A escola, o instituto e a ética das consequências

Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023


Jésus Santiago
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo: No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto.

 Palavras-chave: Escola; Instituto; ética; teoria; prática clínica.

THE SCHOOL, THE INSTITUTE AND THE ETHICS OF CONSEQUENCES

Abstract: The present essay discusses the operation of the School and Institute of psychoanalysis taking into consideration that both the clinical practice and the psychoanalytical institution invested in the teaching of psychoanalysis share the same principle. The psychoanalytical way of perception has more to do with an ethical dimension than epistemic itself – it is about an ethical dimension that comes from the deduction of the fact that there is no theory of the unconscious without a practice that is able to take the experience of the unconscious into account. The author thus offers a reading on the contemporary psychoanalytical environments and on the difference between the psychoanalytical School and the Institute.

Keywords: School; Institute; ethics; theory; clinical practice.

Imagem: Sofia Nabuco

O que se impõe como princípio de orientação para a prática clínica impõe-se também para a prática institucional lacaniana voltada para a formação analítica. Vejamos como se pode formular esse princípio de orientação que, a meu ver, serve tanto para a prática clínica quanto para a nossa concepção do que é uma instituição psicanalítica a serviço do discurso analítico. O meu ponto de partida é admitir que, se a psicanálise ocupa uma posição singular no conjunto das ciências, é porque ela, apesar de se inspirar em seus fundamentos e seus métodos, é, antes de tudo, uma prática cujo fundamento é a experiência do ser falante com o inconsciente. Esclareço ainda que a psicanálise não é uma “teoria do psiquismo” e, tampouco, uma “teoria do inconsciente”, como se o psiquismo ou o inconsciente existissem em si e que seria apenas necessário desvelar o seu funcionamento intrínseco. A psicanálise recusa-se, assim, a abordar o inconsciente nos termos de uma cosmologia, ou seja, não se trata de tomá-lo como uma entidade substancial fechada em si mesma, como se fosse uma realidade qualitativamente determinada, hierarquicamente ordenada, submetida a leis diversas, cuja existência antecedesse o próprio surgimento da prática psicanalítica.

Renúncia da pressuposição cosmológica

Enquanto prática, o edifício conceitual da psicanálise é concebido como uma construção segundo o estilo work in progress, exatamente como na ciência da física, que não se constitui como um conhecimento em que seus objetos existiriam em si para além de suas produções conceituais e metodológicas. O que é característico da ciência que se faz presente entre nós desde o século dezesseis é deixar em aberto a abordagem cosmológica das coisas do mundo. A ideia de Cosmo teve o seu predomínio até o surgimento da física de Galileu, que contribuiu para desfazer o mundo da tradição, ordenado e limitado. O discurso da ciência está em marcha e progride inexoravelmente, transformando o mundo fechado da cosmologia no universo infinito da física.

O nosso ponto de partida é admitir que a existência do mundo[1] não nos assegura absolutamente acerca da existência de uma cosmologia. Muito antes pelo contrário, o próprio saber da ciência demonstra que não há avanços na apreensão das coisas do mundo sem a renúncia de toda pressuposição cosmológica.[2] Como se viu antes, a emergência da ciência exigiu o abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo enquanto unidade fechada de um Todo qualitativamente determinado e refratário aos acontecimentos contingentes oriundos do Real. Isso quer dizer que as coisas do mundo, com as quais a ciência lida, não são preexistentes ao saber da ciência.

A respeito do modo como a psicanálise trata essa objetividade do mundo, é preciso levar em conta o trabalho inaugural de Freud com a Interpretação dos sonhos, em que a conceituação do inconsciente se institui como um lugar que ele próprio denomina como uma Outra cena (eine anderer Schauplatz) (LACAN, 1962-63/2005). Introduzir a função do inconsciente como Outra cena a partir do sonho esclarece o que vem a ser, por sua vez, o tratamento que a psicanálise confere às coisas do mundo. Em segundo lugar, Lacan (1962-63/2005) propõe que essa dimensão da cena, que se apresenta como separada do mundo, aponta para a distinção radical entre o mundo e esse lugar impossível de ser simbolizado pela via das leis e do sentido, ao qual denominamos Real, lugar em que as coisas adquirem existência. Assim, as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis da linguagem, leis que, por consequência, não podem ser tomadas como inteiramente homogêneas ao Real (LACAN, 1962-63/2005).

O inconsciente é, portanto, exemplar acerca do modo como a psicanálise capta e apreende as coisas do mundo, distinguindo nelas o real que lhes é concernente. Mais do que uma questão epistêmica, há uma dimensão ética implícita na formulação de que a teoria psicanalítica do inconsciente não teria vindo à luz sem a interposição da prática clínica de Freud com o sujeito histérico. Trata-se da dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do sujeito com o inconsciente. Isso quer dizer que, se há uma teoria do inconsciente, ela é fruto da prática clínica e, nesse sentido, se há uma teoria em geral na psicanálise, ela se constitui sempre, segundo os termos do Lacan (1968-69/2008, p. 64), como “teoria da prática analítica”. Como ele próprio pôde sentenciar: “o caminho do inconsciente propriamente freudiano, foram as histéricas que o ensinaram a Freud” (LACAN, 1964/1988, p. 20). Com isso, reconhece-se a impossibilidade em instaurar uma teoria da prática – concebida como a definição máxima do discurso analítico –, por meio da mera especulação conceitual, notadamente, quando esses conceitos estão a serviço de uma Weltanchauung (“visão de mundo”).

A ética do primado da prática  

Ao delimitar o campo da prática analítica, por um lado, como um terreno fértil para as mais diversas invenções clínicas, e não apenas aquela concernente à histeria, postula-se, por outro lado, que a prática analítica é realista e, portanto, não-nominalista. O ensino de Lacan não esconde a sua filiação realista em razão da apreensão do real pela psicanálise se opor à separação radical entre os conceitos e as coisas. A prática analítica apenas é possível por sua concepção do sintoma, na qual se formula a conjunção entre o real e a linguagem. Isso, aliás, é da ordem das evidências: se a psicanálise busca modificar o real pela função da fala, é porque, segundo ela, a articulação entre o real e a linguagem é um pressuposto intransponível (SANTIAGO, 2007).

Vale dizer, por outro lado, que suas perspectivas inovadoras quanto ao tratamento do sintoma não emergem em estado bruto, sem a ação dos conceitos psicanalíticos. Afirmo que o valor ético do primado da prática diz respeito ao fato de que os conceitos e as categorias clínicas com as quais lidamos e cujo aggionarmento visamos não apenas atendem as exigências da prática analítica, mas também têm a sua origem nesse âmbito da prática.  Se Lacan chega a pôr em questão a existência de uma teoria do inconsciente – como ele o faz no transcurso do Seminário De um Outro ao outro , o faz na medida em que ele é apenas apreensível, conceitualmente falando, no campo da prática. Diante disso, pode-se inferir que o inconsciente é exemplar da dimensão consequencialista da ética, na medida em que sua conceituação não advém da mera especulação sobre a sua existência, mas, sim, da prática que o toma como objeto de uma experiência. A ética mostra-se implicada nessa formulação de que o inconsciente apenas é apreensível no campo da prática, considerando que a visada da psicanálise é a incidência efetiva no real do sintoma.

Se o princípio ético do primado da prática deve prevalecer, é preciso evitar o viés puramente especulativo, muito presente nos ambientes psicanalíticos contemporâneos, em que a psicanálise se transforma numa espécie de “sociologismo inflexível” (MILLER; MARTY, 2021) a serviço de uma causa política ideal. A psicanálise não pode acolher de modo imediatista e desprezando suas exigências éticas os significantes-mestres que passam a circular como resposta ao mal-estar da civilização. É sabido que o conceito de gênero assumiu uma importância capital para certos psicanalistas, tendo em vista que através dele foi possível contrapor ao reducionismo da questão sexual ao seu componente biológico. Em função da crítica à visão naturalista e biologizante dos corpos, passou-se a adotar a noção de gênero como uma construção social normatizada e que é convocada, por Judith Butler, a ser problematizada e criticada, como acontece em seu livro Problemas do gênero. Mais tarde, em seu livro Desfazer o gênero, essa mesma noção é objeto de uma consígnia de desconstrução.

Fazer incidir na psicanálise a concepção butleriana do conceito de gênero sem nenhuma crítica a empurra para uma visão puramente sociológica da diferença sexual, pois as posições sexuais tornam-se entidades socialmente construídas. Se, com Stoller, é em relação ao pai do par parental que o gênero se constrói, em Butler, o substrato da construção do gênero é social. Se, para a psicanálise, a posição sexual de um sujeito compreende um modo de gozo singular, para Butler, o gênero pertence à socialidade, ao socius. Por tomar o terreno das relações entre os sexos como um universo socialmente construído sem exterior, sem alternativa, sem escapatória é que se pode falar de uma sociologia inflexível. Nenhum sujeito pode escapar da performatividade social do gênero (não há sujeito e nem subjetividade). É apenas por meio da operação de disfuncionamento social promovida pelo ativismo militante dos grupos identitários que se pode gerar mudanças nas identidades de gênero e das normas heterossexuais dominantes. É notório que essa deriva para o sociologismo torna a psicanálise vulnerável a esse ativismo, em detrimento do que é a sua coluna vertebral, ou seja, a prática clínica.

