Tereza Facury
Psicanalista
terezafacury@gmail.com
Resumo: A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos.
Palavras-chave: segregação; gozo; criança generalizada; psicose.
ALLOCUTION ON PSYCHOSES IN CHILDHOOD: A READING OF THE LACANIAN TEXT
Abstract: The author makes a commented reading of Lacan’s text “Allocution on psychoses in childhood”, from 1967, in which he warns us that there is a segregation that expands as an effect of the progression of science. He anticipates the events we witness today, such as segregation, racism and regulation by the norm that does give rise to exception, themes that interest us especially in the case of the children we assist in our clinical practice.
Keywords: segregation; jouissance; generalized child; psychosis.
Primeira psicanalista a se dedicar à escuta das crianças débeis e a problematizar a questão do corpo na debilidade, ela supunha que as crianças débeis e suas mães viviam em uma fusão de corpos associada à presença de um ponto obscuro, não simbolizado na subjetividade materna e que por isso retorna no real do corpo do sujeito. Dessa forma, o enfoque da debilidade recai sobre a dualidade do vínculo da mãe com a criança débil, no qual ocorre uma prevalência do imaginário fantasmático da mãe como um orientador para a identificação da criança no espelho, em detrimento da ação do simbólico sobre essa identificação. O livro de Maud Mannoni, A criança atrasada e a mãe, marca a entrada do débil na psicanálise. Até então, por um erro de interpretação, ela estaria reservada às pessoas inteligentes.
Lacan valoriza essa abordagem de Maud Mannoni, porém, faz um contraponto ao propor uma causa significante para a debilidade. Trata-se, para ele, conforme nos diz Suzana Barroso (2014, p. 49), dos “efeitos no plano do imaginário corporal da criança do mecanismo da holófrase, a saber, a fusão ao nível da cadeia significante […], pois implica a posição de criança-objeto condensador de gozo do Outro.”
Entretanto, para Lacan, não se trata de uma fusão entre o corpo da mãe e o da criança, mas, sim, da primeira dupla de significantes que se solidificam, ou seja, uma fusão ao nível da cadeia significante e seus efeitos, tal como encontramos no Seminário 11:
Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar. (LACAN, 1964/1985, p. 231)
O Congresso sobre a Infância Alienada
Convidado a falar de improviso no encerramento desse Congresso, Lacan (1967/2003, p. 361) se refere a esse convite como “a este lugar, […] de ter que nos interrogar […], sobre o que fazíamos em decorrência dessa obra, e, para tanto, remontar a ela”. Ele se referia, é claro, à obra de Freud, se colocando em desacordo com os pós-freudianos ao argumentar: “Não menos notável é que nada tenha sido mais raro, em nossas colocações destes dois dias, do que o recurso a um desses termos que podemos chamar relação sexual (para deixar de lado o ato), inconsciente e gozo”. Destaca, ainda, que o fato de não levarem em conta a presença do gozo e da linguagem na relação mãe-criança fornece sustentação à “uma fantasia postiça – a da harmonia no habitat materno”.
Nos anos 1970, Maud Mannoni assume uma posição crítica com relação ao diagnóstico e à clínica estrutural, assim como em relação às instituições para psicóticos. Defensora de uma prática libertária, ela distanciou-se da orientação lacaniana, identificando-se com a proposta existencialista.
Essa prática libertária é exatamente um dos pontos observados por Lacan quando, ao final do Congresso, ele é convidado a se pronunciar. Ele adverte quanto ao fato de que essa liberdade, sugerida por uma prática dirigida a esses sujeitos, traz em si seu limite e seu engodo. A questão é como podemos apreender a referência a partir da qual podemos tratá-los sem cairmos nesse engodo.
