Laurent Dupont
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne /AMP
laurentdupont.mail@gmail.com
Resumo: Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.
Palavras-chave: delírio; paranoia; sublimação; narcisismo; real.
PSYCHOANALYTIC DELIRIUM CLINIC
Abstract: In the “Psychoanalytic clinic of delirium”, Laurent Dupont starts from freudian considerations about delirium in the Schreber case and, throughout the text, he proposes to read the lacanian “everybody is crazy” as an attempt to cure the real. By resuming the three stages of delirium construction, Dupont sheds light on the role of narcissism and sublimation in this process. In this sense, the Lacanian thesis of generalized delirium points, according to the author, to an attempt to bring a signifier back to the hole: “everything that man builds, invents, thinks is a way of dealing with, of compensating for this fundamental hole of not sexual intercourse”.
Keywords: delirium; paranoia; sublimation; narcissism; real.
Proponho pensar sobre esta questão a partir de duas declarações, sendo a primeira de Freud (1911/1996, p. 78): “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”; e a outra, de Lacan (1978/2010, p. 31): “todo o mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Assim, é possível para nós entendermos o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura; mas curar o quê?
Freud (1911/1996, p. 78) propõe uma construção do delírio em três etapas. Primeiro, a ideia de uma catástrofe universal, um processo que é realizado de forma silenciosa, deixando o sujeito impossibilitado de dizer algo. Vamos falar de perplexidade, sideração. Nenhum significante vem nomear esse colapso, o surgimento de um furo. Segundo tempo freudiano: a libido se desprende de pessoas ou coisas antes amadas (FREUD, 1911/1996, p. 79), deixando o sujeito em uma solidão radical. Esse desprendimento é o sinal de uma frouxidão tanto do imaginário quanto do simbólico: o silêncio da pulsão torna-se ensurdecedor, deixando o sujeito fora de tudo. A terceira etapa pode ocorrer no instante exato da segunda: reinvestimento da libido nos objetos de amor anteriores, mas sob a forma de um delírio. Esta é a tentativa de cura:
O que chama tão ruidosamente a nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão, e traz de volta a libido para as pessoas que ele havia abandonado. Na paranoia este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna do lado de fora. (FREUD, 1911/1996, p. 79)
Lacan formula esse ponto da seguinte forma: o que está foracluído do simbólico, do exterior, retorna no próprio corpo do sujeito. O delírio é, portanto, uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo, uma tentativa de localizar o gozo; seja desesperada, vã ou eficaz, ela é sempre uma tentativa de cura.
Querer, portanto, como é proposto hoje na psiquiatria, erradicar o delírio, ou que o sujeito o critique, significa suprimir a única tentativa de solução que o sujeito consegue estabelecer.
O que fazer com um delírio?
Freud não sustenta o delírio, ele o analisa, ele o segue ao pé da letra e identifica seus detalhes. De fato, um sujeito só pode delirar a partir dos significantes dos quais ele dispõe. O delírio, como o sonho ou o desenho na criança, está lá para produzir significantes, significantes da língua do sujeito. “Porca” é o significante a partir do qual Lacan pode construir o caso, seu surgimento testemunha que é este e não um outro. Há, de uma forma ou de outra, uma espécie de escolha do sujeito, uma redução ao núcleo de uma cifração mínima do inconsciente a céu aberto.
Seguir o delírio ao pé da letra, ou seja, lê-lo sem se deter no sentido que se desprende, leva Freud a formular algumas hipóteses: todas as construções, “as engenhosas erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião – a hierarquia de Deus, […] podemos avaliar, retrospectivamente a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido” (FREUD, 1911/1996, p. 80).
No delírio, pode haver uma tentativa de cura através de uma forma de sublimação. Isso está relacionado com o fato de que, por causa do desinvestimento da libido nas pessoas amadas, o retorno a elas é feito de início pelo eu do sujeito: “a libido liberada vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste” (FREUD, 1911/1996, p. 79) e visa à amplificação desse eu condenado ao caos.
Lacan fala nesse delírio de grandeza, da função de exceção que visa a ocorrência do delírio no caso do Presidente Schreber. Há, portanto, uma localização feita por Freud de uma colagem, ao mesmo tempo uma tentativa de cura por um reforço do narcisismo e o recurso a uma forma de sublimação, ambos se sobrepõem, soldados um ao outro: numa tentativa de colocar em forma o que Lacan nomeia de o sinthoma em Joyce: escabelo.