Entre intensão e consequência

Dizer que a psicanálise é uma prática não a torna, portanto, uma disciplina refém da mera aplicação de regras técnicas rígidas, oriundas de uma suposta teoria psicanalítica. Uma das virtudes e resultados do Seminário da Ética da Psicanálise, que se desenvolve no início da década de 60, é contrapor-se a essa cisão entre teoria e prática e, segundo essa orientação, as questões técnicas são substituídas pela perspectiva ética. Logo, se a psicanálise não procede pela separação radical entre a teoria e a prática, se a empreitada psicanalítica se afirma como uma prática, essa prática não existe sem a dimensão ética. Se não há prática clínica sem ética, o mesmo acontece com a política, que visa constituir-se como o horizonte que organiza e anima a vida institucional de uma comunidade de analistas. Ou seja, não há uma prática institucional com a Escola e com o Instituto sem considerar a ética da psicanálise. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições que tentam se inspirar na prática institucional concebida, por Lacan, durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?

Em artigo publicado na revista La Cause freudienne, sob o título de “Política lacaniana”, Miller (1999) avança na ideia de que uma tal ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas perspectivas distintas: de um lado a “ética da boa intenção”, que não é freudiana, e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível com o campo conceitual freudiano. De outro lado, a “ética das consequências”, que sempre se julga pelo ato e, por meio do estatuto do ato, por seu valor e suas consequências. Para mim, não há dúvidas que essas duas perspectivas éticas sempre estão presentes como princípio para os que se dispõem na arte de governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.

Evidentemente que essas éticas aparecem como tendências que se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das questões que concernem as atividades cotidianas da instituição psicanalítica: a formação analítica, a admissão de novos membros, a autorização da prática clínica, o passe, a garantia, a produção, entre outras. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da boa-intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que seria uma instituição que, supostamente, responderia pelos fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra prisioneira dos limites da figura da hegeliana da “bela-alma”, que, no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação na qual estamos todos envolvidos.

Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura, necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de Escola importam muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no real de uma comunidade de analistas. É só observar o que nos últimos anos temos feitos com relação ao discurso analítico: mais do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade, dado provas de uma ação que visa injetar novos elementos nesse real.

Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de que o analista deve despojar-se de sua enfatuação, dando testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção, proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos a empreitada de dissolver os grupos e colocar em questão a lógica dos chefes e líderes, e passamos à fundação da Escola. E o que não poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de entrada, como uma forma de reconhecer que a autorização do analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto e de sua Seção Clínica.

A proposta do Instituto surge nos rastros do desejo de Lacan em criar um Departamento de Psicanálise, no contexto do ambiente universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos conhecem como sendo o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de re-fundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente do nosso Mestrado) e do Doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O próprio Miller (1997, p. 13) afirma que, se ele inventou o “Instituto foi para prosseguir, na França e em outros lugares, essa via que não é outra senão a de Lacan”. E a pergunta que emerge a partir daí é a seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, porque seria necessário criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de fundação que promoveu uma iniciativa institucional e a outra? Se trata simplesmente de espaços institucionais geográficos distintos? Claro que não! 

Duas lógicas distintas a serviço da formação analítica

Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende, invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia própria do discurso analítico se justifica em função de que é o saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que anima a existência da Escola e o que permite ter como seu sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe apenas existe porque a experiência analítica secreta essa forma de saber cuja lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e se produz por intermédio da transferência e é nisso que, enquanto modo de saber, ele está, genuinamente, ancorado na experiência analítica.

Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise, lhe é característico: o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio ao discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola na medida em que, ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação em detrimento daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a transferência de trabalho, transferência que apenas pode se personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto, entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que permanecerá para sempre como atópico: “Enquanto que a Escola se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região, país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo, tal como o matema” (MILLER, 1997, p. 13).


Referências
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
MILLER, J.-A. L’acte entre intention et conséquence. La Cause freudienne, n. 42, mai. 1999.
MILLER, J.-A. Ouverture de la surprise à lénigme. IRMA – Le Conciliabule d’Angers: Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma, 1997.
SANTIAGO, J. A querela atual do sintoma: o realismo lógico da psicanálise em face do nominalismo contemporâneo. Curinga, v. 24, p. 11-19, 2007.
[1] Conferência proferida em 15 de abril de 2023 durante atividade do IPSM-MG intitulada Para que serve o Instituto?
[2] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[3] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOYRÉ, 1982, p. 182)

 

Debate: 

Lilany Pacheco: Queria agradecer muitíssimo ao Jésus, um trabalho espetacular. Achei interessante isso de você enfatizar: a psicanálise não é, a psicanálise não é, a psicanálise não é… É parecido com o que Lacan fez nos seus Escritos para dizer o que o inconsciente não é. Achei essa pulsação importantíssima e que culminou nessa explicitação das duas lógicas de maneira espetacular, clara, marcada por esse percurso que nos deu o chão, para escutarmos a lógica que nos orienta em direção à Escola e a lógica que nos orienta em direção ao Instituto.

Jorge Pimenta: Jésus, quero agradecer a sua conferência. Eu gostaria que você voltasse a falar sobre o primado da prática, pois você citou a questão da militância no marxismo. Há um termo da dialética hegeliana retomada por Marx que é a práxis. Podemos pensar essa questão do primado da prática, ou a teoria da prática, em função desse termo, práxis. Achei interessante você ter feito essa referência à Weltanschaaung, na medida em que, em Freud, há uma distinção entre a prática da psicanálise daquela da filosofia que é essa de uma visão de mundo. Outra questão que eu faria é sobre a ética da psicanálise. Pode-se pensá-la não como uma deontologia, como é a ética das profissões; mas, o que seria a ética da psicanálise? Ela inclui o sujeito na sua vertente de parlêtre, o gozo, a pulsão?

Bruno Engler: Incialmente eu gostaria de te agradecer, Jésus, pelo esforço de demonstração do que para mim é o que fundamenta a nossa prática. Minha questão é a respeito do que eu entendi como uma ética do ato, uma ética em ato. Quero perguntar-lhe sobre o que estaria em jogo no ato de Lacan na dissolução da Escola tanto no que diz respeito à sua causa quanto em relação aos seus efeitos, como uma forma de pensarmos o lugar que estamos hoje.

Cristiana Pittella: Quero te agradecer muito, Jésus, por sua exposição. Você poderia retomar a questão da Escola como sujeito, a questão do ato e da ética própria da psicanálise? Poderíamos pensar assim também para o Instituto, pois, me pareceu que há algo que se conjuga com a Escola na forma do trabalho do Instituto.

Jésus Santiago: Antes de responder a sua questão, Cristiana, queria saber se você considera que o Instituto também deve ser concebido como um sujeito? Digo isso pois como se sabe, Jacques-Alain Miller propõe uma tese, na sua Teoria de Turim sobre o sujeito da Escola,  qual seja, que a Escola de Lacan deve ser tomada como um sujeito passível de interpretação. Como ele se exprime nesse texto: “a vida de uma Escola deve se interpretar. É interpretável. Interpretável analiticamente”.

Cristiana Pittella: Não sei e é exatamente isso que te pergunto: como considerar ou pensar Instituto? Por exemplo, chamou-me muito a atenção você destacar que “a jornada clínica incide na formação do analista”. Parece-me que há algo aí também do sujeito, do ato e da ética da psicanálise em jogo no Instituto.

Jésus Santiago: Sim, Cristiana, considero a sua questão de fundamental importância para pensarmos o futuro de nosso trabalho com o Instituto. Devo dizer-lhe que apesar das duas lógicas distintas, isto é, o saber suposto do lado da Escola e o saber exposto do lado do Instituto, penso que essas duas lógicas existem em função de um objetivo comum, que é a formação analítica. Isso quer dizer que a lógica do Passe e a do matema não existem na vida concreta desses dois sujeitos de Direito – Escola e Instituto – de forma separada e estanque. Logo, a vida coletiva do Instituto apenas tem lugar se estiver a serviço do discurso analítico. Concluo, portanto, de modo taxativo, que a vida coletiva do Instituto é tão interpretável quanto a vida coletiva da Escola.

Patrícia Ribeiro: Jésus, muito obrigada. Minha questão diz respeito ao que você sublinhou sobre o “risco de autofagia” no que toca ao discurso analítico. Seria possível pensar nesse risco a partir da leitura do texto de Miller (2005) “Uma fantasia”, especificamente quando ele afirma que o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista?

Jésus Santiago: É verdade, a hipermodernidade faz com que, de alguma maneira, o discurso da civilização passe a ser o discurso analítico, e não o discurso do mestre. Essa é a ideia central que Jacques-Alain Miller desenvolveu nesse texto ao qual você fez referência. Porém, explicite melhor o que você pensa sobre a relação dessa mudança com a tese da autofagia, ou seja, de que o discurso analítico tende ele próprio a se destruir.

Patrícia Ribeiro: Exatamente por isso, pelo fato de que não haveria mais, como esclarece Miller, uma relação de avesso da psicanálise, com o discurso do mestre, como havia antes, mas sim uma relação de afinidade, de convergência com a civilização.

