“Folitiquement” incorreto[1],[2]

Pascale Fari
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne/AMP
pfaripsy@gmail.com

Resumo: O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Palavras-chave: loucura; doença mental; delírio.

“FOLITIQUEMENT” INCORRECT

Abstract: The signifier “madness” is no longer admissible in psychiatry. Psychism has been erased, the qualifier “mental” has become an uncomfortable relic and what remains is simply “the disease”. Faced with the current master suffix, neuro, what is essential is no longer what the patient has to say, but that he swallows it. The brain is the primary object of this disease, the machine is its original model. It is psychoanalysis that, by sustaining the dimension of subjectivity, constitutes the greatest obstacle to reducing madness to an organic disturbance.

Keywords: craziness; mental disease; delirium.

Imagem: Renata Laguardia

Talvez, um dia, se saberá melhor o que pode ser a loucura.
(FOUCAULT, 1964/2002)

Referimo-nos  à psiquiatria transformada numa questão para todos.
(LACAN, 1964/2003)

A cena se desenvolve em um setor de psiquiatria adulta na região parisiense. O caso de um paciente esquizofrênico que vai particularmente mal é abordado em reunião. A discussão está animada, rica de vinhetas clínicas trazidas por todos. Durante a conversação, eu digo: “Ele está completamente louco nesse momento”. Silêncio incomodado, todos olham para frente. Após um tempo de pausa, a conversação recomeça sobre outra coisa, como se nada tivesse acontecido. Um colega psiquiatra me explicará: “Não se pode mais falar de loucura, isso não se diz mais”. É verdade.

Investigação sobre um apagamento 

Eu já sabia, há muito tempo, que o termo doença mental tinha suplantado o termo loucura; que inúmeros loucos se encontram na rua ou na prisão; etc. Mas eu descobri lá, entretanto, o que é o corolário lógico disso: a loucura não é mais admissível em psiquiatria. O significante ele mesmo se tornou tabu. Silenciosamente obliterado. Politicamente incorreto.

Sempre excluídos, os loucos tinham um lugar no discurso psiquiátrico e no hospício. A exclusão lhes conferia um lugar. Lidaríamos, a partir daí, com a negação – até mesmo a forclusão – da loucura? Estamos nesse desenlaçamento antecipado por Michel Foucault (FOUCAULT, 1964/2002, 1973-74/2006), no qual a loucura e a doença mental terminam por se separar? À força de reduzir a doença mental à uma afecção orgânica chegou-se a “pasteurizar o hospital psiquiátrico” sem mais aí encontrar a loucura?

O silêncio embaraçado de meus colegas testemunha, apesar de tudo essa presença ainda quente de um real que não encontra mais como se nomear? O que é exatamente esse apagamento? O que é que o tornou possível? Quais são as consequências disso?

Engolir a doença (mental) 

Não se fundamentando senão por dados quantitativos, o cientificismo estuda sua distribuição “sem referência a nenhum conteúdo significativo ou absoluto” (MILLER, 2004, p. 8).  Nessa “ditadura da média”, a ideologia da objetividade das cifras se alimenta da vacuidade de sua significação. Nesse reino de quantificação desenfreada, joga-se uma cumplicidade implacável entre as exigências econômicas da Administração e a psiquiatria organicista, entre o Um gestor e o Um bioquímico ou neuronal.

Uma vez o psiquismo apagado, o qualificativo “mental” se torna uma relíquia incômoda; permanece “a doença”, simplesmente. Assim, se indica ao paciente que a “esquizofrenia é como o diabetes, é uma doença crônica”; detalha-se para ele os sintomas (todos deficitários); único recurso, tomar cuidadosamente todos os seus medicamentos para impedir a inevitável progressão do mal. O essencial não é o que o paciente teria a dizer, mas sim que ele engula a coisa. Às “velhas leis” [do hospital] (FOUCAULT, 1975/2002, p. 288): “Você não se mexerá, não gritará”, acrescentou-se esta: “Você engolirá” (neurolépticos, refeições, cuidados, explicações…). E Foucault (1975/2002, p. 289) conclui: “entre a loucura que não se quer mais e a cura que dificilmente se espera, [o] ‘bom doente’ [é] aquele que come bem”.

No entanto, atualmente a forma que toma a cifra quando ocupa o psíquico é o “significante-mestre, o sufixo-mestre, é neuro-” (MILLER, 2018). O cérebro é seu objeto primordial, a máquina é seu modelo original.

O homem-máquina: o “reset” do eletrochoque 

O imaginário contemporâneo comporta uma “identificação à máquina”, nós tratamos ou gostamos de “ser tratados como uma máquina”, continua Jacques-Alain Miller. A língua está impregnada disso – acionada, encarnada, “estar no clima” disso ou daquilo…, robotizada, superexcitada, etc.

Eis o que esclarece a volta surpreendente do eletrochoque: “Neurologia: mudança a respeito do eletrochoque”;[3] “Psiquiatria: a incrível revanche dos eletrochoques”;[4] “A sismoterapia é particularmente brilhante contra a depressão severa”.[5] 

Rebatizada “sismoterapia” ou “eletroconvulsivoterapia” (ECT), trata-se sempre de uma crise convulsiva provocada pela passagem de uma corrente elétrica no cérebro – entre 50 e 200 V (até 350 V), para uma intensidade de 50 a 800 mA. Mencionemos aqui que o custo dos eletrochoques é elevado, é um ato que “dá lucro”, principalmente às clínicas privadas.

Um novo padrão se impõe (GUELFI, ROUILLON, 2017, p. 660; SZEKELY; POULET, 2012), que promete o ECT como “o tratamento o mais eficaz da depressão severa”. Atualmente é admitido (senão preconizado) recorrer a ele logo de início (ao passo seu uso se limitava anteriormente aos casos resistentes à quimioterapia e que apresentem um risco vital). As indicações não esquecem ninguém (mulheres, grávidas, crianças, terceira idade). Se bem que “não consensuais”, elas se multiplicam em todas as direções, da primeira descompensação esquizofrênica até a adição à internet dos adolescentes…

Incrível, mas verdadeiro, poucos estudos tratam dos danos cerebrais causados pelos eletrochoques; grande parte desses estudos são antigos e insuficientes (SACKEIM et al., 2007). Em 2007, o primeiro estudo de envergadura conclui pela persistência de problemas cognitivos (memória, aprendizagem, pensamento).

Quanto ao mecanismo de ação, mistério… Alguns contam com “camundongos modificados geneticamente” por serem verdadeiramente deprimidos! As hipóteses são abundantes, evocam uma espécie de branle-bas de combat[6] para interromper as principais perturbações induzidas pela descarga elétrica. Sem se confessar explicitamente, o modelo que emerge dessas conjecturas se parece com a função reset de uma máquina.

Um problema, entretanto: a “taxa de recaída […] importante e precoce” após um tratamento de ECT (oito a doze sessões por algumas semanas). Pouco importa, os tratamentos “de manutenção” ou “de controle” são recomendados – ainda o modelo da máquina – para prevenir uma recidiva. Dentro de pouco tempo a adição aos eletrochoques?

… à lier[7]

A exacerbação da violência em psiquiatria ultrapassa a prática dos eletrochoques. Ela se deve precisamente a esse apagamento da loucura em proveito da saúde mental, aquela que “não tem outra definição senão a da ordem pública. Trata-se sempre do uso, do bom uso da força” (MILLER, 1999, p. 14). Negando a subjetividade, em nada querer saber do que os pacientes têm a dizer, nesses “confins onde a palavra se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos” nos advertia Lacan (LACAN, 1954/1998, p. 376).

Nada surpreendente, portanto, a inflação imoderada das medidas coercitivas (hospitalizações forçadas, isolamento, contenção). Em 2015, aproximadamente um quarto das hospitalizações foram feitas sem o consentimento de 100.000 pacientes concernidos (FAVEREAU, 2017),[8] ou seja, duas vezes mais que há dez anos. Surpreendente contraste com a ambição da Lei de 5 de julho 2011, que esperava limitar o recurso à força e garantir os direitos dos pacientes! O filme de Raymund Depardon, 12 dias, mostra isso de maneira de pungente: os pacientes são convidados a se expressar, mas a entrevista com o juiz encarregado de avaliar a medida, focalizada sobre a legalidade do procedimento, reduz sua palavra a uma casca vazia. Deste mal-entendido absoluto, o não-encontro redobra a alienação.

Da mesma maneira, a colocação em quarto de isolamento e a utilização das amarras de contenção vão crescendo, manifestando às vezes uma certa imprecisão entre cuidado e sanção disciplinar; para Geneviève Hazan, responsável pelo controle geral dos locais de privação de liberdade, as causas disso são múltiplas: a redução dos efetivos, a falta de formação das equipes…, mas também a amplificação mediatizada “de acontecimentos dramáticos, mas excepcionais” (CGLPL, 2016, p. 80).

Ora, a periculosidade, a passagem ao ato imprevisível, não é justamente o que resta (ou o que faz retorno) da loucura amarrada, negada, privada de subjetividade, extraída de toda psicopatologia? Do Daech[9] a Trump passando pelos fatos diversos, espelho de aumento disto que ameaça o laço social, a violência bruta, incontrolável, que angustia e fascina. “A loucura só existe em uma sociedade”, indicava Foucault, ela não existe fora das formas que a isolam, a excluem ou a capturam. Assim, o binário razão/não razão que servia para discriminar a loucura parece ter sido substituída por aquele da segurança/violência. “Cada cultura, afinal de contas, tem a loucura que merece” (FOUCAULT, 1961/2002, p. 150).

Eu “psychote”, tu “psychotes”… todo mundo delira 

Mas a dissolução do par razão/não razão tem igualmente outros motivos muito sérios: todo mundo delira, e a partir de agora todo mundo sabe disso. Não se surpreende mais que, na rua, todos falem sozinhos – com ou sem telefone –, é uma simples questão de modalidades de aparelhagem com o Outro.

A coisa passou para a língua. É claro, Le vocabulaire pours tous, de Berscherelle, confirma como “tabu” o termo “louco”, substituído pelo intolerável “doente mental”; essa modificação da terminologia médica data do século XX, conforme o Dictionnaire historique de la langue française das Edições Robert. Por outro lado, “delirar” e “delirante” são completamente banalizados. Last but not least, “psychoter” fez sua entrada oficial no Petit Robert em 2013, depois no Larousse em 2015. “Parano”, “schizo”, circulam. Esses novos usos, deslocados, provocadores, irônicos, levam uma parte da carga de real associada a seu emprego original.

Eles atestam, entretanto, também uma perturbação profunda. Com a decadência do Nome-do-Pai, o “todo”, garantia de uma organização estável, não tem mais utilidade ou lugar, mostra J.-A. Miller. Não se crê mais nas classes. As distribuições estanques são totalitárias e ultrapassadas. O DSM aninhou-se assim na crise das classificações que afetavam a nosografia psiquiátrica (MILLER, 2011, 2017).

Da mesma forma, na segunda clínica de Lacan, a perspectiva do sinthoma “é a versão lacaniana de […] fragmentação das entidades clínicas no DSM. Não se trata da mesma fragmentação, mas é o mesmo movimento de desestruturação das entidades”, observa ainda J.-A. Miller. O enunciado Todo mundo é louco, proferido em seu tempo por Lacan, chama uma nova clínica, na qual o “sintoma se torna uma unidade elementar”.

A psicanálise não é um humanismo

Não esqueçamos que o DSM foi concebido não somente para negar a dimensão psíquica, mas também para combater a psicanálise (BERCHERIE, 2010, p. 635-640). Esse combate permanece eminentemente atual. Assim, financiado por dois laboratórios farmacêuticos, uma pesquisa sobre a “imagem da esquizofrenia” (L’ObSoCo, 2015) na imprensa se descobre ser um cavalo de Tróia para incriminar a psicanálise. Os argumentos são misteriosos. Os adeptos da organicidade têm, entretanto, razão sobre um ponto: a psicanálise carrega a dimensão da subjetividade e constitui um obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Nessa configuração, protestos humanistas e voos literários são vãos. Face ao rolo compressor dos negativistas que se recusam a ouvir aqueles de quem deveriam cuidar, afiemos nossos conceitos e nossa clínica.

Há a loucura do mundo, há aquela que habita nossa abjeção a mais íntima e há a patologia psiquiátrica. Nós não temos saudade das classes perdidas. Mas nós sabemos que apagar ou negar as diferenças redobra a exclusão. Não negar a loucura é também abordar com rigor o real da psicose como tal.

De cada um, nós temos a aprender seu uso incomparável da língua, sua irredutibilidade absoluta, sua estranheza. A nos ligar às variações qualitativas do heterógeno, sem fascinação, sem romantismo, sem complacência.

Tradução: Tereza Cristina Côrtes Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira

Referências 
BERCHERIE, P. Pourquoi le DSM? L’obsolescence des fondements du diagnostic psychia  trique. L’Information psychiatrique, n. 7, v. 86, p. 635-640, set. 2010. Disponível em:  www.cairn.info. Acesso em: 01 jun. 2023.
CONTRÔLEUR GÉNÉRAL DES LIEUX DE PRIVATION DE LIBERTÉ (CGLPL). Rapport thématique: Isolement et contention dans les établissements de santé mentale. Paris: Éditions Dalloz, 2016. Disponível em: www.cglpl.fr. Acesso em: 01 jun. 2023.
FAVEREAU, É. Les chiffres affolants des soins psy sans consentement. Libération, 15 fev. 2017. Disponível em: www.liberation.fr. Acesso em: 01 jun. 2023. 
FOUCAULT, M. A loucura só existe em uma sociedade. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1961).
FOUCAULT, M. A loucura, ausência de obra. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1964).
FOUCAULT, M. Bancar os loucos. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1975).
FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Trabalho original publicado em 1973-74).
GUELFI, J.-D., ROUILLON, F. Manuel de Psychiatrie. 3. ed. Paris : Elsevier Masson, 2017.
LACAN, J. Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1954).
LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1964).
L’OBSERVATOIRE SOCIETE & CONSOMMATION (L’ObSoCo). L’Image de la schizophrénie à travers son traitement médiatique (Synthèse). 2015. Disponível em: www.fondation-fondamental.org. Acesso em: 01 jun. 2023. 
MILLER, J.-A. Saúde mental e ordem pública. Curinga, n. 13, p. 14-24, set. 1999.
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SACKEIM, H. A. et al. The cognitive effects of electroconvulsive therapy in community settings. Neuropsychopharmacology, n. 1, v. 32, p. 244-254, 2007.
SZEKELY, D.; POULET, E. L’Électroconvulsivo thérapie. In: De l’historique à la pratique clinique: principes et applications. Marseille: Solal, 2012.
[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, n. 98, p. 50-54, 2018. 50-54. Disponível em: www.cairn.info.
[2] N.T.: Título em francês: Folitiquement incorrect. Optamos por conservar o neologismo Folitiquement em referência à palavra francesa folie (“loucura”), mantendo o jogo de palavras da autora com a expressão “politicamente incorreto”.
[3] Cf.: CABUT, S. Neurologie: volte-face sur l’életrochoc. Le Monde, 18 nov. 2018. Disponível em: www.lemonde.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[4] Cf.: MALYE, F. ; VINCENT, J. ; LAGRANGE, C. Psychiatrie: l’incroyable revanche des életrochocs. Le Point, 25 ago. 2015. Disponível em: www.lepoint.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[5] Cf.: SZAPIRO-MANOUKIAN, N. La sismothérapie fait des étincelles contre la dépression sévère. Le Figaro, 27 nov. 2015. Disponível em: sante.lefigaro.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[6] A expressão “branle-bas de combat” remete a uma grande agitação durante os preparativos de uma operação ou uma ação, frequentemente realizada em uma emergência de maneira desordenada e barulhenta. Cf.: La Langue Française. Disponível em: www.lalanguefrancaise.com.
[7] A expressão francesa “fou à lier” tem o significado de “loucura” ou “doença mental”.
[8] N.A.: Conferir também o relatório publicado pelo L’Institut de recherche et documentation en économie de la santé (Irdes): COLDEFY, M.; FERNANDES, S.; LAPALUS, D. Les soins sans consentement en psychiatrie. Questions d´économie de la Santé, n. 222, fev. 2017. Disponível em: www.irdes.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[9] Uma das siglas, considerada como tendo conotação negativa, para o Estado Islâmico.



Clínica psicanalítica do delírio[1]

Laurent Dupont
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne /AMP
laurentdupont.mail@gmail.com

Resumo: Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Palavras-chave: delírio; paranoia; sublimação; narcisismo; real.

PSYCHOANALYTIC DELIRIUM CLINIC

Abstract: In the “Psychoanalytic clinic of delirium”, Laurent Dupont starts from freudian considerations about delirium in the Schreber case and, throughout the text, he proposes to read the lacanian “everybody is crazy” as an attempt to cure the real. By resuming the three stages of delirium construction, Dupont sheds light on the role of narcissism and sublimation in this process. In this sense, the Lacanian thesis of generalized delirium points, according to the author, to an attempt to bring a signifier back to the hole: “everything that man builds, invents, thinks is a way of dealing with, of compensating for this fundamental hole of not sexual intercourse”.

Keywords: delirium; paranoia; sublimation; narcissism; real.

Imagem: Renata Laguardia

 

Proponho pensar sobre esta questão a partir de duas declarações, sendo a primeira de Freud (1911/1996, p. 78): “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”; e a outra, de Lacan (1978/2010, p. 31): “todo o mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Assim, é possível para nós entendermos o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura; mas curar o quê?

Freud (1911/1996, p. 78) propõe uma construção do delírio em três etapas. Primeiro, a ideia de uma catástrofe universal, um processo que é realizado de forma silenciosa, deixando o sujeito impossibilitado de dizer algo. Vamos falar de perplexidade, sideração. Nenhum significante vem nomear esse colapso, o surgimento de um furo. Segundo tempo freudiano: a libido se desprende de pessoas ou coisas antes amadas (FREUD, 1911/1996, p. 79), deixando o sujeito em uma solidão radical. Esse desprendimento é o sinal de uma frouxidão tanto do imaginário quanto do simbólico: o silêncio da pulsão torna-se ensurdecedor, deixando o sujeito fora de tudo. A terceira etapa pode ocorrer no instante exato da segunda: reinvestimento da libido nos objetos de amor anteriores, mas sob a forma de um delírio. Esta é a tentativa de cura:

O que chama tão ruidosamente a nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão, e traz de volta a libido para as pessoas que ele havia abandonado. Na paranoia este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna do lado de fora. (FREUD, 1911/1996, p. 79)

Lacan formula esse ponto da seguinte forma: o que está foracluído do simbólico, do exterior, retorna no próprio corpo do sujeito. O delírio é, portanto, uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo, uma tentativa de localizar o gozo; seja desesperada, vã ou eficaz, ela é sempre uma tentativa de cura.

Querer, portanto, como é proposto hoje na psiquiatria, erradicar o delírio, ou que o sujeito o critique, significa suprimir a única tentativa de solução que o sujeito consegue estabelecer.

O que fazer com um delírio?

Freud não sustenta o delírio, ele o analisa, ele o segue ao pé da letra e identifica seus detalhes. De fato, um sujeito só pode delirar a partir dos significantes dos quais ele dispõe. O delírio, como o sonho ou o desenho na criança, está lá para produzir significantes, significantes da língua do sujeito. “Porca” é o significante a partir do qual Lacan pode construir o caso, seu surgimento testemunha que é este e não um outro. Há, de uma forma ou de outra, uma espécie de escolha do sujeito, uma redução ao núcleo de uma cifração mínima do inconsciente a céu aberto.

Seguir o delírio ao pé da letra, ou seja, lê-lo sem se deter no sentido que se desprende, leva Freud a formular algumas hipóteses: todas as construções, “as engenhosas erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião – a hierarquia de Deus, […] podemos avaliar, retrospectivamente a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido” (FREUD, 1911/1996, p. 80).

No delírio, pode haver uma tentativa de cura através de uma forma de sublimação. Isso está relacionado com o fato de que, por causa do desinvestimento da libido nas pessoas amadas, o retorno a elas é feito de início pelo eu do sujeito: “a libido liberada vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste” (FREUD, 1911/1996, p. 79) e visa à amplificação desse eu condenado ao caos.

Lacan fala nesse delírio de grandeza, da função de exceção que visa a ocorrência do delírio no caso do Presidente Schreber. Há, portanto, uma localização feita por Freud de uma colagem, ao mesmo tempo uma tentativa de cura por um reforço do narcisismo e o recurso a uma forma de sublimação, ambos se sobrepõem, soldados um ao outro: numa tentativa de colocar em forma o que Lacan nomeia de o sinthoma em Joyce: escabelo.

Freud (1911/1996, p. 83) também argumenta que “podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento que busca devolver a libido a seus objetos”. Assim, Freud mostra três tempos no estabelecimento do delírio: 1) colapso do mundo, deixando o sujeito fora do sentido, silencioso, sem recurso possível tanto em relação ao simbólico quanto ao imaginário. 2) Fase de agitação alucinatória, “o que é abolido retorna do exterior”. 3) O delírio é uma tentativa de cura na medida em que tenta restaurar o sentido e permitir o reinvestimento nos objetos. E Freud acrescenta essa frase de uma atualidade fulgurante: “Mas é essa tentativa de cura que os observadores consideram ser a própria doença”. Muito pouco mudou hoje em relação a essa observação, o delírio é visto menos como uma tentativa de cura do que como uma produção a se erradicar.

O delírio testemunha um colapso do imaginário e do recurso ao significante S1, sozinho, não ligado a um S2, como tentativa de lidar com o que retorna no corpo Um que deixa o sujeito desamparado. Mas esse significante S1 frequentemente não fornece ao sujeito nenhum significado em relação àquilo que acontece com ele, ao contrário, ele é o traço do furo radical de qualquer sujeito confrontado com o real. A elaboração delirante é, portanto, neste momento, uma tentativa de remendar o desenlace imaginário. Algumas vezes, esta solução pode operar uma nomeação, como em Joyce.

Foi em 1978, em seu último ensino, que Lacan (1978/2010, p. 31) formulou: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que não há nada além de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”.  Se a metáfora paterna é responsável pela relação do sujeito com o Outro e por sua alienação ou não, a partir do Seminário XI, Lacan traz à tona, com o objeto a, a questão sob o ângulo da separação, da extração. Seja em relação ao S1 sozinho, falha de significantização do gozo, seja de defesa contra o real. Nos dirá Jacques-Alain Miller (1990): retorno de gozo para o lugar do Outro na paranoia, retorno de gozo generalizado no nível do corpo na esquizofrenia, o retorno do gozo, localizado, mas deslocado no corpo como Outro no fenômeno psicossomático.

