Do dom de Mauss ao inominável da pulsão 

Laydiane Pereira de Matos
Psicóloga
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
laydianep.matos@gmail.com

Resumo: Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. 

Palavras-chave: dom; objeto; pulsão; Outro; assentimento. 

FROM MAUSS’S GIFT TO THE UNNAMEABLE OF THE DRIVE 

Abstract: This article aims to revisit the foundations of the gift concept in Marcel Mauss’ theory and articulate its logic with Freud and Lacan’s transmission about the object theory. To this end, it contrasts the usefulness of this concept in the structuring of the first Lacanian clinic with its fundamental disagreement, which resides in the impossibility of the significant determination provided by the access to the symbolic in being able to embrace the real of the drive, since its character is always casuistic, using of the concept of assent to support this argument. 

Keywords: gift; object; drive; Other; assent.

 

Imagem: Renata Laguardia

Introdução

Segundo Lacan, Freud referiu-se ao conceito de objeto em diversos momentos de sua obra, e sua importância percorre toda a psicanálise. Com vistas a retornar a Freud e corrigir possíveis deturpações desse conceito por psicanalistas pós-freudianos, ele enfatiza que falar da relação de objeto é falar de sua falta, posto que esse objeto é inapreensível e que dele temos apenas noções parciais. Tendo entrado na dialética do dom, o objeto não é de relação harmônica com o sujeito, mas, sim, de natureza enigmática, remetendo ao falo simbolizado enquanto significante do desejo do Outro (LACAN, 1956-57/1995). É esse Outro, fonte de dom, que propicia a transmissão de uma falta e o aparecimento do sujeito, efeito da imersão do homem na linguagem e que existe ao preço de uma perda (SANTIAGO, 2008). Porém, ainda que tenha se apoiado no conceito de dom – tema de pesquisa de Marcel Mauss –, Lacan já dava sinais da insuficiência do simbólico em dar conta da pulsão, apontando seu caráter casuístico, que, articulada ao Outro da linguagem, não garante seu assentimento com a lei simbólica (SALUM, 2009). Assim, este artigo visa percorrer o conceito de dom trabalhado por Mauss e sua articulação com a noção de objeto em Freud e Lacan, caminhando para o conceito de assentimento.

Dom em Mauss

Lacan, no Seminário 4, menciona por vezes o conceito de dom, remetendo-o à relação dialética entre sujeito e objeto. Segundo ele, não é possível tomar o objeto de dom sob uma perspectiva harmoniosa, visto que ele se apresenta como a possibilidade de um objeto intermediário que só surge no tensionamento que se abre quando a mãe, em sua relação com o filho, se apresenta como potência real (LACAN, 1956-57/1995). E por que Lacan o utilizou em seu ensino?

Segundo o dicionário, a palavra “dom” se origina do latim dominus, i, que significa “senhor de”, e remete tanto à posse de uma qualidade inata do sujeito, quanto à um título de honra a ele designado exprimindo homenagem e respeito. O dom seria uma espécie de dádiva, de presente, donde sua tomada de posse e usufruto faz do sujeito alguém importante (DOM, 2023). Foi o etnólogo Marcel Mauss, com seu Ensaio sobre a dádiva, que contribuiu para que o conceito tivesse maior consistência nas ciências sociais (MARTINS, 2012). Antes do surgimento da moeda, os serviços, trabalhos e alianças entre os indivíduos e seus clãs eram pautados por um caráter mágico de comum acordo (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), e Mauss expõe um conjunto de pesquisas empreendidas sobre as características do sistema de trocas em sociedades arcaicas (mais especificamente na Polinésia, Melanésia e Noroeste americano), nas quais o objeto de troca tinha seu valor delimitado não em sua utilidade, mas na crença universal de que o espírito do doador ficava na coisa dada. Isso fazia com que os grupos obrigatoriamente se presenteassem e se endividassem, uma solidariedade forçada pela qual quem recebia era obrigado a retribuir. O que era trocado não era apenas de ordem material, mas também se trocavam gentilezas, festas e feiras, evidenciando que a circulação das riquezas era apenas um dos termos de um contrato mais geral e mais permanente (MAUSS, 1923-24/1950). Assim, esse contrato compartilhado pautado num significado oculto resultava na filiação e no funcionamento social entre coletividades, denotando o valor do simbolismo nas sociedades (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011).