Jésus Santiago: Bastante interessante a sua questão Patrícia. É verdade: se o discurso analítico – e não o discurso do mestre – passa a ser o discurso da civilização, pode-se conjecturar se isso não agravaria o processo da autofagia próprio do discurso analítico. Penso que, para avançarmos, teríamos que enfrentar o seguinte problema: para que a psicanálise possa exercer sua função de “lâmina cortante” das identificações subjetivas se faz necessário, ou não, uma relação de exterioridade da operação analítica com relação ao programa da civilização. Lembro-lhe que, nesse texto mesmo, Miller sugere a ideia de que o surgimento do discurso analítico trouxe consequências importantes no âmbito da sexualidade e da feminilidade. Em outros termos, desde o Século das Luzes não houve discurso mais potente do que a psicanálise para fazer vacilar os semblantes da vida civilizada. Assim, respondo a sua pergunta com uma outra pergunta: se a psicanálise não agisse de modo exterior ao programa dominante da civilização, ela teria desempenhado esse papel de fazer vacilar os semblantes nas esferas do sexual e do feminino?

Aluna do Instituto: Também quero te agradecer, Jésus. Fiquei pensando sobre essas perguntas que se fazem sobre a técnica da psicanálise, como, por exemplo, o manejo com o pagamento da sessão, fazendo acreditar que haveria respostas prontas para isso. Estamos hoje às voltas com isso, sobre como fazer operar, como obter respostas práticas, tais como cobrar a falta na sessão, sobre pagamento, etc.

Lilany Pacheco: Essa pergunta diz respeito aos jovens que demandam na supervisão, por exemplo, saber como agir nessas situações de falta à sessão, pagamento…

Aluna do Instituto: O que mais existe hoje são cursos que ensinam como cobrar a sessão, como se faz isso ou aquilo.

Jésus Santiago: As perguntas referentes ao modo como se analisa hoje são talvez as mais importantes e de mais difícil resposta. Não é à toa que tivemos inúmeras Jornadas e Encontros no Campo Freudiano que versam sobre o tema de como se analisa hoje. Na história do movimento freudiano, as questões que envolvem os procedimentos clínicos de intervenção segundo um conjunto de regras a serem seguidas denominava-se, até o surgimento do ensino de Lacan, “técnicas psicanalíticas”. Assim, as questões relativas à transferência e à contratransferência, à regra fundamental, à regra da abstinência e ao modo de intervenção (ativo ou passivo), à duração das sessões, à posição do analisante (frente a frente ou deitado no divã), entre outras, eram abordadas como se fossem questões de natureza puramente “técnica”. Foi Lacan quem trouxe um verdadeiro abalo nessa visão cristalizada do tratamento, em que as questões técnicas tornavam-se prevalentes com relação ao teor conceitual do que é o inconsciente, a transferência, a interpretação, a sessão analítica e etc. Por exemplo, ao abandonar a delimitação cronológica do tempo da sessão, submetendo-a a uma temporalidade variável ou curta, Lacan evidencia que as questões técnicas devem estar submetidas à perspectiva ética própria do discurso analítico. Ao ser portadora de uma temporalidade variável, a sessão analítica consiste em um modo de interpretação por meio do corte da sessão, sob a responsabilidade do analista.

Lucia Mello: Eu peço a você, Jésus, um comentário a respeito da Conversação Clínica, sobre a sua importância.

Jésus Santiago: Eu proporia uma distinção entre uma Conversação que teria incidência, de preferência, epistêmica, e outra, que teria um alcance mais clínico. Tomaria como exemplo da modalidade epistêmica a Conversação de Arcachon, que criou as condições para Jacques-Alain Miller formular a noção de “psicose ordinária”. Permito-me falar do alcance clínico da Conversação a partir da experiência que a Ana Lydia Santiago pôde desenvolver no contexto de projetos de pesquisa-intervenção que aconteceram no âmbito da rede pública de ensino. Segundo o método da Conversação, buscou-se intervir nesses sintomas da modernidade que são os problemas e impasses que atingem a vida escolar, na infância, como é caso do fracasso escolar, da segregação e da violência presente nas escolas.[i] É sabido que a escola lida muito mal com as particularidades da subjetividade, seja na infância, seja na adolescência. Nesse caso, o interesse maior da Conversação é resgatar a singularidade do sujeito e o modo como o coletivo pode abrir espaço, a partir da conversa, para que cada sujeito produza novas enunciações e práticas.

Como define Miller (2003), uma Conversação estimula a série de associações livres. A associação livre poder ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um dado momento. O intuito de uma Conversação não é produzir uma enunciação coletiva – pois, do ponto de vista da psicanálise, isso é impossível –, senão uma associação livre coletivizada, da qual se espera um certo efeito sobre o saber. Outros analistas fizeram uso do método da Conversação com o objetivo também clínico, como é o caso do Phillipe Lacadée, no âmbito dos jovens adolescentes e da variedade de sintomas que lhes concernem.   

Maria Rita Guimarães: Faço coro aos agradecimentos e cumprimentos a Jésus, sua conferência foi muito esclarecedora. O que me interessou muito diz respeito ao ato. Se eu me recordo da leitura desse texto ao qual você fez referência – Política lacaniana –, Miller (1997-98/2017) vai trazer uma pergunta: “como se reconhece um ato?”. E responde: “por seus efeitos”.

Então, me parece que, numa sessão clínica, o analista tem condições de reconhecer esse ato de um modo mais evidente na próxima sessão, no que vai se seguindo aí na análise. No CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) é possível a gente perceber que houve um efeito desse ato, mediante o impasse apresentado, quando, através da Conversação, esboça-se alguma saída. Como se poderia reconhecer o ato em suas consequências, segundo a política lacaniana, no coletivo institucional?

Jésus Santiago: Aparentemente, a pergunta da Maria Rita exigiria uma resposta que sairia do escopo de nossas discussões sobre o Instituto e a Escola. Porém, não! A própria existência da primeira Escola de Psicanálise, isto é, a Escola Freudiana de Paris, acontece como fruto de um “ato” – o ato solitário de fundação de Lacan. Entendo que o ato no plano do coletivo institucional supõe o desejo do analista, que, por sua vez, se define como a “pura enunciação” que visa a “diferença absoluta”. O ato de fundação vem para impedir aquilo que é um pressuposto da própria constituição da IPA (International Psychoanalytical Association), a saber: criar um coletivo que congregue todos os analistas do mundo. Sendo que não existe todos os analistas e tampouco o analista. “Só existe um analista, mais outro, mais outro, mais outro analista, tem mille e tre analistas” (MILLER, 1984, p. 15).

Há ainda o fato de que esse conjunto de todos os analistas está referido – porque não dizer “identificado” – ao Outro que se situa fora dele: o pai morto. Para Miller (1984, p. 15), “a IPA é um coletivo de analistas fundado pela identificação ao pai morto”. A Escola de Lacan não se constitui como um conjunto fundado no culto da memória e tampouco no apego ao legado de seu ensino. O ensino de Lacan existe de modo vivo, entre nós, orientando-nos em nossas práticas clínicas e institucionais, em que cada analista entra com a singularidade própria de sua experiência do inconsciente e do modo como cada um fez a passagem de analisante e analista. Vale dizer que constituímos um conjunto paradoxal e sem uniformidade e homogeneidade, um conjunto à la Bertrand Russell que tem como ponto de partida o axioma:  “o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos”. Considere que o conjunto P é: o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos. Se todos os conjuntos estão formando outro conjunto, então ele não pode ser um conjunto, daí surge o paradoxo inerente à orientação lacaniana: não existe conjunto de todos os conjuntos, nem classe de todas as classes.

Tânia Abreu: Jésus, é sempre um prazer te ouvir. Eu estou trabalhando em minha tese de doutorado sobre a experiência analítica e seus efeitos de formação, e ela tem relação com o que você falou, sobre o fato de que o analista se autoriza de si mesmo. Achei fantástico você fazer essa diferença entre o Instituto e a Escola a partir do Passe, nesses termos: “O instituto, que não tem o Passe, mas o matema, pode ser interpretado?”. A Escola pode ser interpretada, pois ela é sujeito, ela é dividida.

Você colocou o matema do lado do Instituto e o Passe do lado da Escola. A interpretação, a meu ver, só pode mesmo estar do lado da Escola. Mas o Instituto precisa avançar também, precisa ser revisto o seu mecanismo. Qual a ferramenta que podemos pensar para esse aguilhão?

Jésus Santiago: Tânia, creio que já pude responder a sua pergunta quando tratei da questão formulada por Cristiana Pittella. Mesmo que a interpretação esteja preferencialmente do lado da Escola e, sobretudo, porque no seu coração temos o Passe e o AE – cuja função principal, como temos visto em nossas discussões, é interpretá-la –, isso não invalida que o coletivo de analistas que assumem responsabilidades possa lançar mão da interpretação no trabalho do Instituto. Afirmo isso na medida em que o trabalho de transmissão do saber analítico no Instituto se faz sob os auspícios dos princípios e meios que se veicula no próprio discurso analítico. Nesse sentido, o instrumento com o qual contamos para fazer valer a função de aguilhão do Instituto é tanto a transferência de trabalho quanto a interpretação – notadamente, quando esta última incide sobre os efeitos de grupo e ao mutualismo inerente à vida associativa das instituições psicanalíticas.

Marcia Mezêncio: Agradeço por sua exposição. Eu também estou às voltas com esse tema sobre o qual discuti nas Lições Introdutórias, bem como na Diretoria de Cartéis. São questões sobre o saber suposto e o saber exposto, a elaboração provocada do saber e o aguilhão. Mas fiquei me perguntando, diferentemente dessa distinção, sobre o que haveria em comum entre a Escola e o Instituto. E se a resposta não seria a transferência de trabalho, porque ela está em questão no Passe, no Cartel e no Instituto. Se o Instituto está articulado à vertente do saber exposto, como ele poderia fazer uso da transferência de trabalho?

