Supereu solúvel no álcool?[1]

Miguel Antunes
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
miguelfigueiredoantunes@gmail.com

Resumo: A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo.

Palavras-chave: imperativo categórico; imperativo de gozo; supereu.

SUPEREU SOLUBLE IN ALCOHOL?

Abstract: From the proposal “return to the classics”, made by the Center for Investigation and Research in Drug Abuse and Alcoholism, the text proposes to comment on the famous phrase “the alcoholic superego is soluble in alcohol”. For this, the concept of superego will be worked on both in Freud and in Lacan, going beyond the “heir of the Oedipus complex” towards his imperative of jouissance.

Keywords: categorical imperative; imperative of jouissance; superego.

Imagem: Renata LaguardiaA famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool” (LECOUER, 1992) é de autoria de Ernest Simmel, psicanalista que criou e fundou uma clínica em Berlim, em 1926, para tratar principalmente de alcoolistas. Vale ressaltar que ele contou com amplo apoio de Freud. Por motivos de guerra, foi preciso mudar duas vezes de país, indo para a Suíça e depois Estados Unidos. Dessa experiência inovadora temos poucas informações.

A palavra “solúvel”, nos dicionários on-line, remete à dissolução, a algo ou questão para a qual há resolução, algo que é solucionável, o que nos leva a perguntar se esse é o estatuto do supereu para a psicanálise.

Neste texto, trataremos de comentar as elaborações de Bernard Lecouer (1992) em “Porque o supereu não é solúvel no álcool”, que se encontra no livro O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo, organizado pelo Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), em 1992, reunindo os textos de uma jornada de trabalhos acerca da toxicomania orientados pela psicanálise. Destacaremos alguns pontos do texto de Lecouer para fazermos um breve percurso no tema do supereu, e, assim, discutirmos sobre a dissolução, ou não, do supereu tanto nas toxicomanias, quanto nas mais diversas apresentações clínicas.

Em um primeiro momento, essa frase não deve ser totalmente descartada: há algo no álcool que pode atenuar o mal-estar e lançar um sujeito ao agir, possibilitando-lhe atravessar a inibição que tanto o paralisa. Em “O mal-estar na civilização”, Freud (1930/1996) já havia mencionado tanto a eficácia, quanto também os danos, ao se lançar mão do recurso da intoxicação para tratar o mal-estar. E é considerando essa vertente danosa do supereu que Lacan (1953-54/1986, p. 123) o chamou de “figura feroz”, versão que interessa a este trabalho.

Começarei com uma brevíssima vinheta clínica. Após sua mãe lhe proibir de beber durante uma festa, o sujeito resolveu experimentar alguma droga industrializada e acabou perdendo o controle, tendo uma “bad trip”. Ao tentar enganar a censura materna, ele se depara com a culpa que, segundo afirma, é a origem de sua “ansiedade”. Com isto, ele começa a se dar conta de que repete a mesma cena sempre: bebe para tratar a ansiedade, mas, ao invés de aproveitar a festa, muitas vezes acaba por perdê-la. Tal ato nos faz lembrar Lacan (1969-70/1992, p. 68) quando ele diz que o gozo “começa com uma cócega e termina em labareda de gasolina”.

Parece ser essa versão superegóica que interessa em nosso cotidiano clínico, pois acarreta muito sofrimento ao sujeito e pode, ocasionalmente, levá-lo a buscar uma análise. Freud (1920/1996), em “Além do princípio do prazer”, menciona essa linha imaginária entre o prazer e o desprazer. Para o autor, após o sujeito ultrapassar o princípio do prazer, ele se depara com o desprazer marcado pelo excesso. Podemos dizer que o desprazer é exatamente o gozo que vai contra o bem-estar.

Voltando à frase de Simmel, e indo além, é possível estabelecer que ela se aproxima muito mais da possibilidade de um drible ao supereu do que sua diluição. Os casos que nos chegam aos consultórios e, principalmente, nas instituições, não se referem ao chamado uso recreativo, mas, sim, a um uso muito mais devastador, acarretando no apagamento não do supereu, mas do sujeito.

Miller (2009), em “Clinica del superyó”, afirma que o supereu instala a divisão do sujeito e insere uma lógica que não estaria de acordo com o bem, ainda mais se o confundirmos com o bem-estar. Segundo ele, o paradoxo do supereu está ligado ao apego do sujeito em relação a algo que não lhe faz bem, indo de encontro com seu bem-estar. O supereu está muito mais ligado à pulsão, ao mais de gozar. Todavia, esse gozo constitui um bem para o sujeito, na direção de um bem absoluto. Vale ressaltar a passagem de Lacan (1973/2003, p. 525) em “Televisão”, em que ele define o sujeito como “feliz”, sobretudo porque na repetição o que está em jogo é satisfação da pulsão.

O gozo é antinômico ao desejo e ao bem-estar. O desejo conduz rumo à civilização, enquanto o primeiro não conhece limites, não proporciona prazer, está evacuado do saber, sendo necessário o Nome-do-Pai para que algo desse gozo desmedido tenha chance de se coordenar. É o falo que pode temperar o gozo, porque o gozo enquanto tal, não tem medida. Para se dar conta do quão intolerável pode ser um gozo desregulado, basta ler As Memórias de um doente de nervos, de Schreber. Nessa direção, ainda com Miller (2009), podemos dizer que o supereu é uma lei absoluta articulada ao gozo, melhor dizendo, um imperativo: Goze!

Mas, antes de adentrarmos no imperativo do gozo, faremos um retorno a um grande clássico, ou seja, a Freud. Para ele, o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e sinônimo do ideal do eu. Em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914/1996) assinala a presença de um “agente psíquico especial” que funciona para alimentar o que estava determinado pelo campo do ideal, aumentando as exigências para com o eu. E alerta que não se trata de uma descoberta, mas de um reconhecimento clínico (CAMPOS, 2015).

Esse “agente psíquico especial” tem a função de vigilância e auto-observação, sendo uma voz alta e clara, falando na terceira pessoa – quando se trata de uma psicose, especialmente da paranoia –, ou de modo silencioso – no caso das neuroses, principalmente a obsessiva. Contudo, mesmo silenciosa, ela se mostra bastante eficaz, pois julga, antecipa, recrimina, etc. Enfim, trata-se de um grande tribunal instalado no pensamento dos sujeitos, em funcionamento permanente, mostrando toda a sua ferocidade. De certa maneira, podemos dizer que o supereu impulsiona o sujeito à ação para depois reclamar por punição (CAMPOS, 2015).

Retomando a proposta de comentar o texto de Lecouer, e nos distanciando da fórmula de Simmel, o autor nos diz:

a posição do bebedor é aquela de uma fundamental submissão a um apelo, de uma obediência sem pertinência a uma ordem, aquela que articula a injunção “Beba!”. O ato de beber, antes de ser um gozo, consiste em ceder às ordens de um imperativo de gozo. […] Beba, para esquecer! Enfim, beba! Mas sempre para seu bem. (LECOUER, 1992, p. 75)

E continua:

assim considerado, o supereu não é mais solúvel, ele não desaparece na solução alcóolica. O álcool torna-se, ao contrário, portador de um apelo, assegura a imanência da voz, de uma voz que governa um retorno incessante do sujeito ao mesmo, um retorno que se encarna e toma sentido numa face a face com o mesmo copo. (LECOUER, 1992, p. 75)

Na passagem acima, Lecouer nos aproxima bastante do termo “iteração”, trabalhado no seminário de Miller (2021) intitulado “O Um sozinho”, quando ele diz que na adicção bebe-se sempre o mesmo copo, sendo uma adicção à qual não se adiciona nenhum saber, em que 1 + 1 + 1 é igual a 1. Na iteração, o objeto é um fim em si mesmo, diferente da repetição, em que o objeto é um meio e há uma história, um enredo, uma cena que cristaliza o sujeito, ou seja, há a fantasia.

O ponto central que nos interessa ao trabalhar o supereu é poder ir além do herdeiro do complexo de Édipo, momento em que sua vertente reguladora se fazia mais presente. Foi com Lacan que pudemos acessar um supereu sem sentido, severo, ingovernável e destruidor que é muito mais próximo ao imperativo: Farás!

É na passagem do imperativo categórico ao imperativo de gozo que reside a figura voraz e feroz. Se o primeiro, o imperativo categórico, está ligado ao campo moral, da regulação, o segundo, o imperativo de gozo, traz a injunção ao gozo. Primeiro, vem o imperativo categórico (beber para desinibir, por exemplo), e, em seguida, opera o imperativo do gozo (punição por perder a festa). Assim, se por um lado há um imperativo que exige sacrifício, por outro, há o que impele ao masoquismo. Essa elaboração pode ser extraída de Lacan (1962/1998) quando ele trabalha o texto “Kant com Sade”.

É em Kant que Lacan localizou o imperativo categórico, em que o sujeito tenta atingir o bem e a dignidade pela virtude moral, se deparando com um impedimento ou mesmo com a censura. Já em Sade, ele se deparou com um direito ao gozo do corpo do outro. Ambos os imperativos se complementam, uma vez que levam o sujeito ao extremo, em um mais-além do bem-estar.

Mas o que faz a passagem do prazer ao seu além? O que acontece que uma simples cócega pode se tornar uma labareda de gasolina? Ou, o que faz com que o supereu não seja diluído no álcool e nem regulado?

Podemos pensar que se trata da questão da implantação da voz enquanto objeto a, pois tanto o supereu, quanto o objeto a, se impõem como modo de gozo. É extremamente comum escutarmos na clínica, e na nossa própria vida, as vozes do supereu em ação em sua vertente de duplo comando que se apresenta como dois imperativos: um que impele ao movimento e outro em vetor contrário. Se considerarmos a lei da física, o encontro da força de ambos causa uma paralisia (BARROS, 2015).

Trata-se de uma voz desincorporada, ou seja, não se trata do falar ou da entonação. Lacan atribui ao supereu um caráter de imperativo e o transforma em exigência impossível de contornar. Tal imperativo se presentifica como uma voz desencarnada, atribuída ao Outro,  não experimentada como vinda de outra pessoa, mas do Outro (ASSIS; VIEIRA, 2019). O que demonstra o caráter de objeto a da voz é o fato de ser atribuída ao Outro, por isso uma voz desincorporada. Nessa direção, o supereu lacaniano, ou o supereu como voz, incide muito mais em sua vertente de imperativo de gozo do que de imperativo moral (CORDEIRO, 2011).

Considerando a clínica da toxicomania, para não fugirmos tanto de nosso tema, ela é uma clínica do supereu (ALVARENGA, 2005) em sua vertente de gulodice. Em seu aspecto de imperativo de gozo, os toxicômanos vão em direção à ruptura fálica, o que não conduz necessariamente à forclusão do Nome-do-Pai, mas ao encontro com um gozo que desconheces limites, um gozo que pode ser destruidor e aniquilar o sujeito.

Lecouer (1992, p. 74) menciona que “o sujeito que se decide, em vão, a renunciar à bebida, não faz senão relançar, com ainda mais força, aquilo que, afinal, o empurra a beber”. Ou seja, o supereu alimenta-se da renúncia pulsional. Talvez por essa razão nos deparamos com recaídas cada vez mais devastadoras.

Em direção à conclusão, podemos dizer que a relação estabelecida com o supereu lacaniano não está ligada à identificação, mas, sim, a uma voz de comando sem corpo e sem nenhum contorno. Já o supereu freudiano é diferente, ele está ligado ao ideal do eu e ao imperativo moral e mantém uma vinculação com a identificação. Tal identificação é consequência da saída do complexo de Édipo e implica na incorporação da voz. O que Lacan desvela é “essa voz que diz ‘goza’ é o objeto a voz como presença, ou seja, a presença do Outro sob forma vocal maciça, experimentada como imperativo” (ASSIS; VIEIRA, 2011, p.274), que reclama obediência e convicção. Tal obediência é a característica mais marcante do supereu, pois trata-se de uma obediência que não deixa margem para questionamentos.

O supereu lacaniano se situa ali onde o complexo de Édipo não recobre nos termos identificatórios e normativos, atestando um certo fracasso estrutural ao Édipo. E aquilo que não é recoberto pelo complexo de Édipo, Freud, de maneira genial, já havia localizado como algo de uma instância crítica, principalmente na melancolia, em que está em jogo identificações mais primitivas e arcaicas.

Com Lacan, afirmamos que “nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (1972-73/1985, p. 11). Enfim, podemos perguntar: o supereu freudiano, aquele do casamento feliz com a garrafa, é muito diferente do supereu lacaniano, em que o que está em jogo é a ruptura com o faz-pipi?

O supereu faz jus ao ditado popular: o que não tem remédio, remediado está. E uma análise pode promover algum alívio à submissão ao imperativo do gozo, podendo promover um novo laço, um laço responsabilizado com seu desejo e seu modo de satisfação (BARROS, 2015).

Concluindo,

um problema que não tem solução não é um problema, é uma estrutura do impossível […] na psicanálise não se trata de curar a fantasia ou de tratar o supereu, como já disse Lacan, mas de atravessá-los e identificá-los como o osso de uma cura. (CAMPOS, 2015, p. 155)


Referências 
ALVARENGA, E. Do gozo do pai à melancolia. Papers del CA – Nova Epoca, n. 5, nov. 11 – 2005 Disponível em: <https://wapol.org/pt/articulos/Template.asp>. Acesso em: 22 jun. 2023.
ASSIS, G. K. O. de; VIEIRA, M. A. Supereu: a voz de um imperativo interrompido. Psicologia em Revista, v. 25, n. 1, p. 258-277, 2019. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682019000100015>. Acesso em: 22 jun. 2023.
BARROS, R. R. Prefácio. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CAMPOS, S. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CORDEIRO, N. M. O supereu: imperativo de gozo e voz. Tempo psicanalítico, v. 43, n. 2, 2011.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1996. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
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LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1962).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LECOUER, B. O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de Toxicomania, 1992.
MILLER, J.-A. Clinica del superyó. In: Conferencias Porteñas. (Tomo 1). Buenos Aires: Paidós, 2009.
MILLER, J.-A. Aparelhos da escuta, lição de 23.03.2011 do Curso “O Um sozinho”. Opção Lacaniana, n. 83, p. 54-66. São Paulo: Eolia, set. 2021.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação nas Toxicomanias e Alcoolismo em 06 de junho de 2023.



Clínica psicanalítica do delírio[1]

Laurent Dupont
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne /AMP
laurentdupont.mail@gmail.com

Resumo: Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Palavras-chave: delírio; paranoia; sublimação; narcisismo; real.

PSYCHOANALYTIC DELIRIUM CLINIC

Abstract: In the “Psychoanalytic clinic of delirium”, Laurent Dupont starts from freudian considerations about delirium in the Schreber case and, throughout the text, he proposes to read the lacanian “everybody is crazy” as an attempt to cure the real. By resuming the three stages of delirium construction, Dupont sheds light on the role of narcissism and sublimation in this process. In this sense, the Lacanian thesis of generalized delirium points, according to the author, to an attempt to bring a signifier back to the hole: “everything that man builds, invents, thinks is a way of dealing with, of compensating for this fundamental hole of not sexual intercourse”.

Keywords: delirium; paranoia; sublimation; narcissism; real.

Imagem: Renata Laguardia

 

Proponho pensar sobre esta questão a partir de duas declarações, sendo a primeira de Freud (1911/1996, p. 78): “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”; e a outra, de Lacan (1978/2010, p. 31): “todo o mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Assim, é possível para nós entendermos o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura; mas curar o quê?

Freud (1911/1996, p. 78) propõe uma construção do delírio em três etapas. Primeiro, a ideia de uma catástrofe universal, um processo que é realizado de forma silenciosa, deixando o sujeito impossibilitado de dizer algo. Vamos falar de perplexidade, sideração. Nenhum significante vem nomear esse colapso, o surgimento de um furo. Segundo tempo freudiano: a libido se desprende de pessoas ou coisas antes amadas (FREUD, 1911/1996, p. 79), deixando o sujeito em uma solidão radical. Esse desprendimento é o sinal de uma frouxidão tanto do imaginário quanto do simbólico: o silêncio da pulsão torna-se ensurdecedor, deixando o sujeito fora de tudo. A terceira etapa pode ocorrer no instante exato da segunda: reinvestimento da libido nos objetos de amor anteriores, mas sob a forma de um delírio. Esta é a tentativa de cura:

O que chama tão ruidosamente a nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão, e traz de volta a libido para as pessoas que ele havia abandonado. Na paranoia este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna do lado de fora. (FREUD, 1911/1996, p. 79)

Lacan formula esse ponto da seguinte forma: o que está foracluído do simbólico, do exterior, retorna no próprio corpo do sujeito. O delírio é, portanto, uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo, uma tentativa de localizar o gozo; seja desesperada, vã ou eficaz, ela é sempre uma tentativa de cura.

Querer, portanto, como é proposto hoje na psiquiatria, erradicar o delírio, ou que o sujeito o critique, significa suprimir a única tentativa de solução que o sujeito consegue estabelecer.

O que fazer com um delírio?

Freud não sustenta o delírio, ele o analisa, ele o segue ao pé da letra e identifica seus detalhes. De fato, um sujeito só pode delirar a partir dos significantes dos quais ele dispõe. O delírio, como o sonho ou o desenho na criança, está lá para produzir significantes, significantes da língua do sujeito. “Porca” é o significante a partir do qual Lacan pode construir o caso, seu surgimento testemunha que é este e não um outro. Há, de uma forma ou de outra, uma espécie de escolha do sujeito, uma redução ao núcleo de uma cifração mínima do inconsciente a céu aberto.

Seguir o delírio ao pé da letra, ou seja, lê-lo sem se deter no sentido que se desprende, leva Freud a formular algumas hipóteses: todas as construções, “as engenhosas erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião – a hierarquia de Deus, […] podemos avaliar, retrospectivamente a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido” (FREUD, 1911/1996, p. 80).

No delírio, pode haver uma tentativa de cura através de uma forma de sublimação. Isso está relacionado com o fato de que, por causa do desinvestimento da libido nas pessoas amadas, o retorno a elas é feito de início pelo eu do sujeito: “a libido liberada vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste” (FREUD, 1911/1996, p. 79) e visa à amplificação desse eu condenado ao caos.