O delírio generalizado seria uma defesa contra o real. Quanto mais Lacan avança em seu ensino, mais ele apresenta essa noção de que tudo é sonho, tudo é delírio, tudo é semblante. Em relação a quê? Em relação à relação sexual que não existe, que não se inscreve, que não pode se inscrever. Nada é pré-estabelecido, nada é programado para permitir o encontro. Lacan (1978, p. 8) dirá que a psicanálise, nesse sentido, é em si mesma um delírio: “A psicanálise não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, ela só pode estar à espera, a esperar por isso. É um delírio – um delírio que se espera que comporte uma ciência”. Lacan vai dizer que o objeto a é um semblante, que o amor é um semblante, que a verdade é uma mentira… tudo isso em relação a esse real que não é nem apreensível pelo imaginário, nem pelo simbólico.

Tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar esse furo fundamental da não relação sexual. Lacan (1972-73/2008, p. 149) chega ao ponto de dizer que “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalangue”. A própria linguagem é um delírio. Assim, o sujeito, na imaturidade de seu nascimento, nesse momento em que se trata apenas de uma substância gozante, experimenta de forma radical a ausência de um programa, de relação com o Outro nesse primeiro encontro com o significante, mordida do significante no corpo, marca que deixa um traço indelével, marca Um, essa que Jacques-Alain Miller (2011) diz em O Ser e o Um: “É o Um do significante”. Este Um é apagado pela ação da linguagem que faz emergir o ser. Em “Joyce, o Sinthoma”, Lacan (1975/2003, p. 561) diz desta forma: “A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”. O ser também é um semblante, o ser também é um delírio, uma elucubração sobre esse traço inicial, esse traumatismo inicial de lalangue, e é esta a marca, o traço da existência do sujeito, o qual itera. Isto é trans-estrutural. Todos são delirantes porque a partir desta marca, esta mordida no corpo pelo Um do significante, cada sujeito será elaborado, elucidado, construído. Essa marca, esse encontro inicial, é impossível de dizer porque o real não pode ser dito, só pode ser definido, unicamente com base na lógica, no equívoco, no que se itera no sujeito. É por isso que os testemunhos de passe não dizem o real, como tal eles são ficções, contam como cada um, um a um, tem sido capaz de desconstruir suas ficções, suas identificações, sua relação com o objeto, em suma, seus delírios. Isso é o que permitiu a Jacques-Alain Miller dizer que, tendo sido o passe feito uma vez, todos os escabelos foram queimados, restam os escabelos do passe: a ultrapassagem.[2] Recordo essa definição de escabelo por Jacques-Alain Miller (2016): aquilo em que se sobe para se fazer bonito e para se tornar belo, para se empurrar para cima, o cruzamento do narcisismo e da sublimação. Aqui vemos ressurgir os dois pontos de referência freudianos, o narcisismo e a sublimação, no que concerne a Schreber.

O delírio universal seria, portanto, uma tentativa de cura diante do real, do furo trans-estrutural da não relação sexual.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Giselle Moreira

Referências
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Ornicar?, n. 14, 1978.
LACAN, J. Joyce, o Sinthoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978). 
MILLER, J.-A. Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: WARTEL, R. et al. Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 87-97.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. L’être et l’Un, enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 16 mars 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: www.congressoamp2016.com/uploads/ Acesso em: 18 jan. 2023.
[1] Publicado originalmente em francês em L’hebdo–Blog, n. 136, em 6 de maio de 2018. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/clinique-psychanalytique-delire/
[2] No original: l’outrepasse.



Entrevista com Sérgio de Campos

Sérgio de Campos
A.M. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/A.M.P.
sergiodecampos@uol.com.br

Imagem: Sofia Nabuco

Almanaque On-Line: No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização. Considerando a tendência atual que aponta para a ausência de patologias e, em seu lugar, apenas estilos de vida e, ainda, a exigência de uma fraternidade que põe em marcha a reivindicação democrática de igualdade, somada à eficácia medicamentosa que irrealiza a patologia, podemos concluir, como você diz, sobre a presença de um novo empuxo higienista da sociedade contemporânea. O que você pode nos dizer sobre esse futuro da psicanálise? Uma vez que o discurso analítico não tem nada de universal, como é possível salvar a clínica do singular, do para o “Um-sozinho”, nesse mar aberto de discursos que insistem em vender e disseminar o “para-todos”?

Sérgio de Campos: Em primeiro lugar, quero agradecer à equipe da Almanaque On-line pelo gentil convite para participar desta entrevista, pelas perguntas instigantes formuladas que me colocaram a trabalho e pela oportunidade de conversar com vocês sobre a clínica das psicoses.

Em O triunfo da religião, Lacan (1974/2005) afirma que a religião triunfará, a psicanálise sobrevirá ou não. Desde seu início, Freud enfrentou inúmeros obstáculos no caminho da psicanálise, a começar pelos seus discípulos. Verificamos que, através dos tempos, a lista continuou a crescer: a religião, as mais diversas formas de psicoterapias, a psiquiatria biológica, as neurociências, o cognitivismo, a regulamentação da psicanálise, a ortodoxia e o dogmatismo, os psicanalistas – imbuídos pelo espírito da sociedade de ajuda mútua contra o discurso analítico (SAMCDA) –, entre outros, e, agora, no contexto de nossa época, a despatologização. Pode-se dizer que a despatologização equivale a pronunciar que não haverá mais patologias alusivas à psiquiatria clássica. A despatologização forclui a psicopatologia na promessa de sanar o desequilibro neuroquímico com novos medicamentos.

A reinvindicação igualitária e o empuxo higienista do “para-todos” impõem o desaparecimento da clínica, na qual, antes, um sujeito era acometido por uma enfermidade expressa de maneira singular, e, agora, ele passa a integralizar um grupo constituído de sujeitos de direitos, alinhados a um estilo de vida, cuja finalidade comum é a de alcançar o bem-estar e a felicidade. Lacan (1969-70/1992) já nos advertira no Seminário 17, O avesso da psicanálise, que existe um preço a se pagar, visto que não há fraternidade sem exclusão que se manifesta sob as diversas formas de segregação. Lacan assinala que a fraternidade é uma ideia ridícula e não tem fundamento científico, de modo que estamos isolados no campo do um. Com efeito, a fraternidade serve para recobrir a experiência da segregação, pois, no fundo, tudo que existe na sociedade se baseia na segregação.

A despatologização é concebida a partir do contemporâneo calcado em uma fraternidade utópica, inscrita na reivindicação democrática de uma igualdade universal, a qual apregoa o apagamento das diferenças e nas exigências de um bem comum “para-todos” (MILLER, 2022). Então, o resultado da despatologização é a substituição do princípio clínico pelo princípio jurídico que vem prometer a utopia da inclusão de todos (MILLER, 2022). Logo, sob essa ótica, espera-se que todo mundo é ou possa se tornar normal. Nesse ponto, reside um paradoxo, pois quanto mais todo mundo é normal, mais medicamentos são comercializados. Então, sob o prisma do Manual Diagnóstico e Estatísticos dos Transtornos Mentais (DSM), numa espécie de nominalismo sem lastro, onde os transtornos mentais aumentam consideravelmente a cada edição, constata-se que quanto mais desaparece a clínica, mais estreita se torna a faixa entre a normalidade e a enfermidade, de sorte que ao mesmo tempo, todos se tornam normais e passíveis de serem medicados.

Enfim, o discurso analítico, apanágio do singular e do “um-sozinho” sem o Outro, se inscreve nas fissuras do discurso dominante e promove a deflação do gozo. A psicanálise não é “para-todos” e não visa a normalidade. Mas, não nos aflijamos com isso, pois ela visa a satisfação para com o sinthoma e não tem a presunção de salvar o mundo. A psicanálise se inscreve como um discurso que não seria o do semblante, no qual o real é sem lei, visto que ele é o resultado da conjunção entre o significante e o gozo, que advém da ruptura da ordem simbólica.

Se, na primeira clínica de Lacan, o que escutamos são as significações que evocam a compreensão sob o nexo causal de uma estrutura clínica, cujo gozo está implicado, na segunda clínica, a condução de uma análise, sob o paradigma do Il y a de l’Un – no que concerne ao postulado de que não há relação sexual – não é concebida como ontologia do ser, mas como existência do um que se apreende a partir das homofonias, das inanidades sonoras, dos equívocos e das jaculações nas fendas da compreensão. Em suma, o ultimíssimo Lacan propõe que, no inconsciente, temos uma escrita passível de ser lida pelo analista e pelo analisante, de maneira que a leitura vem substituir a escuta. Assim, a interpretação apenas incide sob a condição de ser uma leitura a um parlêtre que sabe se ler (MILLER, 2011).

A.O.: Em seu texto “A presença do analista na psicose ordinária” (CAMPOS, 2023), publicado na última edição da Almanaque On-line, você localiza que uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher, ou seja, uma ajuda contra o delírio edificado ali onde o sujeito se depara com o real. Nos parece uma forma de orientação em que o analista está avisado de que um delírio, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como uma tentativa de cura, traz também desordem e sofrimento e pode surgir incitando passagens ao ato que colocam o sujeito em risco. Furar a consistência e a onipotência do Outro é uma aposta numa leitura menos invasiva que pode advir, mas, por outro lado, poderia também favorecer sintomas depressivos e novos desligamentos? E como você diferenciaria a ajuda-contra do analista da posição da psiquiatria contemporânea que visa erradicar o delírio?

S.C.: É recomendável a prudência na prática de intervenções ousadas na condução de casos de psicoses ordinárias, visto que elas podem ocasionar desencadeamentos. A prática da ajuda-contra aquilo que impele o sujeito em direção de A mulher tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio e furar a onipotência do Outro. Em contrapartida, a ajuda-contra nos casos de desligamentos e sintomas depressivos pode agir a favor de um secretariado por parte do analista que contribua para um novo enlaçamento ou religamentos, como uma identificação por parte do sujeito em uma ancoragem que desempenhe um papel social positivo. Ainda no que concerne ao campo das externalidades social, corporal e subjetiva, uma leitura atenta do caso pode fornecer o instante preciso de incluir a ajuda-contra que deve incidir como uma bricolagem, uma pequena invenção que possa permitir uma extração de gozo, impedir ou adiar as errâncias, os desligamentos, as passagens ao ato e os desencadeamentos, assim como propiciar suplências.

A.O: Miller (1996) nos diz, em seu texto “Clínica irônica”, que todos os nossos discursos não passam de defesa contra o real. A isso ele nomeia como clínica universal do delírio, uma perspectiva que você trabalha no volume 1 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses, volume intitulado “As psicoses extraordinárias” (CAMPOS, 2022b). É interessante observar que essa clínica se constitui a partir da ironia, mas da “ironia infernal da esquizofrenia”, pois é só a partir do ponto de vista do esquizofrênico e de sua ironia que podemos aferir tal clínica. Se a ironia esquizofrênica, diferentemente do humor neurótico, nos diz que o Outro não existe e que não há discurso que não seja do semblante, colocamos as seguintes questões: como a ironia pode ser conveniente ao psicanalista para o seu fazer clínico? Ele pode tomá-la como um direcionamento clínico frente ao delírio generalizado? E, por fim, ainda no que se refere à esquizofrenia, Miller (2010), em seu texto “Efeito do retorno às psicoses ordinárias”, afirma que a noção de psicose ordinária estreita o campo da neurose e amplia o campo da psicose. Através de sua pesquisa que culminou na publicação de seu livro, como você pensa o estatuto contemporâneo da esquizofrenia?

S.C.: Miller, em “Clínica irônica” – texto que, embora de 1996, está atualíssimo –, define a clínica universal do delírio como sendo aquela na qual todos os discursos não passam de defesas contra o real. A clínica universal do delírio pode ser examinada do ponto de vista do esquizofrênico, na medida em que ele não é capturado por nenhum discurso e que ele está fora do laço social. É interessante ressaltar que, se por um lado, na paranoia, o Outro existe – uma vez que ele é consistente, invasivo e real, pois ele contém o objeto a –, por outro, na esquizofrenia, o Outro não existe, já que ele não foi constituído. Pode-se acrescentar que o esquizofrênico não se defende do real pelo simbólico, pois ambos os registros se equivalem, uma vez que se interpenetram em razão de uma falha na cadeia borromeana.

No que concerne à ironia, ela se distingue do humor, visto que se, por um lado, o humor se inscreve no Outro e vai ao encontro do sujeito, por outro, a ironia surge no campo do sujeito e vai de encontro ao Outro. Portanto, a ironia é uma defesa contra a invasão do Outro e ela denuncia que o Outro não existe. A ironia pode ser conveniente ao analista, mas se a neurose fosse curada por ela, não haveria necessidade da psicanálise. Miller (1996) advoga que a psicanálise tem uma ética irônica, já que ela se fundamenta na inexistência do Outro. Assim, o esquizofrênico, como aquele que se situa em uma exclusão interna, nos serve de orientação para conceber a clínica universal do delírio, na medida em que o simbólico não funciona para se defender do real.

Com isso, o paradigma da esquizofrenia se torna a direção para o ultimíssimo Lacan, onde o Outro não existe. De certo modo, Lacan considera que há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo, e foi por essa razão que ele dedicou parte de seu ultimíssimo ensino ao que ele pôde aprender com James Joyce. O ego de Joyce se constitui sem a imagem do corpo, mas a partir de um enquadramento traçado pela escritura (MALEVAL, 2019). Com efeito, a obra de Joyce e o sinthoma são homólogos e a escrita de Joyce prende o imaginário ao enodar o real e o simbólico, impedindo o deslizamento de um sobre o outro (LACAN, 1975-76/2007).

À guisa de conclusão, em “Clínica irônica”, Miller (1996) afirma que a tese universal do delírio é uma tese freudiana. Para Freud, nada deixa de ser sonho. Portanto, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é delirante”. Freud apresenta uma passagem equivalente ao aforisma lacaniano na qual afirma que, em certa medida, somos todos paranoicos, e louco seria aquele que não conseguiu alguém para ajudá-lo a incluir o seu delírio na realidade (FREUD, 1930/1980). Então, se o ultimíssimo ensino de Lacan se encontra com Freud, pelo avesso, como numa banda de Moebius, podemos cotejar um postulado com outro e concluir que, tanto para Freud, quanto para Lacan, o delírio é comum a todos. Por fim, de acordo com Miller (2013), o delírio é universal porque os homens falam e porque habitam a linguagem. Assim, o delírio linguístico lacaniano ocorre porque existe uma inconformidade das palavras às coisas, o que significa uma inadequação do simbólico ao real.

Entrevista realizada por: Giselle Moreira, Kátia Mariás, Lilany Pacheco e Rodrigo Almeida.

Referências
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022a.
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses extraordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022b.
CAMPOS, S. de. A presença do analista na psicose ordinária. Almanaque On-line, n. 30, mar. 2023. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/a-presenca-do-analista-na-psicose-ordinaria. Acesso em: 22 jun. 2023.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1980. p. 74-171. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LACAN, J. A escrita do ego. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MALEVAL, J.-C. Appréhension de la psychose ordinaire. In: Repères pour la psychose ordinaire. Paris: Navarin, 2019,  p. 41.
MILLER, J.-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 190-199.
MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana online – Nova série, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/ efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 23 de março de 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Momento de concluir. In: El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER J.-A. Todo mundo é louco. AMP 2024. Opção Lacaniana, n. 85, p. 8-17, dez. 2022.



A despatologização lacaniana e a outra[1]

Francesca Biagi-Chai
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
bia.chai@free.fr

Resumo: A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma. 

Palavras-chave: clínica; despatologização; gozo; totalitarismo; poder jurídico.

THE LACANIAN DEPATHOLOGIZATION AND THE OTHER 

Abstract: The author examines the concept of depathologization, presenting the arguments that they justify the opposition already presented in the title of the text: the Lacanian and the other. If the author states that the lacanian institution depathologizes, it is because it is conceived according to the Moebian topology, governed by discourse and clinic. “Savage” depathologization makes it possible to equate “the feeling of each person” with his reality and this must therefore be recognized as such. It is evident the evacuation of the unconscious and, equally, of the symptom. 

Keywords: clinic; depathologization; jouissance; totalitarianism; juridic power.

Imagem: Sofia Nabuco

Despatologizar a clínica – expressão ousada – impõe-se em um tempo em que se substitui a referência no significante por aquela que se ancora na busca de um gozo inflacionário. Com efeito, se a opinião pública até o presente identificava a loucura através dos problemas da palavra e da linguagem, ela não consegue detectá-la no gozo em primeiro lugar.Desse ponto de vista, a sociedade desconhece a loucura; ela também desconhece as estruturas clássicas da neurose. Ela opera uma despatologização selvagem. A isso convém opor uma outra concepção da despatologização, que eu qualifico de lacaniana: despatologizar não consiste em aplanar a clínica, mas manter suas bordas. Que o gozo vem esconder, suplantar a estrutura – no uso feito, por exemplo, do semblante na suplência – não apaga as arestas do real como tal. O real, testemunha da estrutura.

Ponto de partida em Lacan

O momento em que o gozo assume seu valor, seu lugar igual ao significante, marca uma passagem no ensino de Lacan, acentuado como tal por Jacques Alain Miller no Seminário Mais, ainda. É a partir daí que se pode fazer com que o gozo responda à foraclusão generalizada. A partir desse momento, Lacan une, ao condensá-los, significantes da clínica até então separados, fazendo aparecer neologismos equivalentes a uma nova forma de matemas. Assim é o termo lalangue, que se constitui a partir de “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998). Será o mesmo com parlêtre, que tem, diz ele, vantagem em substituir o inconsciente (LACAN, 1975/2003). E o sintoma toma o nome de moterialismo (LACAN, 1975/1998). Podemos entrever esse mesmo princípio na passagem do supereu ao gozo em si mesmo, aquele do eu (moi) ao ego, passando pela dimensão megalomaníaca do eu (moi) que, na psicose, vem sempre no lugar da impossível subjetivação. Esse pré-requisito permite nos orientarmos na concepção da despatologização em direção à qual J.-A. Miller avança através do binário irredutível do ser e da ex-sistência. Essas duas versões do parlêtre, lado significante e lado objeto, apresentam-se como não segregativas entre as estruturas, embora a estrutura não tenha sido excluída. 

Consequências do lado do analista 

Do lado analista, a primeira consequência concerne à interpretação. Às formas conhecidas de interpretação lacaniana (corte, interpretação apofântica, equívoco) agora se juntam modos de dizer ou de fazer, quando signos discretos da psicose aparecem, signos tais como os que vislumbramos nos consultórios dos analistas. Isso dá um alcance maior ao dizer de Lacan. O analista é um retificador que opera apenas pela sugestão; dito de outra forma, ele não impõe algo que teria consistência, ele se sustenta em ex-sistir (LACAN, 1979). O que faz o verdadeiro ou o falso é o peso do analista, que opera por alguma coisa que não constitui a base da contradição (LACAN, 1979). Lacan não designa o analista como semblante do objeto a? Na psicose, fazer apelo à lógica, por exemplo, para que se produza um assentimento por parte do sujeito, é uma das formas possíveis dessa função do analista (rhéteur). O mesmo acontece quando o analista desliza um significante entre dois S1 independentes. Resta ao sujeito apreendê-lo como uma nuance que faça as vezes de S2, atenuando o poder e a rigidez da cadeia significante. Não se poderia dizer que, na psicose, convém não abordar a questão diretamente (“noyer le poisson”) – em outras palavras, prescindir da localização do falo para se servir dele e se virar com o objeto a no bolso? Na neurose, convém pescar o peixe, pois esse incomoda. Ele impede o acesso ao objeto a, aqui, destacável (GONZALES-RENOU; VIGUÉ, 2021).

A instituição lacaniana despatologiza

Enquanto uma psicose não está desencadeada, pode-se falar, verdadeiramente, de psicose? A psiquiatria começa aí onde o laço social se rompe e onde, no desencadeamento, não há nenhum discurso no qual o sujeito possa se alojar. É por isso que a instituição equivale a uma patologização: é a instituição psiquiátrica que assina a patologização clínica. A questão, então, é: como subverter a instituição e levá-la a uma mudança de paradigma que seja isomórfica ao tratamento do gozo? Tive a oportunidade de organizar no Centro Hospitalar Paul Guiraud de Villejuif o que relatei em Traverser les murs (BIAGI-CHAI, 2020): uma instituição concebida segundo a topologia moebiana regida pelo discurso e pela clínica, e não pelo lugar e o tempo. Essa topologia que não tem temporalidade é, desde então, um apoio contra o deixar cair e a ruptura. Ela participa da despatologização no sentido de que o paciente, seguido por seu psiquiatra, faz uso da instituição: ela se torna, então, instrumento. De fato, ele pode solicitá-la para diferentes modalidades de hospitalização ou acompanhamento fracionado, na medida de seus próprios significantes mestres. É evidente, por exemplo, que, em tal contexto, o conceito de recaída perca todo o seu sentido, assim como os preconceitos que desconsideram a clínica, apostando apenas na vontade e não no inconsciente, com o único propósito de evitar a transferência. 

Despatologização e variações da responsabilidade penal

Sem dúvida, é no campo da criminalidade que a despatologização lacaniana é mais capaz de fazer ressoar na opinião pública o próprio significado da ética da psicanálise. De fato, as categorizações da clínica psiquiátrica avançadas como saber já não podem explicar o que preside a passagem ao ato, porque desvinculam o sujeito de seu ato. Extrair a lógica de um crime próprio ao sujeito, a saber, o poder da compulsão, a tentativa ou não de resistir a ela, o crédito e as respostas dadas aos sinais de alerta pelo entorno, é o que se poderia chamar de diagnóstico de gozo. A clínica não desaparece, mas ela se torna bússola para interpretar, e não um objetivo a ser alcançado. Unindo o “todo mundo é louco” de Lacan a seu “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (LACAN, 1966/1998, p. 873), é bem do gozo que se trata na medida em que o gozo cessa apenas na morte física, ele sempre pode ser interrogado. Despatologizar não deve mais ser entendido no sentido comum de uma subtração da patologia, mas pode ser elevado à altura de um conceito lacaniano.