Jésus Santiago: Vou dar continuidade às minhas respostas com a questão do Jorge. É interessante porque ele faz uso do termo práxis, que foi muito corrente num momento em que, tanto ele como eu, estávamos imersos numa prática política militante contra o regime de ditadura militar que tomou conta do Brasil a partir de 64. Aliás, nós exercíamos uma militância em um grupo político revolucionário – Ação Popular Marxista-Leninista – que, inicialmente, adotava uma orientação maoísta e, pouco a pouco, migrou para uma perspectiva leninista e com forte influência do marxista italiano Antônio Gramsci. A questão das relações entre a prática e a teoria sempre foi uma questão importante para os militantes da esquerda revolucionária em ação sob o regime da ditadura militar. Havia toda uma polêmica sobre a questão da prática, sobre o voluntarismo, o “tarefismo” e, também, sobre o lugar da teoria e da formação teórico-política do militante. É verdade que, nesse momento dramático de nossa história política, surge, entre nós, o uso corrente dessa categoria práxis. Como explicar esse uso? Penso que se tratava de encontrar uma relação “dialética” entre a teoria e a prática, uma vez que nos defrontávamos com o que, para nós, era o desvio do “tarefismo”, ou do voluntarismo, ou seja, para a militância, a ação política tendia a se tornar uma “prática sem teoria”.

Do lado do marxismo também chamado de estrutural, aquele propugnado por Louis Althusser (1977), buscava-se resolver esse problema do voluntarismo do militante por meio do que ele designava como a “prática teórica”. Ele próprio foi levado a fazer uma “autocrítica” porque isso levou a um outro tipo de desvio: o do teoricismo, ou seja, uma “teoria sem prática”. No fundo, sob o nome de “teoria”, Althusser aposta em algo inteiramente diverso do que o surgimento da psicanálise pode promover a esse respeito, pois, segundo ele, a “prática teórica” seria capaz de gerar algo novo no domínio do pensamento e da ação.

No terreno da psicanálise, me parece curioso o fato de que o termo práxis surge, logo no início do Seminário 7, A ética da psicanálise”, provavelmente, porque Lacan (1959-60/1988) debatia com o ambiente psicanalítico de sua época a questão da redução da prática analítica a um protocolo de regras técnicas. Um ano após, durante o Seminário 8, A transferência, Lacan (1960-61/1992, p. 85) esclarece que o emprego do termo práxis se justifica pelo fato “de que o acesso ao real não deve ser concebido como correlativo da busca de um tema” – que seria teórico – “ainda que este seja universal”. Ele é explícito a esse respeito, ao dizer, que a “théoria […] por mais contemplativa que possa ser, ela não é somente isso, e a práxis da qual ela se extrai […] o demonstra de modo suficiente. Sob esse ponto de vista, a ideia de uma “prática teórica”, como sugere Althusser, constitui-se, para o campo freudiano, um disparate. A teoria não é, portanto, “uma mera abstração da práxis, nem sua referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação” (1960-61/1992, p. 85). Em suma, com o termo práxis, Lacan mostra que, em psicanálise, o surgimento da teoria não se faz sem a interveniência da prática, e a teoria, por sua vez, se confunde com o exercício e o poder – to pragma – do fazer e do ato analítico. A meu ver, é insuficiente o simples apelo à interação dialética entre a teoria e a prática, a exemplo do que faz o marxismo, como argumento para manter o emprego do termo práxis. Tenho a impressão que a vertente mais autêntica do que vem a ser a práxis apenas se mantém no horizonte de práticas que se sustentam no âmbito da experiência, como é o caso, na psicanálise, da experiência do inconsciente.

Por outro lado, as práticas que se alimentam pela via dos ideais, por exemplo o ideal de transformação do mundo, com vistas a atingir uma sociedade justa, sem oprimidos e exploradores – tendem rebaixar a prática ao plano de um ativismo com conotações messiânicas. Para Walter Benjamin, marxismo e messianismo, revolução e redenção, seriam duas faces de uma só e mesma pessoa, ou de um só e mesmo pensamento. Segundo ele, “a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da redenção” (BENJAMIN, 1940/2012, p. 242). Portanto, que laço se pode estabelecer entre esses dois aspectos, em que um se qualifica como “política” e o outro como “religião”? Longe de se excluírem, esses dois aspectos parecem se reforçar mutuamente, encontrando no pensamento de Benjamin analogias surpreendentes, que chega a falar de “paradoxal reversibilidade recíproca” do religioso no político e do político no religioso. Ao contrário do evolucionismo de esquerda, Benjamin não concebe a revolução como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso econômico e técnico (ou da contradição entre forças e relações de produção), mas como interrupção de uma evolução histórica criando as condições para uma sociedade sem classes, sem Estado e sem dominação patriarcal. Contrário a uma visão linear e quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da temporalidade fundada por um lado na rememoração, por outro na ruptura messiânica e revolucionária da continuidade. A revolução é o equivalente profano da interrupção messiânica da história, e também, como se disse antes, “suspensão messiânica do devir” (LÖWY, 2012, p. 135).

Por outro lado, entendo que a questão da prática assume uma especificidade própria em função desse viés profundamente anti-messiânico que circunscreve o fazer clínico do psicanalista a uma operação sobre o sintoma. Meu ponto de vista é que isso introduz na relação entre teoria e prática uma perspectiva pragmática no fazer clínico do psicanalista que provém do último ensino de Lacan. É o que permite referir-se ao primado da prática sobre a teoria psicanalítica que assume o valor de um princípio epistêmico que se faz presente desde o momento em que a psicanálise desponta na cena do mundo enquanto um tratamento ofertado ao ser falante. Assim, a via pragmática se afirma, uma vez que, para Lacan, não há uma psicanálise teórica que se diferencie de uma psicanálise aplicada e que esteja completamente separada desta última. Se não existe uma teoria psicanalítica propriamente dita, é com efeito certo que, em Freud, a clínica da histeria apenas venha à tona segundo uma “teoria da prática psicanalítica” (LACAN, 1968-69/2008, p. 64).

Sobre a questão da deontologia, posso responder a partir do que disse antes: a deontologia considerada como um conjunto de regras e de deveres que regem a prática analítica seria o avesso da dimensão propriamente ética da psicanálise. Se a deontologia constitui um conjunto de regras a ser seguida, ela é, portanto, exatamente o contrário do que são os princípios que orientam a ação do analista. A esse respeito, vale a pena recuperar o que Miller aborda em seu curso “Donc” acerca do paradoxo do cético de Wittgenstein enunciado pelo lógico Saul Kripke (MILLER, 2011). Em termos analíticos, eu traduziria esse paradoxo assim: nenhum ato analítico pode ser determinado por um protocolo de regras a serem seguidas, pois não há como garantir, por meio de um saber seguir regras, um saber fazer futuro consoante com supostas regras.

Houve um momento em que o campo analítico se viu ameaçado pela vontade do Estado-providência de regulamentar a psicanálise, e, nesse momento, fomos levados fazer um esboço de um código deontológico que expusesse os princípios e procedimentos da prática analítica. Tendo em vista que esses projetos de regulamentação não foram adiante, esse código foi para gaveta.

Lilany Pacheco: E está na gaveta….

Jésus Santiago: Sim! Ficou na gaveta. Com isto quero dizer que não é possível conduzir um tratamento analítico no horizonte de um código deontológico. Vou aproveitar para responder à aluna do Instituto que fez uma questão importante sobre a técnica. Evidentemente que as questões sobre a técnica psicanalítica surgem quando estamos em dificuldades com algum problema no tocante ao atendimento de um paciente. Muitas vezes, procura-se resolver essas dificuldades por intermédio de um fazer sob o comando de um conjunto de regras prescritivas. Lacan propõe que as questões técnicas devem estar submetidas aos princípios que conferem substância à chamada ética da psicanálise. Isso significa que não há como dirigir um tratamento analítico por meio de um protocolo de regras técnicas a serem seguidas. A medicina hoje, a tão propalada “medicina baseada em evidências”, é marcada pelo uso de guidelines, pelo emprego rotineiro de protocolos e, em suma, por princípios de caráter estritamente técnicos. Parecem-me importantes os questionamentos e as investigações, que já têm lugar no terreno da medicina, sobre o emprego do protocolo na atividade clínica do médico.

É possível afirmar que na prática psicanalítica, em contraste com essa disseminação do uso dos protocolos na medicina, exige-se uma relação íntima entre teoria e prática, e tendo a considerar que esse ponto se constitui como algo inédito no campo dos saberes em geral.  À luz do ponto da psicanálise, pode-se dizer que uma questão que emerge na atividade clínica do analista não se resolve sem a dimensão teórica, sem a dimensão conceitual. Porém, é preciso admitir, por sua vez, que essa mesma dimensão conceitual apenas adquire consistência e valor epistêmico, se ela emana a partir de uma problematização que tem lugar no seio da prática analítica.