Claude Lévi-Strauss é quem escreve a introdução à obra de Mauss, e nela aponta a relevância de seu estudo para a psicanálise e demais áreas. Ele comenta que a recepção do trabalho de Mauss se deu de forma não acolhedora na época, visto que, enquanto escrevia, as ideias de Freud ainda não haviam chegado na França, e seu trabalho foi uma primeira manifestação de evolução objetiva nas ciências psicológicas. Tomando como o marco de seu estudo o apontamento de que o inconsciente e a relação com o outro são o que explicam os fatos sociais, ele chega a referenciar um artigo de Lacan – L’agressivité en psychanalyse, de 1948 – para apoiar tal concepção. Mais à frente, aponta para o papel da linguagem na articulação entre o eu e o outro, sendo possível apenas através dela que o pensamento simbólico se exerça. Para Strauss, o social é uma realidade autônoma, em que o significante precede e determina o significado. No que remete ao trabalho de Mauss, ele inova dizendo que o que está em jogo na dádiva que obriga a dar, receber e retribuir não é, como Mauss apontou, o espírito da coisa que ainda paira sob ela, mas, sim, que esta é a forma consciente pela qual a sociedade pôde apreender algo que está além, no campo do inconsciente (MAUSS, 1923-24/1950).

Dom e o objeto em psicanálise

Santiago (2008) aponta que a importância do dom para a psicanálise vem da forma como Lacan o pôde apreender na pesquisa de Mauss enquanto sistema de trocas simbólicas. O que importa é que o simbólico suprime o gozo sob o objeto, passando a denotar seu caráter mítico. Da perda de gozo, assume-se o significante do desejo do Outro, enigmático, e essa é a dimensão essencial do objeto na experiência analítica. Em Lacan (1956-57/1995), temos que toda relação objetal é fundamentalmente imaginária, e que desde o início das origens dos objetos eles já são considerados outra coisa para além do que são: são objetos trabalhados pelo significante, cuja estrutura é impossível de se extrair.

Associando com o conceito de objeto em Freud, o caráter de mais além da coisa referenciado no dom equipara-se com o objeto que está para sempre perdido, o objeto das primeiras satisfações, que sempre deixa uma hiância entre o que se procura e o que se encontra. No primeiro ensino de Lacan (1956-57/1995), o objeto associa-se ao falo, objeto imaginário privilegiado, que perpassa a relação dual entre mãe e filho. A passagem do objeto de necessidade para o objeto de dom pode ser ilustrada no exemplo da mãe que alimenta o filho com o objeto seio. A mãe, submetida à sua própria falta, nutre um interesse particular pela criança e lhe oferta o seio como objeto simbólico, de dom, visando mais além da necessidade. Porém, a essa mãe simbólica contrapor-se-á a mãe real, que é a face da mãe que ameaça no filho sua possibilidade de querer, tomando-o como sutura daquilo que lhe falta (SANTIAGO, 2008). Miller (2014) sinaliza que frente à potência devoradora da mãe, a criança ou a preenche, ou a divide. Preenchê-la significa suturar sua falta e anulá-la enquanto mulher, ao passo que a dividir seria o seu oposto, não ser o falo que lhe falta e se deparar com a insuficiência em dar conta de seu desejo. Quando a criança não sutura a falta em que se apoia o desejo da mãe, abre-se espaço para que os objetos dessa relação tomem forma de dom.

É nesse jogo de presença e ausência – em que a criança acredita que é amada por si mesma, mas que na ausência da mãe o objeto intermediário sob forma de dom se apresenta – que o falo enquanto objeto imaginário, signo de dom, aparecerá tanto do lado da mãe quanto do lado da criança, orientando a identificação formadora do eu, e alienando não mais ao desejo da mãe, mas, à cadeia significante (BARROSO, 2015). A partir dessa mãe real, ameaçadora e não toda fálica, a criança vai tecer sua questão sobre como saciar o desejo da mãe sem por ela ser devorada, e o seio, os excrementos e o falo entrarão no circuito de mais além do objeto, permitindo o acesso à realidade simbólica e ao desejo (SANTIAGO, 2008). A partir daí, Miller (2014, p. 7) lembra que é “o desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico”, desembocando em uma espécie de construção delirante mítica acerca do enigma do desejo do Outro.

O Outro e o assentimento

Tais associações entre dom, objeto e falo vão ao encontro do que Mauss e Strauss apontaram em seus trabalhos, no sentido que diante uma coletividade há uma organização simbólica inconsciente que não se reduz ao individual e ao concreto das ações, mas que remete à uma submissão, a um mais além compartilhado. Esse mais além pode ser tomado aqui como a lei do Outro, que preexiste ao sujeito e que lhe veda, a partir da perda que há na articulação entre significante e significado, o acesso a uma relação dual com a coisa (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Assim, será a partir do Outro, que se particulariza em cada sociedade segundo sua versão imaginária, que as coisas ganharão valor na cadeia de trocas e onde a estrutura poderá se desenrolar (SANTIAGO, 2008; SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), permitindo ao sujeito apoiar seu fantasma na parte de real que foi destacada deste, e fazer dela seu mito individual (SALUM, 2009).