Lacan fala nesse delírio de grandeza, da função de exceção que visa a ocorrência do delírio no caso do Presidente Schreber. Há, portanto, uma localização feita por Freud de uma colagem, ao mesmo tempo uma tentativa de cura por um reforço do narcisismo e o recurso a uma forma de sublimação, ambos se sobrepõem, soldados um ao outro: numa tentativa de colocar em forma o que Lacan nomeia de o sinthoma em Joyce: escabelo.

Freud (1911/1996, p. 83) também argumenta que “podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento que busca devolver a libido a seus objetos”. Assim, Freud mostra três tempos no estabelecimento do delírio: 1) colapso do mundo, deixando o sujeito fora do sentido, silencioso, sem recurso possível tanto em relação ao simbólico quanto ao imaginário. 2) Fase de agitação alucinatória, “o que é abolido retorna do exterior”. 3) O delírio é uma tentativa de cura na medida em que tenta restaurar o sentido e permitir o reinvestimento nos objetos. E Freud acrescenta essa frase de uma atualidade fulgurante: “Mas é essa tentativa de cura que os observadores consideram ser a própria doença”. Muito pouco mudou hoje em relação a essa observação, o delírio é visto menos como uma tentativa de cura do que como uma produção a se erradicar.

O delírio testemunha um colapso do imaginário e do recurso ao significante S1, sozinho, não ligado a um S2, como tentativa de lidar com o que retorna no corpo Um que deixa o sujeito desamparado. Mas esse significante S1 frequentemente não fornece ao sujeito nenhum significado em relação àquilo que acontece com ele, ao contrário, ele é o traço do furo radical de qualquer sujeito confrontado com o real. A elaboração delirante é, portanto, neste momento, uma tentativa de remendar o desenlace imaginário. Algumas vezes, esta solução pode operar uma nomeação, como em Joyce.

Foi em 1978, em seu último ensino, que Lacan (1978/2010, p. 31) formulou: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que não há nada além de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”.  Se a metáfora paterna é responsável pela relação do sujeito com o Outro e por sua alienação ou não, a partir do Seminário XI, Lacan traz à tona, com o objeto a, a questão sob o ângulo da separação, da extração. Seja em relação ao S1 sozinho, falha de significantização do gozo, seja de defesa contra o real. Nos dirá Jacques-Alain Miller (1990): retorno de gozo para o lugar do Outro na paranoia, retorno de gozo generalizado no nível do corpo na esquizofrenia, o retorno do gozo, localizado, mas deslocado no corpo como Outro no fenômeno psicossomático.

O delírio generalizado seria uma defesa contra o real. Quanto mais Lacan avança em seu ensino, mais ele apresenta essa noção de que tudo é sonho, tudo é delírio, tudo é semblante. Em relação a quê? Em relação à relação sexual que não existe, que não se inscreve, que não pode se inscrever. Nada é pré-estabelecido, nada é programado para permitir o encontro. Lacan (1978, p. 8) dirá que a psicanálise, nesse sentido, é em si mesma um delírio: “A psicanálise não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, ela só pode estar à espera, a esperar por isso. É um delírio – um delírio que se espera que comporte uma ciência”. Lacan vai dizer que o objeto a é um semblante, que o amor é um semblante, que a verdade é uma mentira… tudo isso em relação a esse real que não é nem apreensível pelo imaginário, nem pelo simbólico.

Tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar esse furo fundamental da não relação sexual. Lacan (1972-73/2008, p. 149) chega ao ponto de dizer que “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalangue”. A própria linguagem é um delírio. Assim, o sujeito, na imaturidade de seu nascimento, nesse momento em que se trata apenas de uma substância gozante, experimenta de forma radical a ausência de um programa, de relação com o Outro nesse primeiro encontro com o significante, mordida do significante no corpo, marca que deixa um traço indelével, marca Um, essa que Jacques-Alain Miller (2011) diz em O Ser e o Um: “É o Um do significante”. Este Um é apagado pela ação da linguagem que faz emergir o ser. Em “Joyce, o Sinthoma”, Lacan (1975/2003, p. 561) diz desta forma: “A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”. O ser também é um semblante, o ser também é um delírio, uma elucubração sobre esse traço inicial, esse traumatismo inicial de lalangue, e é esta a marca, o traço da existência do sujeito, o qual itera. Isto é trans-estrutural. Todos são delirantes porque a partir desta marca, esta mordida no corpo pelo Um do significante, cada sujeito será elaborado, elucidado, construído. Essa marca, esse encontro inicial, é impossível de dizer porque o real não pode ser dito, só pode ser definido, unicamente com base na lógica, no equívoco, no que se itera no sujeito. É por isso que os testemunhos de passe não dizem o real, como tal eles são ficções, contam como cada um, um a um, tem sido capaz de desconstruir suas ficções, suas identificações, sua relação com o objeto, em suma, seus delírios. Isso é o que permitiu a Jacques-Alain Miller dizer que, tendo sido o passe feito uma vez, todos os escabelos foram queimados, restam os escabelos do passe: a ultrapassagem.[2] Recordo essa definição de escabelo por Jacques-Alain Miller (2016): aquilo em que se sobe para se fazer bonito e para se tornar belo, para se empurrar para cima, o cruzamento do narcisismo e da sublimação. Aqui vemos ressurgir os dois pontos de referência freudianos, o narcisismo e a sublimação, no que concerne a Schreber.

O delírio universal seria, portanto, uma tentativa de cura diante do real, do furo trans-estrutural da não relação sexual.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Giselle Moreira

Referências
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Ornicar?, n. 14, 1978.
LACAN, J. Joyce, o Sinthoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978). 
MILLER, J.-A. Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: WARTEL, R. et al. Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 87-97.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. L’être et l’Un, enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 16 mars 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: www.congressoamp2016.com/uploads/ Acesso em: 18 jan. 2023.
[1] Publicado originalmente em francês em L’hebdo–Blog, n. 136, em 6 de maio de 2018. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/clinique-psychanalytique-delire/
[2] No original: l’outrepasse.



O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio[1] 

Dominique Laurent
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
laurent.dominique@wanadoo.fr

Resumo: A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. 

Palavras-chave: norma; lei; psicose, neurose, sinthoma; psicose ordinária.

THE ORDINARY OF JOUISSANCE, FOUNDATION OF THE NEW CLINIC OF DELIRIUM

 Abstract: The neurotic norm is a false evidence imposed on the history of patriarchy. Norms are said in the plural, they proliferate, while the law is said in the singular. It is necessary to understand that the paternal metaphor is never fully realized, in order to go beyond the binary neurosis and psychosis. The concept of sinthome, in this sense, constituted an advance in the “unclassifiable” clinic, that is, in the clinic of ordinary psychosis. 

Keywords: norm; law; psychosis; neurosis, sinthome; ordinary psychosis.

Imagem: Renata Laguardia

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996 em seu seminário, inaugura, dizia ele, “a era lacaniana da psicanálise”, a “da errância, a dos não-tolos erram, a daqueles que são mais ou menos tolos do pai, mais ou menos tolos do Outro” (MILLER, 2005, p. 10-11).

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais como um todo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever em Gaia ciência que “Deus está morto”, já não estaria inscrevendo essa questão? Houve, entretanto, ideais que foram resistentes e puderam assentar de modo decisivo a função paterna, um dos detentores do título do Outro. Isso é tão verdadeiro que na psicanálise “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante que o Outro existe” (MILLER, 2005, p. 10). Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho de sua desconstrução e de sua pluralização no equívoco dos não-tolos erram. Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de basta. Não há mais necessidade de ninguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente se tornou louca. 

Crença e loucura

A função paterna se apresenta daqui para frente como o avesso do mestre, sob a forma depreciada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia para todos, para assegurar a satisfação de seus desejos e lhes devotando um amor igual. O verdadeiro Outro, ao qual se recorre como garantia, é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica para aquele que encarna a função de pai como se comportar, mas ela autoriza e reconhece, de modo inédito, estilos de vida outrora condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai tem conduzido os movimentos de reivindicação e de luta das mulheres, dos gays e lésbicas para registros diversos cujo último, depois do mariage pour tous,[2] diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber um filho por P.M.A.[3] 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para-além do pai. O bom uso da função do significante-mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não seja fora-da-lei. O discurso do direito, ao assegurar a promoção do direito à diferença, pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito com o gozo? Em outras palavras, a identificação a um significante-mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não se resolve apenas na prática sexual, o sintoma verifica isso, mesmo que o parceiro sexual seja ocasionalmente o parceiro sintoma do sujeito.

A norma neurótica, construída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan dava a entender em Os complexos familiares,[4] a neurose é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva tomado em uma relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs em um momento da história do patriarcado. Sem dúvida Lacan falava de um momento remoto. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, elas são falantes. A lei se diz no singular, ela pode, para Lacan, se reduzir aos comandos da fala segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também as que são majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo pelo qual se vive a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não é única. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas P.M.A., o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais casais ou não, encarregados de família ou não. O combate pela emancipação feminista em relação à ordem simbólica tradicional, seguido pela noção de gender, que tenta reduzir a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida até os queer que, confrontados a uma fuga de identificações, se prendem a modos de gozar cada vez mais singulares.

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma, isto é, do parceiro gozo.

Do patriarcado ao parceiro gozo 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal em sua composição e recomposição, assim como as da parentalidade. Mais ainda, estamos sendo confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, pelo retorno por artifício ao casamento funesto da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um regime novo, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado dos estilos de vida. O valor social atrelado a um ou a outro varia segundo o preço atribuído pela civilização ao ideal e ao objeto a. Não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem em seu modo de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil acreditar que elas sejam ainda a norma. 

Os tipos de sintomas e os imperativos de gozo 

Lacan apreendeu o sintoma em sua dimensão singular, isto é, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, já que ele remete sempre ao um a um. Essa perspectiva do sintoma é, entretanto, correlativa de uma outra, a do sintoma apreendido pela estrutura. Em “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan (1973/2003) coloca a questão sobre os tipos de sintomas como a clínica os isolou antes da psicanálise, pelo olhar da particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade desses tipos como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não respondem ao nominalismo da contingência, mas ao realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são então identificáveis pelo “imperativo de gozo”. A Zwangneurose deve ser generalizada para além daquilo que a neurose obsessiva permite perceber.

Essa questão do gozo está em primeiro plano no caso freudiano do Homem dos Lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, dedicou a ele todo um seminário de DEA.[5] É com esse caso que Freud introduz pela primeira vez o termo Verwerfung, rejeição à castração, que é acompanhado, ao mesmo tempo, de um reconhecimento da castração. Para Lacan, como observa J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado assim: “como formular uma coexistência da Verwerfung e do reconhecimento da realidade?” (MILLER, 1987-88, p. 11). J.-A. Miller situa em primeiro lugar a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele nomeia “forclusão como mecanismo simbólico” (LACAN, 1954/1998, p. 388-89). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento linguageiro significante – e não um sentido – que é subtraído do circuito”. É um elemento “que faz sentir seus efeitos somente por sua ausência, e que mobiliza muitas significações em torno dela, sem que essas significações cheguem a alcançar esse próprio significante” (MILLER, 1987-88, p. 16).

A forclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não põe em questão toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar na assunção […] da função paterna, mas sobre a função da castração” (MILLER, 1987-88, p. 21). A forclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956 com a “Questão preliminar…” (LACAN, 1957-58/1998). A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica numa forclusão do Nome-do-Pai?

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são interrogadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Assim que um menos se dirige ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito se desestabiliza. É o que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se esse falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (MILLER, 1987-88, p.40).

A paranoia e a clínica universal do delírio

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a forclusão generalizada vem evidenciar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente reabsorvido pela mortificação significante e que, a esse respeito, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que ali onde está o gozo, e não simplesmente o joui-sens[6] fálico, é a língua em seu conjunto que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se faz com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se imobilizam dependem do sinthoma e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthoma tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas de procurar em cada caso a singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

O conceito de sinthoma constituiu um avanço considerável para compreender uma clínica confusa, “inclassificável”, e aquela que chamamos desde a Conversação de Arcachon de clínica da psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, a ênfase dada por Lacan ao impacto do dizer sobre o corpo antes da entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade […] é a mesma coisa” (LACAN, 1975-76/2007, p. 52). Lacan havia mostrado desde o estádio do espelho a paranoia constitutiva do sujeito em seu imaginário em relação ao outro e elaborou os diferentes tratamentos desta paranoia constitutiva. Ele chega a concluir com a teoria dos nós que a psicose paranoica consiste em que o sujeito amarre a três, em uma continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros traz o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1964/1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S(Ⱥ).

O impacto do dizer no corpo, antes de qualquer entrada em cena do olhar no estádio do espelho, depende do troumatisme.[7] Ele é apreendido a partir do furo, da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como fazendo furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamava de “clínica universal do delírio aquela que toma seu ponto de partida disso, que todos nossos discursos são apenas defesas contra o real” (MILLER, 1996, p. 90). A fórmula “todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31) remete à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que concerne a sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso subverte as diferenças feitas até então entre neurose e psicose.

Para concluir, não é excessivo dizer que, com a declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico para se defender do real não é mais a norma mesmo que haja sempre pais e mães em torno dos quais o discurso se apega mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, a esse respeito, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello

Referências
MILLER, J.-A. O Homem dos Lobos. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eólia, 1987-88.
MILLER, J.-A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32
LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. (Texto original publicado em 1954).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).
LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original redigido em 1973).
 
[1]Texto publicado originalmente na revista La Cause du Désir, n. 98, p. 26-30, 2018.
[2] Lei de 17 de maio de 2013 que abre às pessoas do mesmo sexo, residindo na França, a possibilidade de se casarem.
[3] Procriação Medicamente Assistida.
[4] Cf. LACAN, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987.
[5] Cf. AFLALO, A. Réévaluation du cas de l’Homme aux loups. La Cause freudienne, n. 43, 1999, p. 85-117.
[6] N.T.: Jogo de palavras valendo-se da homofonia entre joui-sens, “sentido gozado”, e jouissance, “gozo”.
[7] N.T.: Jogo de palavras com trou, “furo”, e traumatisme, “traumatismo”.



“Folitiquement” incorreto[1],[2]

Pascale Fari
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne/AMP
pfaripsy@gmail.com

Resumo: O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Palavras-chave: loucura; doença mental; delírio.

“FOLITIQUEMENT” INCORRECT

Abstract: The signifier “madness” is no longer admissible in psychiatry. Psychism has been erased, the qualifier “mental” has become an uncomfortable relic and what remains is simply “the disease”. Faced with the current master suffix, neuro, what is essential is no longer what the patient has to say, but that he swallows it. The brain is the primary object of this disease, the machine is its original model. It is psychoanalysis that, by sustaining the dimension of subjectivity, constitutes the greatest obstacle to reducing madness to an organic disturbance.

Keywords: craziness; mental disease; delirium.

Imagem: Renata Laguardia

Talvez, um dia, se saberá melhor o que pode ser a loucura.
(FOUCAULT, 1964/2002)

Referimo-nos  à psiquiatria transformada numa questão para todos.
(LACAN, 1964/2003)

A cena se desenvolve em um setor de psiquiatria adulta na região parisiense. O caso de um paciente esquizofrênico que vai particularmente mal é abordado em reunião. A discussão está animada, rica de vinhetas clínicas trazidas por todos. Durante a conversação, eu digo: “Ele está completamente louco nesse momento”. Silêncio incomodado, todos olham para frente. Após um tempo de pausa, a conversação recomeça sobre outra coisa, como se nada tivesse acontecido. Um colega psiquiatra me explicará: “Não se pode mais falar de loucura, isso não se diz mais”. É verdade.

Investigação sobre um apagamento 

Eu já sabia, há muito tempo, que o termo doença mental tinha suplantado o termo loucura; que inúmeros loucos se encontram na rua ou na prisão; etc. Mas eu descobri lá, entretanto, o que é o corolário lógico disso: a loucura não é mais admissível em psiquiatria. O significante ele mesmo se tornou tabu. Silenciosamente obliterado. Politicamente incorreto.

Sempre excluídos, os loucos tinham um lugar no discurso psiquiátrico e no hospício. A exclusão lhes conferia um lugar. Lidaríamos, a partir daí, com a negação – até mesmo a forclusão – da loucura? Estamos nesse desenlaçamento antecipado por Michel Foucault (FOUCAULT, 1964/2002, 1973-74/2006), no qual a loucura e a doença mental terminam por se separar? À força de reduzir a doença mental à uma afecção orgânica chegou-se a “pasteurizar o hospital psiquiátrico” sem mais aí encontrar a loucura?

O silêncio embaraçado de meus colegas testemunha, apesar de tudo essa presença ainda quente de um real que não encontra mais como se nomear? O que é exatamente esse apagamento? O que é que o tornou possível? Quais são as consequências disso?

Engolir a doença (mental) 

Não se fundamentando senão por dados quantitativos, o cientificismo estuda sua distribuição “sem referência a nenhum conteúdo significativo ou absoluto” (MILLER, 2004, p. 8).  Nessa “ditadura da média”, a ideologia da objetividade das cifras se alimenta da vacuidade de sua significação. Nesse reino de quantificação desenfreada, joga-se uma cumplicidade implacável entre as exigências econômicas da Administração e a psiquiatria organicista, entre o Um gestor e o Um bioquímico ou neuronal.

Uma vez o psiquismo apagado, o qualificativo “mental” se torna uma relíquia incômoda; permanece “a doença”, simplesmente. Assim, se indica ao paciente que a “esquizofrenia é como o diabetes, é uma doença crônica”; detalha-se para ele os sintomas (todos deficitários); único recurso, tomar cuidadosamente todos os seus medicamentos para impedir a inevitável progressão do mal. O essencial não é o que o paciente teria a dizer, mas sim que ele engula a coisa. Às “velhas leis” [do hospital] (FOUCAULT, 1975/2002, p. 288): “Você não se mexerá, não gritará”, acrescentou-se esta: “Você engolirá” (neurolépticos, refeições, cuidados, explicações…). E Foucault (1975/2002, p. 289) conclui: “entre a loucura que não se quer mais e a cura que dificilmente se espera, [o] ‘bom doente’ [é] aquele que come bem”.

No entanto, atualmente a forma que toma a cifra quando ocupa o psíquico é o “significante-mestre, o sufixo-mestre, é neuro-” (MILLER, 2018). O cérebro é seu objeto primordial, a máquina é seu modelo original.