A meu ver, é nessa interação dialética entre teoria e prática que reside o precioso aforisma enunciado por Miller: “não há clínica psicanalítica sem ética”. Vale dizer que as relações entre teoria e prática são um dos principais princípios éticos da psicanálise. Aliás, é no interior desse problema que se pode inserir a importância da prática da supervisão. A supervisão entendida não apenas como um trabalho dirigido à construção do caso, mas, também, como espaço para a interpretação da prática do analista e do desejo do analista. Por exemplo, é o trabalho da supervisão que pode lançar-se na questão: temos nesse caso clínico o funcionamento do desejo do analista como motor do tratamento?

Sobre a pergunta do Bruno Engler, sobre a questão da dissolução, parece-me interessante colocá-la como uma referência para se pensar a dimensão do ato, sobre a dimensão ética do ato, como você mesmo se expressou. O interessante no caso do ato da dissolução é constatar o que diz Miller no texto que citei antes: “Um ato entre a intenção e a consequência”. Afirma-se assim: não é que não haja nele o componente da intenção. No fundo, todo ato é portador de uma intenção. E respondendo também à Maria Rita: no entanto, o que importa destacar na concepção lacaniana do ato analítico é a sua consequência. Permanece, para todos nós, a questão: quais são as consequências do ato da dissolução? Portanto, apenas se obtém o alcance do ato por intermédio de suas consequências. É o caso também da interpretação! Só se pode aquilatar o alcance de uma intepretação a partir de seus efeitos. Assim, a interpretação apenas existe em relação com os seus próprios efeitos. Por essa razão, é quase impossível querer fazer uma teoria exaustiva do que vêm a ser as diversas modalidades da interpretação na prática analítica.

Agora, eu acho que há um outro ponto importante no ato da dissolução, promovido por Lacan, ponto que Miller aborda, nesse texto, e que, para mim, permanece em aberto. Trata-se do que num dado momento desse texto ele se propõe a esclarecer, que é a orientação que Lacan adotava para a sua prática institucional. Ele se pergunta se Lacan não mantinha um respeito excessivo para os grupos existentes no interior de sua Escola. É quase como se ele tomasse a formação de grupos num coletivo de analistas como um real insurgente. De alguma maneira, isso se constitui como um problema para a política de Escola, tendo em vista que esses grupos muitas vezes incorrem em perspectivas incompatíveis com os princípios do que o próprio Lacan ensinava.

Vejam, por exemplo, a importância que psicanalista de confissão católica Françoise Dolto assumiu no ambiente da Escola Freudiana de Paris. Em uma entrevista de Jacques-Alain Miller (2022, p. 425) recentemente publicada no livro Lacan Redivivus sobre o ato de dissolução em Lacan, ele revela a formação de um grupo que ele nomeia como o “partido jesuíta”, ou o “partido católico”, que assume claramente uma perspectiva que degrada sobremaneira as finalidades do discurso analítico. Aponta-se, inclusive, que o grande líder dessa tendência católica dentro da Escola Freudiana de Paris era o grande teórico, especialista em história e na mística cristã, o jesuíta Michel de Certeau. Então, o que aconteceu naquela ocasião é que a dissolução privilegiou o funcionamento do tipo Escola e buscou intervir nos efeitos de grupo que, de alguma maneira, degradavam a própria finalidade da Escola que é a formação analítica.

É nítido que, ao longo de sua trajetória, Lacan sacrifica a iniciativa institucional em nome do discurso analítico. Respondendo ao Bruno Engler, eu diria que a dissolução é um momento crucial para entendermos o que vem a ser o ato analítico propriamente dito. E diria mais: o ato da dissolução de Lacan encarna o essencial do ato analítico, que é a passagem de analisante à analista. Digamos que a Escola Freudiana de Paris estava voltada muito mais para favorecer e alimentar o discurso do mestre do que dar sustentação ao que designamos como discurso psicanalítico.

Acho importante a lembrança de que a dissolução se constitui como um momento exemplar do que seria o ato analítico e que o ato não é apenas o ato de fundação. E, sob essa ótica, o ato de fundação traz nele próprio a dissolução.

Por outro lado, se a Escola de Lacan deve estar a serviço do discurso analítico e se, por definição, todo discurso é o que faz laço social, deve-se levar em conta a relevância de sua inserção legal/jurídica na sociedade civil. Diante disto, se pode ter uma ideia da importância dos estatutos jurídicos tanto para a Escola, quanto para o Instituto. Na minha opinião, a importância do pertencimento simbólico de uma instituição psicanalítica no terreno do público é tal que ela só passa a existir no momento em que se torna detentora de um estatuto legal, jurídico. Por isso Lacan estimulava que as instituições psicanalíticas deveriam buscar o reconhecimento de utilidade pública junto dos órgãos competentes.

Retorno, agora, à questão da Cristiana Pittella que, a meu ver, converge com a pergunta da Tânia. Acredito que esse ponto é fundamental para as nossas discussões sobre as relações entre Escola e Instituto ao assumir uma posição de que o Instituto é tão sujeito quanto a Escola e, portanto, como a Escola, o Instituto é também interpretável. Posso dar um exemplo do quanto o Instituto também é interpretável. É inevitável para todo aquele que assume tanto responsabilidades de condução dos trabalhos, quanto tarefas com a transmissão da psicanálise no seu interior, se perguntar se o trabalho desenvolvido se mostra compatível, ou não, com o discurso analítico. Se a lógica do Instituto é a do saber exposto, é a do matema, evidentemente que corremos riscos de nos confundirmos com o que fazem os universitários. Sempre me chamou a atenção a frase inicial do escrito de Lacan (1975/2003, p. 316) “Talvez em Vincennes”: “Talvez em Vincennes venham a se reunir os ensinamentos em que Freud formulou que o analista deveria apoiar-se, reforçando ali o que se extrai de sua própria análise, isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu”. Ainda que se tratasse da criação de uma Seção Clínica, Lacan formula, nessa passagem, que o trabalho de transmissão do saber analítico deve se apoiar na experiência do inconsciente que teve lugar no transcurso de uma análise. Por mais que o foco do que se transmite na Seção Clínica passe preferencialmente pelo saber exposto, é preciso concebê-la como permeável àquilo que Freud inventa como a base da clínica psicanalítica, a saber, a experiência do inconsciente. Por consequência, a Seção Clínica deve ser considerada como uma extensão da sessão analítica, tendo em vista que consiste em mais “uma maneira de interrogar o psicanalista, de lhe forçar declarar suas razões” (LACAN, 1977, p. 14). Minha hipótese é de que o Instituto, o nosso Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, tornar-se-á mais suscetível de interpretação caso ele se aproxime ainda mais dos princípios de funcionamento do que Lacan chamou de Seção Clínica.

Acrescento ainda que, em Minas Gerais, temos uma situação muito favorável, pois o Instituto e a Escola existem como espaços institucionais conectados um ao outro. Penso, inclusive, que devemos favorecer, cada vez mais, essa interação entre essas duas instituições. Não devemos, de modo algum, manter o funcionamento dessas duas modalidades de coletivos de analistas como formas institucionais estanques. Ressalto, por último, que uma outra razão que torna interpretável o Instituto é o fato de que este se apresenta, de alguma maneira, subordinado à lógica da Escola. Portanto, devemos favorecer o processo de interação entre Escola e Instituto, na medida em que, no tocante ao discurso analítico e às exigências próprias da clínica analítica, o saber exposto apenas encontra suas razões considerando a prevalência do saber suposto.

Com relação à pergunta da Márcia Mezêncio acerca da função do aguilhão do Instituto com relação ao discurso analítico, eu entendo da seguinte forma: se você se dirigir à Universidade fazendo o uso dos termos conceituais como o objeto a ou a função do S1 no tratamento analítico, será preciso detalhar e explicitar do modo o mais transparente possível o valor desses termos. Já em nossas discussões clínicas, quando fazemos uso deles, não se faz necessário explicitá-los e detalhá-los. No terreno de uma discussão clínica, em nossas Jornadas ou Congressos, a conversação flui e avança, pois o que anima essas discussões são os interesses imediatos, ou não, relativos à prática da psicanálise.

Na Universidade não é assim, pois ela se mantém em função de uma exigência e rigor com relação ao que denominamos de saber exposto. No meu ponto de vista, e conto, a esse respeito, com muitos anos de experiência como professor universitário, essa exigência concernente ao saber exposto se constitui de um modo radicalmente outro, no âmbito do Instituto de Psicanálise. Se o Instituto lida preferencialmente com o saber exposto, ele, ao mesmo tempo, reconhece a primazia do saber suposto na operação analíticaPorém, como questiona Márcia, porque afirmar que o Instituto funciona como um aguilhão? Eu penso que o uso da figura do aguilhão para caracterizar o estilo de trabalho do Instituto apenas se esclarece se o colocarmos diante da tese da autofagia inerente ao discurso analítico. O fator de aguilhão próprio do saber exposto existe para estabelecer alguma medida ao efeito de dissipação ou corrosão próprio do que é basal na experiência analítica, isto é, o saber suposto. Em outras palavras, se aquilo que se conquista na análise, se a especificidade do saber que se adquire na experiência viva da análise, tende a se esvair, se faz necessário ao coletivo de analistas o saber exposto como meio de preservação do discurso analítico.

