Gazzola (2002, p. 42), em seu comentário sobre o pai de Ernst Lanze, enfatiza que, nesse caso, “é um pai que não termina nunca de morrer”, e que “esse pai volta sempre, como um fantasma, para assombrar o sujeito, quando se trata de gozar”. Em O Cheiro do Ralo acompanhamos, através do olho de vidro e da perna protética, não a tentativa de criar um novo pai para se servir dele, mas um pai que “imaginou” e que, como o personagem, nem nome tem, nada sabe, nada transmitiu, é apenas um esboço de pai advindo de objetos comprados.

A bunda é outro objeto em torno do qual o romance e o protagonista giram. O personagem se vê perdidamente apaixonado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta todos os dias. Com a desculpa de ir ver a bunda, passa a consumir todos os dias um hambúrguer (X-Tudo), o que piora ainda mais seus problemas intestinais e consequentemente o cheiro ruim do ralo.

Ao se deparar com a garçonete, é incapaz de compreender seu nome e reter seu rosto, não se interessa por nada mais além de sua bunda. Chega a nomeá-la de Rosebud, em alusão ao trenó, grande mistério de Cidadão Kane de Orson Welles, e que guarda curiosa homofonia com o objeto desejado pelo protagonista. Suas investidas na garçonete levam a uma obsessão: sonha com a bunda, alucina, ensaia diversas maneiras de enfim possuir esse objeto. A garçonete também está interessada, mas a inabilidade social do protagonista o leva sempre a adiar o encontro e, mais do que isso, sua obsessão com a bunda destrói a própria possibilidade de que o encontro aconteça, tornando-o impossível. No seu constante cálculo dos objetos e das relações, há o receio de que, fora das suas fantasias previsíveis, essa satisfação irá ser corrompida: “Mas, se eu for, estrago tudo. Depois vem as cobranças. Eu sei. Mulher é tudo igual. Não adianta você ser sincero. Elas sempre querem mais. E aí logo mandam o convite pra gráfica” (MUTARELLI, 2011, p. 36). O personagem só é capaz de imaginar a possibilidade de uma relação mediada pela relação mercantil: “Se começar dessa forma, ela virá com as cobranças. E eu prefiro pagar para ver”. Como Lacan afirma no Seminário 6 (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), para o neurótico obsessivo trata-se de manter o desejo como instituído na sua impossibilidade: “É sempre para amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo”.

Após uma série de desencontros, a garota da lanchonete consente em agir conforme a fantasia do narrador, aceita fazer como ele quer, ser paga para mostrar sua bunda. Ela vai ao seu trabalho e, diante dele, abaixa as calças e exibe a bunda. Ele caminha até ela e chora copiosamente agarrado às nádegas.

A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível. Essa bunda era, enquanto impossível, enquanto alheia, o contraponto do ralo. Mas o que eu realmente buscava não estava ali. Tampouco em outro lugar. O que eu buscava era só a busca. Era só o buscar. E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço. Só o vazio. Só a certeza do incerto. Agora é preciso encontrar algo novo, de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais. Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não. O mentiroso sou eu. (MUTARELLI, 2011, p. 171)

O objeto antes tão precioso, ao ser confrontado degrada-se rapidamente e vira nada: “E, assim, mais uma coisa a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na sala ao lado” (MUTARELLI, 2011, p. 173).

É também aqui que se articula a questão entre os objetos olhar e anal, ou entre o ideal e a merda. O obsessivo reveste o objeto anal falicamente e também o encobre com o olhar. O “olhar envelopa a merda” (BARRETO, 2017, s/p), fazendo do objeto malcheiroso uma preciosidade, como o personagem faz com o ralo, o olho e a bunda. Mesmo assim, mesmo quando ele parecia ter tudo o que queria, não havia mais nada ali para ele desejar: “Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu” (MUTARELLI, 2011, p. 179).

O verdadeiro estatuto do desejo na neurose obsessiva, diz Lacan (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), é que “o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente aí, no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado: ‘seu desejo’. Onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí que ele está”. 


Referências
BARRETO, C. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. 2017. (Inédito).
BARROS, R. do R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.
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Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves
Psicóloga clínica
Mestre em Psicologia (PUC/MG)
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
edwigespsique@yahoo.com.br

Resumo: Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea?