Debate 

Anaëlle Lebovits-Quenehen: Muito obrigada, Francesca Biagi-Chai. Uma primeira questão muito simples, mas me parece que isso conta muito em seu texto: você pode voltar na oposição que faz entre uma despatologização “lacaniana” e uma despatologização, poderíamos dizer, “selvagem”? 

Francesca Biagi-Chai: A despatologização selvagem está em andamento. Não seria isso que atravessa a questão trans que levantamos, na qual se diz que as palavras são fatos jurídicos e na qual a evacuação do inconsciente, a evacuação do sintoma, é evidente. E, ao mesmo tempo, dizer isso é afirmar que não existe patologia, que o sentimento de cada pessoa vale tanto quanto sua realidade, realidade que deve, desde então, ser reconhecida como tal. É um totalitarismo que faz equivaler a palavra à coisa. Não há possibilidade para o sujeito se colocar a questão de sua própria divisão, de seu próprio mal-estar, de uma interrogação, de uma sutileza. Não há mais coisas de fineza, nada mais é possível, isso é o que o torna totalitário. É uma despatologização na medida em que, por exemplo, as associações dizem que “não, não é necessário se endereçar nem a um psiquiatra nem a um psicanalista, nem a ninguém”, porque no fato de encontrar um psiquiatra, um psicanalista, há o risco de patologizar a pessoa. Então, se se quer mudar de sexo, isso se faz automaticamente; no “automaticamente” há uma redução, um desaparecimento do inconsciente, que é evidentemente muito inquietante, selvagem, desde que o sujeito não possa desenvolver, ele mesmo, os significantes de sua própria mudança, a significação de seu próprio desejo.

Jacques-Alain Miller: Sem dúvida, é suficiente uma declaração perante as autoridades: “Eu sou uma mulher”; e você é uma mulher, mesmo se não tocamos no seu corpo.[2]

Francesca Biagi-Chai: Sim, é isso. Eu sou isso que eu digo.

Jacques-Alain Miller: Sim! Poderíamos dizer que é a partir do momento em que se é cidadão que isso tem peso. Mas, não! Se falamos isso aos três, quatro anos, todo o mundo se mobiliza. É enorme, você tem que se beliscar para acreditar, mas esse é o discurso. O Estado de Direito se tornou louco. Em sua intervenção, você leva isso às últimas consequências e encontra o ponto de reconstrução, no qual “todo mundo é louco”, mas, em particular, o Estado de Direito.

Francesca Biagi-Chai: Isso vai muito longe; por exemplo, até nas acusações. É suficiente que alguém tenha sido acusado para que o que foi dito sobre ele seja verdade. Não somente o inconsciente desaparece, mas a justiça também. Todo o percurso desaparece.

Jacques-Alain Miller: Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de que os analistas queiram lidar com isso é patologizar. O Estado de Direito não tem nada a fazer com os psicólogos. Com os médicos, é diferente. Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de os analistas quererem tratar do assunto é patologizar.

Francesca Biagi-Chai: Eles precisam dos médicos.

Jacques-Alain Miller: Eles precisam de médicos, e isso até o fim de seus dias, mas isso não entra em conta diante do poder do direito, o poder jurídico. Como isso é feito em nosso país, dar as chaves de nossa civilização aos juízes? Quando se franqueia os limites do Ocidente, a questão se coloca diferentemente, porque o Estado de Direito não existe: isso protege, de qualquer forma, essas loucuras.

Francesca Biagi-Chai: Sim, porque é totalitarismo contra totalitarismo.

Jacques-Alain Miller: O que você traz é o totalitarismo jurídico. O Estado de Direito tem o poder de prendê-lo ou de lhe impor multa se você não obedece, o que é absolutamente espantoso.

Francesca Biagi-Chai: Foi isso que me impressionou, que todo os saberes desaparecem, o saber mesmo desaparece, o trauma desaparece, não há mais trauma. Não há mais choque de lalangue sobre o corpo, tudo isso desaparece totalmente.

Jacques-Alain MillerCom a Escola da Causa Freudiana construímos uma pequena barragem com duas emendas.[3] Mas ela é frágil e pode ser submersa por uma onda. Há sempre cantos onde não se atreveram a vir nos buscar, mas a perspectiva é verdadeiramente a clandestinidade, como foi o caso para a psicanálise no Leste – como na Hungria –, onde se continua a psicanalisar de uma forma muito honrosa. Nosso futuro é talvez nas catacumbas.

Francesca Biagi-Chai: Queremos deixar claro que a identidade não é a identificação, já que agora identificamos alguém a uma pequena parte dele próprio, a uma pequena parte corporal. Somos identificados a um trecho de vida, a um troço de pele, a uma cor de pele… Tivemos que trabalhar. Esse termo de identidade participa desse desaparecimento do inconsciente e contribui para o totalitarismo.

C. Dewambrechies-La Sagna: As propostas de F. Biagi-Chai me fizeram pensar em uma garota que recebi essa semana, vinte e três anos, assediada por um garoto há oito anos, vindo à clínica sentindo-se tão desesperada ao ponto em que tentou se suicidar. O jovem foi, portanto, condenado com uma suspensão e proibição de se aproximar dela. Quando a jovem é questionada, escutamos que ela vê esse rapaz em todos os lugares. Ele está em todos os lugares, em cada esquina. E, um dia, ele estava na casa de uma amiga quando ela estava lá. Ela perguntou a essa amiga como se chamava o rapaz que estava no outro canto da sala. A amiga falou o nome do rapaz. Assim, a jovem apresentou uma queixa contra ele. Ele foi, então, condenado, apesar de nunca ter falado com ela. Ele provavelmente nunca a seguiu. “Mas como você sabe que ele está seguindo você?”. “Bem ele tem um Citroën vermelho… ou cinza…”. Eu disse: “Vermelho ou cinza?”. Ela responde: “Ele trocou de carro”. Assim, para entrar no delírio, assistimos a uma remodelação permanente em função do que é do real. Em seguida, três gotas de pirlimpimpim e a jovem logo se sentirá melhor. Tudo isso vai ser completamente esquecido. Não necessariamente para aquele que foi condenado. Nem por ela, cujo status e mundo mudam. Isso apoia o fato que a terapêutica medicamentosa irrealiza.

A. Lebovits-Quenehen: Esse é um ponto muito importante. Na despatologização, o fator da eficácia medicamentosa é maior.

C – Dewambrechies-La Sagna: Isto foi importante. Você disse isso, Jacques-Alain Miller, em seu curso uma vez: nós esvaziamos os hospitais psiquiátricos e isso é uma coisa boa, mas ao mesmo tempo não é suficiente. É necessário um acompanhamento para essas subjetividades que são completamente reviradas pelo fato de passar de um estatuto a outro. O estatuto de ser assediado não é, de forma alguma, o mesmo que o estatuto de estar em plena forma. Seu mundo muda, todos os seus amigos reclamam de você, chamam você, perguntam se você está sendo seguido. Em breve, não vamos lhe perguntar mais nada pois você não terá mais nada a responder a esse respeito. Contudo, há todo um universo a ser reconstruído de forma diferente, com outros suportes. Eu penso nisso como um exemplo muito recente: ouvi a semana passada – talvez como alguns de vocês – um programa sobre hipocondria na rádio France Culture. É fascinante, a hipocondria. É suficiente dizer à pessoa: “Você já teve ideias como essa?”. “Oh, sim, desde os vinte anos”. “Escreva suas ideias em um caderno”. A pessoa escreve: “Eu tive um tumor cerebral aos vinte anos”, e lhe respondemos: “Você pode ver que esse tumor não avança tão rápido”. E é suficiente também dizer aos hipocondríacos para não irem ao Google com a ideia de que, se não forem verificar, talvez fiquem um pouco menos doentes. Todos os estudantes de medicina têm todos os sintomas, estão doentes; isso faz parte das coisas habituais”, proferem esses especialistas que trabalham em grandes serviços, tendo consultas em grandes serviços parisienses. Eles ousaram falar assim sobre o problema da hipocondria; embora os hipocondríacos, quando sofrem de hipocondria, são pessoas que se torturam muito.

Tradução: Kátia Mariás
Revisão: Maria Rita Guimarães

Referências
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original publicado em 1966).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Une pratique de bavardage. Le Séminaire, livre XXV, “Le moment de conclure”, leçon du 15 novembre 1977. Ornicar?, n. 19, 1979.
GONZALES-RENOU B.; VIGUÉ, L. Conversation avec Francesca Biagi-Chai. Horizon, n. 66, L’Envers de Paris, 2021.
BIAGI-CHAI, F. Traverser les murs. La folie, de la psychiatrie à la psychanalyse. Paris: Imago, 2020.
[1] Texto originalmente publicado na revista Quarto 131, Ravages du bien-être, de junho de 2022.
[2] Proposta estabelecida por G. Poblome, É. Zuliani e P. Fari. Não relido pelo autor.
[3] A Escola da Causa Freudiana propôs duas emendas de “segurança jurídica” que o Senado introduziu e que a Comissão Mista Paritária manteve em seu texto na sua forma atual.



Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma[1]

Philippe la Sagna
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne
plasagna@free.fr

Resumo: Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele.

Palavras-chave: doenças mentais; despatologização; desmedicalização; forclusão; sintoma.

DEPATHOLOGIZATION AND DEMEDICALIZATION: THE FORECLOSURE OF THE SYMPTOM

Abstract: According to the author, after the DSM5 crisis and the emergence of the Research Domain Criteria (RDoC) in the clinic, the pathology model for mental illness became a “disorder” and weakened. In this new situation, the referent becomes the neuronal circuits associated with behaviors that are isolated in areas. One of the main and logical effects of this is depathologization and demedicalization with the erasure of therapy. Today, we educate, rehabilitate and aim at the power to act, the empowerment, and thus carry out a foreclosure of the symptom so dear to psychoanalysis, that it does not aim at its erasure, but at what the subject knows how to do with it.

Keywords: mental illness; depathologization; demedicalization; foreclosure; symptom.

Imagem: Sofia Nabuco

A questão trans lança luz sobre uma forte tendência na psiquiatria e até da medicina: a despatologização generalizada da clínica e até mesmo sua desmedicalização. Nós queremos cuidados, mas não queremos mais “fazer dela uma doença”. Em seu artigo “La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique”,[2] Éric Laurent (2014) havia apontado o fracasso do DSM-V. Em outro artigo, publicado em L’évolution psychiatrique, ele mostrou a lógica do que chamou de “a grande translação clínica contemporânea” (LAURENT, 2019, p. 57).  A crise do DSM levou ao aparecimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC)[3] na clínica.

Nessa nova situação, toma-se como o referente não mais as doenças, patologias ou mesmo pacientes, mas circuitos neuronais correlacionados com dados comportamentais que podem ser isolados em áreas. Em 2015, Steeves Demazeux, de Bordeaux, e Vincent Pidoux, em um artigo sobre este projeto RDoC, mostraram que o desafio dos RDoCs era abandonar o diagnóstico. O conceito do RDoC é o de formalizar construtos teóricos que serão os blocos de construção da classificação. O projeto é apresentado como uma pesquisa, o que o protege de uma verificação clínica efetiva. Os “campos” de pesquisa nunca deixam de surpreender: medo, circuito de recompensa, aversão, adicção, cognição (atenção e percepção, memória), aos quais acrescentamos “os processos sociais, e os sistemas de ativação e de modulação cerebrais”. Em seu livro l’Éclipse du Symptom, S. Demazeux (2019) mostra que o que antecedeu ao DSM, desde o início do século XX nos Estados Unidos, foram estudos estatísticos sobre a saúde mental: esses projetos têm em comum o fato de que eles viram as costas para toda herança da psiquiatria. Eles vão ainda mais longe, já que parecem querer abandonar a própria noção de sintoma.

À frente desse projeto RDoC está um psicólogo: Bruce Cuthbert. Em um recente artigo, ele define “a estrutura de trabalho do RDoC” (CUTHBERT, 2021). O essencial é o desenvolvimento de uma tabela de entrada dupla. No eixo das ordenadas, estão as áreas já mencionadas aqui, e no das abscissas há amontoados de “circuitos cerebrais”, os genes, as células, e até mesmo as moléculas e os comportamentos.

O autor especifica que os “construtos” são “conceitos não calculáveis” propostos a partir de conjuntos convergentes de dados (CUTHBERT, 2021, p. 78). Para ele, o essencial é definir trajetórias de desenvolvimento: “A maior parte das doenças mentais são distúrbios do desenvolvimento neurológico, a maturação do sistema nervoso interagindo com uma grande variedade de fatores externos mesmo antes do nascimento” (CUTHBERT, 2021, p. 78). E ele se refere à extensão das desordens do neurodesenvolvimento (TND):

A este respeito, para tomar um exemplo, Craddock e Owen propuseram um gradiente para a patologia de neurodesenvolvimento que, de forma contínua, parte da deficiência intelectual e avança para o autismo, a esquizofrenia, o transtorno esquizoafetivo, o transtorno bipolar e a depressão unipolar. (CUTHBERT, 2021, p. 84)

Aqui, não há descontinuidade no real onde um sujeito do transtorno poderia entrar sorrateiramente. A abordagem supõe uma continuidade entre o normal e o anormal que se torna o substituto do patológico. A abordagem é dimensional.

Em nosso campo, fomos capazes de avançar uma hipótese continuísta de natureza diferente com o “todo mundo é louco”. A ideia era modular a oposição do tipo estrutural neurose/psicose e passar da falta própria do significante para um exame das conexões e a uma clínica nodal, borromeana, ou mesmo para uma lógica difusa. Mas não é nunca uma continuidade baseada na avaliação dimensional de um déficit em referência ao normal.

A frase de Lacan é um falso universal a ser lido à luz do não-todo da sexualidade feminina. Lacan, em Vincennes, em 1978, enfatizou que não havia nada de universal no discurso analítico. Ele acrescentou que, nesse aspecto, “não é uma questão de ensino”. A loucura é também: “ensinar, o que não pode ser ensinado” (LACAN, 1979, p. 278). Não se trata de dizer, para os RDoCs, que “todo mundo é louco”, mas, sim, que “todo mundo é normal”. Em um recente colóquio em Nantes, um dos participantes (Nicolas Georgieff) sublinhou: “Do lado das ‘doenças’, o modelo de patologia – que se tornou disorder – se enfraqueceu. Isso é particularmente verdadeiro para os distúrbios reunidos no novo compartimento do ‘neurodesenvolvimento’, supostos como sendo eminentemente médicos” (GEORGIEFF, 2021).

Para os TNDs, o genótipo substitui o sintoma e substitui a clínica. Um dos efeitos principais e lógicos dessa desmedicalização é o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos, visamos o reforço do poder de agir – empowerment – e elogiamos a resiliência. A doença mental escapa ao psiquiatra, mas também ao psicólogo, que é sempre um pouco psi demais tanto para os clientes que não são mais pacientes, como também para os seus cuidadoresInvestimos nos pares cuidadores. Realizamos assim uma foraclusão do real da doença. A doença, de fato, não é um ser; é o real da existência do vivente / sujeito. Como Lacan (1953/1998, p. 282) assinalou em 1953 citando a observação de Hegel: “a doença [é] a introdução do vivente na existência do sujeito”. A psicanálise não visa o apagamento do sintoma, mas sim aquilo com que o sujeito se vira, que ele saiba fazer com ele como faz com a sua imagem, que ele o manipule. Atualmente, embaralhamos tudo isso. Essa confusão contemporânea corre o risco de produzir o que Lacan evocava como os “hollow men” (MILLER, 2007), homens com a cabeça cheia da palha, com a palha dos circuitos neuronais e dos genes. O psicanalista é então um sintoma do qual queremos prescindir, como de resto. Lacan (1973/2003, p. 554) afirmava em 1973 “que os tipos clínicos decorrem da estrutura”. No entanto, tudo isso não permite que se constituam correlatos na neurose. “Os sujeitos de um tipo não têm, portanto, qualquer utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).  Lacan (1975-76, p. 55) argumentou que a função do sintoma é a de operar a nomeação do simbólico: “a nomeação é a única coisa no simbólico da qual temos certeza de que ela faz furo”. Essa nomeação não garante a consistência do sistema simbólico, mas, sim, seu furo. Isso se opõe à “futilidade” da ciência, “que é óbvio que ela apenas progride pela via – é seu método, é sua história, é sua estrutura – só progride pela via de preencher os furos” (LACAN, 1975).

Conversação 

Angèle Terrier: Obrigada Philippe La Sagna. Você nos apresenta pesquisas na vanguarda da tese “neuro”, na qual há muito claramente uma questão de se livrar de toda noção de patologia, de sintoma, de diagnóstico e até mesmo do paciente, a fim de estar interessado apenas em circuitos neurais correlacionados a dados comportamentais, estando a saúde mental reduzida, portanto, a um quadro de dupla entrada. É o que você nomeia como uma despatologização da clínica ou uma desmedicalização. E aqui, por falta de tempo, eu gostaria de ouvir você discutir isso com Hervé Castanet, que fala mais sobre a patologização da vida mental.

Philippe La Sagna: Sim, há alguma discussão; embora talvez seja um pouco a mesma coisa. Parece-me que a patologização da vida mental, sobre a qual evocava Hervé Castanet, diz respeito, acima de tudo, ao fato de que, a partir do momento em que as neurociências tomaram o poder – podemos ver isto de uma maneira diferente –, elas abordaram toda a vida mental como sendo suscetível a desordens e inventaram, portanto, as doenças. Foi isso que colocou o DSM no fosso. Depois de um tempo, eram quatrocentos e cinquenta tipos de doenças mentais, o que levou as pessoas a dizer: “Vamos parar”. Isso parou no dia em que nos perguntamos se o fato das mulheres estarem tristes durante seus períodos menstruais era uma doença mental ou não. As feministas responderam: “Não, não é uma doença mental”.

A pergunta que você me fez sobre os furos também é igualmente importante. O que acontece com os furos na ciência? Acredito que a ciência da qual falava Lacan e a ciência de hoje não têm muito a ver. É preciso entender que a ciência, no momento, funciona como uma startup, tanto no nível do financiamento, quanto das publicações. Os laboratórios também operam com esse modelo.

O caso Theranos[4] é um exemplo que está causando um escândalo no momento. Apesar de se afirmar como ciência, ela se verificou completamente manipulada. Estou recebendo em análise alguns cientistas que me dizem como é difícil fazer pesquisas sem adulterar os resultados para conseguir financiamento. Há uma retórica da promessa, como diz François Gonon; é preciso levar às pessoas a esperança dos amanhãs que cantam: transplantes de cérebro, por exemplo. Estamos quase lá! Parece-me que isto está de acordo com o que disse Hervé Castanet. Para obter amanhãs que cantem, você inventa coisas que não existem. Não é mais uma questão de tapar furos, mas de evitá-los. Esta ciência é muito mais louca do que a anterior. Antes, quando ela encontrava um furo, tentava respondê-lo, tampando-o. Agora, quando confrontados com um furo, passam para outra coisa.

A. Terrier: O que você está destacando é o delírio destas falsas ciências. A pergunta que eu estava me fazendo foi baseada nessa citação de Lacan que você retomou no final de sua palestra, na qual ele indica que a ciência só avança ao preencher furos. É realmente uma questão de foracluir o próprio furo do simbólico.

P. La Sagna: Talvez eu não concorde com você porque, se fosse uma questão de foraclusão, isso deixaria uma esperança. Tudo o que é foracluído no simbólico retorna no real, você sabe disso. A foraclusão do sujeito da ciência, é o cientista.

A. Terrier: Isso retorna, de fato.

P. La Sagna: Poderia dizer, por exemplo, que a ciência forclui o sujeito e, infelizmente, o cientista é um sujeito que retorna no real, que diz a si mesmo que não deveria ter feito a bomba atômica e que vai atirar uma bala na própria cabeça. Se os furos da ciência fossem foracluídos, eles retornariam no real. Mas, hoje, os cientistas os ignoram, ou seja, eles entram sorrateiramente por cima deles. Como demonstrava o meu amigo François Gonon, com quem trabalhei por muito tempo, apenas os resultados positivos são publicados. O que importa se, três meses depois, novos resultados são publicados demonstrando a falsidade dos resultados anteriores, se ninguém os lê. Eles aparecem em um pequeno parágrafo. É por isso que eu digo que eles evitam os furos. Isso não é mais a ciência de Lacan, na qual havia debates, colóquios. Hoje em dia, não é o mesmo real.

Hervé Castanet: Em sua palestra, você diz: “estas falsas ciências”. Podemos dizer isso em nosso campo, mas, assim que o deixamos, essa declaração não pode ser ouvida; essa é a prática que é valorizada em todos os dispositivos científicos atualmente, ou em quase todos. Portanto, a pergunta que fiz a mim mesmo é menos porque isso é assim, do que questionar como isso pôde ser possível. Como esse modo de proceder, do qual zombamos sempre, pode hoje prosperar? Aplicando uma epistemologia, por mais rudimentar e eficaz que seja, por exemplo a de Canguilhem, percebe-se que esses argumentos não se sustentam e, apesar de tudo, generalizaram-se a tal ponto que os laboratórios, não só na França, mas também no exterior, são mantidos por esse tipo de ciência. Daí minhas referências ao Collège de France e à Academia de Ciências.

Fiquei muito sensibilizado com a observação feita anteriormente por J.-A. Miller. Não ficamos obrigados, de uma certa forma, a estar nos porões, nas catacumbas, quando constatamos que todos os dispositivos são desse tipo? Os acadêmicos de psicologia não sonharam sempre com o jaleco branco? Zombamos tanto deles e de sua disciplina, ao nos referirmos ao famoso texto de Canguilhem. De maneira efetiva, suas esperanças de pertencer à ciência generalizaram esses procedimentos. Nossa crítica a essas “falsas ciências”, mesmo a nossa zombaria – porque é tão triste que temos que colocar um pouco de humor – não impede que elas tenham efeitos sobre a prática, mesmo em hospitais. Os textos aos quais me refiro não são marginais; há uma menção explícita de intervenção no cérebro.

Lembro-me de uma apresentação de pacientes para residentes no Hospital Universitário de Marselha (CHU). Após a apresentação, durante uma hora, nós tentamos determinar no departamento de geronto-psiquiatria se se tratava de uma demência frontal ou de esquizofrenia. Obviamente, ambas podem coexistir. Uma jovem residente me disse: “Mas você passou uma hora discutindo, enquanto uma varredura de scan, que não custa nada – era uma época em que havia um déficit de um bilhão no AP-HM – teria lhe esclarecido imediatamente”. Para ela, estávamos fazendo a história do pensamento.