A esse propósito, considero os testemunhos de Passe como uma manifestação exemplar do que acabo de dizer. Não sei se os colegas AE que estão presentes nesta sala vão estar de acordo, mas eu julgo que há uma diferença substancial entre os primeiros e os últimos testemunhos de um AE. À proporção que avança o que acostumamos chamar entre nós de “ensino do AE”, o teor de enunciação dos testemunhos tende a reduzir sua força e sua intensidade. Segundo o vocabulário empregado nesta manhã, eu arrisco dizer que à medida que os testemunhos se avolumam, o saber do AE tende a tornar-se saber exposto. Ou seja, passa-se a falar da passagem de analisante à analista em termos mais conceituais, com uma perda significativa, em suas construções, do valor e do alcance de sua experiência mais íntima com o inconsciente.

Maria José Gontijo SalumAgradeço pelo que você trouxe. Concordo com o que você falou sobre privilegiar a Seção Clínica e, especialmente, dando esse passo, que é o de propor a Conversação Clínica. Ela traduz uma maturidade nas discussões clínicas no interior do Instituto em Minas Gerais, após todos esses anos de funcionamento. O que eu queria perguntar – e me parece fundamental quando se retoma a discussão do saber exposto a partir da relação da psicanálise com a ciência – seria sobre o uso que a psicanálise pode fazer da ciência, no sentido de se abrir para os procedimentos da ciência. Isso não seria também uma forma de responder à pergunta dessa atividade de hoje sobre “Para que serve o Instituto?”, ou seja, se essa operação seria possível de ser feita no interior do Instituto?

Eu pergunto pois a maioria dos jovens que chegam ao Curso de Psicanálise do Instituto, e ouvimos isso ao fazermos as entrevistas, demandam localizar no Curso, por exemplo, a possibilidade de não simplesmente estudarem a psicanálise, mas de uma certa sistematização. E, quando perguntamos sobre o que é essa sistematização, o ponto ressaltado por eles é a articulação da prática com a teoria psicanalítica.

Outro ponto que eu queria também destacar, a partir da relação Escola-Instituto, é que não há a menor dúvida de que o Instituto só existe a partir da Escola, sustentado pelos membros da Escola. Acho isso fundamental e, nesse sentido, me parece que um modo de o Instituto não ficar repetindo um modelo de mestria e de grupos é por meio de sua relação com a Escola, pois a política da psicanálise se faz a partir da Escola. Sendo assim, o Instituto conectado à Escola é fundamental.

Jésus Santiago: Para responder à questão da Maria José – “Para que serve o Instituto?” –, vou retomar a questão da Conversação. Digo isto pois tenho a convicção de que qualquer aggiornamento possível do Instituto terá que passar pelo que chamaria de método da Conversação. Acredito que por essa via nós teríamos mais chances de aproximar a oferta de formação que dispensa o Instituto daquilo que se constitui como o seu sustentáculo, que é a Seção Clínica. Voltemos, portanto, sobre o modo como se pode conceber a Conversação tal como ela vem sendo praticada entre nós. Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela é um dispositivo que foi criado, alguns anos atrás, por Jacques-Alain Miller, com o intuito de dar conta das grandes questões clínicas geradas pela desordem do real que se instalou com o advento do século XXI. A problematização da atualidade clínica que o psicanalista enfrenta, em seu cotidiano, culminando com a invenção da chamada psicose ordinária, é decorrente da Conversação de Arcachon. Devo destacar aqui todo um campo de elaboração acerca do tema da Conversação, sendo que a mais conhecida é a que surge com um dos ícones da filosofia pragmática, nos Estados Unidos, que é o Richard Rorty. É possível extrair elementos sobre a teoria da Conversação em sua concepção pragmática da linguagem, pois o interesse da filosofia, segundo o filósofo, não é epistêmico, mas ético. O objetivo da conversação não é atingir a verdade, mas fazer existir a série potencialmente infinita que por si só é o signo de um progresso, para o saber, e não de uma regressão (RORTY, 1961).  Devo referir também, a partir de sugestão que me foi transmitida pela Ana Lydia, ao escritor e ensaísta francês Marc Fumaroli (1994), que em seu livro Trois institutions littéraires trata do assunto. O autor se dedica a explicitar a ideia de que a Conversação, concebida como uma instituição privada, é elevada, na França, à categoria de uma arte: ela impulsiona a criação de um “fórum de espíritos”, em que o lugar e o laço comum era a literatura. A “arte da conversação” é vista, por Fumaroli, como um dos alicerces da cultura clássica francesa, pois designa uma prática desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, caracterizada pela busca de uma dimensão estética e hedonista nas trocas mundanas. A expressão concerne originalmente à conversação mundana, mas suas práticas e seus valores se estendem para o conjunto da sociedade culta e tiveram grande influência na literatura clássica francesa.

Um bom exemplo do que vem a ser o uso do princípio da Conversação no Campo Freudiano é o livro, recentemente publicado na França, que trata do tema da solução trans. Esse livro, que em breve será traduzido para o português, é o estabelecimento da Conversação de UFORCA (Union pour la Formation en Clinique Analytique) tal como ela aconteceu, sob a base do dizer de seis sujeitos que se veem ocupados por uma problemática trans e que decidiram falar com um psicanalista inserido nos trabalhos e atividades de uma Seção Clínica. Esclareço que a Conversação de UFORCA se realiza em torno Seções Clínicas francófonas que, como se disse antes, não se confundem com a Escola. Pois a Seção Clínica é um Instituto de formação no qual os docentes e responsáveis são de orientação lacaniana. Ela propõe, portanto, o ensino fundamental de psicanálise, que se estrutura em torno de três eixos: seminários teóricos, seminários práticos e conversações clínicas com os pacientes. Parece-me decisivo para o futuro do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais a introdução desse método da Conversação Clínica. Porém, é preciso considerar que a realização de uma Conversação Clínica, segundo esse método, praticado nas Seções Clínicas francófonas, passa por algumas exigências, a saber: a escolha de uma temática clínica rigorosamente escolhida e que concerne uma problemática pertinente à prática analítica; os casos clínicos escolhidos deverão ser previamente discutidos e construídos; realização de uma brochura contendo o relato dos casos, a ser distribuída com alguma antecedência; e, por fim, a conversação deve visar a extração de teses, hipóteses e, sobretudo, uma orientação clínica para o nosso trabalho analítico cotidiano.

Henri Kaufmanner: Você formalizou duas questões sobre as quais venho pensando, pois, nesses últimos anos, tenho acompanhado a formação dos novos Institutos e das novas Seções – Sul, Nordeste, Leste-Oeste – como êxtimo, inicialmente, e, depois, como presidente da Escola Brasileira de Psicanálise. No entanto, há algo aqui em Minas que fazemos há muito tempo e que é interessante nessa discussão da construção dos Institutos: trata-se de um certo tensionamento quanto à oferta de cursos de formação. É claro que há uma demanda financeira, os cursos permitem sustentar a estrutura da Escola. Mas, mais do que isso, há uma relação com o saber e com o ensino que constitui um caminho complicado nessa discussão que você traz de maneira tão clara e brilhante.

Quando você afirma sobre a importância de se criar espaços e investir, prioritariamente, na dimensão da clínica – e minha participação nessas reuniões sempre foi apontando a importância da Seção Clínica –, você não falou sobre a psicanálise em intensão e em extensão. Mas parece que há algo em que o Instituto pode operar, nisso que chamamos da psicanálise em extensão, que é a inscrição do Instituto na cidade, nos serviços, nas redes.  É algo que em Minas já existe há muito tempo, embora já tenha sido muito maior, pois as condições políticas hoje não são tão favoráveis como já foram. Contudo, temos sempre que tender a expandir. E, então, quando você formaliza o Passe, isso esclarece algo que tem relação com a pergunta da Tânia Abreu e que seria o seguinte: qual o real em jogo em cada uma dessas formulações. Se a pergunta da Escola é sobre o que é um analista, o que o matema traz é uma tentativa de formalização da nossa prática, de inscrever algo da nossa prática, de escrever de alguma forma o real, fazer uma fórmula do real, o que é da ordem do impossível também.

Nós sabemos que isso inspirou Lacan a fazer uma matematização da psicanálise, ainda que o matema não seja uma fórmula. O que interroga o Instituto é seu enfrentamento do real da cidade, dos seus espaços e da tentativa de matemizar isso que é da ordem do impossível. É importante que tenhamos essa clareza, pois, se a Escola é sujeito e é interpretável, o Instituto pode se apresentar dividido a partir desse encontro com esse real da experiência. Isso está ligado a uma maior participação do Instituto nos espaços mais diversos, o que a gente já fez aqui em Minas, mas que hoje vive um refluxo.