O homem-máquina: o “reset” do eletrochoque 

O imaginário contemporâneo comporta uma “identificação à máquina”, nós tratamos ou gostamos de “ser tratados como uma máquina”, continua Jacques-Alain Miller. A língua está impregnada disso – acionada, encarnada, “estar no clima” disso ou daquilo…, robotizada, superexcitada, etc.

Eis o que esclarece a volta surpreendente do eletrochoque: “Neurologia: mudança a respeito do eletrochoque”;[3] “Psiquiatria: a incrível revanche dos eletrochoques”;[4] “A sismoterapia é particularmente brilhante contra a depressão severa”.[5] 

Rebatizada “sismoterapia” ou “eletroconvulsivoterapia” (ECT), trata-se sempre de uma crise convulsiva provocada pela passagem de uma corrente elétrica no cérebro – entre 50 e 200 V (até 350 V), para uma intensidade de 50 a 800 mA. Mencionemos aqui que o custo dos eletrochoques é elevado, é um ato que “dá lucro”, principalmente às clínicas privadas.

Um novo padrão se impõe (GUELFI, ROUILLON, 2017, p. 660; SZEKELY; POULET, 2012), que promete o ECT como “o tratamento o mais eficaz da depressão severa”. Atualmente é admitido (senão preconizado) recorrer a ele logo de início (ao passo seu uso se limitava anteriormente aos casos resistentes à quimioterapia e que apresentem um risco vital). As indicações não esquecem ninguém (mulheres, grávidas, crianças, terceira idade). Se bem que “não consensuais”, elas se multiplicam em todas as direções, da primeira descompensação esquizofrênica até a adição à internet dos adolescentes…

Incrível, mas verdadeiro, poucos estudos tratam dos danos cerebrais causados pelos eletrochoques; grande parte desses estudos são antigos e insuficientes (SACKEIM et al., 2007). Em 2007, o primeiro estudo de envergadura conclui pela persistência de problemas cognitivos (memória, aprendizagem, pensamento).

Quanto ao mecanismo de ação, mistério… Alguns contam com “camundongos modificados geneticamente” por serem verdadeiramente deprimidos! As hipóteses são abundantes, evocam uma espécie de branle-bas de combat[6] para interromper as principais perturbações induzidas pela descarga elétrica. Sem se confessar explicitamente, o modelo que emerge dessas conjecturas se parece com a função reset de uma máquina.

Um problema, entretanto: a “taxa de recaída […] importante e precoce” após um tratamento de ECT (oito a doze sessões por algumas semanas). Pouco importa, os tratamentos “de manutenção” ou “de controle” são recomendados – ainda o modelo da máquina – para prevenir uma recidiva. Dentro de pouco tempo a adição aos eletrochoques?

… à lier[7]

A exacerbação da violência em psiquiatria ultrapassa a prática dos eletrochoques. Ela se deve precisamente a esse apagamento da loucura em proveito da saúde mental, aquela que “não tem outra definição senão a da ordem pública. Trata-se sempre do uso, do bom uso da força” (MILLER, 1999, p. 14). Negando a subjetividade, em nada querer saber do que os pacientes têm a dizer, nesses “confins onde a palavra se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos” nos advertia Lacan (LACAN, 1954/1998, p. 376).

Nada surpreendente, portanto, a inflação imoderada das medidas coercitivas (hospitalizações forçadas, isolamento, contenção). Em 2015, aproximadamente um quarto das hospitalizações foram feitas sem o consentimento de 100.000 pacientes concernidos (FAVEREAU, 2017),[8] ou seja, duas vezes mais que há dez anos. Surpreendente contraste com a ambição da Lei de 5 de julho 2011, que esperava limitar o recurso à força e garantir os direitos dos pacientes! O filme de Raymund Depardon, 12 dias, mostra isso de maneira de pungente: os pacientes são convidados a se expressar, mas a entrevista com o juiz encarregado de avaliar a medida, focalizada sobre a legalidade do procedimento, reduz sua palavra a uma casca vazia. Deste mal-entendido absoluto, o não-encontro redobra a alienação.

Da mesma maneira, a colocação em quarto de isolamento e a utilização das amarras de contenção vão crescendo, manifestando às vezes uma certa imprecisão entre cuidado e sanção disciplinar; para Geneviève Hazan, responsável pelo controle geral dos locais de privação de liberdade, as causas disso são múltiplas: a redução dos efetivos, a falta de formação das equipes…, mas também a amplificação mediatizada “de acontecimentos dramáticos, mas excepcionais” (CGLPL, 2016, p. 80).

Ora, a periculosidade, a passagem ao ato imprevisível, não é justamente o que resta (ou o que faz retorno) da loucura amarrada, negada, privada de subjetividade, extraída de toda psicopatologia? Do Daech[9] a Trump passando pelos fatos diversos, espelho de aumento disto que ameaça o laço social, a violência bruta, incontrolável, que angustia e fascina. “A loucura só existe em uma sociedade”, indicava Foucault, ela não existe fora das formas que a isolam, a excluem ou a capturam. Assim, o binário razão/não razão que servia para discriminar a loucura parece ter sido substituída por aquele da segurança/violência. “Cada cultura, afinal de contas, tem a loucura que merece” (FOUCAULT, 1961/2002, p. 150).

Eu “psychote”, tu “psychotes”… todo mundo delira 

Mas a dissolução do par razão/não razão tem igualmente outros motivos muito sérios: todo mundo delira, e a partir de agora todo mundo sabe disso. Não se surpreende mais que, na rua, todos falem sozinhos – com ou sem telefone –, é uma simples questão de modalidades de aparelhagem com o Outro.

A coisa passou para a língua. É claro, Le vocabulaire pours tous, de Berscherelle, confirma como “tabu” o termo “louco”, substituído pelo intolerável “doente mental”; essa modificação da terminologia médica data do século XX, conforme o Dictionnaire historique de la langue française das Edições Robert. Por outro lado, “delirar” e “delirante” são completamente banalizados. Last but not least, “psychoter” fez sua entrada oficial no Petit Robert em 2013, depois no Larousse em 2015. “Parano”, “schizo”, circulam. Esses novos usos, deslocados, provocadores, irônicos, levam uma parte da carga de real associada a seu emprego original.

Eles atestam, entretanto, também uma perturbação profunda. Com a decadência do Nome-do-Pai, o “todo”, garantia de uma organização estável, não tem mais utilidade ou lugar, mostra J.-A. Miller. Não se crê mais nas classes. As distribuições estanques são totalitárias e ultrapassadas. O DSM aninhou-se assim na crise das classificações que afetavam a nosografia psiquiátrica (MILLER, 2011, 2017).

Da mesma forma, na segunda clínica de Lacan, a perspectiva do sinthoma “é a versão lacaniana de […] fragmentação das entidades clínicas no DSM. Não se trata da mesma fragmentação, mas é o mesmo movimento de desestruturação das entidades”, observa ainda J.-A. Miller. O enunciado Todo mundo é louco, proferido em seu tempo por Lacan, chama uma nova clínica, na qual o “sintoma se torna uma unidade elementar”.

A psicanálise não é um humanismo

Não esqueçamos que o DSM foi concebido não somente para negar a dimensão psíquica, mas também para combater a psicanálise (BERCHERIE, 2010, p. 635-640). Esse combate permanece eminentemente atual. Assim, financiado por dois laboratórios farmacêuticos, uma pesquisa sobre a “imagem da esquizofrenia” (L’ObSoCo, 2015) na imprensa se descobre ser um cavalo de Tróia para incriminar a psicanálise. Os argumentos são misteriosos. Os adeptos da organicidade têm, entretanto, razão sobre um ponto: a psicanálise carrega a dimensão da subjetividade e constitui um obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Nessa configuração, protestos humanistas e voos literários são vãos. Face ao rolo compressor dos negativistas que se recusam a ouvir aqueles de quem deveriam cuidar, afiemos nossos conceitos e nossa clínica.

Há a loucura do mundo, há aquela que habita nossa abjeção a mais íntima e há a patologia psiquiátrica. Nós não temos saudade das classes perdidas. Mas nós sabemos que apagar ou negar as diferenças redobra a exclusão. Não negar a loucura é também abordar com rigor o real da psicose como tal.

De cada um, nós temos a aprender seu uso incomparável da língua, sua irredutibilidade absoluta, sua estranheza. A nos ligar às variações qualitativas do heterógeno, sem fascinação, sem romantismo, sem complacência.

Tradução: Tereza Cristina Côrtes Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira

Referências 
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[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, n. 98, p. 50-54, 2018. 50-54. Disponível em: www.cairn.info.
[2] N.T.: Título em francês: Folitiquement incorrect. Optamos por conservar o neologismo Folitiquement em referência à palavra francesa folie (“loucura”), mantendo o jogo de palavras da autora com a expressão “politicamente incorreto”.
[3] Cf.: CABUT, S. Neurologie: volte-face sur l’életrochoc. Le Monde, 18 nov. 2018. Disponível em: www.lemonde.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[4] Cf.: MALYE, F. ; VINCENT, J. ; LAGRANGE, C. Psychiatrie: l’incroyable revanche des életrochocs. Le Point, 25 ago. 2015. Disponível em: www.lepoint.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[5] Cf.: SZAPIRO-MANOUKIAN, N. La sismothérapie fait des étincelles contre la dépression sévère. Le Figaro, 27 nov. 2015. Disponível em: sante.lefigaro.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[6] A expressão “branle-bas de combat” remete a uma grande agitação durante os preparativos de uma operação ou uma ação, frequentemente realizada em uma emergência de maneira desordenada e barulhenta. Cf.: La Langue Française. Disponível em: www.lalanguefrancaise.com.
[7] A expressão francesa “fou à lier” tem o significado de “loucura” ou “doença mental”.
[8] N.A.: Conferir também o relatório publicado pelo L’Institut de recherche et documentation en économie de la santé (Irdes): COLDEFY, M.; FERNANDES, S.; LAPALUS, D. Les soins sans consentement en psychiatrie. Questions d´économie de la Santé, n. 222, fev. 2017. Disponível em: www.irdes.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[9] Uma das siglas, considerada como tendo conotação negativa, para o Estado Islâmico.



Todo mundo é louco[1]

Frederico Zeymer Feu de Carvalho
Psicanalista, A.P. da Escola Brasileira de Psicanálise AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. 

Palavras-chave: loucura; psicose; delírio; discurso analítico.

EVERYONE IS CRAZY

Abstract: Explanation text of the Lacanian aphorism “everyone is crazy”, theme of the 2024 Congress of the World Association of Psychoanalysis, highlighting its enunciation context, linked to the impossible to teach, and Lacan’s last teaching, of which this aphorism is a compass. 

Keywords: craziness; psychosis; delirium; analytical speech.

Imagem: Renata Laguardia

1.
A frase “todo mundo é louco” é um aforismo criado por Lacan no ano de 1978. Ele pode ser tomado como um “condensado do seu ultimíssimo ensino”, conforme proposto por J.-A. Miller (2007-2008/2015, p. 309). Está sob a égide e o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à não garantia do Outro concernindo, portanto, à linguagem como tal. Esse aspecto recobre duas proposições negativas de Lacan: “não há Outro do Outro” e “não há metalinguagem”, proposições equivalentes entre si, que refletem tanto a incompletude do simbólico quanto a inconsistência de um sistema lógico, tal como abordado pela tradição lógico-filosófica do século XX. O segundo aspecto é a intraduzibilidade do gozo. Esse aspecto não concerne ao sistema da língua, tomado em si mesmo e por si mesmo, mas à falta de um significante no Outro para nomear ou referir o gozo, conforme o “princípio da indeterminação da tradução” de Quine (1951), segundo o qual haverá sempre inadequação entre a palavra e a coisa, o sentido e a referência.

No ensino clássico de Lacan, S(Ⱥ) designa, primordialmente, a incompletude e a inconsistência do Outro que está no fundamento da ordem simbólica, sendo então designado como “significante de uma falta no Outro” (LACAN, 1960/1998, p. 832), cujo correlato é $, o sujeito recoberto pela barra devido à falta de um significante que o represente, mas aludindo também àquilo que o Nome-do-Pai não é capaz de nomear.

No ultimíssimo ensino de Lacan, esse que começa, segundo a periodização proposta por Miller, no capítulo nono do Seminário 23, S(Ⱥ) se torna o “furo no real”. Ou seja, passamos da incompletude e inconsistência do simbólico a um furo no real. Lacan se refere a esse matema como o “verdadeiro furo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 130), remetendo ao troumatisme (em francês, trou significa um “buraco”), ao traumatismo da incidência do gozo fora do sentido que afeta o falasser, para além, portanto, da falta inerente ao simbólico que afeta o sujeito. No traçado dos nós, esse furo é localizado fora do registro simbólico, na medida em que não há o Outro do simbólico, e na conjunção entre o Imaginário e o Real, demarcando a opacidade do imaginário. Talvez a única proposição possível para esse furo no real seja uma outra proposição negativa: não há proporção sexual (Il n’a pas de rapport sexuel). Estamos, portanto, confrontados com a presença desse furo no real, com esse troumatisme, para além da falta ou limite do simbólico. Esse traumatismo é o que se apresenta no acontecimento de corpo que marca a incidência do gozo como fora do sentido.

Essas considerações nos remetem à questão enigmática por excelência, “que queres” (che vuoi), mas na medida em que ela permanece sem resposta. Para além da dialética do desejo que caracteriza o ensino clássico de Lacan, segundo a qual o desejo é sempre desejo de desejo, tal questão nos remete ao gozo como fora de sentido. Se pudéssemos localizar o furo no real, talvez seja justamente nessa inadequação do gozo, na medida em que o gozo do falasser não se articula ao Outro, diferentemente do que a falta ligada à castração permite articular na dialética do desejo, na medida em que o neurótico é aquele que “faz de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia da função do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 56). Desde esse ponto de vista, a loucura de todo mundo, ordinária, que se refere ao falasser, seria mais próxima de um parafuso a mais que permanece solto ou desarticulado do que de um parafuso a menos que faltaria no universo dos parafusos.

2.

Como proposição, “Todo mundo é louco” é um paradoxo, ou seja, não tem estatuto lógico, assim como a célebre frase de Epimênides, “todo cretense é mentiroso”, dita por um cretense (MILLER, 2022). O paradoxo consiste em que ambas as proposições só poderiam ser ditas ou de um ponto de vista transcendental, um ponto de vista fora do conjunto de todos os mentirosos cretenses ou de todos os loucos, lugar de exceção que desmente a proposição universal, ou de um ponto de vista imanente, ou seja, de um ponto de vista particular de quem é designado mentiroso ou louco, só podendo ser dita por um indivíduo do conjunto, ou seja, por um mentiroso ou por um desarrazoado, sem ter alcance universal.

Como um aforismo da prática analítica, por sua vez, a frase “todo mundo é louco” equivale a uma generalização decorrente da incidência de uma experiência enigmática de gozo conotada por um S1, uma marca de gozo, ao qual se liga um S2, ou seja, um saber, e à disjunção entre eles.

Se postulamos, com esse aforismo, a igualdade fundamental do falasser, é porque esse S1, como tal, é fora-de-sentido; como consequência, o S2, que busca engendrar algum sentido a essa experiência sem sentido, será necessariamente delirante. Passamos então do operador de perplexidade, S1, ao saber delirante, S2 (MILLER, 2007-2008/2015).

É a essa experiência primária do gozo que se refere o matema S(Ⱥ) no ultimíssimo ensino de Lacan. Não há resposta para o enigma endereçado ao Outro em relação a essa experiência. Ela se impõe ao ser falante a partir de uma dupla certeza: isso quer dizer alguma coisa e isso concerne a mim, visto que essa experiência é um acontecimento que concerne ao meu corpo; mas não se sabe o quê isso quer dizer, engendrando, assim, o trabalho inconsciente de cifração.

A certeza concerne, portanto, ao real, e não ao simbólico. Ela pode ser formulada nesses termos: há gozo ou há do gozo. Mas, quando essa certeza se estende ao campo da linguagem, entramos no delírio.

Duas vias se colocam a partir daí, duas formas de se arranjar com esse furo no real. A primeira delas consiste em atribuir um sentido retroativo a essa marca de gozo, S1, a partir do saber inconsciente, S2, no sentido de um trabalho de interpretação do inconsciente em torno do desejo do Outro, ou seja, levando em conta um laço com o Outro. Mas como o Outro é barrado, esse saber conserva seu caráter delirante. Freud chamou essa significação retroativa de naträglicha posteriori, chamando a atenção para seu caráter ficcional e falacioso. De fato, se a fantasia é uma resposta do real a essa experiência enigmática de gozo, ela não deixa de levar em conta um laço com o Outro por intermédio da extração do objeto a, ao qual o neurótico se consagra, ao transportar para o Outro a função desse objeto sob a forma da Demanda do Outro, $ <> D, como Lacan desenvolve em seu Seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-63/2005).

Essa via demonstra o limite do teste de realidade como uma barreira para o delírio. Miller aborda esse ponto a partir do texto freudiano “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (FREUD, 1911/1969). Freud diz, nesse texto, que a passagem do princípio do prazer ao princípio de realidade não afeta o inconsciente como tal e que o princípio de realidade é, na verdade, uma continuação do princípio do prazer sob novas condições. Em outras palavras, a renúncia ao princípio do prazer, que é soberano (há gozo), só é possível por intermédio de um ganho de prazer, de uma compensação, de uma infiltração da fantasia no campo da realidade, o que mostra que o gozo, como tal, é impossível de negativizar.

A segunda via do falasser para se arranjar com o furo no real refere-se à busca de uma significação da experiência enigmática fora do laço com o Outro, sem o apoio no Outro ou desacreditando o Outro, no sentido da Unglauben, da descrença. Essa possibilidade pode se dar de diferentes maneiras. O saber pode assumir a forma de um delírio extraordinário, de uma auto elaboração da experiência enigmática de gozo, como vemos em Schreber, ou de uma manipulação da língua, como vemos em Joyce, ou seja, a partir de uma invenção que não está no cardápio do Outro. Ambos se utilizam do material da própria língua para criar uma nova língua, particular, que remodela o Outro, em lugar de fazer um laço com ele.