A. Terrier: É de fato dessa história que esta ciência gostaria de prescindir.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Márcia Bandeira

Referências
CUTHBERT, B. N. Le cadre de travail des RDoC: faciliter la transition de la CIM et du DSM vers des approches dimensionnelles qui intègrent les neurosciences et la psychopathologie. Annales médico-psychologiques, v. 179, p. 75-85, 2021. Disponível em: https://www.em-consulte.com/article/ 1420731/le-cadre-de-travail-des-rdoc% C2%A0-faciliter-la-transit. Acesso em: 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/ revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023. .
DEMAZEUX, S. L’Éclipse du symptôme: L’observation clinique en psychiatrie (1800-1950). Paris: Ithaque, 2019.
LACAN, J. Intervention au Congrès de la Grande Motte de l’École freudienne de Paris. Lettres de l’École freudienne, n. 15, p. 69-80, 1975.
LACAN, J. Séminaire du 15 avril 1975. Ornicar?, n. 5, 1975-76.
LACAN, J. Lacan pour Vincennes!. Ornicar?, n. 17-18, 1979.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LAURENT, É. La grande translation clinique contemporaine. L’évolution psychiatrique. 2013. Disponível em: https://levolutionpsychiatrique.fr/activites-scientifiques/les-colloques-lanteri-laura/3e-colloque-lanteri-laura-histoire-epistemologie-et-psychopathologie-la-clinique-a-lepreuve-du-contemporain/eric-laurent-la-grande-translation-clinique-contemporaine/>. Acesso em : 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023.
GEORGIEFF, N. La psychiatrie: une médecine sans maladies? Disponível em: http://www.ch-le-vinatier.fr/actualites-23/la-psychiatrie-une-medecine-sans-maladies-951.html?cHash=4bba4d93f41da1a11697433871b582f1.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. Le tout dernier Lacan. Curso de 02 de maio de 2007. (Inédito). Disponível em: <https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2016/02/2006-2007-Le-tout-dernier-Lacan-JA-Miller.pdf>. Acesso em : 01 jun. 2023.
[1] Texto originalmente publicado em: Revue Quarto, n. 131, jun. 2022
[2] N.T.: Em português, “A crise pós-DSM e a psicanálise na era digital”.
[3] O RdoC é um projeto de pesquisa do Instituto de Saúde Mental dos EUA iniciado em 2009 cujo objetivo é formalizar um novo sistema diagnóstico psiquiátrico que seja capaz de alinhar as classificações do DSM às descobertas em genômica e neurociência.
[4] N.T.: Theranos é uma empresa de tecnologia de testes de sangue que se destina a ser usada em pacientes reais para diagnosticar uma infinidade de doenças. A empresa controlada por uma empresa de biotecnologia, seguiu sem amplo estudo de avaliação. Confrontados por outra empresa seus dados se mostraram inconsistentes. (Cf.: https://setorsaude.com.br/o-escandalo-theranos-pode-ser-apenas-o-comeco/)



O método psicanalítico: de Freud a Lacan e retorno[1]

Paula Pimenta
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
paularamos.pimenta@gmail.com

Resumo: Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles.

Palavras-chave: método psicanalítico; Freud; Lacan; Miller.

THE PSYCHOANALYTIC METHOD: FROM FREUD TO LACAN AND BACK

Abstract: This article proposes to present in detail the text by Miller (1997), “The psychoanalytic method”, and the almost homonymous text by Freud (1904/2017), entitled “The freudian psychoanalytic method”. The route to be taken will start from Freud’s text, passing through Miller’s and returning to Freud’s with the intention of promoting an interlocution between them. 

Keywords: psychoanalytic method; Freud; Lacan; Miller.

Imagem: Renata Laguardia

“O método psicanalítico”, por S. Freud

“O método psicanalítico freudiano”, texto de Freud de 1904, foi escrito em terceira pessoa para ser publicado no livro Os fenômenos compulsivos psíquicos, do médico neurologista alemão Leopold Loewenfeld, que se interessou pelas doenças nervosas. Em nota de rodapé de seu texto sobre o Homem dos Ratos, Freud confessou tomar o livro de Loewenfeld como seu manual padrão para a abordagem da neurose obsessiva.

De acordo com as notas de apresentação do referido texto de Freud constantes na coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud, ele seria “a primeira exposição abrangente acerca da técnica psicanalítica” feita por Freud, aproveitando-se da ocasião para a formalização da psicanálise como técnica terapêutica, uma vez que já ocorria sua expansão internacional por meio dos trabalhos do psiquiatra Eugen Bleuler, na Suíça.

O editor ressalta a curiosa opção nominativa de Freud, que designa como “arte da interpretação” a principal ferramenta técnica de sua jovem ciência, em um momento em que se dedicava a fazê-la ser reconhecida por sua cientificidade no meio médico. Com efeito, vemos que Freud introduz como “arte da interpretação” o que mais tarde passará a chamar de “associação livre”. Ele assim a descreve por meio de uma analogia mineralógica: a “arte da interpretação tem o mérito de, a partir dos minérios das ocorrências involuntárias, representar o teor de metal dos pensamentos recalcados” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55). Tal descrição, como o próprio Freud indica em um momento do texto, não deixa de nos remeter à técnica por ele exposta quatro anos antes em seu artigo sobre a “Interpretação dos Sonhos” e que ele retoma de maneira mais esquemática na última década de seu ensino, em 1932, na Conferência XXIX, “Revisão da teoria dos sonhos”.

Como “ocorrência” (Einfall) podemos entender uma ideia ou imagem que se impõe à pessoa – neste sentido, conferir a nota de rodapé n. 3 na página 60 da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada. As “ocorrências involuntárias” seriam, portanto, toda e qualquer manifestação psíquica espontânea, em resposta à orientação inicial do psicanalista de que

[os pacientes] lhe contem tudo que lhes vem à cabeça, mesmo se acharem não ser importante, ou se acharem que aquilo não vem ao caso, ou que não faz sentido”, enfatizando que “não excluam nenhum pensamento ou nenhuma ocorrência da comunicação pelo fato de lhes parecer vergonhoso ou embaraçoso. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 54)

Por sua experiência, Freud (1904[1905]/2017, p. 54) observa que as ocorrências involuntárias apontam para lacunas nas lembranças da narrativa do histórico da doença, o que o leva a afirmar que “sem amnésia de qualquer tipo não há histórico da doença neurótica”. E acrescenta que, se o psicanalista insiste para o paciente se esforçar em preencher essas lacunas da memória, o que ele recolhe é uma “resistência” em tentar reproduzir os eventos ou correlações esquecidas, denotada, sobretudo, por uma postura crítica do narrador.

Freud estabelece, assim, o momento da resistência na aplicação da “arte da interpretação” como um dos fundamentos de sua teoria da psicanálise, a serviço do recalque (Verdrängung), que busca evitar o surgimento de sensações de mal-estar naquele que narra. “Quanto maior a resistência, maior será a deformação [das formações psíquicas recalcadas (pensamentos ou moções)]” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55).

Se Freud inicia seu artigo sobre o método psicanalítico trazendo seus antecedentes – ou seja, o “processo catártico”, proposto por Joseph Breuer, e a ampliação da consciência obtida através da hipnose, sem que haja uma postura de proibição sugestiva por parte do médico –, é para ressaltar a importância de sua própria invenção da “arte da interpretação”. Ele a apresenta como o único caminho – apesar de mais trabalhoso, em comparação com a hipnose – para alcançar o objetivo que o método psicanalítico pretende alcançar, o qual ele exprime por várias “fórmulas”, equivalentes em sua essência: suspensão das amnésias, reversão de todos os recalques ou “tornar o inconsciente acessível ao consciente, o que ocorre através da superação das resistências” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56).

Porém, engana-se quem acha que Freud é tolo do Real (nos termos lacanianos) e se ilude com uma fantasia de completude. Logo após a enunciação das tais fórmulas, ele acrescenta: “Mas não podemos esquecer aqui que um estado ideal como esse também não existe em uma pessoa normal, e que só raras vezes conseguimos nos aproximar minimamente desse ponto no tratamento” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56). Estamos em 1904. Freud não precisou esperar 33 anos para concluir, como faz explicitamente em seus dois textos de 1937 – “A análise finita e a infinita” e “Construções na análise” – sobre a existência de fenômenos residuais em uma análise; em outras palavras, sobre o ponto opaco

que insiste ao longo de toda uma análise e ganha, com a análise, algum contorno, alguma localização, mas insiste sem qualquer possibilidade de desligamento ou apagamento: analisa-se, portanto, para se haver com uma satisfação que se reitera sem se deixar negativizar, porque ela é também, mesmo perturbando-os, o que confere vida aos corpos e implica uma parceria da qual não há propriamente como se livrar ou afastar. (LAIA, 2017, p.400)

Como solução à aporia instituída, Freud enuncia o que se tornou uma célebre passagem de sua obra. Ele diz: “o objetivo do tratamento nunca será algo diferente do que a cura prática do doente, o estabelecimento de sua capacidade de realizar e de gozar” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Vale aqui, novamente, realçar a observação do revisor da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada, que aponta o reducionismo da expressão mais comumente conhecida “trabalhar e amar”; a justa tradução dos termos usados por Freud (leisten e genieBen) revela os sentidos de realizar (coisas) e fruir ou gozar (a vida). E segue Freud (1904[1905]/2017, p. 57): “Em caso de tratamento incompleto ou de resultados imperfeitos desse tratamento, alcançamos principalmente uma melhora significativa do estado psíquico geral do doente, enquanto os sintomas podem continuar existindo, sem, porém, estigmatizá-lo como doente, mas tendo menor importância para ele”.

Os “resultados imperfeitos” do tratamento relacionam-se também, a meu ver, com um fator mencionado por Freud no início do texto. Ele justificava a pertinência da mudança do método catártico para a “arte da interpretação” pelo fato desta conseguir se aproximar mais da série de impressões que participavam do surgimento do sintoma, que se revelou plural e não apenas como impressão única (e traumática), tal como requeria o procedimento catártico para seu êxito. Sobre essa “série de impressões” que causavam o sintoma – o que nos remete à sua formulação posterior de que o sintoma é uma “solução de compromisso” entre as instâncias do Isso, do Supereu e do mundo externo, ao qual o Eu encontra-se submetido –, Freud (1904[1905]/2017, p. 52) dirá que elas (as impressões em série) são “difíceis de serem superadas”.

Em acréscimo aos aspectos técnicos que justificam a mudança de método, Freud menciona o uso do divã – que, no texto, ele descreve como “cama de descanso” (e não Diwan) – com o propósito de que o analisante poupe “todo e qualquer esforço muscular, assim como toda impressão dos sentidos que possa atrapalhar a concentração na sua própria atividade anímica” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 53), diferentemente, porém, do contexto da hipnose, sem que necessite fechar os olhos ou que haja qualquer contato com a pessoa do médico. A dificuldade de grande número de pessoas neuróticas em serem hipnotizadas é outro argumento, que se soma aos demais, em favor da instituição do novo método da “arte da interpretação”.

E a quem ela se destina? A “todos os quadros sintomáticos da histeria multiforme e também para todas as formações da neurose obsessiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Dentre estes, os mais favoráveis são

os casos crônicos de psiconeuroses com sintomas pouco intempestivos ou potencialmente pouco perigosos, ou seja, inicialmente todos os tipos de neurose obsessiva, de pensamento e atuação obsessiva, e casos de histeria em que fobias e abulias têm papel preponderante, mas também todas as manifestações somáticas da histeria, desde que a eliminação rápida dos sintomas, como no caso da anorexia, não se torne a tarefa principal do médico. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57)

Freud estabelece condições para a pessoa que será submetida com sucesso à psicanálise: mostrar um estado psíquico normal, sem estados de confusão ou de depressão melancólica; ter determinado grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético, pois as deformações marcantes de caráter mostram-se fontes de resistências insuperáveis; e faixa etária abaixo do quinto decênio pois, do contrário, o tempo necessário para o restabelecimento será demasiado longo, além de que, aos 50 anos, a capacidade de reverter processos psíquicos começa a fraquejar. Sobre este ponto, cabe lembrar que a expectativa e a qualidade de vida em 1904 encontravam-se bem aquém das atuais.

Por fim, o tempo de duração da análise é estimado de seis meses a três anos para os casos muito graves, adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva – público corrente dos psicanalistas, até então. Fora de sua experiência prática mais comum, Freud estima que o tratamento dos casos mais leves teria uma duração bem menor, chegando a “obter um ganho extraordinário em termos de prevenção para o futuro” (Freud, 1904/2017, p. 58).

“O método psicanalítico”, por J.-A. Miller

O texto de Miller intitulado “O método psicanalítico” compõe-se pelo estabelecimento de três conferências dadas pelo autor em Curitiba em julho de 1987. Ele participa do livro Lacan Elucidado: palestras no Brasil, publicado dez anos mais tarde, em 1997, como uma coletânea das palestras proferidas por Miller no Brasil entre os anos 1981 e 1995. 

“O método psicanalítico” é o título do terceiro capítulo do referido livro e engloba quatro seções: a primeira palestra, intitulada “Discurso do método psicanalítico”; a segunda, denominada “Diagnóstico e localização subjetiva”; a terceira, “Introdução ao inconsciente”; e uma quarta, designada como “Respostas e questões em aberto”.

De pronto, Miller introduz um esquema que encadeará o desenvolvimento das três conferências. Trata-se das finalidades das Entrevistas Preliminares, tempo inicial da prática analítica, que se subdividem em três níveis: 1. A avaliação clínica; 2. A localização subjetiva; e 3. A introdução ao inconsciente. Esses níveis das Entrevistas Preliminares se superpõem, sem que haja separação completa entre eles. Suas interseções configuram-se no estabelecimento de dois processos subsequentes, que Miller denomina de Subjetivação (entre os níveis 1 e 2) e de Retificação (entre os níveis 2 e 3).

Segue o esquema, segundo sua notação:

1. A avaliação clínica

[Subjetivação]

2. A localização subjetiva

[Retificação]

3. A introdução ao inconsciente

Antes de se dedicar à explanação de cada um, Miller circunscreve a prática das Entrevistas Preliminares como o que rege, eticamente, a responsabilidade do analista em responder à demanda de análise formulada pelo candidato a analisante. “Aceitá-lo ou recusá-lo já é um ato analítico” (MILLER, 1997, p. 224) e, para fundamentar tal ato, é preciso saber que, numa análise, nos dirigimos sempre ao sujeito, cuja categoria não é técnica, e, sim, ética.

Em sua proposta de fazer um “discurso do método” da psicanálise, deixando as questões em aberto (daí o título da quarta seção), Miller ressalta que a psicanálise de orientação lacaniana é sem padrões, mas não sem princípios – e se dispõe a formalizá-los.

Começa por esclarecer que quem procura um analista não é um sujeito, mas alguém que quer ser um paciente. O sujeito é um efeito do processo analítico e não está lá desde antes. Desse modo, Miller diferencia o paciente psiquiátrico, designado pelos outros (família, médico, sociedade, instâncias sociais), do paciente da psicanálise. Este último é ativo, é ele quem primeiro avalia seu sintoma e pede ao analista um aval para sua autoavaliação. “Em análise, não há paciente à revelia de si mesmo”, sinaliza Miller (1997, p. 223). A autorização do analista quanto à autoavaliação daquele que lhe chega como paciente configura um ato analítico.

Mas isso não implica em recebê-lo em análise. Aqui se institui o contexto das Entrevistas Preliminares que, dentre outras funções, levará o paciente-candidato a reformular sua demanda. Sua duração é variável, podendo perdurar por um mês, meses, um ano ou vários, sem, no entanto, se descuidar da especialidade desse tempo que precede “a análise em seu rigor” (MILLER, 1997, p. 224).

Desse modo, o primeiro nível das Entrevistas Preliminares, o da Avaliação clínica, terá como função o estabelecimento de um diagnóstico estrutural – neurose, psicose ou perversão. Diante de uma eventual dúvida diagnóstica – não tão eventual assim, por vez comum de acontecer –, Miller indica que o analista poderá recusar a demanda, prolongar o tempo das Entrevistas Preliminares ou assumir um risco mais ou menos calculado. Adverte quanto à importância vital da avaliação clínica nos casos de psicose, pois se ela não estiver desencadeada, a análise poderá vir a desencadeá-la.

“Há uma regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico. Se isso não ocorrer, é necessário ter o máximo de cuidado para não desencadear a psicose, através de qualquer palavra” (MILLER, 1997, p. 226). Essa é uma das passagens do texto que o fazem poder ser considerado datado. A expressão “pré-psicose” denota a detecção de uma estrutura psicótica, porém não desencadeada. Foi somente 12 anos mais tarde, em 1999, em decorrência da série de conversações clínicas ocorridas na França – notadamente a Conversação de Antibes –, que Miller veio a cunhar o termo “psicose ordinária” para abarcar esses casos. A contraindicação da análise para os pacientes de estrutura psicótica também se mostra anacrônica e centrada no modelo do manejo com os pacientes neuróticos – para os quais se aplicam os demais níveis do esquema esboçado neste texto.

Miller aconselha a todo analista ter um saber profundo e extensivo sobre a estrutura psicótica e indica os parâmetros dos fenômenos elementares que devem guiar a avaliação clínica desse primeiro nível: os fenômenos de automatismo mental, de automatismo corporal e aqueles concernentes ao sentido e à verdade. Em seguida, realiza breves diagnósticos diferenciais entre psicose e histeria, psicose e neurose obsessiva e psicose e perversão. Termina então sua primeira conferência, “Discurso do método psicanalítico”, estabelecendo a categoria da enunciação como um operador prático para a clínica psicanalítica e promotora do segundo nível da Entrevistas Preliminares, a saber, o nível da localização subjetiva.

A segunda conferência, portanto, intitula-se “Diagnóstico e localização subjetiva”, e vai abordar o lugar do sujeito na análise. Para diferenciar a clínica psicanalítica, que visa a subjetividade, das demais, objetivas, Miller distingue a conduta do paciente da posição que ele assume diante de seus atos. “Como vemos, o nível descritivo não é de muita valia na experiência analítica. […] O essencial é o que o paciente diz” (MILLER, 1997, p. 235). Miller demarca a importância do analista se separar da dimensão do fato para entrar na dimensão do dito. A isso deve-se acrescentar um segundo passo: questionar a posição tomada por quem fala quanto aos próprios ditos. “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). Temos, aqui, o princípio da localização subjetiva, na análise, pela via da distinção entre enunciado e enunciação, entre o dito e o dizer.

Os fenômenos que se passam entre o enunciado, o que se diz, e a enunciação, na qual se localiza o sujeito, são decisivos para a interpretação analítica. Desse modo, diante da modalização instituída pela negação – por exemplo, com o paciente de Freud que enuncia, após o relato do sonho, “não é minha mãe” – ou por outra posição do sujeito, a interpretação analítica mínima é: “Você o disse, eu não fiz você dizê-lo” (MILLER, 1997, p. 240), o que aponta para a etapa lógica seguinte, da retificação subjetiva.

A linguagem segue sempre em retroação; o significante toma seu sentido retroativamente, somente a partir de um segundo significante. Miller o exemplifica com as frases de seu paciente, que primeiro lhe diz: “Sou um joão-ninguém”; ao que acrescenta: “É o que meu pai sempre dizia”, o que modifica o sentido da primeira frase.

O sentido do significante é dado por retroação e o sujeito fala por um contínuo processo de citação.

Não há unidade da cadeia significante, do ponto de vista da enunciação. Uma palavra é a repetição do discurso do outro. É a voz do pai que fala quando o sujeito diz “eu não sou nada”. […] A cadeia significante é polifônica, falamos a várias vozes, modificando continuamente a posição do sujeito. (MILLER, 1997, p. 243)

Isto leva Miller a questionar até que ponto o sujeito fala em seu próprio nome. Como método analítico, ele, no entanto, institui a importância da pontuação do analista, que fixa a posição subjetiva em meio ao deslizamento significante.

Reproduzindo de outra maneira o que expôs Freud em seu texto, ao falar das resistências que vão contra a vontade de restabelecimento do paciente, Miller indica que a modalização do dito pode se dar de tal maneira que uma demanda explícita de mudança pode revelar-se a de não mudar. Com isso, estipula uma função essencial para o analista, nas Entrevistas Preliminares: a de mal-entendido, revelado na pergunta que ele dirige ao analisante – “O que você quer dizer com isso?”.

Assim, localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a caixa vazia onde se inscrevem as variações da posição subjetiva. É como pôr entre parênteses o que o sujeito diz e fazer com que ele perceba que toma diferentes posições modalizadas para com seu dito. (MILLER, 1997, p. 247)

O sujeito é, portanto, essa caixa vazia que lhe revela “eu não sei o que digo”, fazendo da enunciação o próprio lugar do inconsciente.

A terceira conferência, denominada “Introdução ao inconsciente”, retoma a relação entre o dito e o dizer para indicar que a ética da psicanálise toca o bem-dizer.

O analista, separando enunciado e enunciação ao reformular a demanda e introduzir o mal-entendido, guia o sujeito para o encontro do inconsciente: leva-o ao questionamento de seu desejo e do que pretende dizer quando fala, fazendo-o assim perceber que há sempre uma boca mal-entendida. (MILLER, 1997, p. 250)

“As entrevistas preliminares não são apenas uma investigação para localizar o sujeito, mas também a mudança efetiva de sua posição […] alguém que se refere ao que disse guardando distância do dito” (MILLER, 1997, p. 250). Esse processo se constitui em uma retificação subjetiva. Ela é alcançada por meio da localização subjetiva, a partir da qual o sujeito passa a aceitar a associação livre (dizendo nos termos do Freud de 1904, a “arte da interpretação”), a falar sem censurar o que diz buscando o sentido, a abandonar a posição de mestre.

Miller (1997, p. 253) precisa que o essencial para abrir o que chamou de “espaço analítico” é o sujeito. E o define da seguinte maneira: “o sujeito é a própria perda, jamais contável em seu próprio lugar, ao nível físico, ao nível da objetividade. Neste nível ele não existe, e é responsabilidade do analista produzi-lo num outro, que lhe seja apropriado”.