Jésus Santiago: Sou bastante sensível a essa formulação proposta pelo Henri Kaufmanner de que é preciso contar com a presença do real em nossa política institucional dirigida seja à Escola, seja ao Instituto. Diante disto, é preciso ter uma certa atenção como os rumos da oferta de formação analítica que ele intenciona fazer. Esse cuidado com o Instituto diz respeito ao fato de que se faz necessário introduzir esse real da clínica, considerando que o seu forte é transmissão por meio do saber exposto. Quando falei de aproximação do Instituto com a Seção Clínica pensava exatamente nesse ponto de que as nossas atividades visando a formação não podem se restringir à transmissão do saber exposto, sem o concurso do real da clínica. Tendo a considerar que, sem a introdução desse real da clínica, como se referiu anteriormente Henri, nós abrimos as portas para a lógica de grupo, ou mesmo para a lógica de reconhecimento que se faz a partir da formação de grupos no interior da instituição psicanalítica. É sabido que Lacan não considerava que, ao constituir um funcionamento do tipo-Escola para um coletivo de analistas, que isso eliminaria, como num estalar de dedos, os efeitos de grupo. Em nossas conversas sobre a orientação lacaniana concernente à instituição psicanalítica, Antônio Benetti sempre enfatiza que, diante do real em jogo no próprio funcionamento do tipo Escola, é inevitável a formação de grupos mutualistas como uma das respostas possíveis. Se o grupo traz em seu cerne uma consistência que é própria do imaginário, evidentemente que ele se presta a ser utilizado como resposta ao real em jogo na formação infinita do analista. Se, por um lado, é quase inevitável a tendência à formação de grupos, por outro lado, a criação da Escola visa, em última instância, o tratamento desses efeitos de grupo. Assim, se os grupos não são elimináveis, eles terão que ser tratados, inclusive interpretados pela própria Escola-sujeito. Se, de um lado, eu estou inteiramente de acordo com o Henri, de que se faz necessário fazer valer o real no cerne das atividades do Instituo, de outro, discordo dele quando nomeia como sua tarefa principal o enfrentamento do real da cidade. Penso que o objetivo a ser buscado pelos responsáveis do Instituto é, sim, tensionar os seus cursos, seminários clínicos e outras atividades através do real da clínica.

É sob esse viés que temos que adotar um olhar crítico sobre o que é um curso ou um seminário clínico articulado à concepção lacaniana da formação analítica. Por exemplo, um curso do Instituto se distingue da gama de cursos que surgem na cidade pelo simples fato de que um curso do Instituto toma a psicanálise como uma prática. A dimensão da prática tem que ser muito bem exposta num curso de formação. Portanto, não podemos fazer um curso como os demais cursos de especialização ligados às Universidades. Não podemos fazer um curso sobre o conceito de inconsciente, conceito de pulsão, conceito de estruturas clínicas, etc.

Nós temos que trabalhar melhor entre nós para criar uma alternativa que seja inovadora e compatível com aquilo que é o objetivo da psicanálise e que é tratar o sintoma. Estou insistindo muito nesse ponto, mas, se a gente não levar isso em consideração, simplesmente a psicanálise vai sofre os mesmos abalos que um dia sofreu o marxismo.

A psicanálise não deve, por exemplo, se tornar uma mera ideologia de defesa das questões de gênero, das questões segregativas – e não digo que a questão da segregação não tenha a sua importância, mas não é a Escola que tem que abraçar essa causa. A causa da Escola é a formação do analista. Se abdicarmos desse ponto, a psicanálise vai acabar, vai se extinguir. Se a psicanálise se transformar numa ideologia, se ela perder o seu teor subversivo, que é o de tratar o sintoma, ela vai se fragilizar enquanto discurso. Desse modo, eu penso que temos uma responsabilidade em não deixar reduzir a psicanálise a mais uma cosmologia ou a uma ideologia sobre a modernidade, sobre o contemporâneo, sobre as questões da segregação racial e sexual! Essas questões existem e temos que encontrar as formas mais compatíveis com o discurso analítico para tratá-las. Por essa razão, considero que deveríamos favorecer a perspectiva da Seção Clínica no contexto do funcionamento do Instituto.

Lilany Pacheco: Nesse sentido, me parece importante pensar, em relação à Seção Clínica, que os Núcleos de Pesquisa não se constituam em grupos de especialistas.

Jésus Santiago: O problema é que trabalhar no sentido da aproximação do Instituto e da Seção Clínica não é nada simples. Em primeiro lugar, porque temos que conviver pela frente com a proibição da apresentação de enfermo, que é o elemento fundamental na estrutura da Seção Clínica. De toda forma, devemos fazer todos os esforços de invenção para fazer prevalecer os princípios que orientam a tese lacano-milleriana da Seção Clínica.

Maria de Fátima FerreiraJésus, obrigada por sua conferência. Me chamou a atenção o modo como funciona a Conversação Clínica, especialmente a discussão do caso clínico. Eu quero te perguntar sobre o seu modo de funcionamento, pois não é o psicanalista que trouxe o caso clínico quem o apresenta, não é? Conforme você diz, há um modo de funcionamento anterior à Conversação em Cartéis, nos quais se discutem os casos clínicos, mas, no momento da Conversação, me parece que o analista responsável pela condução do tratamento, bem como os debatedores que intervêm na discussão, acionam um funcionamento bem parecido com a lógica do Passe. Teríamos um passante (o analista) que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado.

Jésus Santiago: Você tem toda razão sobre o modo como as Conversações Clínicas acontecem na França, elas têm um funcionamento que contém particularidades que dificultam muito o emprego desse mesmo dispositivo entre nós. Aliás, é preciso dizer que, quando a Maria José era a Diretora Geral do Instituto, nós iniciamos uma discussão para avaliar a viabilidade de uma Conversação nos moldes das Jornadas Clínicas do UFORCA. É claro que a realização dessas Jornadas, no contexto do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, requereria de nossa parte uma capacidade inventiva para encontrar soluções compatíveis com as circunstâncias particulares de nosso funcionamento. Nesse sentido, Fátima, eu considero bastante pertinente a sua hipótese sobre a analogia do funcionamento das Jornadas UFORCA com a lógica de transmissão do Passe. Penso, no entanto, que essa analogia não se justifica apenas pela similaridade do modelo organizacional desses dois dispositivos. Parece-me que o mais decisivo diz respeito à sua colocação de que analista que conduz o caso funciona como uma espécie de passante que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado. Depreende-se, da formulação desse funcionamento, que em ambos os dispositivos estamos diante do problema do que é a transmissão de um saber a partir de uma experiência do real. É bem provável que para realizar no Instituto uma Jornada, segundo essa modalidade da Conversação, será preciso aprofundar a reestruturação do Instituto segundo o princípio da Seção Clínica, isto é, introduzir, de modo calculado, em nossos dispositivos de transmissão do saber analítico, o real da clínica. Devo destacar, por último, que convivemos no momento atual com um enorme obstáculo para efetivar a implantação de algo próximo da Seção Clínica, obstáculo oriundo dos tempos da despatologização, pois somos o alvo de uma proibição implacável das apresentações de enfermo.

Paula Pimenta: Eu te agradeço e falo em nome da Diretoria de Ensino do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Acrescento um ponto que diz respeito à questão do discurso da ciência. Nós recebemos no Instituto os candidatos ao Curso de Psicanálise e vários trazem a pergunta sobre a “formação” que nosso curso virá lhes propiciar. Eu acho que você já se antecipou à minha pergunta ao diferenciar os cursos de psicanálise que existem e o que seria a proposta dos Institutos parceiros da Escola Brasileira de Psicanálise, que é a abordagem da prática. Achei isso essencial. O que eu acrescentaria, para retomar esse ponto, seria que, recentemente, no último mandato de governo federal que acabou em 2023, foi aprovada a proposição da graduação em psicanálise. As associações de psicanálise de todo o Brasil investiram esforços por longo tempo para que isso não ocorresse, mas foi autorizada, em uma etapa preliminar, pelo Ministério da Educação, a graduação em psicanálise. Em que medida isso interferirá no tipo de aluno que o Instituto passará a receber? Como você vê a repercussão dessa autorização no Instituto?

Jésus Santiago: Paula, é sempre nocivo para a psicanálise essas tentativas de regulamentar sua prática, seja pelo ordenamento jurídico exercido sob o controle das corporações profissionais, seja pela concessão de diplomas, via o sistema universitário, que, em última análise, objetivam outorgar uma suposta habilitação do que eles próprios denominam como exercício profissional. Não é sem razão o fato de que tanto Freud, quanto Lacan, fizeram de tudo para preservar a formação e a autorização da prática analítica fora do domínio e do controle do Estado. A razão principal é que a base de sustentação da formação de um psicanalista é a exigência de que o candidato à prática tenha passado pela experiência do inconsciente. E essa exigência concernente à experiência da análise não tem outra forma de controle que não seja os próprios analistas. Sem sombra de dúvidas, a aprovação dessa proposta de graduação em psicanálise trará consequências nefastas tanto para o Instituto, quanto também para a Escola. Ela é incompatível com o pressuposto lacaniano de que, apoiado em sua experiência do inconsciente, é o psicanalista que se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Diante dessa medida governamental contrária à concepção lacaniana da formação analítica, não nos resta outra saída senão fazermos a nossa parte, aprofundando ainda mais a nossa prática institucional inspirada na ética da psicanálise.

Ram Mandil: Achei interessante a referência à autofagia do saber suposto e fiquei me perguntando o que justificaria essa autofagia. Podemos considerar que uma análise tende à dissolução do saber suposto implicado naquela experiência, mas que haveria também um cuidado em manter uma relação com o saber, inclusive com o saber suposto, pois, de alguma forma, a transferência se funda mais sobre a suposição de saber do que sobre a exposição de saber.

Nesse sentido, achei fundamental isso que você trouxe para pensar a articulação entre o Passe e o matema, de modo que o testemunho de um AE não deixe em segundo plano os problemas cruciais da psicanálise, inclusive como experiência de Escola.