Nesse sentido, podemos dizer ainda que a ironia esquizofrênica, como uma outra maneira de fazer frente ao furo no real, toma partido de S(Ⱥ), na forma de uma crítica feroz do Outro, sem remendá-lo, e sem que, necessariamente, esse furo no real seja tamponado pelo delírio.

Ao considerar essas duas vias, a via da neurose e a via da psicose, tomamos a afirmação genérica “todo mundo é louco” de uma forma restrita, o que permite dizer que a psicose, ao contrário da loucura, não é para todo mundo. Provisoriamente, podemos concluir, então, que todo mundo é louco antes de ser ou não psicótico.

A experiência universal do delírio (continuísta) se concilia, assim, com o realismo clínico da estrutura (descontinuísta). Em outros termos, o aforismo “todo mundo é louco” concerne mais a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica, do que a uma orientação clínica, no sentido da sua estratégia e da direção do tratamento.

3.

Se o contexto geral do aforismo “todo mundo é louco” pertence ao ultimíssimo ensino de Lacan, seu contexto específico pode ser localizado no ano de 1978. Miller solicita a Lacan que ele intervenha, a partir de um escrito, em favor do Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Universidade de Vincennes). Esse texto ficou conhecido com o título “Lacan a favor de Vincennes” e foi publicado em português no número 65 da Revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise.

Esse contexto específico leva em consideração as questões sobre o ensino da psicanálise, não só na universidade. Ele aborda, em primeiro lugar, a diferença entre o discurso do analista e o discurso da universidade, mas também as dificuldades de ensino da psicanálise se levarmos em consideração a estrutura do próprio discurso analítico, uma vez que o agenciamento desse discurso exclui o saber exposto da psicanálise. Como ensinar então o que não se ensina?

Nesse texto, a frase “todo mundo é louco” é acompanhada da explicitação “isto é, delirante”, que a complementa. A frase que se segue é a seguinte: “é isso mesmo que se demonstra no primeiro passo rumo ao ensino”. Ou seja, como afirma Miller (2022), afirmar que todo mundo delira é a condição de todo ensino. Trata-se de uma “crítica feroz à função do ensino” (MILLER, 2022, p. 11), forma da ironia analítica que não deixa de remeter à ironia esquizofrênica. A frase refere-se, portanto, ao impossível inerente ao ofício de ensinar qualquer coisa, ao impossível de educar, como dizia Freud, e não à clínica propriamente dita e ao impossível próprio do discurso analítico.

Pelo contrário, podemos dizer que é justamente por conceber que há um impossível em jogo, ou seja, por se orientar pelo real, que a prática analítica não é apenas um delírio. Pois nada pode fazer frente ao delírio senão o real, e não a razão ou a crença.

Isso não quer dizer que a prática analítica nada tenha a ver com o saber. Mas trata-se de um saber suposto e não de um saber exposto que se ensine ou que se aplique como uma técnica. No discurso do analista, o saber é sous-posé, sub-posto ao objeto a, seu agente (a/S2). Esse saber suposto é um saber deslocalizado e contingencial. Não sabemos quando ou de onde ele pode emergir, mas ele é suposto advir da transferência. Ele é também disjunto de S1 (S2 // S1), o significante mestre do inconsciente. O que isso quer dizer?

Trata-se, justamente, da emergência de um novo saber, disjunto da cadeia significante (S1 – S2) que subsiste no inconsciente como automaton (repetição do mesmo); de um saber que não engendra um novo sentido, mais um saber-fazer com o S1 isolado pela experiência analítica como marca de gozo. Esse saber disjunto, fruto da experiência analítica, de nada serve para outro analisante. Por isso não pode ser ensinado. Ele é limitado por seu alcance singular e pragmático. Mesmo que ele seja uma espécie de ficção ou de invenção, como acontece frequentemente na psicose, esse limite singular e pragmático é também um limite ao delírio. Mas podemos dizer que esse S2, oriundo da prática analítica, é um saber que concerne a um real e ao embate com o fora-do-sentido.

4.

É possível evocar, ainda, o contexto contemporâneo desse aforismo, ou seja, o imperativo da despatologização. Miller (2022, p. 10) observa que Lacan não diz “todo mundo é normal”, mas “todo mundo é louco”, o que convém mais a um apagamento dos limites entre normalidade e loucura do que a uma despatologização generalizada. Todo mundo é louco à sua maneira.

A despatologização, ao contrário, vista como um imperativo contemporâneo, supõe, por detrás da “reivindicação democrática de uma igualdade fundamental dos cidadãos” (MILLER, 2022, p. 9), a conversão de uma patologia a um modo identitário ligado a um determinado estilo de vida. O estilo de vida viria, assim, no lugar de uma designação clínica. O fim da clínica, que podemos ver no horizonte dessa reivindicação, busca também o fim de toda hierarquia fundamentada no saber, isto é, de toda assimetria na relação entre médico ou profissional psi e paciente.

Mas, ser nomeado por um estilo de vida pode ser tão alienante quanto uma nomeação diagnóstica – em relação à qual a psicanálise sempre se pautou por uma reserva, em especial em sua oposição ao DSM e a favor do respeito à singularidade –, embora a despatologização, seja, ao menos aparentemente, menos segregativa.

Essa reivindicação se estende ao campo jurídico, afirmando-se a partir do direito ao próprio corpo e à nomeação de si mesmo, como na frase autodeclarativa “eu sou o que eu digo que eu sou”, forma contemporânea do cogito ergo sum (“penso, logo existo”) de Descartes, que reafirma a soberania do Eu, ficando o médico ou o psi, apesar de algumas ressalvas da lei, sob a autoridade do paciente.

Em relação a essa autodeclaração, podemos formular a questão: o que é uma autoridade clínica? Recorro aqui a uma expressão conhecida de Carlo Viganò para se referir ao saber contingente que advém da experiência analítica, mesmo dentro de uma instituição. A autoridade clínica não é o saber do especialista; tampouco aquilo que o paciente pode dizer de si mesmo, mas o que se impõe por si mesmo na medida em que, como diz Lacan, “isso fala”.

5.

Por fim, gostaria de me referir à conferência feita por Pascale Fari, membro da Escola da Causa Freudiana de Paris, pronunciada na cidade de Rosário, em uma atividade preparatória da XXIII Jornada da Escola de Orientação Lacaniana, em outubro de 2022. Essa conferência parte de uma formulação de Miller durante a Conversação de Antibes, em torno das psicoses ordinárias: “falar é um transtorno de linguagem” (BATISTA; LAIA, 2012, p. 250), que se articula à frase dita por Lacan, em 1978.

De fato, a frase “todo mundo é louco” pode ser tomada em um sentido banal. Somos todos loucos na medida em que falamos a torto e a direito, em uma fuga desenfreada do sentido, sem nos preocuparmos se o que falamos existe ou não. A ideia de que “falar é um transtorno de linguagem” enfatiza, por sua vez, mais as repercussões e ressonâncias da linguagem no corpo, o fato de que padecemos da linguagem que falamos.

Isso é evidente, por exemplo, em relação à injúria. Mas todo delírio está ligado, de alguma forma, a uma significação íntima. Um elemento, um significante qualquer, de repente se destaca do conjunto articulado da linguagem e se absolutiza, torna-se louco, no sentido de um significante primordial que pode, até mesmo, ressignificar todo o conjunto da língua, como acontece com Schreber.

Lacan chamou de lalíngua a existência da língua fora do laço social e que subsiste à normalização da linguagem pelo discurso. “Lalíngua encarna esse núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana” (FARI, 2023, s/p). Sendo assim, podemos dizer que não existe A Língua, que a língua é uma multiplicidade inconsistente, e que só existem línguas particulares, efetivamente faladas, mutantes e vivas, como uma ficção gramaticalmente ordenada por regras de uso, mas cuja significação íntima não pode ser compartilhada. É o laço social que normaliza o sentido, isto é, os desvios de lalíngua, introduzindo uma rotina, uma pragmática de seu uso no mar dos mal-entendidos.

O que especifica o esquizofrênico, diz Lacan, é o fato de habitar a língua sem a ajuda dos discursos estabelecidos. É o que revela um paciente que se inquieta pelo fato de se sentir excluído do grupo de colegas na escola: “Eu me dirijo a eles, fazendo uma pergunta. Eles podem até me responder, mas isso não desencadeia nenhuma conversa”. Ele deseja entrar no laço social, mas é como se não tivesse a senha de acesso, e isso o angustia a ponto de se sentir um objeto estranho, não admitido nos agrupamentos sociais, por não compartilhar do mesmo regime de crenças, ou melhor, pela dificuldade em fazer semblante social com a linguagem.

Essa dificuldade típica da psicose é inerente a todo ato de tomar a palavra. Não quando se fala pelos cotovelos, como se diz, seguindo o moinho das palavras, mas quando o uso da palavra exige que se diga “eu” como sujeito da enunciação. Uma paciente, ao retornar para uma segunda entrevista, começou a sessão exatamente com essa pergunta essencial: “quem fala?”. A paciente se refere “a quem cabe tomar a palavra em uma sessão analítica?”. Certamente, há uma proliferação de vozes que falam em nós e que serão decantadas no decorrer de uma análise; mas essa pergunta, “quem fala?”, não deixa de evocar a emergência de um sujeito no moinho das palavras, seja quando se faz um ato falho ou um Witz, seja para operar o corte veiculado por um ato de enunciação.

Ao tomar a palavra, o falasser corre sempre o risco de se desconectar do Outro, por falar a mais ou a menos, por se mostrar inadequado, por expor uma forma de satisfação sintomática, enfim, uma forma particular de recortar e usar a linguagem e de usufruí-la como sua lalíngua. O corpo goza em silêncio, mas é com as marcas de gozo fixado em um acontecimento de corpo que se fala.

Não sem razão, o ato de tomar a palavra está na raiz de muitas formas de desencadeamento da psicose. Se falar é um transtorno de linguagem, podemos dizer que ele também é uma espécie de acontecimento de corpo que atualiza o seu trauma. De certa forma, sempre falamos sozinhos, desde o lugar em que se está fora do sistema da língua.

O discurso analítico é, nesse sentido, uma nova forma de laço social que permite acolher um sujeito a partir desse lugar de enunciação em que somos estranhos à linguagem, em sua inigualável singularidade, para além de um modo de vida identitário e de nossa alienação ao Outro. Nesse sentido, o discurso analítico é um laço social inusitado, destinado a desnudar nossa relação íntima com a língua, isolando seus pontos de ancoragem no corpo, seus S1s, a fim de que o analisante possa se virar com isso de uma outra maneira. Mas não é isso, precisamente, um delírio? A reconstrução de um saber a partir de seus elementos díspares, não simbólicos e intraduzíveis?


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LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
[1] Seminário pronunciado no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em março de 2023, em torno do tema do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que terá lugar em Paris, no ano de 2024.



Editorial – Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

Giselle Moreira

Imagem: Renata Laguardia

 

Caros leitores,

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir que, nesse caso, de perto ninguém é normal[1]: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).

O universal se coloca no centro da nossa temática, mas seria essa orientação um falso universal a ser lido à luz da lógica do não-todo, ou seja, do um a um?

Abrimos a revista com Trilhamentos, rubrica composta por textos que traçam uma orientação epistêmica para essas questões. De início, contamos com a aula inaugural, proferida por Sérgio Laia, que abriu as atividades do IPSM-MG neste último semestre. Seu texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, ao passo que localiza como a fraturada Ordem do Mundo por ele experimentada se realiza, em nossos dias, para todos.

Na sequência, Frederico Feu desdobra, passo a passo, como a clínica universal do delírio está sob o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa a falta de um significante na linguagem capaz de nomear o gozo. A partir desse ponto, o autor lê o aforismo “todo mundo é louco” como concernente a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica. Dominique Laurent localiza que a norma neurótica, constituída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo, mas que hoje as normas se multiplicam. A autora pondera que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, o que leva a uma “subversão” das diferenças feitas até então entre neurose e psicose. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma que constitui um avanço em uma clínica do inclassificável. O texto de Pascale Fari advém de uma discussão de caso em uma instituição e parte do silêncio embaraçado da equipe após a sua intervenção: “Ele está completamente louco nesse momento”. Fari interpreta esse silêncio localizando que a “loucura” não era mais admissível, nem mesmo no discurso psiquiátrico. O significante se tornara um tabu e, portanto, a autora se interroga quais seriam as consequências desse apagamento da loucura. Finalizando Trilhamentos, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o “todo mundo é louco” lacaniano como uma tentativa de cura diante do real: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Na rubrica Encontros, Francesca Biagi Chai opera uma oposição entre o que nomeia ser uma “despatologização selvagem”, que desconhece a loucura, e a “despatologização lacaniana”. Despatologizar, no sentido lacaniano, não consistiria em aplanar a clínica, mas, ao contrário, em dar ao gozo o seu valor, na medida em que ele sempre possa ser interrogado. Após o texto de Francesca, segue a conversação que ocorreu entre a autora, Jacques-Alain Miller, La Sagna e Anaëlle. Por sua vez, Philippe La Sagna irá abordar as consequências da crise do DSM-V e o advento do sistema RDoC, projeto norte-americano que visa formalizar um novo sistema diagnóstico que alinha suas classificações às descobertas em genômica e neurociências. Ao texto também segue a conversação, desta vez entre o autor, Hervé Castanet e Angèle Terrier

Como uma novidade, a partir desta edição a Almanaque On-line contará com a rubrica Pólis, destinada a, eventualmente, divulgar artigos concernentes às questões éticas e políticas que se impõem às instituições psicanalíticas a serviço do discurso analítico. Inaugurando essa proposta, contamos com a conferência proferida por Jésus Santiago no IPSM-MG na qual ele parte da ideia de que o princípio de orientação de uma prática institucional dedicada à formação do analista é o mesmo da prática clínica: trata-se do princípio de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência. Portanto, nos alerta sobre o risco de se assumir um viés especulativo e de incorporar de forma apressada os significantes-mestres que circulam como resposta ao mal-estar da civilização. Jésus encerra sua fala diferenciando a Escola em relação ao Instituto, ao passo que sustenta, para ambos, a “ética das consequências” em contraposição a uma “ética da boa intenção”.

O entrevistado desta edição é Sérgio de Campos, que nos traz direcionamentos sobre a política e a clínica das psicoses, após recente publicação dos dois volumes de seu livro Investigações lacanianas sobre a psicose. A partir das questões a ele endereçadas, Sérgio localiza como a despatologização – sob uma ótica que espera que todo mundo possa ser normal – serve também para recobrir a experiência da segregação. No que toca à clínica das psicoses, recomenda a prudência e localiza como a prática da “ajuda-contra” tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio sem a pretensão de erradicá-lo. Por fim, o paradigma da esquizofrenia é abordado para lançar luz à ética irônica que permeia a clínica universal do delírio: “há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo”.

Na rubrica Prelúdios, dedicada a publicar os textos advindos das 59ª Lições Introdutórias, podemos percorrer o trabalho de uma leitura lacaniana e milleriana em torno dos fundamentos clínicos de Freud. Aqui, as autoras recorrem a vinhetas clínicas e, assim, conferem atualidade aos textos freudianos que lhes servem de base para as apresentações. Iniciando a rubrica, Paula Pimenta propõe uma interlocução entre o texto freudiano “O método psicanalítico”, de 1905, e as conferências de Miller de título homônimo proferidas em Curitiba em 1987, apresentando pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. O texto de Cristiana Pittella sustenta vivamente a questão: o que é um psicanalista? A autora trata do ato de leitura em jogo na interpretação analítica, assim como do trabalho de reescrita que compete ao analisante. Márcia Mezêncio aborda questões relacionadas ao começo de uma análise e, em um movimento de detalhar a técnica, esclarece a ética concernente à prática analítica. Renata Mendonça faz, em seu texto, um percurso sobre a transferência, destacando que “o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento”. Lúcia Melo remete os três verbos que dão título ao texto freudiano – “Lembrar, repetir, perlaborar” – aos conceitos fundamentais formalizados por Lacan no Seminário 11, em uma leitura permeada pelas três consistências: Simbólico, Imaginário, Real. Kátia Mariás percorre o caminho do sentido dos sintomas à satisfação, trajeto que revela a íntima conexão entre gozo e defesa. Finalizando a rubrica, Luciana Silviano Brandão retoma a noção freudiana de “verdade histórica” para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana – a reminiscência e a rememoração – e, assim, faz avançar questões pertinentes à alucinação.

Em Incursões, apresentamos os trabalhos dos núcleos de nossa Seção Clínica. Sérgio de Castro apresenta, com clareza, elementos da primeira clínica de Lacan, em que se destaca o ordenamento simbólico sustentado pelo Nome-do-Pai. É, então, a partir das mutações desse ordenamento e do advento de uma “ordem de ferro”, que Castro irá indicar questões relativas à “norma psicótica” em sua extensão contemporânea. Alexandra Glaze pondera que se, por um lado, sempre houve algo de delirante nos assuntos familiares, por outro, recorta uma especificidade atual: um delírio ligado a um imaginário desenfreado. Considerando as modificações da ordem familiar, a autora faz uma aposta clínica: “construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço”. Em consonância, Tereza Facury demarca qual o lugar da criança numa organização social atravessada por normas que se ampliam com a progressão da ciência, e coloca a questão de saber como nós psicanalistas responderemos, então, à segregação trazida à ordem do dia como efeito da universalização. Suzana Barroso trata sobre a repercussão do último ensino de Lacan, condensado no aforismo “todo mundo é louco”, para a clínica da psicose infantil. A partir de uma vinheta clínica, a autora demarca orientações para uma prática que priorize intervenções destinadas a promover alguma negativização do gozo, para que se possibilite o laço social. Encerrando essa rubrica, Miguel Antunes aborda a clínica da toxicomania, transformando a famosa frase “o supereu alcoólico é solúvel no álcool” em interrogação. Para desdobrar essa questão, o autor fará um percurso sobre a noção de supereu de Freud a Lacan, destacando, para além de sua face reguladora, sua vertente voraz e de imperativo de gozo.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise. Paulo Rocha faz avançar aspectos pertinentes à clínica da neurose obsessiva e sua “falsa normalidade” a partir do texto literário O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, obra que também foi adaptada para o cinema. Edwiges Neves localiza mudanças que se verificam na prática analítica no que concerne à transferência e coloca como pergunta se a psicose ordinária poderia ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea. Fechando os textos que compõem esta edição da Almanaque, Laydiane de Matos aborda o conceito de dom na obra do antropólogo Marcel Mauss, articulando à noção de objeto em Freud e Lacan, para tratar a função do assentimento no que concerne à hiância entre o gozo e a lei do Outro. A autora, por fim, abre a questão sobre como podemos ler os modos de subjetividade nos tempos atuais em que o assentimento se declina, o Outro não existe e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos ofertados.