E segue, mais à frente: “A introdução ao inconsciente é, na realidade, uma introdução à falta-a-ser. O sujeito é esta falta-a-ser, não tem substância, existe apenas como a torção dos três tempos” (MILLER, 1997, p. 254). E: “Lacan chamou retificação subjetiva à passagem do fato de queixar-se dos outros para queixar-se de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 255).

Miller (1997) observa que, no período mais avançado de seu ensino, no entanto, Lacan não fala tanto de retificação subjetiva, mas da histerização do sujeito. O sujeito histérico é aquele que se vê dividido em relação ao significante-mestre (S1), tomando distância de todo dito, o que lhe propicia a perda de um ponto de referência.

Como conclusão, recapitula o percurso realizado com as três conferências, tendo introduzido o sujeito a partir do tema da enunciação, fazendo aparecer ele mesmo como vazio, configurando o drama da falta-a-ser, com o qual o sujeito neurótico tem que se haver.

E retorno…

Para um ensaio de interlocução entre os textos, dois temas podem ser ressaltados e serão expostos a seguir.

1. Tanto Freud quanto Miller se fazem a pergunta sobre quem poderia se beneficiar do processo analítico.

Freud, em sintonia com seu receio quanto a se tomar sujeitos psicóticos em análise, estabelece a estrutura neurótica, que engloba os tipos clínicos da histeria e da neurose obsessiva, como o público-alvo da análise. Não recuando, no entanto, diante dos casos graves, “adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58) como seu público majoritário.

O pensamento freudiano dos primórdios de sua elaboração teórica está às voltas com o mecanismo do recalque e as resistências do aparelho psíquico que venham a proteger o Eu do mal-estar promovido pelo ressurgimento das lembranças reprimidas. Ora, sabemos ser este um mecanismo de funcionamento neurótico, com o recalcamento sendo seu mecanismo de defesa primordial – e a negativa um modo de contorná-lo, assim como as demais manifestações do inconsciente (as modalidades de equívocos pelo falar, pelo agir ou pelo ler, os chistes e os sonhos).

Já Miller (1997, p. 226), ao dizer da “regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico”, ou seja, de estrutura psicótica, mesmo em 1987 não parece estar menos advertido quanto aos benefícios que a psicanálise possibilita ao sujeito psicótico. Mas não nos termos da retificação subjetiva, que é seu propósito com as conferências realizadas sobre o método psicanalítico. Para haver a retificação é preciso o mecanismo do recalque; em outros termos, da clínica estrutural, é preciso estar diante de um sujeito neurótico.

2. Ao descrever as condições para o paciente ser submetido com sucesso à análise, Freud aponta que “as deformações marcantes de caráter se mostram fontes de resistências insuperáveis” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58). Buscando elucidar a afirmativa de Freud com o texto de Miller, temos que este autor indica que o “verdadeiro perverso”, aquele que se enquadra na estrutura clínica da perversão, não procura nem entra em análise por não querer prestar conta a nenhum Outro (MILLER, 2017, p. 255). O perverso não se divide quanto ao gozo, “ele sabe tudo o que há para se saber sobre o gozo” (MILLER, 2017, p. 229), e acrescenta que “o verdadeiro perverso, muitas vezes, escapa à sua própria análise e se autoriza a analisar, por iniciativa própria, porquanto julga ter o mais importante saber, o do gozo” (MILLER, 2017, p. 229).

Se “as deformações marcantes de caráter” de que fala Freud são tomadas como indicativas de uma estrutura perversa, podemos entender, pela via da elaboração de Miller, porque haveria, em alguns sujeitos, “fontes de resistências insuperáveis” à análise.

Por estarem circunscritos a momentos diferentes da elaboração da teoria psicanalítica – 1904 e 1987 –, os textos de Freud e de Miller sobre o “método psicanalítico” apresentam pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. Este último aspecto relança os dois textos, conjuntamente, ao descompasso com elaborações teóricas mais atuais, como o mencionado sintagma “psicose ordinária”, bem como a formalização da clínica iluminada pelos elementos epistêmicos apresentados pelo chamado “ultimíssimo Lacan”. Não obstante, os textos aqui apresentados conservam a bússola orientadora para a prática psicanalítica, evidenciando a posição do analista na transferência ao tomar sob sua condução um tratamento psicanalítico.


 

Referências
FREUD, S. O método psicanalítico freudiano. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 51-58. (Trabalho original publicado em 1904 [1905]).
LAIA, S. Posfácio. Orientação freudiana. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 383-401.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 14 de março de 2023.



Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”[1] 

Cristiana Pittella
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
cristianapittella@yahoo.com.br

Resumo: A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise.

Palavras-chave: método psicanalítico; formação do psicanalista.

A READING OF FREUD’S TEXT “RECOMMENDATIONS TO THE PHYSICIAN FOR PSYCHOANALYTIC TREATMENT” 

Abstract: Based on a lacanian reading of the text in which Freud seeks to convey the psychoanalytic method, one can infer the importance of psychoanalyst training for those who want to embark on the practice of psychoanalysis. 

Keywords: psychoanalytic method; psychoanalyst training.

Imagem: Renata Laguardia

O poder da palavra

Lacan, em seu Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, ressalta que Freud dedicou-se de 1904 a 1919 a apresentar o seu método psicanalítico e que esses escritos têm um interesse particular para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. Neles, podemos ler as noções freudianas fundamentais gradualmente e compreender o modo de ação da terapêutica analítica (LACAN, 1953-54/1986). Lacan afirma que Freud jamais cessou de falar da técnica analítica, como no tardio texto Análise terminável e Interminável de 1934, segundo ele, um dos artigos mais importantes quanto à técnica.

Os escritos de Freud reunidos pela Editora Autêntica no volume Fundamentos da Clínica Psicanalítica, que nos orienta nestas Lições Introdutórias, são de um frescor e vivacidade, de uma simplicidade e franqueza do tom que, por si só, são uma espécie de lição.

Lacan retoma esses escritos de Freud para reorientar a psicanálise e colocá-la no eixo. Ele propõe um retorno à Freud, ao campo freudiano, ao que há de subversivo e ético na psicanálise freudiana. A partir do inconsciente, o inconsciente estruturado como uma linguagem, ele procura responder à questão do que fazemos quando fazemos análise.

Assim, passo a passo, ele critica os rumos e desvios que a prática freudiana tomou com os pós-freudianos, como, por exemplo, a Psicologia do Eu e a análise das resistências. Ele vai minuciosamente demonstrar como foi em torno da concepção do ego que girou o desenvolvimento do que se dizia a técnica analítica, cuja análise e intervenções são concebidas a partir da importância da contratransferência. O analista, como se fosse uma placa sensível, intervém a partir dos sentimentos e reações produzidas nele. Nessa inter-reação imaginária entre o analisado e o analista, as interpretações de “ego para ego” (LACAN, 1953-54/1986, p. 44) visam uma ortopedia, um reforço do ego, e o final de análise é concebido pela identificação ao analista.

Lacan vai progressivamente avançando da tópica do imaginário à ordem simbólica para demonstrar que a experiência analítica não se baseia numa relação dual, intersubjetiva. Se a linguagem é tomada como ela deve ser, Lacan formula, a experiência analítica se passa então numa relação a três – a palavra faz mediação entre o sujeito e o eu.

Assim, o analista não fala do lugar de sujeito. Interpretar é técnica de enunciação, orienta J.-A. Miller (1997) no texto “O método psicanalítico”, referência para estas Lições Introdutórias.  As questões técnicas são éticas, pois o analista se dirige ao sujeito.

A interpretação é um significante enigmático que se oferece à interpretação do analisante e possibilita uma mudança na modalidade subjetiva. Ela abre à questão do desejo: o que isso quer dizer? O que ele quer?

Esse não saber, enunciado indizível (recalque), causa do sintoma, é assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que não se poderia ler, ele se equivale, nos diz J.-A. Miller (1994/2023) em “Como começam as análises”, a um texto escrito indecifrável.

Numa experiência analítica tratar-se-ia menos de lembrar e reviver do que reescrever a história. O mais importante é a leitura e a escrita, como orienta Lacan (1953-54/1986) em sua leitura de Freud: o que conta é o que o sujeito reconstrói.

Passamos dos fatos aos ditos, ao uso da palavra. E, por mais estreita que seja a porta, ela pode fazer passar um elefante.

Palavras não-toda

O texto freudiano acerca dos fundamentos da clínica psicanalítica, cuja leitura fazemos aqui, é o “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”, que data de 1912. É um dos textos mais pragmáticos na obra de Freud.

Sua atualidade reside no chamado que ele faz tanto ao modos operandis da psicanálise, quanto à importância e responsabilidade de se cuidar da formação do psicanalista e de sua transmissão. Desse modo, evidencia-se a diferença da Psicanálise em relação à medicina e às ambições da educação e da psicoterapia.

Freud já havia nessa ocasião publicado Dora, O Homem dos Ratos e O pequeno Hans, casos clássicos de Histeria, Obsessão e Fobia. Embora não houvesse ainda uma sistematização das diretrizes da técnica analítica, é desses casos tomados em sua singularidade – entre outras experiências clínicas – que Freud retira o material para tentar sistematizar a sua experiência clínica nessas recomendações. Ele tenta responder à questão de como nos transformamos em analistas (FREUD, 1912/2017).

Ainda que Freud desejasse formalizar esse material nessas recomendações – nomear algo do real de sua clínica para a transmissão da psicanálise –, ele hesitou muito em publicá-las com receio de que elas pudessem ser tomadas como regras rígidas, como um saber dogmático, que mais faria consistir um ideal e instaurar uma relação que engessa o praticante.

Freud nos alerta sobre o quanto as regras standards, inflexíveis, servem muito mais para defender o praticante do real que a matéria da psicanálise coloca em jogo, a saber, a palavra (o significante) e as pulsões (o gozo), que Lacan nomeou em seu último ensino com o neologismo moterialité (palavra e matéria).

Em uma ocasião, comentamos no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, quando este acontecia no CERSAM Noroeste nos primeiros anos do Instituto, uma vinheta clínica apresentada por uma colega com experiência clínica na saúde mental e formação na psicanálise de orientação lacaniana. Uma paciente psicótica havia recebido alta do tratamento, já que ela fora acolhida na urgência quando em crise e agora encontrava-se estável. Esse sujeito não tinha construído outros laços nem lugar no Outro, apenas com essa técnica e com esse espaço. Não conseguindo separar-se, a paciente solicita continuar o tratamento ali, ao ponto de não sair da frente da instituição. Para além dos significantes mestres (S1) que orientam a instituição – urgência e crise –, a técnica, preocupada com a transferência maciça estabelecida pelo sujeito, e ancorada no saber clínico da importância de se manter um laço frouxo e uma pluralização da transferência numa clínica com vários, decide não acolher o sujeito. A jovem, para encontrar um lugar nesse Outro, faz um acting-out, ao escarificar no braço a palavra “crise”.

Na oportunidade, verificamos o quanto o saber, face ao real em jogo, estava servindo de resistência ao desejo do analista e às invenções que ele nos convoca na clínica, impedindo-a de acolher o sujeito. É nesse sentido que Lacan afirma que a resistência é do analista.

Por conseguinte, no texto que lemos, Freud pretende transmitir recomendações não-toda, lógica que dá lugar às invenções e à singularidade do modo de satisfação (gozo) daquele que nos procura em sofrimento, num encontro que acontece a cada vez, em cada sessão e sempre único.

Mesmo que o saber clínico nos oriente e nos permita fazer uma avaliação clínica, as mutações do Outro e as respostas do real nos colocam em conversação permanente. No Campo Freudiano temos a prática das Conversações Clínicas, nas quais as questões e impasses são colhidos, debatidos, e algo do real em jogo pode vir a ser nomeado. Essa série de invenções em torno dos casos clínicos apresentados e publicados orientam e auxiliam na avaliação clínica, na estratégia e na condução de uma análise nos tempos atuais – temos a noção de pluralização da transferência (o trabalho com vários), os novos sintomas, a psicose ordinária.

A quem se destina

A Psicanálise é oriunda do campo da medicina e em seus primórdios apenas os médicos a exerciam. Freud endereça suas recomendações ao médico, no singular. E, quinze anos após, mais precisamente em 1927, Freud escreve “A questão da análise leiga. Conversa com uma pessoa imparcial”.

Na ocasião, seu aluno não médico Dr. Theodor Reik era acusado de charlatanismo e, nesse texto, Freud transmite não só o método psicanalítico – o que a psicanálise faz, suas indicações e contraindicações, a importância do período de preparação para uma análise (as entrevistas preliminares), quando e como uma análise opera, como uma análise se difere da confissão na religião –, mas, sobretudo, ele a distingue da medicina, para afirmar que não há nenhuma razão para que o exercício da psicanálise fique restrito aos médicos. Para tanto, Freud vai diferenciar o organismo do aparelho psíquico, o cérebro, com seus estímulos sensoriais, do significado e interpretação dos sonhos para o sujeito, o tratamento do sintoma na medicina e o sentido do sintoma para a psicanálise – cuja causa é um enunciado que subsiste no sujeito sem que possa ser por ele formulado (MILLER, 1994/2023) –, para afirmar que “a análise não dispõe de nenhum outro material além dos processos anímicos” (FREUD, 1927/2017, p. 276).

Esses processos anímicos é o que Freud nomeará de inconsciente, texto indecifrável, escrito que marca e ressoa no corpo (o sintoma como acontecimento de corpo) e que o analisando aprende com o analista a ler. E essa leitura implica a decifração (Sujeito Suposto ao Saber), mas, também, nos dizeres de Miller (1994/2023), o analista, ao guiar o paciente, esse intérprete, não é indiferente ao sujeito, o analista é um objeto de uma vinculação especial para ele, que atrai libido, aquela em jogo para o sujeito e seu Outro primordial.

Freud ressalta, assim, em suas recomendações, que, para um praticante de psicanálise, o mais importante não é, portanto, a formação acadêmica, se ele é médico ou não, mas, sim, uma formação permanente em psicanálise, que implica fundamentalmente a própria análise do praticante.

É uma experiência analítica que permitirá ao analista praticante que a leitura do sintoma de um falasser não fique contaminada pelas lentes dos seus preconceitos e preceitos, nem pelo texto, nem pela letra de gozo de seu próprio inconsciente, ou seja, pelo modo como ele enquadra e enlaça a sua realidade.

Freud destaca também mais dois pilares na formação do analista: o estudo teórico e a supervisão dos casos clínicos. Ele criará a Associação Psicanalítica Internacional em 1910, pois já se preocupava à época com a sua existência sempre ameaçada e com a sua popularização. Ele alerta para a importância de uma transmissão da psicanálise que a distinga de outras práticas, como a psicoterapia e a sugestão.

E que o laço de trabalho numa instituição permita que o analista praticante esteja constantemente em conversação com os colegas nos dispositivos institucionais, nos espaços de supervisão e formalização de sua clínica para que, agora com Lacan (1953/1998), o analista esteja à altura das questões em sua prática e alcance em seu horizonte a subjetividade da época.  Para tanto, esses lugares zelam pela ética e pela formação do psicanalista.

O que é um psicanalista?

As recomendações freudianas nos transmitem que essa é a questão central para a psicanálise e para a formação de um psicanalista: o que é um psicanalista?

No título da tradução que lemos aqui das Obras Incompletas de Sigmund Freud, a singularidade referente ao praticante, ao médico (“Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”), encontra nela a sua razão (diferentemente da tradução da Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud: “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”).

Lacan (1956/1998) afirma que a psicanálise é o tratamento que que se espera de um psicanalista e define um psicanalista como o que resulta de uma análise. Cada um pode dar a sua resposta singular, se desejar, no dispositivo do passe inventado por Lacan, já que não há um universal: O Analista não existe.

Evoco um fragmento do passe de Sérgio de Mattos (membro Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise) que foi recentemente nomeado Analista da Escola (AE), tendo testemunhado como se tornou um psicanalista de sua própria experiência analítica.

Ao apresentar o tema para o próximo XI Enapol, Começar a se analisar, com o seu texto “A boa sorte de analisar-se”, e também em seu 1º testemunho intitulado “Nada melhor do que o vazio”, Sérgio de Mattos (2023) conta que, ao chegar em sua análise – já tendo tido outras experiências analíticas –, o analista pergunta-lhe o que ele pôde saber de seu inconsciente. Ele responde ao analista que havia conseguido saber qual era o desejo da mãe. O analista intervém dizendo-lhe, então, que a psicanálise não podia fazer nada por ele. Corta a sessão e marca outra para ele voltar. Esse ato do analista, ético, introduz o mal-entendido e faz uma cisão entre o dito e o dizer. O sujeito é levado a um questionamento de seu desejo e do que diz quando fala. Esse primeiro encontro com o analista “faz voar em pedaços”, segundo ele, o saber constituído, a resposta que ele havia elaborado ao que o Outro quer dele (MATTOS, 2023).

O analista, ao separar o enunciado e a enunciação, questiona a posição do sujeito, e essa localização subjetiva introduz o inconsciente (MILLER, 1997), um “não saber o que se diz”. Ele é levado a se questionar e a se situar concernente ao que ele fazia e desejava tão longe de sua casa (MATTOS, 2022).

O analista, ao colocar entre parênteses o que o sujeito diz, faz com que ele perceba que pode tomar diferentes posições modalizadas para com o seu dito (MILLER, 1997, p. 247). Localizar o sujeito, é demarcar onde se inscreve as variações da posição subjetiva.

Entreabre-se a porta e a pergunta sobre o desejo do Outro.

Sérgio sai da 1ª sessão e tem um sonho com a morte de sua mãe, que é velada na garagem da casa da família. Recorda-se de uma cena traumática vivida aos 5 anos. Após uma briga dos pais, a mãe se tranca no quarto dizendo que se mataria. Frente à porta trancada, o filho grita e bate desesperado. Nenhuma resposta. O pai, perturbado, tenta arrombá-la. A criança, de joelhos, suplica para que o pai faça alguma coisa. Em seguida, um buraco negro, desfalecimento. Vai recuperar o sentido e a memória quando o médico sai do quarto e diz que a mãe estava dormindo.

Nessa cena, ele pôde ler sua identificação com o objeto de gozo do Outro. Chave de sua neurose infantil, experimentada com angústias intensas, terrores noturnos, nervosismo, doenças e dificuldade de encontrar seu lugar. Repertório que se repetiu sintomaticamente na sua vida nas ocasiões de separação e conflitos, nomeado pelo analista de patologia do fort-da.

Ele nos ensina, como nos diz J.-A.-Miller (1994/2023), que o candidato à psicanálise deve ser capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e, mesmo, de o ler de diversas maneiras. É o que Freud chama de regra fundamental, a associação livre, que são as cadeias de significantes que o sujeito não controla, significantes sem mestre. A associação livre vai levar o sujeito a se dissociar da causa inventada que justifica a sua existência e que lhe tampa o vazio em que consiste (MATTOS, 2022).

Abre-se ao trabalho, à transferência, tanto na vertente do saber (Sujeito-Suposto-Saber) e do gozo (libidinal).

Ao final de sua análise, ao escutar uma intervenção do analista – “me chama” –, se escreve para ele uma nova relação com o Outro, que implica em não ter que responder fantasmaticamente, salvar a mulher, colocando em jogo um programa de gozo, de destruição, de desaparecimento e dano ao outro.

Parece-nos que o “me chama”, vociferado pelo analista ao final de sua análise, se articula com a abertura do enigma do desejo materno colocado à entrada de sua análise. Onde havia uma porta que não se abria, a análise faz passar por ela, entreabre-se ao desejo do analista que o possibilita a engajar-se na via do desejo, quando o gozo transborda no cotidiano da vida.

Lugares e laços

É só a partir de uma experiência analítica, da análise de seus próprios sonhos, nos diz Freud, que o praticante alcança e se orienta por um saber não-saber (douta ignorância), função do desejo do analista. Assim a análise se molda, sublinha Freud (1927/2017), a partir de sua matéria, daquilo que o paciente traz.

Recentemente, num dos espaços do IPSM-MG, o Atelier de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, uma ótima conversa e discussão coloca em jogo esse tema. Um caso de uma criança, apresentado pela psicanalista Inês Seabra, membro da EBP/AMP – que também foi trabalhado anteriormente em outro espaço do IPSM-MG, o Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças –, nos presentifica com sua transmissão a função do desejo do analista, que acompanha as respostas do sujeito e a temporalidade do trabalho de elaboração analítico dessa criança.

O analista não se precipita nem insere significantes, que fazem parte do Outro simbólico ao qual a menina pertence – ser preta, menina, racismo, exclusão. O analista também não insere na análise da criança a interpretação materna de racismo, em relação a uma experiência que a menina viveu na escola.  O analista acolhe o tempo do sujeito e a questão que o analisando trazia – “de onde vêm os bebês?” –, colocada pelo real do nascimento de um irmão.

As recomendações de Freud acentuam a importância de que muitas coisas que ouvimos, sua importância só se revelará a posteriori (nachtraglich). Que os analistas sejam pacientes. E, se ele não recomenda fazermos anotações para suprir a falta de evidências e comprovações para fins científicos, é porque passamos dos fatos para o dizer, das evidências para a construção.

Fundamento da regra  

A técnica simples que Freud destaca para o psicanalista nessas recomendações é a que chamamos durante anos de “atenção flutuante” e, na tradução que lemos, optou-se pelo neologismo “atenção equiflutuante”, justificado pelo termo em alemão utilizado por Freud, que contém a atenção continuada, flutuante e equitativa.

Em uma nota, os editores das Obras Incompletas de Sigmund Freud referem-se à tradução proposta por Paul-Laurent Assoun (2009) – “equiflutuante” –, pois o seu sentido abarca um para além da mera flutuação e designa as pequenas batidas de asas suficientes para que um pássaro possa planar.

Esse batimento de asas evoca a linguagem com o seu batimento, aquele da articulação dos significantes, assim como as ressonâncias e ocorrências da língua que produzem algo novo, que tanto surpreende o analista e o analisando na leitura e na escrita do inconsciente.

Esse modo de atenção, a sua importância, enfatiza a não seleção prévia, que o psicanalista não se fie em seus valores ou teorias pré-concebidas. No dizer de Freud (1912/2017, p. 94): “se seguimos as nossas inclinações e expectativas, corremos o risco de nunca encontrarmos algo diferente do que sabemos”. O sujeito é suposto ao saber inconsciente que se desprende das cadeias, das associações do analisando, e é a partir do que lhe é dito que o analista interpreta.