Freud (1911/1996, p. 83) também argumenta que “podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento que busca devolver a libido a seus objetos”. Assim, Freud mostra três tempos no estabelecimento do delírio: 1) colapso do mundo, deixando o sujeito fora do sentido, silencioso, sem recurso possível tanto em relação ao simbólico quanto ao imaginário. 2) Fase de agitação alucinatória, “o que é abolido retorna do exterior”. 3) O delírio é uma tentativa de cura na medida em que tenta restaurar o sentido e permitir o reinvestimento nos objetos. E Freud acrescenta essa frase de uma atualidade fulgurante: “Mas é essa tentativa de cura que os observadores consideram ser a própria doença”. Muito pouco mudou hoje em relação a essa observação, o delírio é visto menos como uma tentativa de cura do que como uma produção a se erradicar.
O delírio testemunha um colapso do imaginário e do recurso ao significante S1, sozinho, não ligado a um S2, como tentativa de lidar com o que retorna no corpo Um que deixa o sujeito desamparado. Mas esse significante S1 frequentemente não fornece ao sujeito nenhum significado em relação àquilo que acontece com ele, ao contrário, ele é o traço do furo radical de qualquer sujeito confrontado com o real. A elaboração delirante é, portanto, neste momento, uma tentativa de remendar o desenlace imaginário. Algumas vezes, esta solução pode operar uma nomeação, como em Joyce.
Foi em 1978, em seu último ensino, que Lacan (1978/2010, p. 31) formulou: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que não há nada além de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Se a metáfora paterna é responsável pela relação do sujeito com o Outro e por sua alienação ou não, a partir do Seminário XI, Lacan traz à tona, com o objeto a, a questão sob o ângulo da separação, da extração. Seja em relação ao S1 sozinho, falha de significantização do gozo, seja de defesa contra o real. Nos dirá Jacques-Alain Miller (1990): retorno de gozo para o lugar do Outro na paranoia, retorno de gozo generalizado no nível do corpo na esquizofrenia, o retorno do gozo, localizado, mas deslocado no corpo como Outro no fenômeno psicossomático.
O delírio generalizado seria uma defesa contra o real. Quanto mais Lacan avança em seu ensino, mais ele apresenta essa noção de que tudo é sonho, tudo é delírio, tudo é semblante. Em relação a quê? Em relação à relação sexual que não existe, que não se inscreve, que não pode se inscrever. Nada é pré-estabelecido, nada é programado para permitir o encontro. Lacan (1978, p. 8) dirá que a psicanálise, nesse sentido, é em si mesma um delírio: “A psicanálise não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, ela só pode estar à espera, a esperar por isso. É um delírio – um delírio que se espera que comporte uma ciência”. Lacan vai dizer que o objeto a é um semblante, que o amor é um semblante, que a verdade é uma mentira… tudo isso em relação a esse real que não é nem apreensível pelo imaginário, nem pelo simbólico.
Tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar esse furo fundamental da não relação sexual. Lacan (1972-73/2008, p. 149) chega ao ponto de dizer que “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalangue”. A própria linguagem é um delírio. Assim, o sujeito, na imaturidade de seu nascimento, nesse momento em que se trata apenas de uma substância gozante, experimenta de forma radical a ausência de um programa, de relação com o Outro nesse primeiro encontro com o significante, mordida do significante no corpo, marca que deixa um traço indelével, marca Um, essa que Jacques-Alain Miller (2011) diz em O Ser e o Um: “É o Um do significante”. Este Um é apagado pela ação da linguagem que faz emergir o ser. Em “Joyce, o Sinthoma”, Lacan (1975/2003, p. 561) diz desta forma: “A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”. O ser também é um semblante, o ser também é um delírio, uma elucubração sobre esse traço inicial, esse traumatismo inicial de lalangue, e é esta a marca, o traço da existência do sujeito, o qual itera. Isto é trans-estrutural. Todos são delirantes porque a partir desta marca, esta mordida no corpo pelo Um do significante, cada sujeito será elaborado, elucidado, construído. Essa marca, esse encontro inicial, é impossível de dizer porque o real não pode ser dito, só pode ser definido, unicamente com base na lógica, no equívoco, no que se itera no sujeito. É por isso que os testemunhos de passe não dizem o real, como tal eles são ficções, contam como cada um, um a um, tem sido capaz de desconstruir suas ficções, suas identificações, sua relação com o objeto, em suma, seus delírios. Isso é o que permitiu a Jacques-Alain Miller dizer que, tendo sido o passe feito uma vez, todos os escabelos foram queimados, restam os escabelos do passe: a ultrapassagem.[2] Recordo essa definição de escabelo por Jacques-Alain Miller (2016): aquilo em que se sobe para se fazer bonito e para se tornar belo, para se empurrar para cima, o cruzamento do narcisismo e da sublimação. Aqui vemos ressurgir os dois pontos de referência freudianos, o narcisismo e a sublimação, no que concerne a Schreber.
O delírio universal seria, portanto, uma tentativa de cura diante do real, do furo trans-estrutural da não relação sexual.