Esta edição foi composta com as belas imagens cedidas pelas artistas Sofia Nabuco e Renata Laguardia, que não apenas ilustram, mas reverberam algo entre os textos, a quem muito agradecemos.

Renata Laguárdia vive e trabalha em São Paulo. É graduada em Artes Visuais com habilitação em pintura pela UFMG e tem mestrado na École Européenne Supérieure de l’Image. Já participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Renata faz formação em psicanálise no Corpo Freudiano, em São Paulo.

https://www.instagram.com/renatalaguardiaxavier/

Sofia Nabuco é técnica em Artes Visuais, ilustradora e tatuadora. Residente da capital mineira há 10 anos, trabalha com aquarela e ilustrações digitais. Tem publicações nas revistas Laudelinas e OuroCanibal, além dos livros Aleatórias, em coautoria com Constança Guimarães, e O passeio da Larissa, de Diogo Rufatto.

https://www.sofianabuco.com/

Por fim, agradecemos aos autores que contribuíram com esta edição e à equipe de publicação, pela alegre parceria e pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos.

Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos!


Referência
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978)
[1] Referência à música “Vaca Profana”, composição de Caetano Veloso



A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo

Paulo Henrique Assunção Rocha
Formado em Filosofia (UFMG) e em Teatro (CEFART/Palácio das Artes)
Aluno do Curso de Formação em Psicanálise do IPSM-MG
paulohassuncao@gmail.com

Resumo: No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. 

Palavras-chave: O Cheiro do Ralo; literatura; psicanálise; neurose obsessiva.

THE OBSESSIONAL NEUROSIS SURROUNDING THE SMELL OF THE DRAIN 

Abstract: In the novel O Cheiro do Ralo (in literal translation: “The Smell of the Drain”), written by Lourenço Mutarelli, a nameless man, owner of a pawn shop, starts to become haunted by the fetid smell that escapes the bathroom’s drain at his shop, while also becoming obsessed with a lady’s ass, a lady who works in the cafeteria he attends daily. It is from this plot that we intend to approach significant aspects of the obsessional neurosis, such as its debt position towards the father, the serial objects, the relationship between the gaze and the anal object, the repetition, as well as the postponement and the metonymic slide of compulsive thoughts. 

Keywords: O Cheiro do Ralo; literature; psychoanalysis; obsessional neurosis.

 

Imagem: Renata Laguardia

É notório o campo aberto por Freud na aproximação entre literatura e psicanálise, no interior da qual uma das suas perspectivas mais importantes se dá pela possibilidade de que o texto literário possa nutrir o campo psicanalítico. Lacan também constantemente utilizou-se de obras literárias e artísticas para, segundo ele, “tomar a lição” (LACAN, 1973-74, aula de 09/04/1974, tradução nossa, s/p).

O romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, parece assim ser uma obra instigante para examinar a questão da neurose obsessiva, como a posição em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição cerimonial, o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos e o desejo postergado.

Narrado todo em primeira pessoa, o protagonista do livro de Mutarelli, que não tem seu nome invocado em nenhum momento do romance, é dono de uma pequena loja de objetos usados. As pessoas que vão até o seu empreendimento estão sempre em condições financeiras deploráveis e de extrema necessidade, oferecendo muitas vezes mercadorias singelas, que o personagem principal faz questão não apenas de comprar pelo menor preço, mas também de insultar quem as vende. É a partir do momento em que é afetado pelo cheiro que sai do seu banheiro, da aquisição de um olho de vidro vendido por um cliente e da obsessão com as nádegas da atendente da lanchonete, que ele tem seu previsível cotidiano perturbado. Esses três objetos – o ralo, o olho e a bunda – são os pontos em torno dos quais o protagonista gira por toda a trama e que buscaremos desdobrar em nossa análise.

Grande parte do romance se passa no empreendimento do protagonista, para o qual diversos clientes se dirigem para penhorar uma série de artefatos, que podem ser de um violino, livros e vinis raros a objetos valiosos, mas frequentemente são apetrechos sem nenhum valor. Mais do que ser um colecionador, o personagem central busca retirar, por meio dos “objetos”, a dignidade de seus “clientes”, incitando uma posição de dúvida e aviltamento, oferecendo mais dinheiro por coisas banais ou uma miséria por artefatos valiosos. Procura constantemente humilhá-los ao ouvir suas histórias de vida e da relação deles com esses objetos que levam para vender, e assim tentar arrancar sempre mais através dessa negociação um a um, procedimento que parece enaltecer seu narcisismo e buscar aniquilação desse outro.

Você nunca me deu nada.

Eu sempre paguei.

É. Tudo o que eu tinha eu vendi para o senhor.

Eu pedi para você me vender?

Não. Pedir não pediu.

Então por que vendeu?

Porque eu precisava.

Não. Vendeu porque quis.

Foi ou não foi?

Foi.

Então diga, eu vendi porque quis.

Eu vendi porque eu quis.

Muito bem. (MUTARELLI, 2011, p. 96)

Nessa coleção de objetos e nas injúrias do narrador, uma série se forma e vai se deslocando, como aquilo que Lacan caracterizou como uma “metonímia permanente” do sintoma obsessivo (LACAN, 1960-61/2010). Romildo do Rêgo Barros (2015, p. 46) definiu como, na neurose obsessiva, “o sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões”. Já não importa mais para o protagonista quais são as bugigangas vendidas, as histórias que as pessoas contam, as humilhações que provoca, tudo se torna apenas uma infinita e interminável lista de coisas a serem adquiridas.

No momento em que começa a ter problemas com o cheiro horrível que exala do ralo no banheiro do trabalho, algo que acontece já na primeira página do romance, o protagonista tem sua falsa normalidade abalada. Desse incômodo constante com o ralo e do receio do cheiro ser associado a ele (“Só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”), algo em sua vida passa a falhar, a sair do rumo ordinário que tentou construir e manter.

Aqui cheira a merda.

É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo.

Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro?

Eu.

Quem mais?

Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta: E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 16)

É Lacan quem magistralmente vai revelar sobre a “evacuação da merda”, afirmando que “o homem é o único animal para quem isso apresenta um problema, mas prodigioso” (LACAN, 1967-68/2006, p. 74). Isso fica evidente para a neurose obsessiva, cuja relação sádico-anal é apontada por Freud (1926/1996) em Inibições, sintomas e ansiedade como essencial para entender a escolha dessa neurose pelo sujeito. A regressão da pulsão ocorre por meio de um conflito psíquico e da ambivalência, na qual as ideias contraditórias sucedem-se e anulam-se. Além disso, se, no estágio anal, a possibilidade de dar ou não algo ao Outro é apenas uma possibilidade, para o obsessivo o imperativo de dar tudo ao Outro é levado às últimas consequências. Se sentir “um merda” ganha equivalência com a merda com a qual o obsessivo metrifica o outro. Lacan afirma que o “tudo para o outro” do obsessivo é “a perpétua vertigem da destruição do outro, ele nunca faz o bastante para que o outro se mantenha na existência” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255). Segundo Miller (1986, p. 140, tradução nossa) em H²O, há muito tempo os psicanalistas já haviam notado a afinidade do caráter obsessivo com “a vertente do erotismo anal, o espirito da economia e até mesmo da avareza”.

Esse ímpeto de destruir o Outro, ao mesmo tempo em que lhe dá enorme consistência, estabelece uma peculiar estratégia de rebaixamento dos seus pequenos outros. É justamente essa a maneira como o protagonista de O Cheiro do Ralo lida com todos que o cercam, demonstrando uma incapacidade ímpar para estabelecer vínculos afetivos. É curioso que comece a se importar com os outros, seus semelhantes, somente na medida em que concebe incomodá-lo com o próprio cheiro. Talvez não estejamos tão distantes de Lacan quando ele diz que “A civilização, lembrei lá como premissa, é o esgoto” (LACAN, 1971/2003, p. 15). É na sua não capacidade de acobertar o que tem de mais íntimo, o que faz no âmbito privado (“o banheirinho”), que nosso protagonista passa a se envergonhar com o olhar e a expectativa alheia: “Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim” (MUTARELLI, 2011, p. 9).

O que se segue são inúmeras e desesperadas tentativas de tamponar o ralo, ele chega mesmo a retirar o vaso e concretar o buraco, tentando assim aniquilar o que lhe assombra. Sua reação acaba por levar a um entupimento do cano do escritório e a um aumento ainda maior do cheiro insuportável. A tentativa obsessiva de tamponar o furo acaba por entupi-lo com a própria merda, a merda do seu ser, ou, como diz Lacan (1960-61/2010), seu ser de merda.

Refaz então o buraco e passa a se deitar para aspirar o vapor que sai dele: “Rastejo até o banheirinho. Tiro a toalha do ralo. Cheiro, cheiro, cheiro…” (MUTARELLI, 2011, p. 122). Há claramente um gozo nisso, seu corpo goza com essa ação de agachar e inalar compulsivamente o vapor do ralo, algo proibido, excessivo e que deve ser feito apenas escondido, longe dos olhares de todos. É nessa ação sem sentido, que faz envergonhado e solitariamente, que parece, enfim, se reconhecer:

Deitado de bruços, inalo. Trago. Para ele o ralo sou eu. Observo, atento, o buraco. Nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo. Só há o escuro que sou. E isso é tudo o que me resta para amar. (MUTARELLI, 2011, p. 176)

Podemos notar também nas ações do protagonista de obstruir e reabrir o ralo que, mais que agir, o que ele faz é um enorme esforço para desfazer o que foi feito, um contra-ato que mantém tudo imutável. Há nisso uma similaridade com o procedimento de anulação de um evento, denominado como “mágico” por Freud (1926/1996, p. 120):

Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas bifásicos, nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram.

O segundo ponto de inflexão no romance se dá quando um homem chega ao escritório e oferece ao protagonista um olho de vidro. Ele fica fascinado e chega mesmo a estabelecer uma equivalência entre o olho e as nádegas tão desejadas da funcionária da lanchonete: “Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.” (MUTARELLI, 2011, p. 36). Por isso, já não é capaz mais de negociar, pagando um alto preço pelo objeto desejado. O olho passa a ser um objeto que traz sempre no bolso, levando-o para ver a bunda da atendente, deixando-o em cima de sua mesa de trabalho, assistindo TV, conversando com ele. Passa a mostrar para os clientes e outras pessoas, dizendo: “Era do meu pai” (MUTARELLI, 2011, p. 37). O olho começa a ver pelo narrador, a ser seu companheiro, sendo levado a todos os lugares em que ele vai e, cada vez que fala sobre ele, inventa e aumenta a história do olho paterno, dando enorme densidade a esse Outro. É exatamente como na neurose obsessiva, cuja questão é a relação com o objeto olhar, e não o pai. Miller (apud SIRIOT, 2020, s/p), em seu ensino inédito O Ser e o Um, afirma: “O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”. E, ainda sobre a função escópica, Cristiane Barreto (2017, s/p) ressalta que:

O neurótico obsessivo, em dívida, sem o ‘bolso’ do psicótico para carregar seus objetos seriados, faliciza-os e os carrega na fantasia, fixa-se onde a fantasia encontra satisfação, ou, ao invés de fixar, poder-se-ia dizer, com Schejtman, que o sujeito adormece onde encontra satisfação na fantasia. Esse mecanismo pode ser relacionado com o lugar que o escópico ocupa para o sujeito obsessivo, a potência (ilusória) atribuída ao lugar do Outro, dessa forma, o olhar ganha uma dimensão de gozo proporcional à consistência atribuída ao Outro, que, permanece em sua censura perene.

Adiante no romance, quando ao protagonista é oferecida a prótese de uma perna, compra-a sem hesitar. Decide, então, montar um pai:

Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que, com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse. Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez. Eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou. Ele nunca me viu. Eu só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto. Não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites. Ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara. Nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança. Não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez, ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein. (MUTARELLI, 2011, p. 141)

Desde Freud e o caso do Homem dos Ratos é destacada a centralidade da questão paterna na neurose obsessiva. Gazzola (2002, p. 42), em seu comentário sobre o pai de Ernst Lanze, enfatiza que, nesse caso, “é um pai que não termina nunca de morrer”, e que “esse pai volta sempre, como um fantasma, para assombrar o sujeito, quando se trata de gozar”. Em O Cheiro do Ralo acompanhamos, através do olho de vidro e da perna protética, não a tentativa de criar um novo pai para se servir dele, mas um pai que “imaginou” e que, como o personagem, nem nome tem, nada sabe, nada transmitiu, é apenas um esboço de pai advindo de objetos comprados.

A bunda é outro objeto em torno do qual o romance e o protagonista giram. O personagem se vê perdidamente apaixonado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta todos os dias. Com a desculpa de ir ver a bunda, passa a consumir todos os dias um hambúrguer (X-Tudo), o que piora ainda mais seus problemas intestinais e consequentemente o cheiro ruim do ralo.

Ao se deparar com a garçonete, é incapaz de compreender seu nome e reter seu rosto, não se interessa por nada mais além de sua bunda. Chega a nomeá-la de Rosebud, em alusão ao trenó, grande mistério de Cidadão Kane de Orson Welles, e que guarda curiosa homofonia com o objeto desejado pelo protagonista. Suas investidas na garçonete levam a uma obsessão: sonha com a bunda, alucina, ensaia diversas maneiras de enfim possuir esse objeto. A garçonete também está interessada, mas a inabilidade social do protagonista o leva sempre a adiar o encontro e, mais do que isso, sua obsessão com a bunda destrói a própria possibilidade de que o encontro aconteça, tornando-o impossível. No seu constante cálculo dos objetos e das relações, há o receio de que, fora das suas fantasias previsíveis, essa satisfação irá ser corrompida: “Mas, se eu for, estrago tudo. Depois vem as cobranças. Eu sei. Mulher é tudo igual. Não adianta você ser sincero. Elas sempre querem mais. E aí logo mandam o convite pra gráfica” (MUTARELLI, 2011, p. 36). O personagem só é capaz de imaginar a possibilidade de uma relação mediada pela relação mercantil: “Se começar dessa forma, ela virá com as cobranças. E eu prefiro pagar para ver”. Como Lacan afirma no Seminário 6 (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), para o neurótico obsessivo trata-se de manter o desejo como instituído na sua impossibilidade: “É sempre para amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo”.

Após uma série de desencontros, a garota da lanchonete consente em agir conforme a fantasia do narrador, aceita fazer como ele quer, ser paga para mostrar sua bunda. Ela vai ao seu trabalho e, diante dele, abaixa as calças e exibe a bunda. Ele caminha até ela e chora copiosamente agarrado às nádegas.

A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível. Essa bunda era, enquanto impossível, enquanto alheia, o contraponto do ralo. Mas o que eu realmente buscava não estava ali. Tampouco em outro lugar. O que eu buscava era só a busca. Era só o buscar. E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço. Só o vazio. Só a certeza do incerto. Agora é preciso encontrar algo novo, de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais. Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não. O mentiroso sou eu. (MUTARELLI, 2011, p. 171)

O objeto antes tão precioso, ao ser confrontado degrada-se rapidamente e vira nada: “E, assim, mais uma coisa a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na sala ao lado” (MUTARELLI, 2011, p. 173).

É também aqui que se articula a questão entre os objetos olhar e anal, ou entre o ideal e a merda. O obsessivo reveste o objeto anal falicamente e também o encobre com o olhar. O “olhar envelopa a merda” (BARRETO, 2017, s/p), fazendo do objeto malcheiroso uma preciosidade, como o personagem faz com o ralo, o olho e a bunda. Mesmo assim, mesmo quando ele parecia ter tudo o que queria, não havia mais nada ali para ele desejar: “Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu” (MUTARELLI, 2011, p. 179).

O verdadeiro estatuto do desejo na neurose obsessiva, diz Lacan (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), é que “o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente aí, no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado: ‘seu desejo’. Onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí que ele está”. 


Referências
BARRETO, C. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. 2017. (Inédito).
BARROS, R. do R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926).
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 6: Le désir et son interprétation. (Trabalho original proferido em 1958-59). (Inédito).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Trabalho original proferido em 1973-74). (Inédito).
LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Trabalho original publicado em 1971).
LACAN, J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. (Trabalho original publicado em 1967-68).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. (Trabalho original publicado em 1960-61).
MILLER, J.-A. H²O. In: Matemas II. Buenos Aires: Manantial, 1986.
MUTARELLI, L. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SIRIOT, M. O gozo feminino: uma orientação em direção ao real. In: XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Boletim Infamiliar. 2020. Disponível em: www.encontrobrasileiro2020.com.br/ o-gozo-feminino-uma-orientacao-em-direcao-ao-real. Acesso em: 30 set. 2022.



Entrevista com Sérgio de Campos

Sérgio de Campos
A.M. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/A.M.P.
sergiodecampos@uol.com.br

Imagem: Sofia Nabuco

Almanaque On-Line: No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização. Considerando a tendência atual que aponta para a ausência de patologias e, em seu lugar, apenas estilos de vida e, ainda, a exigência de uma fraternidade que põe em marcha a reivindicação democrática de igualdade, somada à eficácia medicamentosa que irrealiza a patologia, podemos concluir, como você diz, sobre a presença de um novo empuxo higienista da sociedade contemporânea. O que você pode nos dizer sobre esse futuro da psicanálise? Uma vez que o discurso analítico não tem nada de universal, como é possível salvar a clínica do singular, do para o “Um-sozinho”, nesse mar aberto de discursos que insistem em vender e disseminar o “para-todos”?

Sérgio de Campos: Em primeiro lugar, quero agradecer à equipe da Almanaque On-line pelo gentil convite para participar desta entrevista, pelas perguntas instigantes formuladas que me colocaram a trabalho e pela oportunidade de conversar com vocês sobre a clínica das psicoses.