Palavras-chave: psicose ordinária; paradigma; clínica contemporânea. 

ORDINARY PSYCHOSIS: PARADIGM OF CONTEMPORARY CLINIC? 

Abstract: It is a consensus among analysts that hypermodern subjects present themselves in the clinic somewhat refractory to the traditional intervention patterns of an interpretive psychoanalytic clinic, which had Oedipus as its central theory. With the fall of ideals, transference does not operate in the same way and the symptoms, no longer interpretable, come now labeled as disorders. In times when the Other does not exist, subjects can find other ways to stabilize themselves and to form a social bond beyond the Name-of-the-Father. Therefore, we ask ourselves: how can ordinary psychosis contribute to contemporary clinical practice? 

Keywords: ordinarypsychosis; paradigm; contemporary clinic.

 

Imagem: Renata Laguardia

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, que a transferência não opera da mesma forma e que os sintomas se apresentam sob outras roupagens.

Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social, para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, questionamos se a psicose ordinária seria o paradigma da clínica contemporânea. 

Psicose ordinária 

Fruto de um movimento iniciado em 1996, o termo criado por Jacques-Alain Miller, e que foi tornado público em 1998, questiona a clínica estruturalista inicialmente proposta por Lacan e estaria em consonância com seu último ensino.

A expressão “psicose ordinária” não possui uma definição rígida. Não se trata de um novo conceito, mas de um significante cuja aposta é fazer eco na prática clínica. Uma tentativa de resposta diante da impossibilidade de classificar alguns casos dentro do binarismo neurose ou psicose.

Na primeira clínica, Lacan admite a metáfora paterna como a operação que irá trazer uma estabilização ao registro imaginário no início da vida psíquica. Na segunda clínica, a metáfora paterna perde o status de nomeação e ganha o lugar de predicado, passando a designar uma das muitas possíveis amarrações dos três registros. O sujeito pode nunca desencadear uma psicose fazendo uso de outras soluções que fazem as vezes do Nome-do-Pai.

Nesse sentido, a introdução da categoria clínica “psicose ordinária” tem, segundo Miller (2010) duas consequências em direção oposta: por um lado, uma maior precisão no diagnóstico da neurose e, por outro, uma generalização do conceito de psicose.

No que se refere à primeira consequência, Miller (2010, p. 20) afirma:

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa.

Quanto à generalização do conceito de psicose, Miller (2010) nos esclarece que a concepção de Nome-do-Pai enquanto predicado implica em um apagamento das fronteiras entre neurose e psicose, uma vez que todo ordenamento é delirante: todo mundo é louco. Na neurose, a fantasia. Na psicose, o delírio.

Trata-se, então, de que alguns sujeitos encontram em outro significante uma suplência ao Nome-do-Pai, permitindo-lhes viver experiências no laço social com alguma estabilização. Neuróticos ou psicóticos, cada sujeito cria a sua solução, uma invenção.

Na perspectiva milleriana, seja na neurose, seja na psicose, o sujeito criará maneiras de se defender do real do gozo. Na neurose, o sintoma vem como suplência à insuficiência do pai real. Já na psicose, a solução vem em suplência ao Nome-do-Pai.

Uma vez que não será a presença ou a ausência do Nome-do-Pai que definirá se um sujeito é neurótico ou psicótico – mas, sim, sua posição de gozo no mundo, bem como aquilo que pode grampeá-lo ao seu corpo e permitir-lhe localizar-se no laço social –, interessa-nos saber o que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a direção do tratamento psicanalítico dos sujeitos sob transferência em tempos em que o Outro não existe.

Paradigma 

Agamben (2009), após vasta pesquisa sobre a utilização da terminologia “paradigma” por diferentes filósofos, define o conceito, aproximando sua pesquisa à de Michel Foucault. O paradigma agambeniano seria um exemplo, um modelo que, ao mesmo tempo em que expõe a categoria a qual pertence, não exclui sua particularidade. Exclui a dicotomia entre universal e particular. Trata-se de um método (de pesquisa) que não é dedutivo, nem indutivo, e que parte da singularidade em direção a ela mesma.