A contrapartida para a “atenção equiflutuante” é exigirmos, nos dizeres de Freud, que o analisando conte tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção. Trata-se da regra psicanalítica fundamental da psicanálise, que já comentamos aqui, a “associação livre”.

O lugar do analista

Para finalizarmos, voltamos ao início de nossa leitura.

Freud (1912/2017, p. 102) adverte para que o psicanalista não ambicione a cura e o bem para seu analisando, assim como não tenha compaixão e empatia: “o médico precisa ser opaco para o analisando”, ele recomenda.

É o lugar e a função do analista que ele procura nesse texto formalizar, retirando-o do eixo imaginário, especular, e do campo da sugestão. Assim, trata-se de desvalorizar a transferência sentimental e empalidecer a transferência imaginária, nos diz Miller (1994/2023), pois elas não favorecem o desenvolvimento da cadeia significante nem possibilitam ao sujeito responsabilizar-se pelo próprio gozo.

O valor disso que ele destaca é o que chamamos de segunda regra da análise, a regra da abstinência, que completaria a primeira regra, a da associação livre. O que está em jogo é não se satisfazer com uma satisfação de ordem sexual com o analista.

O lugar do analista no discurso do analista enquanto objeto a, invólucro do nada da significação inconsciente. Lacan (1973/2003, p. 518) situará o analista em “Televisão” pelo que antigamente se chamava “ser santo”. O santo não faz caridade; antes, presta-se a bancar o dejeto: ele faz descaridade, o que permite ao sujeito tomá-lo como objeto causa de seu desejo.


 

Referências
ASSOUN, P.-L. Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF, 2009.
FREUD, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalíticoIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1912).
FREUD, S. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcialIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1927).
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original proferido em 1956).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. (1956). Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 
MATTOS, S. de. Rien comme un vide. Revue La Cause du Désir, n. 111, jun, 2022.
MATTOS, S. de. A boa sorte de analisar-se. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: <http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023/04/ENAPOL-Sergio-de-Mattos-PT-2.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2023.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
MILLER, J.-A. Como começam as análises. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/ 2023/04/ENAPOL-Jacques-Alain-Miller-PT.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023. Trabalho original publicado em 1994).

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[1] Texto apresentado nas 59ª. Lições introdutórias à Psicanálise em 28 de março de 2023.




Inventar a própria maneira de ler[1] 

Márcia Mezêncio
A.P. da Escola Brasileira de Psicanáise/AMP
Mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG)
marciasouzamezencio@gmail.com

Resumo: Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual. 

Palavras-chave: início do tratamento; técnica da psicanálise; leitura do inconsciente; desejo de saber. 

INVENTING YOUR OWN WAY OF READING 

Abstract: This article presents a reading, contextualization and commentary on Freud’s article entitled “On the beginning of treatment”, published in 1913 in the series that became known as Technical Writings, and unfolds some reflections on the transmission of knowledge in psychoanalysis, referring to the current moment. 

Keywords: beginning of treatment; psychoanalysis tecnique; reading of the unconscious; desire to know.

Imagem: Renata Laguardia

Agradeço a oportunidade e o convite para estar aqui e para trabalhar com vocês um texto apaixonante, como são para mim os escritos de Freud. Sou de uma geração que se iniciou na psicanálise pela obra de Freud e se fascinou com as aberturas que a leitura feita por Lacan tornou possíveis. O modo de ler de Lacan tornou-a um texto vivo que, como tal, permite que inventemos nossa própria maneira de ler (MILLER, 1997, p. 249). Se digo paixão e fascínio, refiro-me à paixão da ignorância, a paixão colocada em jogo na experiência analítica, implicada na transferência. É pela via do amor e da suposição de saber que tudo começa, e aqui já me insiro no próprio tema desta lição.

As Lições Introdutórias são, para mim, um espaço privilegiado, eu já disse isso em outras ocasiões, por proporcionar retornos sobre textos fundamentais, bem como sobre a nossa própria trajetória, não sem lançar luz sobre o atual e o contemporâneo, abrindo portas a uma nova leitura. Retomamos hoje esses escritos de Freud na perspectiva não mais de um retorno a Freud, já empreendido por Lacan – e quanto a isso é importante assinalar ainda uma vez que a série dos seminários de Lacan, em seu retorno a Freud, se inicia justamente com os “escritos técnicos” –, mas do desafio contemporâneo de fazer valer a existência do inconsciente em nosso tempo e de que as análises comecem.

Para isso, é preciso que uma pergunta se coloque. Mais que uma questão de método, também é condição de existência do inconsciente e de sobrevivência da psicanálise. Nunca é demais reafirmar esse princípio, levando em consideração que é característica desse tempo em que praticamos a psicanálise que existam somente respostas.

Dominique Laurent, discutindo as implicações do ensino com o saber e a Escola, salienta a importância de ensinar os textos fundadores, para manter a transmissão do saber explícito da psicanálise – e aqui considero a função do Instituto em relação a esse ensino. Ela prossegue reafirmando a necessidade de “perseguir a transmissão do saber implícito, aquele saber sob transferência, assim como a dimensão política de sua ação” (LAURENT, 2018, p. 4) No entanto, ela conclui que “o ensino faz obstáculo ao saber, no sentido de Lacan” (LAURENT, 2018, p.5). E defende um saber que não se reduz a uma aprendizagem e que faça oposição à demanda daqueles que se endereçam à Escola, ou ao Instituto, para obter um saber-fazer no mau sentido, ocultando, assim, seu ponto de não saber. Cabe a nós operarmos com o furo no saber e acolher a transferência de trabalho que o desejo de saber coloca em funcionamento.

Com essa orientação, organizei minha apresentação em dois eixos: o comentário do artigo e algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise.

Uma questão de preliminares: no início o mal-entendido 

O texto de Freud que provoca nossa conversa – seja por seu título, “Sobre o início do tratamento”, seja por sua proposta (cito Freud (1913/2017, p. 121): “tentarei reunir algumas dessas regras para o início do tratamento, no intuito de serem utilizadas pelo analista praticante”), ou por seu contexto, a saber, a expansão do movimento psicanalítico e as primeiras dissidências – possibilita inúmeras entradas.

Uma entrada possível ocorreu-me ao considerar o nosso contexto, a série na qual essa nossa conversa acontece: Lições Introdutórias, que também reverbera com a ideia de um início, ou iniciação, introdução, e que haveria algo de mal-entendido contido na própria ideia de transmitir, através desses escritos ou dessas lições, a técnica da psicanálise. Uma primeira recomendação ou advertência se coloca. É mesmo com ela que Freud abre seu artigo: há limitações para transmitir as regras do jogo, seja o do xadrez, seja o da análise. É preciso a experiência, o jogo jogado pelos grandes mestres, no caso do xadrez, ou a de cada um que se coloque o desafio da prática da psicanálise, em nosso campo.

Por outro lado, estamos no nosso elemento, nada como o mal-entendido para começar. Veremos como Miller (1997, p. 246) ressalta a função primordial do mal-entendido e da paixão da ignorância como a paixão analítica: o princípio é não compreender. É por essa entrada, a do não-saber, que se abre a via das questões, das perguntas, princípio de método fundamental em psicanálise. É o que Lacan (1962-63/2004) aponta como necessário no plano da experiência: colocar todas as perguntas. Isso não quer dizer que tudo possa ser dito. É necessário considerar que a ética que orienta a análise, sendo a ética do bem-dizer, remete ao saber inconsciente, em sua radical singularidade a cada sujeito. Freud igualmente valoriza o princípio de começar cada caso como se fosse o primeiro, colocando em suspenso todo saber prévio adquirido através de outros casos.

Dito isso, começo pela nota de edição.

Vale lembrar que a palavra central do título (Einleitung) tem o sentido de início, mas que o verbo einleiten tem também o sentido de “colocar em movimento numa determinada direção”, o que é precisamente uma das principais questões de Freud no texto. (IANNINI; TAVARES, 2017, p. 148)

Ainda na nota de edição, lemos que esse texto funciona como báscula no conjunto dos chamados “escritos técnicos” de Freud, ao mesmo tempo fechando uma série e abrindo outra – o que se observa na Edição Standard, na qual ao título se segue um subtítulo, reproduzido da edição original: “Novas recomendações sobre técnica da Psicanálise I”, sendo o artigo que o antecede justamente chamado “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, lido aqui na lição anterior; na oportunidade, Cristiana Pittella abordou a nuance na diferença de tradução do título entre as edições, referente ao plural no destinatário, bem como a justificativa do endereçamento das recomendações ao “médico” e não, ainda, ao psicanalista, como se consolidará no prosseguimento da obra de Freud.

Seguindo na leitura da nota, somos informados também de que esse artigo permanece como a principal referência acerca do início do tratamento, encontrando enorme repercussão no movimento psicanalítico. Tal asserção parece confirmada no eixo dessas Lições Introdutórias – “Sobre o início da experiência analítica” – e no tema do ENAPOL que elas antecipam – “Começar a se analisar”. É destacado ainda o interesse de Lacan no que se refere às entrevistas preliminares, apresentadas longamente no texto em questão, do qual constituem, a meu ver, o tema central.

O contexto em que Freud escreveu esses artigos é o das primeiras dissidências e, então, ele via em risco os princípios sobre os quais havia criado sua técnica. Ao longo dessa série de artigos, bem como ao longo de toda a sua obra, ele deixa claro que não é a técnica que define a psicanálise, podendo esta ser variável segundo a “preferência pessoal” do analista, desde que os princípios analíticos — que ele chama as “pedras angulares” da psicanálise — sejam tomados em consideração. Esses fundamentos, ou princípios, dos quais Freud fará sempre uma defesa intransigente, são a teoria do inconsciente, do conflito psíquico e do recalque, o reconhecimento da importância etiológica da sexualidade e do complexo de Édipo. Ênfase particular será dada ao reconhecimento da causalidade psíquica e sobre o sentido dos sintomas e à sua característica de satisfação substitutiva. Especificamente no artigo em questão hoje, Freud (1913/2017) é assertivo: Se o tratamento opera pelo manejo da transferência, com o objetivo de vencimento das resistências, está em causa um tratamento analítico.

É o que está em jogo nesse esforço de detalhar a técnica: esclarecer seus fundamentos éticos e clínicos, sem os quais ela não existe ou se justifica. Foi nesse mesmo contexto da defesa da existência da psicanálise que se deu a criação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), em 1911. Outro marco no esforço de esclarecer esse ponto foi a publicação, em 1914, da “História do movimento psicanalítico”, texto que sucede os escritos técnicos, no qual Freud valoriza nas primeiras dissensões (Adler e Jung) o abandono dos pilares, dos conceitos necessários à fundamentação de qualquer técnica da psicanálise. Trabalhei essas questões detalhadamente em minha Dissertação de Mestrado, na qual insisto que Freud estava longe de ser ortodoxo e que desenvolveu uma investigação exaustiva no sentido de adequar a técnica analítica às mudanças da clínica que se apresentavam, já vislumbrando a singularidade, isto é, não somente a técnica se deveria à preferência pessoal do analista, como deveria responder às necessidades de cada paciente, estendendo-se a quadros clínicos diversos dos casos de neurose para os quais a técnica havia sido inicialmente construída.

Vocês puderam ler, ao longo deste artigo, a preocupação de Freud com a sobrevivência da psicanálise e um esforço de diálogo com os bem-intencionados (sempre é prudente desconfiar) inovadores: a existência e o modo de funcionar do inconsciente exigem que a psicanálise responda à altura. Em nosso tempo, a psicanálise também corre o risco de deixar de existir e esse é um motivo suficiente para nos debruçarmos sobre as questões fundamentais que esses textos nos apresentam e que continuam válidas, mesmo que devam ser atualizadas ao nosso contexto. De toda forma, não farei uma leitura linha a linha, vou partir da premissa de que vocês leram o texto e vou fazer alguns recortes pontuais para conversarmos e remetermos às questões de atualidade na clínica.

Retomo a nota de edição, que nos informa que o texto foi publicado originalmente em duas partes e que teria três seções: Sobre o início do tratamento (primeira parte), A questão das primeiras comunicações e A dinâmica da cura (segunda parte). A edição que conhecemos não está dividida em partes ou seções. Mas essa informação pode ser útil para nossa leitura.

A tentativa de considerar que a primeira seção parece abordar principalmente questões práticas, estabelecendo as condições para o início do tratamento, e que as duas seguintes tratariam de questões clínicas, privilegiando as intervenções do psicanalista na direção do tratamento, mostra que é impossível obter essa divisão, mesmo para fins “didáticos”. Pois o que vemos se desdobrarem em questões aparentemente objetivas é sua implicação ética no que delas se espera. Assim, as entrevistas preliminares, ou tratamento de ensaio, as determinações referentes a tempo e dinheiro, o uso do divã, referido como o “cerimonial da situação na qual é conduzido o tratamento”, se mostram condições decisivas para o engajamento do paciente em um trabalho com o inconsciente, que ultrapassam suas justificativas objetivas, que as colocariam no nível de condições de um contrato. Vejamos.

As entrevistas preliminares, cuja função é a seleção e o diagnóstico dos pacientes, são justificadas pelas razões objetivas de protegê-los de dispêndio inútil e proteger a psicanálise do risco de um fracasso se o caso não for indicado à intervenção analítica. No entanto, devem ser conduzidas nas mesmas premissas do tratamento propriamente dito, sendo decisivas para sua “direção”, lhe sendo prévias, mas fazendo parte dele, e sendo sua função a de cuidar da instalação e consolidação da transferência.

As questões de tempo e dinheiro não se reduzem à garantia da ocupação, remuneração e sobrevivência do profissional, mas estão implicadas na economia psíquica do paciente.

Relativa ao tempo, a questão da duração do tratamento envolve, segundo Freud, o desconhecimento da etiologia das neuroses e o esquecimento da proporcionalidade necessária entre tempo, trabalho e sucesso, o que gera expectativas exageradas em relação à análise. O que impediria o encurtamento do tempo de tratamento é “a atemporalidade dos processos inconscientes e o vagar com que as transformações psíquicas profundas ocorrem” (FREUD, 1913/2017, p. 130). Esse processo segue seu próprio caminho, e o analista não tem o poder de impor direção ou sequência.

Não irei abordar aqui, por razões de tempo e escolha, a discussão sobre a duração do tratamento nos dias atuais e outras variáveis no manejo do tempo, sejam aquelas introduzidas por Lacan em relação ao tempo lógico, sejam as incidências das mudanças tecnológicas sobre a vivência contemporânea do tempo, que se torna acelerado ou mesmo instantâneo, como a experiência dos atendimentos on-line têm demonstrado. No que se refere ao tempo de entrada em análise, indico a leitura do argumento de Jorge Assef, no site do ENAPOL.

Quanto ao dinheiro, Freud lembra de que há poderosos fatores sexuais envolvidos, sendo um assunto tratado na vida cotidiana com dubiedade, pudicidade e hipocrisia. O analista, segundo ele, deve exercer vigorosa oposição sobre tal modo de tratamento e enfrentar abertamente essa questão, levando em consideração a desvalorização do tratamento advinda de se cobrar pouco pela consulta, os inconvenientes do tratamento gratuito, o lucro secundário da doença, entre outros fatores que impactam o sucesso do tratamento. Sobre o aparente investimento excessivo no tratamento, ele é taxativo: “não há nada mais caro na vida do que a doença e – a estupidez” (FREUD, 1913/2017, p. 134). Considerações que seguem válidas e devem ser levadas em conta nos formatos e lugares onde se pratica e aplica a psicanálise atualmente, bem como nas novas formas de circulação do dinheiro, que também se tornam cada vez mais virtuais.

Sobre o uso do divã, apresentado como resquício do tratamento hipnótico, seria motivado por uma questão pessoal, a saber: o incômodo de ser observado por horas por outra pessoa revela-se, na verdade, muito mais uma justificativa de ordem clínica – evitar que, através de expressões faciais que a postura de entregar-se à atenção equiflutuante poderia produzir no analista, se forneça material ao paciente para que interprete e se influencie em suas comunicações, impondo-lhe, ainda, a privação do objeto olhar, o que remete à questão da opacidade do analista.

Em entrevista recentemente publicada em português, Miller (2022) reflete sobre as perspectivas atuais e futuras do divã. Em uma frase que ressoa a Freud, ele diz que não é o divã (onde Freud colocava a técnica) que define a psicanálise e aponta como, em seu manejo, é crucial levar em conta as singularidades de cada paciente, e que o divã pode ser um objeto importante e emblemático das relações que se estabelecem entre paciente e analista, incidindo sobre as fantasias do primeiro. Reflexões semelhantes estão presentes nesse artigo de Freud, que apresenta exemplos de situações e resistências dos pacientes à submissão ao divã.

A entrevista de Miller avança questões sobre o momento atual, atribuindo ao divã uma incidência sobre a banalização da presença virtual. A permanência do divã se justifica largamente por encarnar a impossibilidade da relação sexual e o paradoxo de efetivar a presença do corpo e ao mesmo tempo seu despojamento: “Deitar-se no divã é tornar-se puro falante, fazendo ao mesmo tempo a experiência de si como corpo parasitado pela fala, pobre corpo doente da doença dos falantes” (MILLER, 2022, p. 44). O real da presença dos corpos faz-se assim necessário para que o paradoxo permaneça e o objeto encarnado pelo psicanalista permita que a experiência como sujeito se dê: “como falante, sem saber o que quer, nem o que diz, nem mesmo a quem” (MILLER, 2022, p. 43).

No começo, a associação livre

Definidas essas questões práticas, mas nem tanto, por onde começar? Em que ponto e com que material? Verei-o amanhã’” (KARDINER, 1979, s/p).

Freud diz que é indiferente, o paciente escolhe o tema que gostaria de trabalhar. Mas, só que não, como se diz hoje em dia, pois aqui se impõe a regra fundamental: o paciente deve comunicar aquilo que lhe ocorrer, sem omitir, com o compromisso de sinceridade plena. Sem escolher, no fim das contas: eis aí o mal-entendido da regra da associação livre. Por isso, desencoraja-se a preparação prévia do material da sessão, que estaria a serviço da resistência e não facultaria o engajamento do sujeito na dinâmica do tratamento, impedindo o acesso ao inconsciente.

Exemplo disso encontramos em uma intervenção irônica de Freud, relatada por um de seus pacientes, candidato a analista, destacada no site do ENAPOL, na seção “Citações”, como um chamado aos praticantes: começar a se analisar e esclarecer a própria relação com o inconsciente: “Freud me parou aqui e disse: ‘Você preparou este relato?’. ‘Não’, respondi, ‘mas porque você me pergunta?’. ‘Porque foi uma apresentação perfeita. Quero dizer que foi, como dizemos em alemão, druckfertig (“pronto para imprimir”). Verei-o amanhã’”. (KARDINER, 1979, s/p)

Outro exemplo corriqueiro, com o qual nos deparamos frequentemente em nossa clínica. O paciente começa a sessão dizendo: “Tive vontade de não vir, pois não pensei em nada durante a semana para falar hoje”. Ao que respondo: “Que bom que veio, assim podemos conversar sem preparação prévia”. Ele começa a falar do dia no trabalho e várias questões surgem. Quando corto a sessão, ao sair ele diz: “Achei que não sairia nada, mas acabou que deu para ‘conversar’ muito hoje”.

Outra paciente começa a sessão dizendo que iria ler o que escreveu, para não se perder e não esquecer o que gostaria de trabalhar naquele dia. Inicia a leitura e, já nas primeiras linhas, o relato escrito é deixado de lado, provocado por uma pergunta da analista, que desvia o curso para a associação, livre, nesse caso, do roteiro preestabelecido.

Outras recomendações são detalhadas, como discrição sobre o tratamento (para evitar resistências externas e escoamento dos temas a serem trazidos para a sessão). Do lado do analista: encaminhamento das intercorrências a outro profissional, atenção aos sinais de resistência, como o silêncio (manifestação da transferência), aos primeiros sintomas ou atos casuais e à inclusão no tratamento do material dito nas franjas da sessão, fora do divã. E, principalmente, o tema da transferência deve ficar intocado até que ela tenha se transformado em resistência.

Essas recomendações enquadram o desenrolar das entrevistas preliminares, dirigindo-as ao ponto em que, instalada a transferência produtiva, sejam feitas as “primeiras comunicações” e se coloque em funcionamento a dinâmica da cura e se mobilize o jogo de forças capaz de levantar o recalque e vencer a resistência. Miller (1994) traduz essas recomendações: uma análise começa pela espera do analista, até ser investido pela transferência e situar-se em uma posição de domínio para interpretar. Lacan (1958/1998) aponta que Freud reconheceu que aí estava o princípio de seu poder, mas que se arranjava bem com isso, renunciando a fazer uso dele.

Para se começar, então, é preciso a transferência. Miller assevera que esse princípio é um consenso entre as várias escolas de psicanálise e de que “Até Lacan havia uma doutrina bastante precisa em relação a isto. Primeiro esperar a emergência da transferência para depois interpretar” (MILLER, 1994, p. 6).

Miller aponta também a demanda como uma forma de entrada em análise, considerando que se há demanda há transferência. Ele indica que Lacan faz uma torção ao dizer que a transferência é a interpretação, na medida em que dá uma significação de inconsciente a esse significante: “Sem dúvida, para ir até um analista, é preciso já ter interpretado seu próprio sintoma, atribuindo a ele uma significação inconsciente, ou seja: Não sei ler isto sozinho” (MILLER, 1994, p. 11).

Na prática das entrevistas preliminares está em jogo o ato analítico e a ética da psicanálise. Técnica em psicanálise é, lembremos, questão de ética, pois “não há clínica sem ética” e “há ética onde há escolha” (MILLER, 1996, p. 113). Nessas “entrevistas ditas preliminares, duas coisas são essenciais – assegurar-se que se está lidando com sintomas do tipo analítico e com um sujeito capaz de produzir leituras do inconsciente”. (MILLER, 1994, p. 5). É dessa forma que se selecionam, nas palavras de Miller (1996), casos éticos, analisáveis.

As entrevistas preliminares servem, então, para a avaliação clínica ou diagnóstico, essencial para a direção do tratamento. Isso também segue sendo válido, mas não sem mal-entendidos. Miller já relatava o desconforto dos contemporâneos, e mesmo de alguns alunos de Lacan, com sua prática do diagnóstico e da apresentação de pacientes, que consideravam segregativa. Atualmente, ainda que a prática do diagnóstico se ocupe mais de esclarecer a relação do sujeito com o Outro e o real, é igualmente acusada de segregativa pelos militantes da despatologização generalizada.