Porém, é importante apontar que mesmo se utilizando do conceito de dom para pensar o acesso ao simbólico e a relação de objeto, Lacan já no início de seu ensino discordava dos estruturalistas apontando que não basta o Outro preexistente para garantir a admissão à lei (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Além da estrutura significante, é preciso levar em conta uma abertura para o real, pois o mito não o esgota e tem em seu correlato um sujeito com seu corpo, sua pulsão e seu gozo, que não se deixam abarcar por completo pelo significante (SALUM, 2009).

Pensando a causalidade da pulsão em contrapartida com a determinação significante, podemos recorrer ao conceito de assentimento,[1] definido aqui como a crença na estrutura combinatória significante que preexiste (crença no Outro). Há primeiro um reconhecimento desse encontro com o simbólico, mas é preciso também que se tenha uma admissão inicial, o assentimento por parte do sujeito. É a crença nessa inscrição que permitirá a simbolização, uma maneira de se estabelecer dentro da lei do Outro. Assentir à causa é sacrificar-se em nome de um Outro que não existe e que permitirá alguma legalização do gozo (SALUM, 2009).

Assim, na dialética do dar-receber-retribuir, não basta que o simbólico se apresente para que o sujeito assinta em entrar nesse jogo. Existe nesse desenrolar o papel ativo tanto da pulsão quanto do arcabouço simbólico previamente construído, no qual o sujeito será forçadamente inserido. Há o Outro como suporte do significante, e neste ponto Lacan pôde recorrer a Mauss para se apoiar no conceito de dom em jogo nas trocas simbólicas, mas há, também, o sujeito e seu inominável da pulsão e do gozo, que pode assentir ou não com essa inscrição. Portanto, a estrutura significante do Outro e o assentimento do sujeito são suplementares, e não justapostos, e é isso que Lacan aponta desde o início de seu ensino (SALUM, 2009). 

Conclusão

As menções de Lacan ao conceito de dom no que se refere à relação de objeto parecem encontrar apoio no que se pode chamar de mais além da coisa. No estudo de Mauss, o que está em jogo entre os povos é a crença de que o espírito do doador fica na coisa dada, levando, através da obrigação consentida de dar-receber-retribuir, à criação de laços e contratos sociais firmados sob um pacto simbólico. Strauss amplia essa visão ao comentar que, mais além do espírito do doador sempre presente na coisa dada, o que está em jogo nessa dinâmica é o quê de inconsciente os povos apreendem sob a forma consciente do espírito, assinalando o caráter de primazia do significante na construção da realidade e dos fatos sociais (MAUSS, 1923-24/1950). Já em Freud e em Lacan, o que está em jogo na dialética do dom é a nostalgia do objeto perdido, restando dele apenas uma marca, um resto de real que o sujeito circundará em sua crença e em sua busca sem sucesso (LACAN, 1956-57/1995).

Apesar da aproximação com o conceito de dom, aponta-se que já no início de seu ensino Lacan diverge de estruturalistas como Lévi-Strauss ao defender que há no sujeito algo para além da determinação significante, não totalmente abarcado pelo simbólico, e a isso nomeia de real (SALUM, 2009). Segundo Lacan (1956-57/1995, p. 92), é o real que “oferece sempre, no momento exato, tudo aquilo de que se necessita quando se foi, enfim, regulado pelos bons caminhos, à distância correta”. Portanto, é ao real que o simbólico se constitui como resposta, e não, como totalidade (SALUM, 2009).

De Mauss até hoje, o discurso do Outro mudou. Se antes o ideal e a crença num Outro mítico organizavam o mundo, hoje estamos no tempo do Outro que não existe, em que o assentimento declina e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos de gozo ofertados. Não pretendendo apelar para o saudosismo, é preciso verificar como o sujeito se relaciona com esse Outro da contemporaneidade, sem eximi-lo de ser responsável por sua posição, mas, verificando como ele assim o faz (SALUM, 2009). Essa talvez seja a aposta da psicanálise: permitir que algo do singular, do real da pulsão e do gozo apareçam sem desconsiderar o universal da lei e do discurso.