Tratar um fenômeno como paradigmático seria concebê-lo como uma figura epistemológica. Uma ilustração que explica, por si só, o conjunto do qual faz parte, sem, contudo, transformá-lo em regra geral ou em categoria replicável. Assim, o panóptico seria paradigma da sociedade de controle e o shopping center o paradigma da sociedade de consumo. Seria a psicose ordinária o paradigma de uma era que denuncia a falência do Nome-do-Pai?

O paradigma enquanto via alternativa que comporta um indecidível entre o particular e o universal, pode se alojar no intervalo, na lacuna que marca a condição de existência do sujeito freudiano. Como esclarece Miller […], por sujeito entendemos o “efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra”. Se no reino animal cada indivíduo é exemplar perfeito de sua espécie, realizando exaustivamente o universal, o ser atingido pela linguagem nunca realizará exaustivamente nenhuma classe nosológica. Se é justamente ao efeito deste hiato que chamamos sujeito, consideramos que o paradigma, ao se afastar do positivismo que explora a antítese entre o particular e o universal, resguarda o negativo que sustenta o sujeito do inconsciente. (CARVALHO, 2020, p. 60)

Inferimos que a psicose ordinária pode ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea, apoiados na seguinte declaração de Laurent e Miller (1998, p. 9):

Como operar todos os dias na prática, sem inscrever o sintoma no contexto atual do laço social que determina sua forma, na medida em que ele o determina na sua forma? Temos a intenção, Eric Laurent e eu, de afirmar este ano a dimensão social do sintoma. Afirmar o social no sintoma, o social do sintoma, não é contraditório com a inexistência do Outro. Ao contrário, a inexistência do Outro implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela abre.

Clínica contemporânea 

Miller (2005, p. 7) considera que haveria um consenso entre os psicanalistas de que “os sujeitos contemporâneos, pós-modernos e até mesmo hipermodernos são desinibidos, neo-desinibidos, desamparados, desbussolados” e que, na tentativa de identificar um marco para o início deste desbussolamento ele acabou por levantar uma segunda questão: será que não temos bússola ou temos outra bússola? A partir dessa pergunta, ele levanta a hipótese de que a bússola atual é o objeto a e que, sendo assim, o discurso de nossa época remonta à estrutura do Discurso do Analista, assim como o discurso do inconsciente remonta à estrutura do Discurso do Mestre.

Para Miller (2005), à época de Freud, o mal-estar produzido pela civilização nos sujeitos vitorianos se devia à imposição de um recalcamento de gozo. Entretanto, o mal-estar que vivemos hoje diz respeito a um imperativo de gozo. A que se deve tal mudança? Segundo a hipótese milleriana, instituída a psicanálise com Freud, antecipa-se, de alguma maneira, a ascensão do objeto mais-de-gozar ao zênite social. A elevação do objeto a ao status de bússola em nossos dias seria uma das repercussões de um século de exercício da psicanálise.

As condições de possibilidade para a criação da psicanálise foi o sintoma histérico: um real que faz furo no discurso da ciência. Dar sentido ao real do sintoma, tomá-lo como verdade foi o saber-fazer instituído e transmitido por Freud. Entretanto, o sintoma não se apresenta mais da mesma maneira. Ali, o sintoma era o efeito de uma moral civilizada, o resto de uma operação que tentava domar as pulsões. Se hoje o imperativo é “Goze!”, os sintomas não se apresentarão da mesma forma:

Nos dias de hoje, acrescentando-se ao mal-estar da psicanálise, produziu-se uma cisão do ser no sintoma. […] O sintoma tinha algo a dizer. Era definitivamente a intencionalidade inconsciente que fazia consistir o sintoma. Pois bem, na palavra sintoma, o “sin” se foi e só restou o “toma”. Doravante, o sintoma foi reduzido a distúrbio. (MILLER, 2005, p. 15)

Segundo Laurent e Miller (1998), a subjetividade contemporânea está submersa, em escala industrial, por semblantes, sob um movimento difícil de ser resistido. Acrescentam que o simbólico contemporâneo está escravizado pelo imaginário, submetido a ele. À psicanálise resta convocar o real.