Ele evoca os debates ocorridos entre ele e Henri Ey, sobre a associação entre loucura e liberdade. Evocar a liberdade como forma de tratamento da psicose é acreditar que o psicótico sofreria de uma repressão social. Liberdade em nome de experimentar sem empecilhos o gozo. Temos um exemplo disso na suposição dos pós-freudianos de que a relação da mãe com a criança se daria em um ambiente de total harmonia. Pelo contrário, entre a mãe e a criança há o Outro. Lacan não pensava que a loucura era um insulto à liberdade, ao contrário, ele pensava que liberdade e loucura eram indissoluvelmente ligadas. O que Lacan escreve é que toda “formação humana” tem de refrear o gozo. O aporte de Freud não diz respeito a uma ética do princípio do prazer, ao contrário, é saber através do discurso qual a relação do sujeito com o gozo. É por isso que Lacan retoma junto aos psicanalistas a importância do princípio da ética, tal como colocado pela psicanálise.
Quando Lacan (1967/2003) nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência, ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos – a segregação, o racismo, a regulação pela norma que não dá lugar à exceção – e que nos interessam especialmente no caso das crianças que atendemos. E, continua, trata-se de saber como nós psicanalistas responderemos à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes.
Ao tomar a segregação como efeito da universalização, entram em jogo modificações nas estruturas sociais e, consequentemente, na vida das pessoas, e isso incide na nossa prática analítica ao tratarmos o gozo em questão no sintoma. Lacan se pergunta como os psicanalistas vão responder a essa segregação posta na ordem do dia por uma subversão sem precedentes. A segregação faz parte de toda operação simbólica e faz-se presente na alteridade do gozo na tentativa de resistir a integrar a própria rede de referência e significações a partir de um não-saber sobre o gozo (MACÊDO, 2017).
Segundo Laurent (1999), Lacan já enfatizava que, para localizar o gozo em questão para a criança, somos obrigados a levar em conta o tratamento do gozo em uma escala que não é a escala familiar de tratamento do gozo pela metáfora paterna, o Édipo. Os Seminários de Lacan posteriores a essa época apontam um caminho teórico que nos conduz a como os psicanalistas têm abordado o gozo e o falo imaginário, uma vez que já se apresentavam insuficientes. O estatuto do pai moderno é do pai falido, humilhado, do qual se espera que trabalhe e promova o sustento da casa. Ele tem um estatuto que se reorganiza para assegurar a distribuição do gozo de maneira conveniente e, para tal, já não contamos com o pai. Os discursos organizam o mundo e o sujeito vai se inscrever aí apesar do pai (LACAN, 1967/2003).
Parece ficar claro que Lacan, ao perguntar sobre como nós psicanalistas podemos estar nesse mundo de mudança e ao mesmo tempo tomar uma distância para que seja possível tratar o gozo em questão no sintoma, nos aponta que o caminho é a ética acompanhada da construção de uma teoria a partir de Freud que nos oriente para que possamos acompanhar os efeitos no real das mudanças que ele predizia nesse momento. Porém, não é sem alegria. Uma pergunta a ser atualizada à atualidade do nosso tempo.
A criança, seu corpo e a mãe
A abordagem dos temas pertinentes à relação mãe-criança e dos efeitos na civilização do progresso da ciência convergem na expressão “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Lacan fala sobre tais temas – o lugar de objeto da criança na relação com a mãe, o gozo, o inconsciente, o corpo, a relação sexual que não existe, o real como impossível articulado ao discurso da ciência e ao discurso do analista – como sendo uma bússola que orienta nosso trabalho na clínica com crianças e, nesse sentido, as psicoses infantis são, para nós, um campo fértil de aprendizagem.
Os analistas pós-freudianos não falaram durante o Congresso sobre esses temas e por isso eles atraíram a atenção de Lacan. Sua crítica em relação à existência de um mito, preconizada por eles, de uma fantasia postiça na relação mãe-criança, se deve ao fato deles não se darem conta, na relação mãe-criança, da presença da dimensão do gozo e da linguagem e da fantasia como aquilo que articula o desejo e o gozo. Por isso, Lacan aponta o preconceito irredutível de que é sobrecarregada a referência ao corpo enquanto esse mito não for suspenso. Esse mito produz uma elisão que pode ser notada a partir da noção de objeto a, embora seja ele mesmo o que é elidido. A elisão só é compreendida ao “se opor que seja o corpo da criança o que corresponda ao objeto a” (LACAN, 1967/2003, p. 366).