Sob forma de abertura para o real que convoca ao saber fazer, convidamos o leitor ao fim deste artigo a pensar como se daria a leitura dos modos de subjetividade contemporâneos sob a ótica dos conceitos de dom, objeto, Outro e assentimento: estariam eles hoje sustentados pelas mesmas premissas descritivas?


Referências:
BARROSO, S. F. A imagem e o imaginário: quando o sujeito é excluído do imaginário materno e permanece sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2015. Disponível em: www.institutopsicanalise-mg.com.br. Acesso em: 17 de set 2022.
DOM. In: Aulete Digital. 2023. Disponível em: < https://www.aulete.com.br/dom>. Acesso em: 25 maio 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, 45-66, out. 2012. Disponível em: journals.openedition.org. Acesso em: 17 de set. 2022.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva, com introdução à obra de Marcel Mauss por Claude Lévi-Strauss. Lisboa: Edições 70, 1950. (Trabalho original publicado em 1923-24).
MILLER J.-A. A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana On-line, n. 15, 1-15, 2014. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 28 de set. 2022.
SALUM, M. J. G. A psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos, agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea.  Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica), Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
SANTIAGO, A. L. Dom e oblatividade. Scilicet. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda., 2008, p. 97-100.
SARTI, M. M; COUGO, R. H. F. A; TFOUNI, L. V. O simbólico, o imaginário e o dom. Intersecções, v. 4, n. 2, 237-254, nov. 2011. Disponível em: revistas.anchieta.br/. Acesso em: 28 de set. 2022.
[1] Difere do conceito de consentimento por não operar a partir da instauração de um acordo com o campo do Outro, tendo como funcionamento a vertente do gozo (SALUM, 2009).



EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 30

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Almanaque On-line Março/2023 – Nº 30

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EDITORIAL

Patrícia Ribeiro

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência. (Leia mais)

TRILHAMENTOS
A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?

Laura Rubião

O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. (Leia mais)


 

A presença real na análise


Gilles Chatenay

A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”. (Leia mais)


 

Tem alguém aí?


Esteban Pikiewicz

O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro. (Leia mais)

ENTREVISTA
Almanaque on-line entrevista 

Margarida Elia Assad

Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. (Leia mais)

ENCONTROS
As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto

O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo. (Leia mais)


 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat

Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época. (Leia mais)


 

Modos de presença


Florencia F. C. Shanahan

A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse. (Leia mais)


 

A presença de Lacan 


Guy De Villers

O autor toma como ponto de partida o seu primeiro encontro com Lacan.  Durante o tempo em que estava dedicado à sua tese, na qual trabalhava a crítica freudiana à filosofia, ouviu Lacan contestar o coração do projeto filosófico: aquele de “tudo compreender”. Enquanto o autor encontrava no texto de Freud uma centralidade da pulsão que também verificava em sua própria experiência, reencontrou ecos disso em uma pergunta de Lacan: “Estou, será que estou presente quando falo com vocês?”. A partir dessa indagação, o autor discute o que a presença de Lacan introduz na prática da psicanálise. (Leia mais)

PRELÚDIOS
Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa 


Virgínia Carvalho

A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção. (Leia mais)


 

Uma defesa primária  


Cristina Drummond

O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo. (Leia mais)


 

O sintoma substituto  


Mônica Campos Silva

O presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo(Leia mais)


 

Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior  


Cristiana Pittella

A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana. (Leia mais)


 

Perigos e defesas: a análise finita e a infinita  


Luciana Silviano Brandão

O texto acompanha o percurso de Freud sobre o tema do final de análise tendo como referência o artigo “A análise finita e a infinita”, que trouxe desdobramentos importantes na psicanálise. No entanto, Lacan, ao postular a inexistência da relação sexual, desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica. (Leia mais) 


 

Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung 


Lucia Mello

Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa. (Leia mais)

INCURSÕES
A presença do analista na psicose ordinária  


Sérgio de Campos

Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma. (Leia mais)


 

Clínica do funcionamento: a psicose ordinária e a presença do analista  


Fernanda Otoni-Brisset

Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária? (Leia mais)


 

Os pais traumáticos, a data do trauma e a criança troumatisé


Philippe Lacadée

A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. (Leia mais)


Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise


Ondina Machado

Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? (Leia mais)


Toxicomanias◊Adixões  


Ernesto Sinatra
 

Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir. (Leia mais)


 

Um corpo de angu

Nathália Temponi Natal e Cláudia Reis 

Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e, Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro. (Leia mais)


Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes 


Sílvia Reis Soares 

A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro. (Leia mais)


O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização 


Alessandra Thomaz Rocha

O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização. (Leia mais)

 

 

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)