Miller (1994, p. 4) detalha que “Um critério de analisabilidade é a capacidade de associação livre. O sujeito é capaz de estabelecer uma nova relação com seu próprio dizer? Para ser analisável, é preciso poder dizer sem assumir por conta própria o que se diz”. Diz ainda que “É preciso assegurar-se de uma segunda coisa – que o candidato à psicanálise é capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e mesmo de o ler de diversas maneiras. É isto que chamamos de ‘entregar-se à associação-livre’” (MILLER, 1994, p. 4).

A associação livre, nos termos de Freud, é uma expressão pela qual tentamos cernir o modo de dizer próprio ao sujeito em análise. É muito difícil cernir o que é este modo de dizer, o modo de dizer analisante. De certo modo, não tomo por minha conta o que digo como analisante – posso mencionar raivas, desejos, temores, pensamentos em que não me reconheço, os quais eu rejeito. Não tenho nada a ver com isto, sou inocente em relação a isto, não sou eu. (MILLER, 1994, p. 4)

Também servem à localização subjetiva, que equivale à subjetivação, responsabilidade pelo dizer, pelo gozo e pelo desejo. Onde está o sujeito? Quem fala? Para essa localização, “o essencial é o que o sujeito diz”. Ao valorizar a fala, um primeiro movimento é acionado, trata-se de separar-se da dimensão do fato, dos acontecimentos, para entrar na questão do dito; o que prepara um segundo passo: a partir dos ditos localizar o dizer do sujeito, a enunciação, quer dizer, questionar a posição de quem fala (modalização do dito). “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). O sujeito é a caixa vazia onde se inscrevem as modalizações do dito, lugar da sua ignorância.

Por isso, as entrevistas preliminares e a função essencial do mal-entendido que a regra da associação livre possibilita servem para que o sujeito minta e assim perceba alguma antinomia na lógica de seus ditos. Tal antinomia entre o dito e o dizer, se traduziria como: “Eu (o paciente) não sei o que digo” (MILLER, 1997, p. 247). O lugar da enunciação é então o próprio lugar do inconsciente.

O bem-dizer, para Lacan, é a chave da ética da psicanálise, a ética do dito e do dizer, antes de um acordo ideal entre o dito e o dizer, trata-se de encontrar uma maneira de dizer que leve em conta a diferença entre o dito e o dizer, e que também leve em conta a possibilidade de modificar a posição subjetiva a respeito do dito. (MILLER, 1997, p. 249)

Nos dias atuais, na fórmula “eu sou o que digo que sou”, há uma identidade entre o dito e o ser, ou não há um querer dizer por trás do dito. Não há lugar para o mal-entendido ou para um questionamento ou interpretação. Dessa forma, o discurso analítico não encontra seu lugar de incidência: introduzir o sujeito no inconsciente através da localização e retificação subjetiva. Já em 2002, nas “Intuições milanesas”, Miller (2011) alertava que o ato do psicanalista está sob ameaça. Por esse motivo, a pergunta sobre como começam as análises é decisiva para o futuro do ato analítico.

Silvia Salman (2022, p. 6), repercutindo essa reflexão de Miller, mais atual do que nunca, sobre a degradação da posição do analista, avalia que “o sentimento de desvalorização da psicanálise surge do fato de não ser captada a partir de um desejo de verdade, mas de uma demanda de atenção pessoal”. E se pergunta como fazer frente à degradação do discurso analítico e “fazer surgir o desejo de verdade ali onde só se espera atenção personalizada que faz prevalecer o narcisismo social e a primazia do eu, em detrimento do mistério do corpo que fala” (SALMAN, 2022, p. 6). Sugere o interesse de se examinar e formalizar os inícios de análise, pois “Fazer prevalecer o analítico a cada encontro é não cessar de fazer emergir um você disse algo ‘que é diferente do que queria dizer’” (SALMAN, 2022, p. 6).

E quanto ao ensino? O que afinal se transmite?

No curso da preparação do texto para minha apresentação hoje, encontrei ressonâncias com o que eu pretendia abordar aqui, para concluir, condensadas no comentário sobre a aula inaugural no ICP-RJ, feito pelos alunos Diogo Pereira de Sousa e Samantha de Moura Ribeiro, que vou ler para vocês:

A aula inaugural se propôs a introduzir o tema da entrada em análise, estabelecendo uma conversa com o XI ENAPOL que acontecerá em setembro/2023. Como circunscrever o momento em que uma análise se inicia, aquele que marcaria o início do trabalho pelo analisante? Seria esse um ato do analista? Seria ato do analisante? Talvez a resposta venha, como de praxe, a posteriori e in casu, quando olhando para trás é possível pinçar o momento em que um não-saber surgiu, através da manifestação do inconsciente. Como nos lembra Laurent, há algo da incidência de uma verdade que passa a implicar o analisante em sua mensagem e o situa de outra forma em relação à sua demanda. Com isso em mente, gostaríamos de lançar uma provocação: haveria um ponto de encontro (ou desencontro) entre a entrada em análise e a entrada numa escola de psicanálise? Em uma análise, cabe ao analista escutar e fazer ressoar, seguir o analisante “destacando os significantes que pesam”. Contudo, para que as pontuações tenham efeito, produzindo quedas e aberturas, é necessário um consentimento do analisante, um deixar-se ir, que também é dar de si. Seria esse consentimento a transferência, seria ele precedente a ela ou viria dela? E na entrada em uma escola do que se trata? (SOUSA; RIBEIRO, 2023, s/p)

E é por estar também em torno dessas questões da transmissão, da Escola e da transferência de trabalho, que me é impossível conversar sobre esse texto, sem me colocar essas e outras perguntas.

Como ensinar algo sobre a psicanálise e sua técnica?

Em suas observações sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud (1919[1918]/1976, p. 219) se refere à impossibilidade de sua transmissão integral em aulas teóricas, invocando a necessidade “para finalidades de pesquisa” de acesso ao material clínico, por meio de ambulatório ou hospital.

Mais que as recomendações, indicações, pretensamente pragmáticas, sabemos estar diante de um impossível. Se Freud assinalava o impossível de psicanalisar, incluindo a psicanálise entre as profissões impossíveis ao lado das de educar e governar, Lacan afirmava o impossível do ensino da psicanálise e apostava em sua transmissão.

Uma pergunta puxa outra, e outra… esse é mesmo o método da psicanálise, que coloca em jogo o que Miller indicava como paixão da ignorância, não há saber todo, não há transmissão toda. Talvez o que se transmita, afinal, seja mesmo uma questão, na melhor das hipóteses, um desejo de saber.

É pela transferência de trabalho que se entra na Escola e é ela que faculta a transmissão, a “inventar a própria maneira de ler”.

Em relação ao texto do inconsciente trata-se de “produzir uma certa distância de si para ler-se de outro modo” (SALMAN, 2022, p. 6).

Concluo, com Miller (1994, p. 3), que

Este enunciado indizível, causa do sintoma, é a partir de então assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que ele não poderia lê-lo como se deve. Isto que Freud chamou de inconsciente, é estritamente equivalente a um texto escrito indecifrável, subsistindo como os hieróglifos antes que Champollion viesse a lê-los e – para usar os termos que Lacan tomou emprestados de Saussure, mas que não eram ignorados pelos estoicos – subsistindo como significantes sem significados. Nesse sentido, Lacan pôde dizer que o inconsciente é acima de tudo algo que se lê.


 

Referências
FREUD, S. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1976. (Trabalho original publicado em 1919[1918]).
FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. (Trabalho original publicado em 1913).
IANNINI, G.; TAVARES, P. H. Nota de Edição. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
KARDINER, A. Mi análisis con Freud. México: Ed. Joaquín Mortiz, 1979. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/ bibliografia-2/primeira-parte/citacoes/. Acesso em: 10 abr. 2023.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. (Texto original publicado em 1958).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LAURENT, D. A psicanálise e seu ensino explícito. Opção Lacaniana, n. 79, p. 3-5, 2018.
MILLER, J.-A. Não há clínica sem ética. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
MILLER, J.-A. Intuições milanesas. Opção Lacaniana Online nova série, ano 2, n. 5, nov. 2011. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 21 jun. 2023.
MILLER, J.-A. O divã. Século XXI. Amanhã, a mundialização dos divãs? Em direção ao corpo portátil. Opção Lacaniana, n. 84, p. 43-44, 2022.
MILLER, J.-A. Come iniziano le analisi?. 1994. Disponível em: enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023Acesso em: 10 abr. 2023.
SALMAN, S. A crescente decomposição do discurso analítico. Opção Lacaniana, n. 85, p. 5-7, 2022.
SOUSA, D. P.; RIBEIRO, S. M. Sobre a aula inauguralBoletim Eletrônico da EBP Rio e ICP-RJ, n.  2, abr. 2023.
[1] O presente artigo foi apresentado em 11/04/2023, no contexto das 59ª Lições Introdutórias do IPSM-MG. Agradeço às coordenadoras Lucia Mello e Luciana Silviano Brandão pelo convite.



Uma introdução ao amor transferencia[1] 

Renata Mendonça
Psicanalista, doutoranda (UFMG), membro da Escola Brasileira de Psicanalise/AMP
renatalucindopsi21@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. 

Palavras-chave: método psicanalítico; amor transferencial. 

AN INTRODUCTION TO TRANSFERENCE LOVE 

Abstract: The author rereads the Freudian text “Observations on transference love” (1915 [1914]) to present Freud’s indications on the psychoanalytic method, also including in the debate some authors of our time, such as Lacan and Miller, showing how much the text Freudian is contemporary and necessary to the psychoanalytic clinic.

Keywords: psychoanalytic method; transference love.

Imagem: Renata Laguardia

 

O problema do amor nos interessa na medida em que
vai nos permitir compreender o que se passa na transferência
– e, até certo ponto, por causa da transferência.
(LACAN, 1960-61/2010, p. 52)

Quero agradecer à diretoria do Instituto e às coordenadoras da atividade, Lúcia Mello e Luciana Silviano Brandão, pelo convite. É uma boa responsabilidade estar aqui para tentar transmitir algo dos dois textos indicados.

Para iniciarmos a conversa, faço uso da questão feita por Iannini e Tavares (2017, p. 7) na “Apresentação” ao livro Fundamentos da clínica psicanalítica: “O que separa a Psicanálise de outras práticas de cuidado, como o tratamento medicinal, as diversas psicoterapias ou as curas religiosas?”.

Uma pergunta difícil, principalmente nos dias de hoje, em que a certeza desinibida circula e faz laço na contemporaneidade, em que o uso da Psicanálise nos parece indiscriminado nas redes, em que a técnica parece muitas vezes substituir a ética. Uma pergunta que precisa ser reatualizada a cada vez, tanto pela necessidade ética de verificar as práticas psicanalíticas, quanto pelas mudanças que ocorrem na subjetividade de nossa época.

Com isso, podemos afirmar que a escolha da Diretoria em estudar os Fundamentos da clínica psicanalítica é essencial, na atualidade, diante das mudanças nos laços sociais, da constatação da diluição do Outro e de um mundo que precisa ser lido, ou lido de outra maneira, como nos mostra o título da XXVI Jornada da EBP Seção Minas, “Há algo de novo nas psicoses… ainda”, e o tema do XI ENAPOL, “Começar a se analisar”. Temas que são atualizados a partir do que há de novo em nossa época, da verificação da nossa clínica, para que as orientações e construções não se percam, mantendo assim, o rigor transmitido por Freud e Lacan.

Nessa mesma “Apresentação”, Iannini e Tavares (2017, p. 7) afirmam que os textos ali reunidos “constituem o essencial dos escritos freudianos sobre o método e a técnica, em sua constituição, em sua história e em seus desdobramentos”. O que, entretanto, nos interessa especificamente em “Observações sobre o amor transferencial” é que, no trabalho de Freud, e na Psicanálise, o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento. Um amor lido e provocado pela análise. Uma das belezas de Freud e de seu método.

Observações sobre o amor transferencial 

O texto foi escrito no final de 1914 e publicado em 1915, e Freud achava que esse era um dos artigos fundamentais para a transmissão da técnica psicanalítica. Penso que, provavelmente, mesmo com as notícias da eclosão da guerra, as questões que surgiram nos consultórios de seus “alunos” fizeram com que ele pensasse na publicação independente do momento histórico.

Escutamos em nossos consultórios, seja em análise, seja em supervisão, os jovens praticantes se perguntando diariamente o que fizeram para que o paciente tenha ido embora, faltado à sessão, sumido sem responder, etc. Muitas vezes pensam nessas questões como um erro técnico, algo que sempre retorna invariavelmente, como nos afirmou Jésus Santiago na última conversação do Instituto. Ele nos diz que houve uma época em que a Psicanálise tinha manuais, que diziam o que deveríamos fazer a cada circunstância ou situação, seja relativo a pagamento, às faltas ou sobre quando o analisante estaria de fato em análise ou se tornaria um analista (essa decisão se dava, por exemplo, pelo número de sessões feitas).

O retorno a Freud feito por Lacan e o retorno a Freud nas “Lições Introdutórias” é fundamental, pois ele afirma no início do texto em tela que, apesar dos incômodos dos jovens psicanalistas, “as únicas dificuldades realmente sérias são encontradas no manejo da transferência” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 165).

Esse manejo nos é caro e implica vários sentimentos dirigidos ao corpo do analista – amor, interesse, raiva. Em minha leitura, nesse texto, Freud (1915[1914]/2017, p. 166), de forma bem “brincalhona”, elege o amor como algo que surge em uma análise e nos relata as várias soluções sobre o amor que não cabem a um psicanalista:

1ª: a união dos dois protagonistas, analista e analisante, médico e paciente, e diz: “uma união duradoura e legítima”;

2ª: a separação do médico e do paciente, encerrando assim o tratamento, “desistindo do trabalho iniciado”;

3ª: a confirmação da relação entre os dois, “o início de relações amorosas ilegítimas e não destinadas à eternidade; mas essa se tornaria impossível devido à moral burguesa e a dignidade médica”.

A segunda saída incluída no texto: a separação do médico e do paciente, com o abandono do tratamento, é desaconselhada por Freud, mas nos ensina como o amor transferencial funciona. Ele afirma que, quando o tratamento com aquele psicanalista é interrompido, suspenso, as questões do paciente continuam, ele já sabia que o paciente seria perturbado pelo seu sofrimento e que o amor não o salvou de suas dificuldades. Ao se dirigir a outro analista, o amor será transferido para esse segundo, em um deslocamento.

Com isso, podemos afirmar:

1. É preciso enfrentar o amor transferencial! Melhor dizendo, nos utilizarmos dele.

2. O paciente não está, de fato, enamorado pela pessoa do psicanalista.

É importante que o psicanalista saiba que o amor não se dirige a ele, enquanto pessoa; estar avisado disso é imprescindível para o tratamento, pois a transferência e o método psicanalítico dão trabalho, e não é viável para o analista, desavisado, dar trabalho também.

Nesse momento do texto, Freud vai nos relatar as várias situações que caberiam a um livro de romance, a relação com a família, a ideia de tirar a paciente do tratamento, etc., sempre nos avisando pontualmente, como mencionei anteriormente, o que não cabe ao tratamento psicanalítico. Depois, ao retomar o caminho das possibilidades relativas ao amor transferencial, traz-nos um ponto essencial a ser lido em uma análise: “tudo aquilo que atrapalha a continuidade do tratamento pode ser uma expressão de resistência. No aparecimento daquela exigência tempestuosa de amor, a resistência indubitavelmente tem grande participação” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 169). Ele ainda completa, dizendo-nos que, provavelmente, é ao nos depararmos com um ponto importante para o tratamento ou algum ponto difícil para o analisante que o amor transferencial age como resistência. Podemos afirmar que vários sentimentos podem surgir nesse momento: o amor transferencial aparece com um xingamento ou com um convite para o seu aniversário. Algo a ser avaliado, lido, a cada vez.

Existe, nesse texto de Freud, uma informação de trabalho indispensável a ser escutada: quando o amor transferencial se torna a mola de trabalho e os sentimentos ao redor do psicanalista ficam presentes no tratamento, esses sentimentos, ou esse enamoramento, não podem ser expulsos. Esses sentimentos, ideias, sensações surgem e não podem ser simplesmente dissolvidos rapidamente, essa é uma das condições para o tratamento psicanalítico.

Ele afirma que quando pretendemos trabalhar com o método psicanalítico invocamos “um espirito do submundo para que venha à superfície” e que não é coerente ao tratamento “mandarmos ele de volta, sem ao menos lhe fazermos uma pergunta” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 171). Podemos concluir também que, tal qual o amor de transferência, que surge no corpo do outro psicanalista, o “espírito do submundo” não vai deixar de aparecer para aquele analisante, de um jeito ou de outro – tal qual ocorre, por exemplo, no filme O Lodo.[2]

Logo depois, Freud conta uma anedota do pastor e do corretor para nos dizer que se cairmos no jogo do analisante estaremos, nesse momento, simplesmente abrindo mão do tratamento. Que nada pode ser feito ao toparmos, cedermos, a esse amor. Isso não quer dizer que devemos “desviar a transferência amorosa, afugentá-la ou estraga-la na paciente; também nos abstermos ferrenhamente de toda correspondência desse amor” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 174).

É necessário darmos espaço para escutarmos o sentimento para além do sofrimento, para além do amor e fazermos uma interrogação sobre esse sentimento. No texto “A metáfora do amor: Fedro”, que está no capitulo “A mola do amor” do Seminário 8, Lacan (1960-61/2010, p. 54) avisa que “nada de melhor podemos fazer, nesse sentido, do que partir de uma interrogação sobre aquilo que o fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: o amor”. Assim, os sentimentos que surgem em uma análise precisam ser lidos, o analista não pode abstrair deles ou evitá-los, mas interrogá-los.

Lacan avisa que o texto freudiano fica às voltas com o amor, diferenciando-o do amor transferencial, em que há uma “suspensão no problema do amor, uma discórdia interna” (LACAN, 1960-61/2010, p. 55), pois é preciso tentar saber o que se passa numa análise, numa “ação analítica”. Mas, podemos assegurar a partir do texto freudiano, que há um objetivo nesse amor transferencial: é a “descoberta da escolha do objeto infantil e das fantasias que o enredam” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 176). Ele se pergunta se há diferença entre o amor transferencial e outros amores e afirma que os dois têm uma certa autenticidade, mas só a transferência coloca o trabalho psicanalítico da escuta do inconsciente em movimento.

O enamoramento, por sua vez, é composto de “reedições de traços antigos e repete reações infantis”, já que

a natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo ou do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções, mas não pode mais livrar-se delas. (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 248).

No amor transferencial existem algumas diferenças, já que este é provocado pela análise, potencializado pela resistência ao tratamento e menos preocupado com as consequências sociais. Ele cabe ao tratamento.

Para Lacan é necessário entender a transferência como uma articulação e implicação ao simbólico, ao imaginário e ao real, é uma condição de leitura da transferência e é “impossível comparar a transferência e o amor, e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada um, e reciprocamente, de ilusão ou de verdade” (LACAN, 1960-61/2010, p. 51).

No texto “Uma conversa sobre o amor”, Miller (2010) fala que Freud nos avisa que o vínculo social é um vínculo erótico ou amoroso, que a psicanálise, em Lacan, inventou um novo amor, e que Freud inventou um novo Outro, um tipo de Outro ao qual o analisante possa dirigir o seu amor. Um Outro que possa dar novas respostas ao amor, respostas diferentes e, talvez, mais adequadas àquelas que encontramos cotidianamente. Ler esse texto de Miller, que apresenta uma leitura do que Freud inventou – “Um novo Outro” –, nos faz retornar a “Observações sobre o amor transferencial”, pois todas as recomendações implicam esse novo Outro. Todas as recomendações são para o psicanalista e seu lugar no mundo. No texto, Freud tenta ensinar ao analista a suportar e a usar, a favor do tratamento, o amor dirigido a ele – o que o analisante dirige ao analista e o que é possível que o analista “devolva” ao analisante.

Para finalizar, Freud (1915[1914]/2017) faz observações importantes, equivalendo o psicanalista a um químico e dizendo que não é porque o químico trata de materiais explosivos que ele é proibido de manuseá-los, assim como o psicanalista também fica às voltas e trata de materiais explosivos. Afirma que não precisamos, e nem o mundo precisa, do furor sanandi, ou seja, tentar curar o doente a qualquer custo. Para ele, o material a ser manuseado precisa de tempo e uma certa coragem, ou aposta no inconsciente, e que, principalmente, a ética precisa estar próxima da técnica. Me parece, portanto, que, nesse texto, o que orienta Freud é a ética. Assim, dizer “sim” ao amor transferencial é dizer “sim” ao tratamento e ao inconsciente.

O texto do Miller (1997) “O método psicanalítico” faz laço com o texto de Freud ao dizer que esse método não tem padrões, mas tem princípios. Melhor dizendo, não é orientado pela técnica, mas sim pela ética, e que em “análise não há paciente à revelia de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 223). Há uma diferença entre o paciente que está na análise e aquele da psiquiatria que pode ser encaminhado por outros, tal qual a criança que é encaminhada pelos pais: em análise, o paciente precisa querer ser paciente. No texto “Observações ao amor transferencial” Freud (1915[1914]/2017, p. 168) nos avisa inclusive que a família decidir pelo paciente não tem nenhum efeito de tratamento, pode no máximo atrapalhar, e conclui: “O amor dos parentes não consegue curar uma neurose”.

Em relação ao texto de Miller e ao de Freud poderíamos também afirmar que precisamos localizar numa análise sempre o dito e o dizer, o enunciado e a enunciação, e que a declaração de um amor de transferência precisa ser lida desta forma: isso foi dito, mas o que isso quer dizer, a que se refere? Isso para que, de um modo ético, possamos encontrar ou formular uma resposta que tenha lugar para o tratamento ou para o inconsciente, que dê lugar para a “boca maldita”, pois, no amor transferencial, o analisante demanda uma resposta que o inclua na repetição infantil, no mesmo de sempre, colocando em ordem o sintoma que funcionava muito bem até aquele momento.