Em O triunfo da religião, Lacan (1974/2005) afirma que a religião triunfará, a psicanálise sobrevirá ou não. Desde seu início, Freud enfrentou inúmeros obstáculos no caminho da psicanálise, a começar pelos seus discípulos. Verificamos que, através dos tempos, a lista continuou a crescer: a religião, as mais diversas formas de psicoterapias, a psiquiatria biológica, as neurociências, o cognitivismo, a regulamentação da psicanálise, a ortodoxia e o dogmatismo, os psicanalistas – imbuídos pelo espírito da sociedade de ajuda mútua contra o discurso analítico (SAMCDA) –, entre outros, e, agora, no contexto de nossa época, a despatologização. Pode-se dizer que a despatologização equivale a pronunciar que não haverá mais patologias alusivas à psiquiatria clássica. A despatologização forclui a psicopatologia na promessa de sanar o desequilibro neuroquímico com novos medicamentos.

A reinvindicação igualitária e o empuxo higienista do “para-todos” impõem o desaparecimento da clínica, na qual, antes, um sujeito era acometido por uma enfermidade expressa de maneira singular, e, agora, ele passa a integralizar um grupo constituído de sujeitos de direitos, alinhados a um estilo de vida, cuja finalidade comum é a de alcançar o bem-estar e a felicidade. Lacan (1969-70/1992) já nos advertira no Seminário 17, O avesso da psicanálise, que existe um preço a se pagar, visto que não há fraternidade sem exclusão que se manifesta sob as diversas formas de segregação. Lacan assinala que a fraternidade é uma ideia ridícula e não tem fundamento científico, de modo que estamos isolados no campo do um. Com efeito, a fraternidade serve para recobrir a experiência da segregação, pois, no fundo, tudo que existe na sociedade se baseia na segregação.

A despatologização é concebida a partir do contemporâneo calcado em uma fraternidade utópica, inscrita na reivindicação democrática de uma igualdade universal, a qual apregoa o apagamento das diferenças e nas exigências de um bem comum “para-todos” (MILLER, 2022). Então, o resultado da despatologização é a substituição do princípio clínico pelo princípio jurídico que vem prometer a utopia da inclusão de todos (MILLER, 2022). Logo, sob essa ótica, espera-se que todo mundo é ou possa se tornar normal. Nesse ponto, reside um paradoxo, pois quanto mais todo mundo é normal, mais medicamentos são comercializados. Então, sob o prisma do Manual Diagnóstico e Estatísticos dos Transtornos Mentais (DSM), numa espécie de nominalismo sem lastro, onde os transtornos mentais aumentam consideravelmente a cada edição, constata-se que quanto mais desaparece a clínica, mais estreita se torna a faixa entre a normalidade e a enfermidade, de sorte que ao mesmo tempo, todos se tornam normais e passíveis de serem medicados.

Enfim, o discurso analítico, apanágio do singular e do “um-sozinho” sem o Outro, se inscreve nas fissuras do discurso dominante e promove a deflação do gozo. A psicanálise não é “para-todos” e não visa a normalidade. Mas, não nos aflijamos com isso, pois ela visa a satisfação para com o sinthoma e não tem a presunção de salvar o mundo. A psicanálise se inscreve como um discurso que não seria o do semblante, no qual o real é sem lei, visto que ele é o resultado da conjunção entre o significante e o gozo, que advém da ruptura da ordem simbólica.

Se, na primeira clínica de Lacan, o que escutamos são as significações que evocam a compreensão sob o nexo causal de uma estrutura clínica, cujo gozo está implicado, na segunda clínica, a condução de uma análise, sob o paradigma do Il y a de l’Un – no que concerne ao postulado de que não há relação sexual – não é concebida como ontologia do ser, mas como existência do um que se apreende a partir das homofonias, das inanidades sonoras, dos equívocos e das jaculações nas fendas da compreensão. Em suma, o ultimíssimo Lacan propõe que, no inconsciente, temos uma escrita passível de ser lida pelo analista e pelo analisante, de maneira que a leitura vem substituir a escuta. Assim, a interpretação apenas incide sob a condição de ser uma leitura a um parlêtre que sabe se ler (MILLER, 2011).

A.O.: Em seu texto “A presença do analista na psicose ordinária” (CAMPOS, 2023), publicado na última edição da Almanaque On-line, você localiza que uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher, ou seja, uma ajuda contra o delírio edificado ali onde o sujeito se depara com o real. Nos parece uma forma de orientação em que o analista está avisado de que um delírio, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como uma tentativa de cura, traz também desordem e sofrimento e pode surgir incitando passagens ao ato que colocam o sujeito em risco. Furar a consistência e a onipotência do Outro é uma aposta numa leitura menos invasiva que pode advir, mas, por outro lado, poderia também favorecer sintomas depressivos e novos desligamentos? E como você diferenciaria a ajuda-contra do analista da posição da psiquiatria contemporânea que visa erradicar o delírio?

S.C.: É recomendável a prudência na prática de intervenções ousadas na condução de casos de psicoses ordinárias, visto que elas podem ocasionar desencadeamentos. A prática da ajuda-contra aquilo que impele o sujeito em direção de A mulher tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio e furar a onipotência do Outro. Em contrapartida, a ajuda-contra nos casos de desligamentos e sintomas depressivos pode agir a favor de um secretariado por parte do analista que contribua para um novo enlaçamento ou religamentos, como uma identificação por parte do sujeito em uma ancoragem que desempenhe um papel social positivo. Ainda no que concerne ao campo das externalidades social, corporal e subjetiva, uma leitura atenta do caso pode fornecer o instante preciso de incluir a ajuda-contra que deve incidir como uma bricolagem, uma pequena invenção que possa permitir uma extração de gozo, impedir ou adiar as errâncias, os desligamentos, as passagens ao ato e os desencadeamentos, assim como propiciar suplências.

A.O: Miller (1996) nos diz, em seu texto “Clínica irônica”, que todos os nossos discursos não passam de defesa contra o real. A isso ele nomeia como clínica universal do delírio, uma perspectiva que você trabalha no volume 1 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses, volume intitulado “As psicoses extraordinárias” (CAMPOS, 2022b). É interessante observar que essa clínica se constitui a partir da ironia, mas da “ironia infernal da esquizofrenia”, pois é só a partir do ponto de vista do esquizofrênico e de sua ironia que podemos aferir tal clínica. Se a ironia esquizofrênica, diferentemente do humor neurótico, nos diz que o Outro não existe e que não há discurso que não seja do semblante, colocamos as seguintes questões: como a ironia pode ser conveniente ao psicanalista para o seu fazer clínico? Ele pode tomá-la como um direcionamento clínico frente ao delírio generalizado? E, por fim, ainda no que se refere à esquizofrenia, Miller (2010), em seu texto “Efeito do retorno às psicoses ordinárias”, afirma que a noção de psicose ordinária estreita o campo da neurose e amplia o campo da psicose. Através de sua pesquisa que culminou na publicação de seu livro, como você pensa o estatuto contemporâneo da esquizofrenia?

S.C.: Miller, em “Clínica irônica” – texto que, embora de 1996, está atualíssimo –, define a clínica universal do delírio como sendo aquela na qual todos os discursos não passam de defesas contra o real. A clínica universal do delírio pode ser examinada do ponto de vista do esquizofrênico, na medida em que ele não é capturado por nenhum discurso e que ele está fora do laço social. É interessante ressaltar que, se por um lado, na paranoia, o Outro existe – uma vez que ele é consistente, invasivo e real, pois ele contém o objeto a –, por outro, na esquizofrenia, o Outro não existe, já que ele não foi constituído. Pode-se acrescentar que o esquizofrênico não se defende do real pelo simbólico, pois ambos os registros se equivalem, uma vez que se interpenetram em razão de uma falha na cadeia borromeana.

No que concerne à ironia, ela se distingue do humor, visto que se, por um lado, o humor se inscreve no Outro e vai ao encontro do sujeito, por outro, a ironia surge no campo do sujeito e vai de encontro ao Outro. Portanto, a ironia é uma defesa contra a invasão do Outro e ela denuncia que o Outro não existe. A ironia pode ser conveniente ao analista, mas se a neurose fosse curada por ela, não haveria necessidade da psicanálise. Miller (1996) advoga que a psicanálise tem uma ética irônica, já que ela se fundamenta na inexistência do Outro. Assim, o esquizofrênico, como aquele que se situa em uma exclusão interna, nos serve de orientação para conceber a clínica universal do delírio, na medida em que o simbólico não funciona para se defender do real.

Com isso, o paradigma da esquizofrenia se torna a direção para o ultimíssimo Lacan, onde o Outro não existe. De certo modo, Lacan considera que há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo, e foi por essa razão que ele dedicou parte de seu ultimíssimo ensino ao que ele pôde aprender com James Joyce. O ego de Joyce se constitui sem a imagem do corpo, mas a partir de um enquadramento traçado pela escritura (MALEVAL, 2019). Com efeito, a obra de Joyce e o sinthoma são homólogos e a escrita de Joyce prende o imaginário ao enodar o real e o simbólico, impedindo o deslizamento de um sobre o outro (LACAN, 1975-76/2007).

À guisa de conclusão, em “Clínica irônica”, Miller (1996) afirma que a tese universal do delírio é uma tese freudiana. Para Freud, nada deixa de ser sonho. Portanto, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é delirante”. Freud apresenta uma passagem equivalente ao aforisma lacaniano na qual afirma que, em certa medida, somos todos paranoicos, e louco seria aquele que não conseguiu alguém para ajudá-lo a incluir o seu delírio na realidade (FREUD, 1930/1980). Então, se o ultimíssimo ensino de Lacan se encontra com Freud, pelo avesso, como numa banda de Moebius, podemos cotejar um postulado com outro e concluir que, tanto para Freud, quanto para Lacan, o delírio é comum a todos. Por fim, de acordo com Miller (2013), o delírio é universal porque os homens falam e porque habitam a linguagem. Assim, o delírio linguístico lacaniano ocorre porque existe uma inconformidade das palavras às coisas, o que significa uma inadequação do simbólico ao real.

Entrevista realizada por: Giselle Moreira, Kátia Mariás, Lilany Pacheco e Rodrigo Almeida.

Referências
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022a.
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses extraordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022b.
CAMPOS, S. de. A presença do analista na psicose ordinária. Almanaque On-line, n. 30, mar. 2023. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/a-presenca-do-analista-na-psicose-ordinaria. Acesso em: 22 jun. 2023.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1980. p. 74-171. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LACAN, J. A escrita do ego. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MALEVAL, J.-C. Appréhension de la psychose ordinaire. In: Repères pour la psychose ordinaire. Paris: Navarin, 2019,  p. 41.
MILLER, J.-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 190-199.
MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana online – Nova série, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/ efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 23 de março de 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Momento de concluir. In: El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER J.-A. Todo mundo é louco. AMP 2024. Opção Lacaniana, n. 85, p. 8-17, dez. 2022.



Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma[1]

Philippe la Sagna
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne
plasagna@free.fr

Resumo: Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele.

Palavras-chave: doenças mentais; despatologização; desmedicalização; forclusão; sintoma.

DEPATHOLOGIZATION AND DEMEDICALIZATION: THE FORECLOSURE OF THE SYMPTOM

Abstract: According to the author, after the DSM5 crisis and the emergence of the Research Domain Criteria (RDoC) in the clinic, the pathology model for mental illness became a “disorder” and weakened. In this new situation, the referent becomes the neuronal circuits associated with behaviors that are isolated in areas. One of the main and logical effects of this is depathologization and demedicalization with the erasure of therapy. Today, we educate, rehabilitate and aim at the power to act, the empowerment, and thus carry out a foreclosure of the symptom so dear to psychoanalysis, that it does not aim at its erasure, but at what the subject knows how to do with it.

Keywords: mental illness; depathologization; demedicalization; foreclosure; symptom.

Imagem: Sofia Nabuco

A questão trans lança luz sobre uma forte tendência na psiquiatria e até da medicina: a despatologização generalizada da clínica e até mesmo sua desmedicalização. Nós queremos cuidados, mas não queremos mais “fazer dela uma doença”. Em seu artigo “La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique”,[2] Éric Laurent (2014) havia apontado o fracasso do DSM-V. Em outro artigo, publicado em L’évolution psychiatrique, ele mostrou a lógica do que chamou de “a grande translação clínica contemporânea” (LAURENT, 2019, p. 57).  A crise do DSM levou ao aparecimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC)[3] na clínica.

Nessa nova situação, toma-se como o referente não mais as doenças, patologias ou mesmo pacientes, mas circuitos neuronais correlacionados com dados comportamentais que podem ser isolados em áreas. Em 2015, Steeves Demazeux, de Bordeaux, e Vincent Pidoux, em um artigo sobre este projeto RDoC, mostraram que o desafio dos RDoCs era abandonar o diagnóstico. O conceito do RDoC é o de formalizar construtos teóricos que serão os blocos de construção da classificação. O projeto é apresentado como uma pesquisa, o que o protege de uma verificação clínica efetiva. Os “campos” de pesquisa nunca deixam de surpreender: medo, circuito de recompensa, aversão, adicção, cognição (atenção e percepção, memória), aos quais acrescentamos “os processos sociais, e os sistemas de ativação e de modulação cerebrais”. Em seu livro l’Éclipse du Symptom, S. Demazeux (2019) mostra que o que antecedeu ao DSM, desde o início do século XX nos Estados Unidos, foram estudos estatísticos sobre a saúde mental: esses projetos têm em comum o fato de que eles viram as costas para toda herança da psiquiatria. Eles vão ainda mais longe, já que parecem querer abandonar a própria noção de sintoma.

À frente desse projeto RDoC está um psicólogo: Bruce Cuthbert. Em um recente artigo, ele define “a estrutura de trabalho do RDoC” (CUTHBERT, 2021). O essencial é o desenvolvimento de uma tabela de entrada dupla. No eixo das ordenadas, estão as áreas já mencionadas aqui, e no das abscissas há amontoados de “circuitos cerebrais”, os genes, as células, e até mesmo as moléculas e os comportamentos.

O autor especifica que os “construtos” são “conceitos não calculáveis” propostos a partir de conjuntos convergentes de dados (CUTHBERT, 2021, p. 78). Para ele, o essencial é definir trajetórias de desenvolvimento: “A maior parte das doenças mentais são distúrbios do desenvolvimento neurológico, a maturação do sistema nervoso interagindo com uma grande variedade de fatores externos mesmo antes do nascimento” (CUTHBERT, 2021, p. 78). E ele se refere à extensão das desordens do neurodesenvolvimento (TND):

A este respeito, para tomar um exemplo, Craddock e Owen propuseram um gradiente para a patologia de neurodesenvolvimento que, de forma contínua, parte da deficiência intelectual e avança para o autismo, a esquizofrenia, o transtorno esquizoafetivo, o transtorno bipolar e a depressão unipolar. (CUTHBERT, 2021, p. 84)

Aqui, não há descontinuidade no real onde um sujeito do transtorno poderia entrar sorrateiramente. A abordagem supõe uma continuidade entre o normal e o anormal que se torna o substituto do patológico. A abordagem é dimensional.

Em nosso campo, fomos capazes de avançar uma hipótese continuísta de natureza diferente com o “todo mundo é louco”. A ideia era modular a oposição do tipo estrutural neurose/psicose e passar da falta própria do significante para um exame das conexões e a uma clínica nodal, borromeana, ou mesmo para uma lógica difusa. Mas não é nunca uma continuidade baseada na avaliação dimensional de um déficit em referência ao normal.

A frase de Lacan é um falso universal a ser lido à luz do não-todo da sexualidade feminina. Lacan, em Vincennes, em 1978, enfatizou que não havia nada de universal no discurso analítico. Ele acrescentou que, nesse aspecto, “não é uma questão de ensino”. A loucura é também: “ensinar, o que não pode ser ensinado” (LACAN, 1979, p. 278). Não se trata de dizer, para os RDoCs, que “todo mundo é louco”, mas, sim, que “todo mundo é normal”. Em um recente colóquio em Nantes, um dos participantes (Nicolas Georgieff) sublinhou: “Do lado das ‘doenças’, o modelo de patologia – que se tornou disorder – se enfraqueceu. Isso é particularmente verdadeiro para os distúrbios reunidos no novo compartimento do ‘neurodesenvolvimento’, supostos como sendo eminentemente médicos” (GEORGIEFF, 2021).

Para os TNDs, o genótipo substitui o sintoma e substitui a clínica. Um dos efeitos principais e lógicos dessa desmedicalização é o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos, visamos o reforço do poder de agir – empowerment – e elogiamos a resiliência. A doença mental escapa ao psiquiatra, mas também ao psicólogo, que é sempre um pouco psi demais tanto para os clientes que não são mais pacientes, como também para os seus cuidadoresInvestimos nos pares cuidadores. Realizamos assim uma foraclusão do real da doença. A doença, de fato, não é um ser; é o real da existência do vivente / sujeito. Como Lacan (1953/1998, p. 282) assinalou em 1953 citando a observação de Hegel: “a doença [é] a introdução do vivente na existência do sujeito”. A psicanálise não visa o apagamento do sintoma, mas sim aquilo com que o sujeito se vira, que ele saiba fazer com ele como faz com a sua imagem, que ele o manipule. Atualmente, embaralhamos tudo isso. Essa confusão contemporânea corre o risco de produzir o que Lacan evocava como os “hollow men” (MILLER, 2007), homens com a cabeça cheia da palha, com a palha dos circuitos neuronais e dos genes. O psicanalista é então um sintoma do qual queremos prescindir, como de resto. Lacan (1973/2003, p. 554) afirmava em 1973 “que os tipos clínicos decorrem da estrutura”. No entanto, tudo isso não permite que se constituam correlatos na neurose. “Os sujeitos de um tipo não têm, portanto, qualquer utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).  Lacan (1975-76, p. 55) argumentou que a função do sintoma é a de operar a nomeação do simbólico: “a nomeação é a única coisa no simbólico da qual temos certeza de que ela faz furo”. Essa nomeação não garante a consistência do sistema simbólico, mas, sim, seu furo. Isso se opõe à “futilidade” da ciência, “que é óbvio que ela apenas progride pela via – é seu método, é sua história, é sua estrutura – só progride pela via de preencher os furos” (LACAN, 1975).