Se na era vitoriana havia uma identificação vertical ao líder, às instituições, o que vivemos no capitalismo tardio é uma identificação horizontal. Como ”sequelas da escalada do objeto a ao zênite social” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 15), temos homens e mulheres determinados pelo isolamento, cada um com seu gozo, bem como a proliferação dos comitês de ética.

Se hoje “pode-se dispensar o Nome-do-Pai enquanto real com a condição de dele se servir como semblante” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 6) e se uma psicose pode estabilizar-se através de um substituto do Nome-do-Pai, entendemos que a clínica pode se servir da psicose ordinária, em sua pluralidade de amarrações, como paradigma para o tratamento de sujeitos que apresentam sintomas decorrentes da queda do Pai.

Assim, a leitura binarista da clínica estrutural se mostra insuficiente para abordar os sujeitos hipermodernos e seus sintomas pulverizados. Laurent (2020) afirma que Lacan, em seu último ensino, nos deixa indicações para reinventar a psicanálise e compreendemos que nosso ponto de partida é, portanto, a clínica borromeana.

De acordo com Laurent (2020, p. 49, tradução nossa), Lacan nos aponta que há “uma estabilização da metáfora delirante graças a uma ficção não edípica” e que esse apontamento pode ser generalizado quando o relemos a partir da segunda clínica. Se na psicose não existe um Outro bem construído, a direção do tratamento dos sujeitos psicóticos nos serve como baliza para o manejo clínico psicanalítico dos sujeitos na contemporaneidade:

A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do Nome-do-Pai. (LAURENT, 2018, p. 49)

Se, na primeira clínica lacaniana, a psicanálise só seria possível a partir da transferência, que, por sua vez, só existe com um Outro bem estabelecido, como a psicanálise pode operar em tempos em que o Outro não existe? Isso significa dizer que o saber não está suposto no analista e que este, então, operará seguindo o saber do analisante.

Seguindo esta trilha, a posição de sujeito suposto saber é substituída pela posição daquele que segue o analisante. É o analisante quem sabe. Essa mudança de estatuto da transferência, relacionada à inexistência do Outro, implica em irmos na contramão da primeira clínica.

Baseado na fórmula geral da comunicação, de que recebemos a própria mensagem de maneira invertida, o analista será esse Outro que produzirá o efeito de retorno do saber que é próprio do analisante. Entretanto, nos adverte Laurent (2020, p. 44, tradução nossa), “isso só pode funcionar na condição de dar a esse saber seu alcance de singularidade radical. Não se pode saber o que é antes que esse saber chegue a ser recebido em sua forma invertida”.

Nesse sentido, necessita-se do analista para um acréscimo de sentido que faça verdadeiro o tropeço. Uma significação que provoque o despertar. Um significante novo. Assim, o analista secretaria o falasser:

Nos fazemos de destinatário do sujeito que nomeia o gozo não negativizável. Procedemos destacando as nominações mais singulares feitas pelo sujeito. […] Onde havia a hiância no Outro obstruída pelo objeto a não extraído, se constrói uma borda desse Outro pela série de nominações. A série responde ao real sem lei. (LAURENT, 2020, p. 51, tradução nossa)

Na primeira clínica, o analista se colocava como secretário do alienado no campo das psicoses; hoje, tal papel cabe também nas neuroses.

Considerações finais 

Vivemos em um momento em que as fronteiras entre neurose e psicose não são tão claras. A horizontalidade das relações no laço social faz com que o analista não opere mais a partir do lugar de suposição de saber, mas como aquele que secretaria o analisante, auxiliando-o a construir uma série de nomeações que façam borda em sua defesa contra o real do gozo, seja ele neurótico ou psicótico.

O analista, como aquele que devolve ao sujeito, de forma invertida, o que ele lhe diz, será o destinatário que fará um acréscimo de sentido que eleve o saber do analisante à sua singularidade radical, provocando-lhe um despertar, como um significante novo. Para cada sujeito, neurótico ou psicótico, a amarração dos registros real, simbólico e imaginário será uma invenção absolutamente particular. É o que nos ensinam os psicóticos ordinários.


Referências
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CARVALHO, S. O caso paradigmático e a nosologia estrutural. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana II: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 45-72.
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MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 42, p. 7-18, 2005.
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