Isso que Miller traz sobre o dito e o dizer se mostra em seus exemplos pelo enamoramento dirigido a uma análise, mesmo que não seja o amor transferencial estabelecido por Freud – uma paixão –, mas, em todos os aspectos, a palavra precisa ser escutada, dando lugar para o que vem junto dela, acoplado a ela. Miller dá o exemplo de uma mulher que chega aos prantos no seu consultório: ela sabia que ele iria viajar, e ele diz que talvez seja por isso que ela chega dessa forma, dizendo que os filhos sairiam de viagem sem ela. Ele sorri, dizendo que esperava que seu sorriso tenha sido verdadeiro, pois não cabe ao psicanalista “participar emocionalmente das situações afetivas dos pacientes demonstrando sempre que compreende ou sente ternura” (MILLER, 1997, p. 244), e que é preciso avaliar cada caso, tal qual Freud. Isso não significa não acolher, mas fazer um cálculo que possa autorizar o que pode vir a posteriori, que é no dizer, na enunciação.

O que fazer com o amor que surge em análise? 

Ao ler o texto de Freud, lembrei-me de um caso que Oscar Ventura (2020) trouxe na XXIV Jornada da EBP Seção Minas, em uma conferência com o nome “O Amor. Sempre Outro”, que tratava do amor, do amor repetição, do amor em Freud e do amor em Lacan como elaboração de saber, ligado ao Outro. Mas trago aqui o texto intitulado “A mulher pródiga”, que apresenta um caso muito bem trabalhado por Ventura (2003/2005) e que está em La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jacques-Alain Miller em Barcelona.

Nesse texto, Ventura traz o caso de uma psicose ordinária estável por mais ou menos 37 anos, que ele chama, tal qual Miller (1997) em Lacan Elucidado, de pré psicose. Ela estava estabilizada em um casamento em que o marido, por causa dos trabalhos, fazia viagens. Quando esse casal decide ter um pouso e pensar em filhos, surge a instabilidade. Em seguida, surge uma posição delirante em relação a um professor de Yoga e a separação do marido. Nesse momento, ela estava em uma primeira análise. Ao se separar, ela decide vender todas as suas coisas e voltar para a sua cidade, com uma mala e o endereço de um novo analista. Fica errante na cidade por um tempo, entre hotéis, lugares e com seus perseguidores, pois havia um delírio de perseguição ao seu redor.

Na análise com Oscar Ventura, ela tira os objetos da mala, os deposita no tapete e começa a falar, e depois que se encerra a sessão, os recolhe novamente. Em um certo momento, passa a deixar seu dinheiro nos lugares, a pagar muito mais que o necessário, a não aceitar troco e, na análise, quer pagar em dobro, o valor do ano todo, com o que o analista não consente. Até o momento em que ela decide entregar a ele os objetos da mala: o analista não aceita, mas consente em guarda-los. Nesse momento, esse lugar vira uma âncora na cidade e o “aumento progressivo do amor começa a ser notado” (VENTURA, 2003/2005, p. 201).

Com as joias guardadas, algo se estabiliza e o mundo é dividido em dois: um, dos perseguidores, e o outro, de pessoas que assumem “o status de deuses, pelos quais vale a pena existir” (VENTURA, 2003/2005, p. 202). Ela começa, assim, a traduzir textos de psicanálise, fazendo o que chama de suas próprias versões; o analista passa a ser o depositário dessas versões e a análise ocupa um lugar fundamental para o seu tratamento e estabilização, um lugar para sua história, e os fenômenos persecutórios ficam mais distantes dela, menos invasivos. Nesse momento, o “analista agora encarna o fiador do psi, é um deus protetor e às vezes basta um simples chamado para organizar os ânimos” (VENTURA, 2003/2005, p. 203).

Em relação ao aumento do amor transferencial, Ventura relata que

a insistência em aumentar a periodicidade das sessões aparece como um obstáculo, ela aspira ser a única paciente, ela se diz analista! […]. Esse sujeito ama o analista e os deuses começam a exigir sacrifícios de amor, o corpo começa a tremer e não há país para onde fuja a menos que outro seja inventado. (VENTURA, 2003/2005, p. 202)

O manejo da transferência no caso da “mulher pródiga” é um instrumento evidentemente fundamental e algo a ser verificado. Até que ponto é possível regular essa erupção de gozo que recaí sobre o corpo do analista, já que a transferência se torna explicitamente erotomaníaca? Ventura descreve todas as artimanhas feitas por essa mulher para ter o objeto amado, tal qual descrito por Freud em “Observações sobre o amor transferencial”:  ela compra roupas, veste-se de modo sedutor, liga para o analista em horários desnecessários para perguntar se pode ser atendida, se pode ir para casa dele, convida-o para jantar e descobre o endereço de sua casa. Manda-lhe presentes pelo correio, que são imediatamente devolvidos.

Acontece aí o choro e o ranger de dentes, o bater de portas, os xingamentos, ela se enfurece… mas volta. Essa, talvez, nesse caso, seja a orientação dada pela analisante. Ela volta. Assim, “são esses momentos em que ela não é o manejo privilegiado da transferência, não se trata do não da rejeição ou do não de uma negação pura e arbitrária, mas um não de um manejo, um não que cumpre” (VENTURA, 2003/2005, p. 203). Ele age e esse manejo da transferência começa a produzir outros efeitos.

Vi nesse caso de Oscar Ventura uma ótima oportunidade de exemplificar as questões sobre o amor transferencial e seu manejo. Após essa intensa posição da analisante, ela passa a acreditar que ele a roubou, e logo que se esvazia esse excesso ela se sente em falta e passa a verificar os objetos, se eles continuam ali guardados. Depois de algum tempo, pede de volta os objetos para depositá-los em um banco, vai espaçando a periodicidade das sessões e o analista vai consentido. Em uma sessão, chega bem, arrumada discretamente, com uma caixa na mão e diz, de forma imperativa, que aquele presente ele precisava aceitar. Ele pede para ver: em uma caixa estava uma escultura do analista, feita por ela. Ela conta como foi feita, o material, etc. E ele o aceita: a escultura é um trabalho que inclui o analista e a história da analisante e seu pai.

Podemos concluir que o amor transferencial, a transferência, da forma que ela vier, está ali em função do método psicanalítico, é preciso escutar como algo a favor do tratamento, a favor do sujeito, pois, como afirmou Miller (1997, p.235), a “primeira incidência clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito”.


 

Referências
FREUD, S. (1915 [1914]). Observações sobre o amor transferencial. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 165-182.
LACAN, J. (1960-61). A mola do amor. In: O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 31-210.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Opção Lacaniana On-Line, n. 2, jul. 2010. Disponível em: opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2. Acesso em: 22 mai. 2023.
VENTURA, O. Uma mulher pródiga. In: La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jaques-Alain Miller em Barcelona. Barcelona: Ed. Paidós, 2003/2005
VENTURA, O. O Amor. Sempre Outro. In: XXIV Jornada da EBP-MG – Mutações do laço social: o novo nas parcerias. 2020. Disponível em:jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/ Acesso em: 22 mai. 2023.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 25 de abril de 2023.
[2] Filme de Helvécio Ratton, da produtora Quimera, lançado em 13 de abril de 2023.



Lembrar, repetir, perlaborar[1]

Lucia Maria de Lima Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. 

Palavras-chave: lembrar; repetir; pulsão; inconsciente; transferência.

REMEMBERING, REPEATING AND WORKING-THROUGH

Abstract: The author comments on Freud’s 1914 text, Remember, repeat, work through, in the light of the modifications presented by the dialogue with Lacan in 1964 as a support for a rereading based on the Seminar The four fundamental concepts of psychoanalysis. Some clinical fragments illustrate aspects of Lacan´s contribution to research.

Keywords: remembering; repeating; drive; unconscious; transfer.

Imagem: Renata Laguardia

Dentre os princípios gerais dos fundamentos da prática psicanalítica, o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” (FREUD, 1914/2022) inicia com uma lembrança, uma advertência, sobre as profundas transformações sofridas pela técnica psicanalítica desde seus primórdios, não apenas incidindo sobre os três verbos, mas no contexto mais amplo dos conceitos que constituem a experiência psicanalítica. As transformações alcançam os conceitos fundamentais em 1964, no Seminário 11 de Lacan, e prosseguem até seu último ensino. Elucidadas por Miller nos cursos psicanalíticos, dentre outros, encontra-se orientação precisa para diferenciar leitura em três consistências, Simbólico, Imaginário, Real, outra lógica antecipatória das surpreendentes mudanças operadas pelo mal-estar na civilização.

Contarei com algum desses textos, dentre outros, na expectativa de seguir uma vereda já traçada, mas indicativa da pesquisa contínua orientada por um método renovado através das mudanças clínicas, subjetivas, políticas, sociais, ao mesmo tempo em que extrai consequências da parceria com o estranho, sem sentido, do silêncio das pulsões.

O lembrar, desde o início da descoberta freudiana, incide nas repetições, o recalcado, os sintomas, as fantasias, sonhos, os atos falhos, vivências incompreensíveis. Incidência esta que implica tanto o inconsciente, como linguagem, quanto a dimensão silenciosa da pulsão, as chamadas moções pulsionais, os destinos da vida e morte traços nos corpos resultando atos estranhos em sua vasta extensão.

A ab-reação servira inicialmente para demonstrar a dissimetria entre o afeto e a representação. Freud encontra o desafio de traduzir e recompor um sofrimento histórico de fazer cessar a compulsão para repetir que, contrariamente ao sintoma que se deslocava rebelde sobre um corpo, mostrava sua consistência e coesão. Antes de 1914, anunciara um vasto conjunto de experiências clínicas, que alcançavam a sexualidade, a paranoia, a histeria, a fobia, a obsessão. O relativo fracasso da palavra para preencher as lacunas históricas ou traumáticas exigia “fazer as pazes com o recalcado que surge nos sintomas” (FREUD, 1914/2022, p.157)

Fazer as pazes com o recalcado implica o paciente em uma nova relação com a doença, outra posição subjetiva para além da queixa inicial, o que exige sua demanda e autorização. Por seu turno, a nova relação com a doença dependia do estabelecimento da neurose de transferência mais colaborativa, porque vem em substituição à neurose comum. As substituições conhecidas por Freud na esfera sintomática foram recurso tático no manejo da transferência, com a proposta da neurose de transferência substituindo a neurose comum, durante uma análise, além da expectativa de certa regulagem das “pulsões selvagens” pelo uso da transferência.

Quando lemos Miller (1997) no “Discurso do método psicanalítico”, de 1987, encontramos em outros termos a importância das entrevistas preliminares para a localização subjetiva e as coordenadas da verificação de mudança possível, posição suportada pelo ato ético do psicanalista.

Freud verificou que a simples nomeação das resistências por seu turno não alcançava superação imediaa, porque as moções pulsionais alimentavam as resistências.  O difícil trabalho conjunto de analista e do analisante, portanto, visaria localizar e superar a incidência da pulsão.

A clínica o ensinava e um dos grandes méritos freudianos foi não se deter diante dos obstáculos, prosseguir suas indagações e pesquisas através de vários enigmas e paradoxos. Descobre que o esquecimento podia ser o não reconhecimento de algo vivido, a denegação, marca neurótica em relação ao desejo, assinalando o mecanismo defensivo que indica e nega a responsabilidade do paciente. Que as lembranças encobridoras podem compensar a amnésia infantil, além de surgirem isoladas, sem qualquer conexão. Podem ocorrer conexões a posteriori de afetos precoces e sem sentido. O paciente se lembra de imagem nunca vista ou não se lembra do que ocorreu anteriormente. Os pensamentos podem não retornar como representações, mas como atuações, portanto, o paciente repete sem saber que repete e experimenta a lembrança como alheia ou permutada pelas defesas.

Um fragmento clínico ilustra bem um dos impasses apresentados pelo início do tratamento localizados por Freud nessa época e que se reencontra ainda segundo alguns depoimentos dos psicanalistas nas práticas clínicas atuais:

Uma senhora, de idade mais avançada, repetidas vezes abandonava a casa e o marido, em estados confusionais, fugindo para um lugar qualquer, sem ter consciência do motivo de tal “escapada”. Ela veio ao meu tratamento com uma transferência carinhosa bem formada, aumentando-a de forma espantosamente rápida nos primeiros dias, e, ao fim de uma semana, também “escapou” de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse impedi-la de incorrer nessa repetição. (FREUD, 1914/2022, p. 159)

É muito interessante nesse pequeno relato de 1914 Freud situar no significante que reitera, a “escapada” da paciente, considerando a possibilidade de contenção como manobra clínica. Faz lembrar a importante pergunta de Lacan, muitos anos depois: “Mas se o ato está na leitura do ato, isto quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido a posteriori que ela toma seu valor?” (LACAN, 1967-68, p. 26). O significado não pertence ao mesmo campo do significante. Essa importante questão surge tanto em Freud quanto em Lacan. O ato da leitura a posteriori marca a distância entre a compreensão e a significação vazia de sentido. É preciso considerar um gozo que se imiscui tanto na palavra falada quanto nas atuações e guarda sua deriva e o enigma para o Outro.

Os sintomas na forma de repetições apresentam-se muito variados como que por acaso, um tropeção, uma falha, mas que insistem, vão dos pequenos fisgamentos cotidianos até esquecimentos que levam à morte, como os que resultam em acidentes. O que está fora da palavra mostra sua insistência e requer um trabalho em outro circuito, labor que mereceu, da parte de Freud, o nome de perlaboração, indicando uma travessia, um percurso através de uma experiência, longamente investigada na “Psicopatologia da Vida cotidiana” (FREUD, 1901/1980), que se desdobra, no próprio Freud em 1937, nas construções em análise, que, por analogia à metáfora arqueológica, ressalta a importância do trabalho com os restos. O curioso é que essas repetições, embora reiteradas, não possuem registros, o inconsciente não toma nota, o sujeito traz a notícia de que ocorrem sempre mais uma vez, uma primeira vez.

Freud, a partir dos trabalhos com a pulsão, sobretudo com a libido, a satisfação, leva em conta dois tipos de repetição. Embora fora da linguagem, é possível traduzir num tempo posterior, ou seja, introduzir condições de legibilidade do ato falho que ele citou mais de uma vez, quando o presidente de uma sessão, ao abrir os trabalhos, levanta-se triunfante e diz: “a sessão está encerrada”. Mesmo aparentemente fora da linguagem, a frase está dentro do contexto significante, portanto pode ser traduzida, mas nem sempre compreendida.

A grande surpresa em 1964 foi a retomada por Lacan, no Seminário 11, do que formalizou nessa época como Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O diálogo com Freud se apoiou inicialmente no texto “Lembrar, repetir, perlaborar” para extrair elementos essenciais visando fundamentar outra modalidade da repetição, pesquisa seguidamente renovada conduzida até seu último ensino.

A pergunta de Lacan (1964/1988) situa o inassimilável na forma do trauma que comparece desvelado fora do sonho, não como portador do desejo, mas o trauma mostrando na face despida de semblantes, o impacto do real. Para além do traumatismo das situações de violência, de guerra, que se repetem e buscam o tratamento pelo sentido, há o trauma do real, que acompanha o sujeito para sempre na esfera do fora do sentido.

A repetição não é o retorno dos signos nem a simples reprodução, não é apenas a rememoração agida, não é um comportamento. A descoberta freudiana do inconsciente encontra nos fundamentos da clínica a experiência de uma memória falha, sempre aberta, repleta de contradições.  A pesquisa lacaniana localiza algo mais que uma memória, como programas que se desenvolvem sem que o sujeito saiba, um saber paradoxal que não é um conhecimento, mas localizado inicialmente apenas pelos seus efeitos, acontecimentos imprevistos, que indicam a relação não evidente entre o pensamento e seu limite, fora do conhecimento do sujeito, ou seja, o real inferido através de seus efeitos que foi verificado inicialmente por Lacan, como o que retorna sempre ao mesmo lugar.

Na repetição, portanto, comparecem dois níveis: o primeiro na rede de significantes, atualizada, insistentemente, nas diversas formas de automatismo da repetição, no automaton, das biografias, nas histórias, narrativas; e, no segundo, temos a tiquê, o acontecimento imprevisto, o inassimilável, o trauma, acontecimento que ressoa diretamente sobre um corpo. Esses dois níveis foram revisitados sob nova leitura a partir da clínica freudiana, precisamente no caso do “Homem dos lobos”, numa cena infantil comparando duas realidades sucessivas e antagônicas ocorridas na infância do paciente no terreno da percepção. A realidade de uma cena que pode ser posta em palavras, e a perplexidade, demarcada pela surpresa, por um instante sem palavras, enigma, alheio ao sujeito do inconsciente como linguagem.  Nessa clínica, as particularidades do estatuto desse inconsciente respondem por realidades surgidas através de fenômenos situados em lugares diversos, como rememoração e reminiscência, o que franqueou a elaboração e construção de hipóteses diagnósticas diversas através da minuciosa leitura a posteriori do caso.

Quando Lacan indaga insistentemente, por vários anos, sobre o estatuto do inconsciente freudiano, formaliza progressivamente algo além da atualização por substituição dos sonhos, atos falhos, chiste, fantasia, sintoma. Algo que desloca para o primeiro plano a Outra realidade, a outra cena. Essa outra cena, entretanto, foge ao enquadre fornecido pela fantasia, não é uma lacuna a ser preenchida, que retorna a um momento prefixado. É um fenômeno inédito, fugidio, alheio a qualquer interpretação.

O relato seguido do comentário de uma experiência pessoal de Lacan sobre a Outra realidade, a outra cena, é colhida em recorte marcante trazido por ele no campo do sonho, quando foi despertado do curto sono através do qual procurava repouso. Despertado, ele diz, “por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu não me despertasse” (LACAN, 1964/1988, p. 58), é a partir dessas batidas apressadas que ele iniciava a construção de um sonho, que manifestava conteúdo diverso das batidas, mas em torno delas, e que reconstitui todo um conjunto de representações:

sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação – de que eu sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked, em choque. (LACAN, 1964/1988, p. 51)

Com esse fenômeno, Lacan destaca o barulhinho, o pequeno ruído, e, através do instante experimentado sobre o choque do despertar, aponta a hiância, o estranho, que evidencia a oposição entre realidades diferentes. Algo muito diverso do que pode ocorrer na esfera dos sintomas e das fantasias ainda no circuito das repetições que surpreendem o sujeito.

A amplitude dos fenômenos na repetição entre realidades disjuntas foi evocada em Freud, no jogo do carretel no qual, ao lado da brincadeira da criança, surge o salto sobre o fosso que separa a borda do berço, salto que inscreve a falta no seio da representação simbólica diferenciadora da ausência – presença do Outro e localiza a angústia em outra dimensão. A repetição na brincadeira infantil, como os casos clínicos o demonstram, pode indicar uma lacuna a ser preenchida por uma palavra, mas o acontecimento imprevisto, sem sentido, na cena do sonho evocada por Lacan, tem ação de corte, surpresa, perplexidade, porque sem nome, indicativa do choque com o real.

As mudanças para os fundamentos da clínica decorrentes do “simples” exame do estatuto do inconsciente, a partir da outra modalidade de repetição, repercutem até a atualidade e ampliam a chance de trabalho com os difíceis casos clínicos atuais.

A importância do Seminário 11 de Lacan no diálogo com o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” reside em reordenar os fundamentos da clínica psicanalítica a partir de nova perspectiva, considerando o real como experiência do inassimilável, tarefa que prosseguirá até seu último ensino.

Assim, demarca a diferença entre dois tipos de repetição propostas por Freud e Lacan: a que concerne à biografia, à história, ao que pode ser lembrado e associado aos modos diversos de satisfação, desconhecidos, mas passíveis de leitura a posteriori. Já o encontro com o acaso, o imprevisto, ou imprevisível, situará novamente a sessão analítica entre repetição e surpresa, em que o lapso convoca seu uso, e não sua interpretação; o acontecimento imprevisto repete como um raio que atinge um corpo, fora da apreensão pelas palavras. Esse outro tipo de repetição, também de dupla forma, separa o gozo incluído na cadeia de linguagem, como defesa, e o gozo fora da lei significante.

A sutileza de Lacan impressiona porque chama atenção para a radicalidade da repetição em situações cotidianas, aparentemente simples, que foram assinaladas anteriormente por Freud como a dimensão lúdica, ou seja, a repetição demanda o novo, mas a modulação é apenas deslizamento da alienação do seu sentido. O verdadeiro segredo do lúdico “é a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” (LACAN, 1964/1988, p. 62).

Um comentário de Zenoni (2022) ilumina essa radicalidade, ao lembrar a frase “o sujeito é sempre feliz”: todo acidente, acaso, reencontro, tudo é bom para a satisfação da pulsão porque ela se repete. O bom para a pulsão se justifica porque o gozo não conhece seu contrário, tal como ocorre com o desejo. A renúncia ao gozo é também um gozo enquanto um desejo realizado, é o oposto de um desejo não realizado. A marca de gozo, sempre a mesma, restará como irredutível, ineliminável. O interessante é o convite ao trabalho que pode tocar um falasser, advindo dos paradoxos da repetição.

Esse convite ao trabalho tem no depoimento de Marcos André Vieira (2019) esclarecimento fundamental sobre os efeitos de uma análise. O psicanalista se expôs ao risco da violência em evento no qual compareceu, acompanhado de seus filhos, à favela da Maré, local onde desenvolveu longo trabalho clínico que resultou em várias publicações de pesquisa. Na entrada foi interrogado, em cena que se repetiu, por dois adolescentes fortemente armados. Da cena, resta a sensação de estranheza. Após intervenção de seu analista, encontra a evidência, na repetição, do desejo inconsciente, que expõe, por seu turno, um gozo ligado ao perigo que carregava, um real acompanhado do afeto: “Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar” (VIEIRA, 2019, p. 32). Trata-se, nesse caso, do inconsciente como efeito de leitura do que se fala.

O trabalho clínico a partir do remanejamento de conceitos fundamentais não corresponde a uma elucubração de saber, mas opera como instrumento para “renovar nossa prática no mundo” (MILLER, 2014, p. 21), considerando a possibilidade de lidar com as contingências que atingem incessantemente um falasser e a responsabilidade implicada na extimidade da prática psicanalítica.


 

Referências 
FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VI, 1980. (Trabalho original publicado em 1901).
FREUD, S. Lembrar, repetir, perlaborar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1914).
LACAN, J.  O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. 1967-68. (Inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964)
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
VIEIRA, M. A. Extimidades. Correio Express – Revista Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 82, 2019. Disponível em: www.ebp.org.br/correio_express. Acesso em: 27 jun. 2023.
ZENONI, A. La répétition, de Freud a Lacan. Quarto, n. 131, jun. 2022.
[1] Trabalho apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 30 de maio de 2023.