Para Laurent (1999), o deslocamento da criança do falo ao objeto a tem na teoria uma função de báscula que afeta, inclusive, o fim da análise da criança. São duas formas de conceber os problemas, a realização fálica e a separação do objeto.
Lacan é muito mais prudente nesses anos, o que o leva a pensar que, para assegurar-se de que o corpo da criança não corresponda ao objeto a, é necessário algo mais do que apostar no pai. Não se trata de anular a teoria fálica precedente, “Este valor fálico tipifica a criança no sexo, dá à criança uma orientação sobre o sexo e é o que a permite apostar no pai” (LAURENT, 1999, p. 42). Se separa por construções de ficção, ficções reguladoras que permitam operar de algum modo a separação.
“A questão está em saber se, pelo fato da ignorância em que é mantido esse corpo pelo sujeito da ciência, haverá direito de fazer a esse corpo pedaços para o intercâmbio” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Assim, ele pensava que o problema da época seria o recorte do corpo em pedaços que circulariam em nome do liberalismo. Nos anos 90 ele anuncia os colóquios sobre ética da ciência e a bioética.
No caso específico da criança, a construção da fantasia consiste em um modo dela se assegurar de que seu corpo não vá responder ao objeto a, que não seja o objeto de gozo da mãe. Portanto, construir uma fantasia que o anima, com a versão do objeto que disponha segundo sua idade, é uma possibilidade.
Aqui nos cabe perguntar qual tratamento podemos deduzir para a psicose infantil. Para Laurent (1999, p. 42), seria dar uma versão do objeto a. Ou seja, que a criança, inclusive a criança psicótica, dê uma posição de gozo, não de seu inconsciente; posição de gozo tal como Lacan utiliza em “Posição do inconsciente”.
Criança generalizada
O que está em questão no uso do termo “criança generalizada” é a relação do sujeito com o gozo, seja ele o adulto ou a criança. Se não existe “gente grande”, como confessa o capelão ao poeta André Maulraux, todos somos crianças? Portanto, o que separa o adulto da criança não seria a cronologia, nem a puberdade, mas, sim, a responsabilidade do sujeito com relação ao seu modo de gozo. O que separa uma criança da pessoa maior é a ética que cada um faz de seu gozo. A grande pessoa é aquela que se faz responsável pelo seu gozo.
François Leguil (2001, p. 145), em seu texto “As crianças contumazes”, diz que:
A grande pessoa desaparece na criança e, por “necessidade”, a contingência passa ao contingenciamento. As crianças, as ciências da educação as classificam, avaliam-nas, ordenam-nas, comparam-nas, separam-nas, emparelham-nas, repartem-nas […], isso é um encarceramento e, mesmo sendo epistemológico, não deixa de ser segregativo.
A psicologia com seus mitos de harmonia e desarmonia evolutivas, está de acordo com um tempo em que essa era a norma que faz de um sujeito uma grande pessoa. O que Lacan propõe é que o sujeito enfim em questão
não é mais o sujeito que a religião do pai cernia em sua dignidade, e sim o sujeito do inconsciente, … , esse sujeito do inconsciente é o sujeito da ciência. E este é a “resposta do real”. (LEGUIL, 2001, p. 145)
Mas, então, o que é uma grande pessoa?
Leguil (2001, p. 146) discute se a grande pessoa seria determinada pela condição “ser pai” e, nessa ocasião, evoca a noção de autoridade:
o saber sobre o pretenso “desenvolvimento” da criança se edifica no lugar do que se poderia, de outro modo, construir da ação paterna. O pai, sua autoridade, hoje já não é mais isso que faz de uma criança uma grande pessoa. E de nada serve ir contra, tal como aqueles que pensam que a solução é “institucional” e que é necessário “restaurar a lei do pai”.
Sabemos que Lacan, em vários lugares de seu ensino, mencionou que o respeito que o pai pode obter de seus filhos depende da demonstração que ele soube lhes transmitir, ou seja, de que a mãe deles causava seu desejo. Ou seja, que a mãe deles não era toda mãe. Portanto, o que faz uma grande pessoa é a relação que ele entretém com o gozo.