Conversação 

Angèle Terrier: Obrigada Philippe La Sagna. Você nos apresenta pesquisas na vanguarda da tese “neuro”, na qual há muito claramente uma questão de se livrar de toda noção de patologia, de sintoma, de diagnóstico e até mesmo do paciente, a fim de estar interessado apenas em circuitos neurais correlacionados a dados comportamentais, estando a saúde mental reduzida, portanto, a um quadro de dupla entrada. É o que você nomeia como uma despatologização da clínica ou uma desmedicalização. E aqui, por falta de tempo, eu gostaria de ouvir você discutir isso com Hervé Castanet, que fala mais sobre a patologização da vida mental.

Philippe La Sagna: Sim, há alguma discussão; embora talvez seja um pouco a mesma coisa. Parece-me que a patologização da vida mental, sobre a qual evocava Hervé Castanet, diz respeito, acima de tudo, ao fato de que, a partir do momento em que as neurociências tomaram o poder – podemos ver isto de uma maneira diferente –, elas abordaram toda a vida mental como sendo suscetível a desordens e inventaram, portanto, as doenças. Foi isso que colocou o DSM no fosso. Depois de um tempo, eram quatrocentos e cinquenta tipos de doenças mentais, o que levou as pessoas a dizer: “Vamos parar”. Isso parou no dia em que nos perguntamos se o fato das mulheres estarem tristes durante seus períodos menstruais era uma doença mental ou não. As feministas responderam: “Não, não é uma doença mental”.

A pergunta que você me fez sobre os furos também é igualmente importante. O que acontece com os furos na ciência? Acredito que a ciência da qual falava Lacan e a ciência de hoje não têm muito a ver. É preciso entender que a ciência, no momento, funciona como uma startup, tanto no nível do financiamento, quanto das publicações. Os laboratórios também operam com esse modelo.

O caso Theranos[4] é um exemplo que está causando um escândalo no momento. Apesar de se afirmar como ciência, ela se verificou completamente manipulada. Estou recebendo em análise alguns cientistas que me dizem como é difícil fazer pesquisas sem adulterar os resultados para conseguir financiamento. Há uma retórica da promessa, como diz François Gonon; é preciso levar às pessoas a esperança dos amanhãs que cantam: transplantes de cérebro, por exemplo. Estamos quase lá! Parece-me que isto está de acordo com o que disse Hervé Castanet. Para obter amanhãs que cantem, você inventa coisas que não existem. Não é mais uma questão de tapar furos, mas de evitá-los. Esta ciência é muito mais louca do que a anterior. Antes, quando ela encontrava um furo, tentava respondê-lo, tampando-o. Agora, quando confrontados com um furo, passam para outra coisa.

A. Terrier: O que você está destacando é o delírio destas falsas ciências. A pergunta que eu estava me fazendo foi baseada nessa citação de Lacan que você retomou no final de sua palestra, na qual ele indica que a ciência só avança ao preencher furos. É realmente uma questão de foracluir o próprio furo do simbólico.

P. La Sagna: Talvez eu não concorde com você porque, se fosse uma questão de foraclusão, isso deixaria uma esperança. Tudo o que é foracluído no simbólico retorna no real, você sabe disso. A foraclusão do sujeito da ciência, é o cientista.

A. Terrier: Isso retorna, de fato.

P. La Sagna: Poderia dizer, por exemplo, que a ciência forclui o sujeito e, infelizmente, o cientista é um sujeito que retorna no real, que diz a si mesmo que não deveria ter feito a bomba atômica e que vai atirar uma bala na própria cabeça. Se os furos da ciência fossem foracluídos, eles retornariam no real. Mas, hoje, os cientistas os ignoram, ou seja, eles entram sorrateiramente por cima deles. Como demonstrava o meu amigo François Gonon, com quem trabalhei por muito tempo, apenas os resultados positivos são publicados. O que importa se, três meses depois, novos resultados são publicados demonstrando a falsidade dos resultados anteriores, se ninguém os lê. Eles aparecem em um pequeno parágrafo. É por isso que eu digo que eles evitam os furos. Isso não é mais a ciência de Lacan, na qual havia debates, colóquios. Hoje em dia, não é o mesmo real.

Hervé Castanet: Em sua palestra, você diz: “estas falsas ciências”. Podemos dizer isso em nosso campo, mas, assim que o deixamos, essa declaração não pode ser ouvida; essa é a prática que é valorizada em todos os dispositivos científicos atualmente, ou em quase todos. Portanto, a pergunta que fiz a mim mesmo é menos porque isso é assim, do que questionar como isso pôde ser possível. Como esse modo de proceder, do qual zombamos sempre, pode hoje prosperar? Aplicando uma epistemologia, por mais rudimentar e eficaz que seja, por exemplo a de Canguilhem, percebe-se que esses argumentos não se sustentam e, apesar de tudo, generalizaram-se a tal ponto que os laboratórios, não só na França, mas também no exterior, são mantidos por esse tipo de ciência. Daí minhas referências ao Collège de France e à Academia de Ciências.

Fiquei muito sensibilizado com a observação feita anteriormente por J.-A. Miller. Não ficamos obrigados, de uma certa forma, a estar nos porões, nas catacumbas, quando constatamos que todos os dispositivos são desse tipo? Os acadêmicos de psicologia não sonharam sempre com o jaleco branco? Zombamos tanto deles e de sua disciplina, ao nos referirmos ao famoso texto de Canguilhem. De maneira efetiva, suas esperanças de pertencer à ciência generalizaram esses procedimentos. Nossa crítica a essas “falsas ciências”, mesmo a nossa zombaria – porque é tão triste que temos que colocar um pouco de humor – não impede que elas tenham efeitos sobre a prática, mesmo em hospitais. Os textos aos quais me refiro não são marginais; há uma menção explícita de intervenção no cérebro.

Lembro-me de uma apresentação de pacientes para residentes no Hospital Universitário de Marselha (CHU). Após a apresentação, durante uma hora, nós tentamos determinar no departamento de geronto-psiquiatria se se tratava de uma demência frontal ou de esquizofrenia. Obviamente, ambas podem coexistir. Uma jovem residente me disse: “Mas você passou uma hora discutindo, enquanto uma varredura de scan, que não custa nada – era uma época em que havia um déficit de um bilhão no AP-HM – teria lhe esclarecido imediatamente”. Para ela, estávamos fazendo a história do pensamento.

A. Terrier: É de fato dessa história que esta ciência gostaria de prescindir.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Márcia Bandeira

Referências
CUTHBERT, B. N. Le cadre de travail des RDoC: faciliter la transition de la CIM et du DSM vers des approches dimensionnelles qui intègrent les neurosciences et la psychopathologie. Annales médico-psychologiques, v. 179, p. 75-85, 2021. Disponível em: https://www.em-consulte.com/article/ 1420731/le-cadre-de-travail-des-rdoc% C2%A0-faciliter-la-transit. Acesso em: 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/ revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023. .
DEMAZEUX, S. L’Éclipse du symptôme: L’observation clinique en psychiatrie (1800-1950). Paris: Ithaque, 2019.
LACAN, J. Intervention au Congrès de la Grande Motte de l’École freudienne de Paris. Lettres de l’École freudienne, n. 15, p. 69-80, 1975.
LACAN, J. Séminaire du 15 avril 1975. Ornicar?, n. 5, 1975-76.
LACAN, J. Lacan pour Vincennes!. Ornicar?, n. 17-18, 1979.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
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MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. Le tout dernier Lacan. Curso de 02 de maio de 2007. (Inédito). Disponível em: <https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2016/02/2006-2007-Le-tout-dernier-Lacan-JA-Miller.pdf>. Acesso em : 01 jun. 2023.
[1] Texto originalmente publicado em: Revue Quarto, n. 131, jun. 2022
[2] N.T.: Em português, “A crise pós-DSM e a psicanálise na era digital”.
[3] O RdoC é um projeto de pesquisa do Instituto de Saúde Mental dos EUA iniciado em 2009 cujo objetivo é formalizar um novo sistema diagnóstico psiquiátrico que seja capaz de alinhar as classificações do DSM às descobertas em genômica e neurociência.
[4] N.T.: Theranos é uma empresa de tecnologia de testes de sangue que se destina a ser usada em pacientes reais para diagnosticar uma infinidade de doenças. A empresa controlada por uma empresa de biotecnologia, seguiu sem amplo estudo de avaliação. Confrontados por outra empresa seus dados se mostraram inconsistentes. (Cf.: https://setorsaude.com.br/o-escandalo-theranos-pode-ser-apenas-o-comeco/)



Schreber, ainda contemporâneo[1]

Sérgio Laia
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”.

Palavras-chave: psicose; emasculação; imaginário; real; ordem simbólica; Nome-do-Pai.

SCHREBER, STILL CONTEMPORARY 

Abstract: This text aims to demonstrate Schreber’s contemporaneity based on his Memory and the commentaries made by Freud and Lacan on this book. It highlights what Schreber experimented as a rupture of the Order of World, an emasculation and a resource invented and called by him as “drawing”.

Keywords: psychosis; emasculation; imaginary; real; symbolic order; Name-of-Father.

 

Imagem: Renata Laguardia

Ao propor, para Lilany Pacheco, Diretora do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), esta aula com este título, quis, de início, me servir daquele que pôde se tornar um “caso” decisivo para a clínica psicanalítica das psicoses (FREUD, 1912/2021; SCHREBER, 1903/1980) e articulá-lo à próxima Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) – Há algo de novo nas psicoses… ainda. Porém, em que uma psicose, marcada claramente pela anulação, no simbólico, desse significante ordenador fundamental que Lacan chamou de Nome-do-Pai, pode ser contemporânea deste nosso mundo perpassado muito mais por uma crítica (e mesmo uma derrocada) do patriarcado? O que o delírio schreberiano de procriação e de filiação, fortemente marcado por conotações religiosas e redentoras, pode ser contemporâneo aos nossos dias atravessados pela descrença no Pai, pelo desmantelamento dos ideais e por transformações que distanciam a família do que tradicionalmente se conceberia como sendo uma família? Por que, também, um caso assolado pela persistência de um delírio extraordinário, por alucinações auditivas e visuais, seria contemporâneo quando, em nossa clínica, as psicoses se apresentam de forma muito mais ordinária e sem essas características com que classicamente eram diagnosticadas?

Ora, a persistente contemporaneidade de Schreber já se destacaria pela permanente importância de seu texto para a clínica psicanalítica das psicoses. Assim, Schreber ainda seria contemporâneo porque se trata de um caso incontornável para cada um de nós que sustenta, com a psicanálise, tratamentos possíveis para as psicoses ou, valendo-me de um escrito de Lacan (1966/2001, p. 214), sua persistente contemporaneidade se alinha com aquela mesma de Freud pois “o texto de Schreber é um grande texto freudiano, no sentido de que, antes de ser Freud que o esclareça, é ele que ilumina a pertinência das categorias cunhadas por Freud, sem dúvida, para outros objetos”. O próprio Freud (1912/2021, p. 622) antecipa essa designação que lhe fará Lacan ao afirmar, no final de seu estudo sobre Schreber, que “na verdade, os ‘raios divinos’ de Schreber compostos por condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides são tão somente os investimentos libidinais materializados e projetados para fora, e emprestam ao seu delírio uma concordância flagrante com nossa teoria”. De fato, como um desses “outros objetos” aludido por Lacan (1966/2001, p. 214), o funcionamento do aparelho psíquico concebido por Freud não deixa de se fazer presente quando Schreber (1903/1980, p. 35) compara “a alma humana […] contida nos nervos do corpo” a “fios de linha mais finos” e, assim, por meio das impressões externas, “os nervos são levados a vibrações que, de um modo inexplicável, produzem o sentimento de prazer e desprazer; possuem a capacidade de reter recordações das impressões recebidas (a memória humana)”. A contemporaneidade de Schreber também pode ser relacionada ainda à própria contemporaneidade de Lacan (1966/2001, p. 215) pois este último ressalta que “o texto de Schreber se verifica como um texto a ser inscrito no discurso lacaniano” ao permitir-lhe “retomar o fio” que o leva à “aventura freudiana” a partir da “trincheira aberta” por sua tese de doutorado dedicada à psicose paranoica.

Publicado em 1903, sustento também que Memórias de um doente dos nervos pode ser lido como uma espécie de vanguarda para sua época e muito mais próximo de nossos dias. Afinal, entre tantas revelações realmente impressionantes, encontramos nele o relato de como um homem alemão e tradicional, Presidente da Corte de Apelação de Dresden, que se concebia como tendo “uma natureza tranquila, quase sóbria, sem paixão, com pensamento claro e cujo talento individual se orientava mais para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta” (SCHREBER 1903/1980, p. 82), foi a princípio surpreendido pela ideia de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”  e, algum tempo depois, não sem resistir, a princípio, à exigência de ser transformado em mulher, acabou por consagrar seu corpo a essa emasculação para, numa copulação com Deus, poder gerar uma nova raça humana e encontrar alguma solução para os males terríveis que o atormentavam (SCHREBER, 1903/1980, p. 60, 72-78 e 175-177).

Schreber (1903/1980, p. 60) sustentava que sua aspiração inicial de ser uma mulher em uma relação sexual seria, em “plena consciência”, rejeitada com “indignação” por ele, mas acabou por considerar que ela lhe havia “sido inspirada por influências externas que estavam em jogo”. Ao abordar o quanto a emasculação de seu corpo o deixava entregue a violentos assédios sexuais promovidos por Flechsig, chega mesmo a destacar que esse seu primeiro e mais renomado psiquiatra não aparecia aí como um homem, mas em sua “qualidade de alma” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Ainda assim, não deixa de afirmar o seguinte: “pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive certeza de ter tomado conhecimento dele” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Porém, também relata que, nessa mesma ocasião, foi “tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo, e excitado pelas primeiras revelações sobre as coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Portanto, é a nessa excitação ou, para utilizar um termo lacaniano, é a nesse gozo que Schreber se apoia para ceder sua “honra”, seu “amor-próprio viril” e sua “personalidade moral”. E, assim, o modo como se consagra, mesmo que não sem resistência, a esse fora que lhe afeta o corpo, feminizando-o, me parece ser um marco importante de sua contemporaneidade, na medida em que vivemos hoje em um mundo onde as diferenças de gênero são em geral abordadas como meros efeitos de uma dominação histórico-social e os corpos são cada vez mais convocados a viver o que há de fluido e múltiplo em seus modos de satisfação.

Um último aspecto da contemporaneidade de Schreber, relacionado a um modo como opera com o imaginário, me surpreendeu, embora, conforme veremos, não deixe de estar associado às suas experiências com a emasculação. Assim, vou explicitar um pouco mais, primeiro, o que me permitiu, de início, declarar Schreber ainda como contemporâneo a nós e, em seguida, abordar sua experiência com o que Lacan (1958/1966, p. 571, schéma I) chamou de “gozo transexualista”. Por fim, procurarei mostrar como ele faz uso da imagem para operar com o real do gozo que lhe toma o corpo, evocando, a meu ver, o que Miller (2006-2007/2013) destacou como o imaginário no último ensino de Lacan.

Fratura, desordenamento e reconstrução

Ao concluir um Congresso da AMP intitulado A ordem simbólica no século XXI e anunciar o seguinte, Um real para o século XXI, Miller (2014, p. 22) afirma que vivemos um “desarranjo da ordem simbólica” e a “pedra angular” dessa ordem, ou seja, “o Nome-do-Pai, se trincou”, na medida em que o capitalismo e a ciência colocam radicalmente em questão as referências paternas até então vigentes. Também nos lembra que o próprio Lacan, ao longo de seu ensino, “depreciou essa função-chave” relacionada ao pai, passando a considerá-la “nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo” (MILLER, 2014, p. 22). Por sua vez, esse furo que o Nome-do-Pai não colmata, afeta toda espécie humana, “é a inexistência da relação sexual” porque, para os “seres vivos que falam”, há uma “carência de saber concernente à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22) e a qualquer proporcionalidade entre os corpos sexuados. A foraclusão, portanto, não é mais apenas um mecanismo específico das psicoses e que atinge, no simbólico, o Nome-do-Pai: quanto à inexistência de uma proporcionalidade entre os sexos, a essa carência de um saber capaz de regular a sexualidade humana como acontece com a dos outros seres vivos não falantes, a esse “rebaixamento do Nome-do-Pai”, a foraclusão se generaliza e experimentamos, por conseguinte, uma “extensão da categoria de loucura a todos os seres falantes” (MILLER, 2014, p. 22).

Esse abalo das referências paternas, bem como a exposição, também cada vez mais atual, desse furo relativo aos corpos humanos sexuados, fazem Miller (2014, p. 23) declarar que há “uma grande desordem no real”. Essa declaração me parece mostrar, no âmbito do que nos tem acontecido, esta “ideia-limite” (MILLER, 2014, p. 28) encontrada no último ensino de Lacan (1975-76/2007, p. 133): “o real é sem lei” . Esse desordenamento no real e esse destaque à trinca (ou à fratura) que atinge o Nome-do-Pai como significante fundamental são, como insistirei a seguir, indícios importantes do que apresento como a atualidade de Schreber.

Em seu livro, a Ordem do Mundo é definida como “uma ‘construção prodigiosa’, diante de cuja sublimidade recuam todas as representações construídas pelos homens e povos, no curso da história, sobre suas relações com Deus” (SCHREBER, 1903/1984, p. 47). Em outros termos, a sublimidade da Ordem do Mundo se eleva frente às representações divino-paternais formuladas historicamente. Mais adiante, a função da Ordem do Mundo é articulada à conservação do que é vivo, na medida em que Schreber (1903/1984, p. 81, nota 35) a concebe como a “relação legítima”, ou seja, fundada em uma lei, e “que subsiste entre Deus e a criação” convocada “à vida, dada como algo em si, através da essência e das qualidades de Deus”.

Mesmo com o que tem de sublime, vital e prodigioso, a Ordem do Mundo foi alvo de um ataque: “ocorreu […] uma fratura, estreitamente ligada” a seu “destino pessoal” (SCHREBER, 1903/1984, p. 48), e Lacan (1958/1966, p. 558) se vale dessa fratura para localizar “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Logo, fraturada a Ordem do Mundo, nada mais fica como antes da vida do sujeito, tudo se desregula e ele sucumbe ao peso da mortificação real de seu corpo. Nesse contexto, é importante lembrar que Schreber (1903/1984, p. 49 e 227) atribuiu essa “fratura” a um “assassinato de alma” e – como “as almas eram feitas, segundo sua condição de existência, em conformidade com a Ordem do Mundo, apenas para gozar” enquanto “o homem ou outras criaturas da Terra” se dedicavam a “uma ação na vida prática” – tal assassinato faz como que uma desertificação do gozo atinja severamente todo o mundo. Evocando, então, Lacan (1960/1966, p. 819) e sua célebre citação de um poema de Valéry (1921/1984, p. 28-29), o mundo de Schreber se torna sem vida e vão, frente a essa falha que incide sobre o gozo e compromete gravemente também toda ação humana.