Leguil (2001, p. 146) arrisca um palpite e tenta adivinhar porque Lacan se distancia de alguns autores com quem ele mantinha uma interlocução. Para ele, o que estaria em questão nesse debate é que “quando o gozo se torna pecado, o sujeito que se coloca na medida do dever prescrito pelo Outro ‘experimenta’ naturalmente sua indignidade”.
A idade do sujeito, para a psicanálise, depende da demanda mesma, e os sujeitos têm a idade da sua demanda. Para Leguil (2001, pp. 150), “a-grande-pessoa-que-não-há” é o sujeito das teorias sexuais infantis de Freud. Sua ideia é a de que “Além da fantasia existem de fato grandes pessoas, de quem o particular, enfim reconhecido dos resíduos do recalque, não torna tão fácil catalogá-las, como os psiquiatras acreditaram pode realizar com os fatos da perversão” (LEGUIL, 2001, p. 147). E lança uma pergunta: o que a psicanálise tem a propor no lugar do mal-estar na civilização, em que “o declínio da autoridade paterna, numa metamorfose social atravessada pela aceleração das técnicas, abandonará os sujeitos aos efeitos de um saber sempre mais segregativo?” (LEGUIL, 2001, p. 147).
Não há, assim, a grande pessoa, a não ser que, com Freud, “não sem alguma antinomia com a segurança da ética utilitarista, coloquemos o gozo no seu lugar que é central, para apreciar tudo que, ao longo da história, se afirma como moral” (LACAN, 1967/2003, p. 299).
O que seria então? Do que a psicanálise poderia dispor para responder a esse desafio coletivo de que não há mais grandes pessoas, uma vez que sua experiência repousa somente sobre a palavra?
Os imperativos taxinômicos são cúmplices do poder segregativo, e com as crianças “a coisa é mais sensível”, seja com as crianças como infância, seja com as crianças da “grande-pessoa-que-não-há”. O saber constituído em uma norma funciona como significante mestre, por isso a consequência é sempre política, e Lacan a nomeia segregação.
Já a prática da transferência desorganiza todos os saberes. O psicanalista opera sobre a fantasia a partir de sintoma, esse é a sua referência, e só temos conhecimento dele porque ele nos é endereçado. É o que Miller nomeava em 1982 como “clínica sob transferência”, e essa clínica, por sua natureza, interdita qualquer classificação.
Para Leguil (2001, p. 150), “a segregação começa com a negação do ‘isso se endereça a mim’, a mim que sou constituído por este endereçamento, quando minha oferta mesma o produziu”. E a demanda se constitui com o desejo inconsciente. Considerar a presença do sujeito do desejo pode interditar a edificação do saber normatizado, pois o “desejo é articulável e não articulado”. Somente a difusão de um saber extraído da prática de uma transferência pode ir contra a segregação.
A combinação dos dois discursos, o da ciência e o do capitalismo, se tornou mais frequente, de tal forma que conseguiu romper os fundamentos de uma tradição como a do Nome-do-Pai. Segundo Miller (2014), o próprio Lacan rebaixou essa função, Nome-do-Pai, ao fazer dela não mais do que um sinthoma, uma suplência do furo. Esse rebaixamento na clínica introduz algo inédito como perspectiva, expresso por Lacan ao dizer “Todo mundo é louco, isto é, delirante”. Tal aforismo é a tradução da categoria da loucura estendida a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber concernente à sexualidade. E isso abala a base do diagnóstico psicanalítico, que é a diferença entre neurose e psicose.
Palomera (2019) comenta que Lacan, ao escrever a frase “Todo mundo é louco”, quis ser provocativo frente aos ideais coletivos da saúde mental, o que não significa uma abolição da clínica, mas, sim, que não há nenhuma possibilidade de alcançar normas comuns e que, quanto mais globalizados os ideais da civilização, mais comuns serão os espaços de civilização, e lembra que, se algum dia chegarmos ao ponto de fazer uma norma para tudo, o pesadelo “Todo mundo está louco” será realizado.