Especificamente para Schreber, tal comprometimento é o próprio adoecimento que, durante quase uma década, o afasta da regularidade de um convívio familiar e social, além de impedi-lo de gozar do posto vitalício, pautado em uma nomeação irreversível, definida por ordem do rei e que o consagrava como Juiz-Presidente da Corte de Apelação da cidade de Dresden. Mas essa fratura tem efeitos devastadores também sobre a própria Ordem do Mundo porque, como nos mostra a leitura que Freud (1912/2021, p. 558) faz do livro de Schreber, devido a tal lacuna, “a existência do próprio Deus parece ameaçada”, uma vez que os nervos dos seres humanos vivos […], no estado de uma excitação extrema” passam a exercer “uma atração tal sobre os nervos divinos que Deus não consegue mais se livrar deles”.

Minha questão, em termos lacanianos, é se não poderíamos ler essa fratura da Ordem do Mundo também como a própria constatação – tão contemporânea – de uma inexistência do Outro que, no entanto, não apaga a presença do Outro como corpo em nossas vidas. Nesse mesmo contexto, também indago se não haveria – nessa excitação extrema dos vivos demarcada por Schreber – uma antecipação do que hoje vivemos como uma imperiosa exigência de satisfação. Assim, a fratura da Ordem do Mundo experimentada por Schreber se realiza, em nossos dias, para todos, o que não deixa de ressoar a formulação lacaniana que Miller (2022) nos convidou a tomar como o título do próximo Congresso da AMP, em 2024: “todo mundo é louco”.

assassinato de alma – marca dessa fratura que incidiu sobre a Ordem do Mundo e desestabilizou Schreber, como ser humano, em sua ação na vida prática – envolvia “circunstâncias” que “não estão claras” para ele, relacionadas à sua vida privada e que precisaram ser excluídas do livro para garantir-lhe a publicação (FREUD, 1912/2021, p. 582). Logo, segundo Freud, esse “assassinato” poderia ter sido elucidado por fatos que estariam, por exemplo, no Capítulo III de Memórias de um doente dos nervos e que foi suprimido para que esse livro fosse publicado. Freud (1912/2021, p 583), seguindo as pistas literárias deixadas pelo próprio Schreber, particularmente aquelas do poema “Manfredo” de Byron, acaba encontrando a menção a um incesto, mas verifica que, nesse ponto, “se rompe […] o curto fio”. Logo após se deparar com tal ruptura e verificando o quanto uma suposta ligação com um incesto não se sustenta, passa a se referir à expressiva quantidade de poluções que Schreber tem no curto período quando as visitas diárias da esposa no hospital deixam de acontecer e, então, retoma a “suposição” de que “o adoecimento” teria a ver com “uma irrupção de uma moção homossexual” da qual o laço com a esposa e, também, a própria paranoia seriam uma espécie de defesa: o desejo homossexual perturbaria consideravelmente um homem como Schreber (sobretudo em sua época) e, então, a paranoia eclodiria como uma tentativa de afastá-lo dessa perturbação, embora também o abalou consideravelmente.

Freud (1912/2021, p. 584) não deixa de ressaltar que falta “um conhecimento mais preciso” da “história de vida” de Schreber para que se pudesse explicar as razões de a “irrupção da libido homossexual” ter se dado após sua nomeação como Presidente da Corte de Apelação. Ao não encontrar os dados que confeririam mais precisão ao que determinaria o “assassinato de alma” e sem conseguir qualquer acesso à presença de algum desejo homossexual recusado por Schreber antes do desencadeamento da psicose, Freud (1912/2021, p. 583) se vale do lugar que o psiquiatra Flechsig, ou seja, um homem, passou a ocupar no delírio de perseguição desse “doente dos nervos”, assim como da andropausa que, de algum modo, já poderia afetar-lhe o corpo e a disposição sexual, além dos fracassos vividos, juntamente com a esposa, com relação à geração de filhos. A figura de Flechsig, em que Freud (1912/2021, p. 589-590) chega também a localizar uma “transferência” do “anseio” vivido com relação ao pai e ao irmão com uma “intensificação erótica”, torna-se decisiva para a formulação da hipótese relativa à moção homossexual da qual a paranoia seria uma defesa:

o motivo do adoecimento foi o surgimento de uma fantasia feminina do desejo (homossexual passiva), que tomara por objeto a pessoa do médico. Contra essa mesma fantasia, ergueu-se parte da personalidade de Schreber, uma intensa resistência, e a luta defensiva, que talvez tivesse podido igualmente consumar-se em outras formas, escolheu, por motivos que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição. Aquele por quem o doente antes ansiava agora se tornava o perseguidor, e o conteúdo da fantasia de desejo, o conteúdo da perseguição. (FREUD, 1912/2021, p. 586)

Por sua vez, Lacan (1958/1966, p. 558) também associa o assassinato de alma a “um dano” que Schreber consegue “desvelar apenas em parte”. Porém, o que foi retirado para viabilizar a publicação do Memórias de um doente dos nervos  (cujo Capítulo III serve como referência-vazia por se encontrar literalmente suprimido) passa a ser lido como a instalação, no livro mesmo, do que foi assassinado, ou seja, da anulação, em uma psicose, do que Lacan (1969/2001, p. 373, grifos nossos) chama de transmissão […] de uma constituição subjetiva, ou seja, a presença mesma da foraclusão se demarca no corpo textual de um livro e, por isso, Lacan (1958/1966, p. 559) se empenha para mostrar, “na forma mais desenvolvida do delírio com a qual o livro se confunde […] uma estrutura que se verificará similar ao processo mesmo da psicose”. Assim, no que Schreber escreveu como suas Memórias, encontramos o furo da foraclusão do Nome-do-Pai, a presença do que é imemorável e não dá lugar a qualquer história de uma transmissão na qual um sujeito é tramado.

Nesse contexto, vale ainda citar o valor que Lacan (1958/1966, p. 535) confere à “cadeia quebrada” como marca da “irrupção no real” do “símbolo”. Afinal, se tradicionalmente o símbolo é junção de duas partes separadas, essa separação, essa ruptura, também o constitui, embora seja mais dissimulada pelas estruturas clínicas diferentes das psicoses, ou seja, pelas neuroses e perversões. É essa presença ineludível da quebra de um encadeamento, de uma transmissão subjetiva, de uma história, é essa separação característica do símbolo que, no entanto, se tenta dissimular e que, ao contrário, nas alucinações auditivas testemunhadas por psicóticos, implica que, “no lugar onde o objeto indizível é rejeitado no real, uma palavra (mot) se faz escutar […] vindo no lugar do que não tem nome” (LACAN, 1958/1966, p. 535, grifos nossos). Portanto, esse livro de Memórias do imemorável, de registro do que ficou foracluído de toda inscrição, é essa palavra que, mesmo sem lugar até então em sua vida subjetiva, Schreber quis fazer ecoar. Não foi sem razão que, com a expectativa de a ciência futuramente se beneficiar de suas descobertas e como o projeto de retornar à sua “vida prática” de Presidente da Corte de Apelação, Schreber fez todos os esforços para publicar esse livro que, sobretudo em sua época, não deixava de soar insólito e desconcertante para tais objetivos. Por conseguinte, é interessante considerarmos que conseguiu fazê-lo ser aceito pela editora Oswald Mutze de Leipzig (SANTNER, 1997, p. 18) que, diferente dos objetivos científico-profissionais que o mobilizavam, mas não sem dar-lhe a possibilidade de registro da palavra que não encontrava lugar em sua vida, publicava apenas livros ocultistas e teosóficos.

Lacan (1958/1966, p. 564), a partir de sua leitura do livro de Schreber, ressalta que “é em torno desse furo onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito”, onde a cadeia se quebra ou, ainda, em termos schreberianos, onde a Ordem do Mundo foi fraturada, “que é travada toda a luta onde o sujeito se reconstrói”. Nesse contexto, diferente dos pós-freudianos que insistiram na hipótese freudiana de que, com a paranoia, Schreber se defendia contra a homossexualidade, Lacan (1958/1966, p. 567) prefere indicar que tal hipótese só foi sustentada por Freud porque este, ao redigir e publicar seu estudo sobre tal caso, respectivamente em 1911 e 1912, ainda não havia escrito “Introdução ao narcisismo” (1914). Cotejando, então, o estudo sobre Schreber e as descobertas de Freud a propósito do lugar do narcisismo na economia libidinal e no adoecimento subjetivo (inclusive por suas incidências mortíferas), Lacan (1958/1966, p. 567) considera que, se “a ideia da Entmannung”, ou seja, da emasculação, da feminização do próprio corpo, deixa de suscitar, com o tempo, a indignação de Schreber, é porque ele acaba por experimentá-la como uma inversão da experiência de que como “sujeito estava morto”.

Evocando, então, de início, a célebre e terrível concepção schreberiana de si como um “o primeiro cadáver leproso” conduzindo “um cadáver leproso” (SCHREBER, 1903/1984, p. 106), Lacan (1958/1966, p. 568) a toma como uma “regressão do sujeito”, “tópica”, “ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aí a seu gume mortal”. Mas Lacan (1958/1966, p. 568-569) também nos mostra que, a essa morte do sujeito, responde “uma prática transexualista”, na qual Schreber se feminiza e acaba se entregando à “copulação divina”, que lhe servirá de restauração da “estrutura imaginária” mais além daquela regressão tópica que lhe assolou mortiferamente o corpo. Logo, não sem sofrimentos consideráveis, a emasculação serve a Schreber para ir além da própria cadaverização, para tentar ter outro corpo e, desse modo, podemos dizer, como mulher, um Outro diferente daquele que o persegue, assim como outra relação com a vida. Nessa direção em que o corpo, uma vez emasculado, possa fazer-lhe as vezes de Outro, Schreber mostra-nos também o quanto é mesmo contemporâneo ao arco-íris formado pelas cores LGBTQI+.

Imaginário

Muito ainda poderia ser apresentado e esclarecido sobre como a emasculação perturba, toma o corpo de Schreber e ganha um lugar nesse “problema de solução elegante” (LACAN, 1958/1966, p. 572) no qual as psicoses encontram-se envolvidas. Certamente, em outra ocasião, poderei me dedicar a essa explicitação. Neste texto, interessa-me agora muito mais focalizar um modo específico de Schreber se posicionar e conceber sua emasculação. Nesse modo, considero que encontramos um uso do imaginário que não se restringe àquele de uma reconstrução do que lhe foi solapado por sua morte como sujeito. Trata-se de um uso que me parece já apontar para a nova concepção do imaginário no último ensino de Lacan, elucidada por Miller (2006-2007/2012, p. 147-276).

Ainda no período em que a emasculação era experimentada apenas como uma injúria ou, mais especificamente, quando os “raios divinos” a aludiam como “supostamente iminente”, eles “acreditavam poder zombar” de Schreber dizendo-lhe: “‘Miss Schreber’” e, nesse contexto, é importante considerar o esclarecimento de Marilene Carone, tradutora brasileira, situado em uma nota de pé-de-página, de que, na Alemanha, o termo inglês Miss tinha então um sentido pejorativo, indicando uma mulher solteira cuja reputação era duvidosa (SCHREBER, 1903/1984, p. 136). Nessa mesma ocasião, outras expressões, segundo Schreber (1903/1984, p. 136), lhe eram “frequentemente usadas e repetidas até a exaustão”, tais como: “‘Você deve ser representado como alguém entregue à devassidão voluptuosa’, etc., etc.”. A palavra representado é destacada pelo próprio Schreber (1903/1984, p. 136), que também lhe agrega, em uma nota de pé-de-página, um esclarecimento que julgo decisivo:

O conceito de “representar”, isto é, dar a uma coisa ou pessoa outra aparência, diferente da que ela tem por sua natureza real (expressando em termos humanos [ou seja, acrescento, fora da língua dos nervos e das almas]: “falsificar”) desempenhou e ainda hoje desempenha um papel muito importante no universo conceitual das almas […] Talvez tenha-se chegado à convicção de que, uma vez que se conseguisse criar de um homem uma impressão diferente da que corresponde às suas características reais, também poderia ser possível tratar o homem em questão de acordo com esta impressão. Tudo isso se reduz, pois, a um autoengano, completamente sem valor do ponto de vista prático, uma vez que o homem, naturalmente, no seu comportamento de fato, e particularmente na linguagem (humana), sempre dispõe de meios de fazer valer suas características reais contra a “representação” intencionada.

Verificamos que a emasculação imposta a seu corpo, mesmo implicando-lhe transformações e experiências de gozo reais, não deixa de lhe ser, também, o que a língua dos nervos concebe como “representação” e, os humanos, “falsificação”.  Ela se compõe, portanto, como um “autoengano” o faz colocar-se “contra a ‘representação’ intencionada”. Nessa via contrária, nessa leitura do que pode existir de falso no que experimenta realmente como imposto, considero que Schreber se confere algum uso do benefício da dúvida e, assim, utiliza um recurso decisivo, a meu ver, para o tratamento das psicoses.

Essa possibilidade de ir contra, não sucumbir e, sobretudo, encontrar outro destino para o que lhe imposto parece-me se consolidar ainda mais com o que, segundo a concepção das almas, é o “desenhar”: trata-se do “‘uso consciente da imaginação, com o objetivo de produzir imagens (predominantemente imagens mnemônicas) que depois são vistas pelos raios’” (SCHREBER, 1903/1984, p. 222). Assim, frente ao “martírio espiritual” que lhe “era proporcionado pelo falatório idiota das vozes”, ele se permite desenhar, tornar “visível” em sua “cabeça ou também fora dela”, de forma que essas vozes passam a ter “a impressão” de que os “objetos e fenômenos” assim desenhados “realmente existiram” e, como essa imposição vinda das vozes e os nervos são experimentados como milagres, ele chega a chamar o procedimento do desenho de “milagre às avessas” (SCHREBER, 1903/1984, p. 223). Importante esclarecer que não se trata do desenho como o que se registra ou se esboça, com finalidade artística ou não, mas de uma espécie de projeção ou duplicação, em imagens, do que se está fazendo ou se pode fazer. Nos termos mesmos de Schreber (1903/1984, p. 223):

Posso me “desenhar” em outro lugar, diferente daquele no qual eu de fato estou; por exemplo, enquanto me sento ao piano, estar ao mesmo tempo no quarto ao lado em frente ao espelho, com roupas femininas […], criar para mim mesmo e para os raios, quando estou deitado na cama à noite, a impressão de que meu corpo é dotado de seios e de órgãos sexuais femininos. Desenhar um traseiro no meu corpo […] tornou-se para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino.

Para uma elucidação de como esse uso do imaginário chega a permitir-lhe não sucumbir ao que lhe é imposto, vale citar o modo com que por vezes lidava com os “pássaros miraculados” cujas vozes, em outras circunstâncias, exigiam-lhe trabalhar até a exaustão para respondê-las e decifrá-las: “fazendo troça” com tais aves, ele fazia com que aparecessem em sua cabeça a “própria imagem” desses pássaros “sendo devorados por um gato” (SCHREBER, 1903/1984, p. 224). Com isso, parece-me que ele acede a outro gozo, bem diferente daquele que lhe era imposto e o devastava “a satisfação produzida por esta atividade é realmente grande”, sobretudo ao conseguir “obter do modo mais fácil possível as imagens desejadas”, de forma que a “visão de imagens atua […] de um modo purificador sobre os raios, e eles”, assim, o “penetram […] sem a violência destrutiva que lhes é peculiar” (SCHREBER, 1903/1984, p. 225).

Segundo Miller (2006-2007/2012, p. 258), no ultimíssimo ensino de Lacan, uma análise implica “ultrapassar a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse ultrapassamento, o corpo tem uma função decisiva: “no silêncio do real, e enquanto sempre se tem que desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, isto é, ao corpo” (MILLER, 2006-2007/2012, p. 259). Vimos que a emasculação de Schreber toma seu corpo como uma saída frente ao furo da foraclusão do Nome-do-Pai no simbólico, mas, ainda assim, ele sucumbe a tal furo. Ela também lhe confere alguma voz para responder ao silêncio do real do gozo que lhe toma o corpo, esse silêncio que, no entanto, parece ser almejado na medida em que Schreber insiste na exaustação que lhe provoca o falatório das vozes e, nesse contexto, seu livro destemido e perturbador me parece ser um modo de ele se fazer escutar nessa que seria a sua voz. Logo, a emasculação, nesse caso, não deixa de ser, às avessas, uma consagração, mesmo que delirante, aos referenciais paternos. Não é sem razão que, evocando esse recurso paterno que é o falo, Lacan (1958/1966, p. 566) nos brindou com uma interpretação que se aplica à emasculação schreberiana: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”. Ora, a invenção do desenhar nos aponta para outra via e, mesmo que não tenha sido tão trilhada quanto aquela da emasculação, implica o corpo e me parece oferecer a Schreber uma oportunidade muito mais satisfatória para “superar”, como formula Miller (2006-2007, p. 259) “a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse contexto, se a consagração delirante ao pai na emasculação ganha mais corpo que o desenhar, é porque, possivelmente, Schreber habitava um mundo ainda muito centrado nas insígnias paternas e, assim, o recurso ao desenho, no modo como ele o inventa e pratica, soa mais contemporâneo ao nosso mundo desabitado do que é paternalmente ordenado.


 

Referências
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).
LACAN, L. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 531-583. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 793-827. (Trabalho original proferido em 1960).
LACAN, J. Présentation des “Mémoires d’un névropathe”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 213-217. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 373-374. (Trabalho original escrito em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. (Trabalho original proferido em 2006-2007).
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (org). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
MILLER, J.-A. Tout le monde est fou – AMP 2024. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 112, p. 48-57, nov. 2022.
SANTNER, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (Trabalho original publicado em 1903).
VALÉRY, P. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, A. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 26-57. (Poema original publicado em 1921).
[1] Aula inaugural do Curso de Psicanálise do IPSM-MG proferida em 6 de março de 2023.