Em relação ao ensino da psicanálise: partindo da questão de Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, considero essa pergunta fundamental uma vez que, a meu ver, ela também interroga a tendência em tomar o discurso universitário como referência de ensino, inclusive nos Institutos. Por essa via, o que se ensina tende a virar matéria, tende a virar objeto, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia, da didática ou coisa dessa ordem e, realmente, para nós, isso não é o principal, uma vez que tende a excluir a dimensão da prática e aquilo que, da experiência analítica, não se concentra em matéria ou disciplina. Isso me fez lembrar de uma expressão que Miller utilizou em algum momento e que permite pensar não apenas o ensino no Instituto, mas também a sua relação com a Escola, que é a noção de imersão.

Pode-se pensar que a transmissão da psicanálise se dá num ambiente de imersão. Existe aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é fundamental na formação, o de estar imerso em uma experiência em curso e que mobiliza a cada vez novos elementos para nossa consideração.

Em relação do ensino da psicanálise, partindo dessa mesma questão do Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, acho que essa é uma pergunta fundamental pois a tendência, não só dos Institutos, é a de tomar como referência alguma coisa do discurso universitário. Então, como eu disse, o que se ensina tende a virar matéria, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia e da didática e realmente para nós isso não interessa. Exclui a dimensão da prática e daquilo que propriamente não se concentra em matérias e objetos. Por isso, lembrei de uma expressão que Miller usou e que acho que permite pensar a relação Instituto-Escola, que é a noção de imersão.

Você pode pensar que, na entrada na prática analítica, você está entrando em um ambiente de imersão. Tem aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é o fundamental na formação, que é o de estar aqui imerso em uma experiência que não se conclui e que mobiliza elementos que seguirão.

Jésus Santiago: Talvez nós possamos encerrar a nossa discussão com esse comentário agudo de Ram Mandil sobre esse verdadeiro paradoxo segundo o qual, em psicanálise, ensina-se o que não se ensina. Por meio do problema do que é ensinar psicanálise, o comentário elucida e aprofunda diversos aspectos do que pude abordar no tocante às relações entre Instituto e Escola. Eu ainda reforçaria a ideia fundamental de que a entrada na prática analítica se faz por meio de um lançar-se em um ambiente de imersão que confunde com a Escola e o Instituto. Como conclui Ram, é por estarmos imersos numa experiência de formação interminável que, por consequência, nunca se conclui, que é preciso manter viva a interação inspirada entre o Passe e matema, entre a Escola e o Instituto, animado pelo espírito da Conversação e da Seção Clínica.

Ainda temos a pergunta da Renata Mendonça e, portanto, vamos escutá-la!    

Renata Mendonça: Eu também gostaria de te agradecer. A minha pergunta, eu a faço a partir do Ateliê de Psicanálise e Segregação, do qual sou uma das responsáveis. Você traz questões extremamente pertinentes para separar o Instituto do mundo das pós-graduações e isso implica diretamente o desejo do analista. Digo isso porque o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica. Penso aqui nos jovens que estão às voltas com as redes, sendo capturados pelas ofertas de vários cursos, vários saberes técnicos sobre psicanálise. E agora, com a graduação em psicanálise, isso se complica ainda mais.

Por outro lado, o psicanalista, ao tomar uma posição na clínica de defesa de um determinado grupo, isso levaria, a meu ver, ao apagamento seu desejo, por excluir a singularidade de cada sujeito na experiência analítica. Isso é muito importante em um momento em que estamos às voltas com questões fundamentais, como, por exemplo – e no caso que me cabe –, a questão do racismo e as questões trans.

A pergunta que faço é no sentido de como manejar para incluir essas questões na clínica sem perder de vista o desejo do analista e, consequentemente, a singularidade de cada caso clínico. Isso é algo novo para a Escola e para o Instituto. 

Jésus Santiago: Antes de responder a pergunta da Renata Mendonça, gostaria de ainda tecer algumas palavras aos questionamentos que Maria José e Paula Pimenta fizeram, anteriormente, sobre a questão formação analítica e suas relações com a ciência. É interessante observar que, quando Lacan (1971/2003, p. 237) funda a Escola Freudiana de Paris, ele cria uma Seção de Psicanálise Aplicada, que porta como subtítulo: “O que significa de terapêutica e clínica médica”. De alguma maneira, desde a fundação da Seção de Psicanálise Aplicada, no interior da Escola, já se faz presente algo do espírito da Seção Clínica. Chama a atenção o destaque que é dado à medicina como campo de elaboração para o que é, nesse momento, a aplicação terapêutica da psicanálise. Seu pensamento é que nessa Seção da Escola estarão “grupos médicos […] que estejam em condições de contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a linha direta da práxis freudiana” (LACAN, 1971/2003, p. 237).

Impressiona a antevisão de Lacan acerca do impacto da ciência como discurso, e não tanto como saber, impacto que, para ele, se presentifica de modo contundente no terreno da clínica médica. É provável que com essa proposta Lacan antecipava a necessidade de atualização de nossa prática analítica tendo em vista as grandes mudanças que já se anunciavam no momento de fundação de sua Escola. Evidentemente que a maneira voraz com a qual a ciência invade o campo da medicina, em detrimento de sua vertente propriamente clínica, constitui-se no fator fundamental para entrever as mudanças necessárias em nossa prática. Faz-se necessário renovar nossa prática no mundo, visto que é o próprio mundo que se reestrutura provocado pela aliança dos dois mais eminentes fatores históricos: o discurso da ciência e o do capitalismo. Segundo Miller (2014), a prevalência desses dois discursos na modernidade constitui o principal móvel de destruição da estrutura tradicional da experiência humana. A consequência da ação combinada e corrosiva desses dois discursos, atingindo os fundamentos mais profundos de tal tradição é o que ele pôde designar como a “grande desordem no real (MILLER, 2014, p. 23). É pela via da aliança da ciência e do capitalismo, que “o real escapou da natureza (MILLER, 2014, p. 23), instalando a desordem que afetou a reprodução, a sexualidade, a família, a ordem paterna, etc. A psicanálise de orientação lacaniana vem se mostrando um discurso potente para contrapor e ultrapassar os discursos velhos e retrógrados que protagonizam a ordem natural do real.

Nossa política para a formação analítica não poderia permanecer impassível e indiferente a essa desordem que, de algum modo, torna pensável o que antes era apenas uma ideia-limite e, por isso mesmo, impensável, a saber, o real sem lei e sem sentido. Aproveitando o que disse nesta manhã, é preciso considerar que o real, entendido desse modo, não é um cosmo, não é um mundo e, tampouco, uma ordem de saber ainda não revelável. O real é peça solta, é pedaço, um fragmento assistemático, separado do saber ficcional que se produz a partir do encontro entre lalíngua e o corpo, encontro que faz do real sem lei prévia uma pura contingência.

Retornemos à nossa política para a formação analítica sabendo que, ao contrário da ciência, na psicanálise não há saber no real. Se a ciência pode demonstrar o real pela via do necessário, pela via desse alojar um saber no real, a psicanálise não, a psicanálise precisa do singular, ela precisa do sintoma, porque ela demonstra o real pela via da contingência, pela via do um a um, do caso a caso. E toda a nossa questão é como inserir esse real da clínica em nossos cursos teóricos, em nossos cursos práticos, em nossas apresentações de caso. Caso venhamos abrir mão do ponto de vista clínico, embasado por esse real arriscado da contingência, estaremos, em breve, confundidos com mais uma visão sociológica do mundo.

Agora sim vou tentar responder a questão, a meu ver crucial, da Renata Mendonça, sobre como manter vivo o desejo do analista em formação, como manter viva a práxis analítica considerando o dever que lhe compete de não ceder aos desvios e concessões que amortecem o seu avanço e degradam o seu emprego (LACAN, 1971/2003). Você tem toda razão em trazer para essa discussão sobre os novos rumos para o Instituto a função do desejo do analista em sua relação com um mundo em que os processos de segregação se ampliam e se agravam cada vez mais. E isso tem consequências para a diversidade das mutações que incidem sobre as novas modalidades do envoltório formal do sintoma. Torna-se claro que o seu questionamento, Renata, toca no problema da formação analítica que o Instituto deve ofertar, considerando as novas configurações do mal-estar da civilização. A formação analítica no Instituto deve se mostrar, assim, compatível com as exigências colocadas à prática analítica que acontece em um mundo que caminha no sentido do abandono das normas neuróticas, fazendo valer o sintoma menos como mensagem do inconsciente recalcado, e mais como defesa do real do gozo. A formação deve, assim, incluir um saber fazer com essas novas formas do sintoma que se apresentam como meio de gozo e deve incluir, também, um saber analisar o falasser (parlêtre), no sentido de que, além de falar, ele tem um corpo.

Porém, não é apenas esse saber fazer com o sintoma que gera a distinção entre o ensino no Instituto e a oferta de cursos de psicanálise no âmbito da Universidade. Não é apenas o saber que está em jogo nessa distinção entre o Instituto e a Universidade, pois o foco fundamental dessa diferenciação é o desejo do analista compreendido como “pura enunciação”. Mais precisamente, o desejo do analista é uma incógnita, um “x” que se coloca em sua própria enunciação (LACAN, 1967/2003, p. 257). Segundo esclarecimento recente de Miller (2023), esse “estar em posição de incógnita (x) em sua própria enunciação” se ilustra pela figura do Che vuoi?, que, por sua vez, assume a forma de uma pergunta: “que quer me dizer um analista quando fala e também quando não fala?”. Se desejo não se confunde com a fala, o analista no plano de seu desejo se mantém em uma posição de incógnita (x), ou seja, “não se sabe o que ele quer”. Segundo ele, se pode dizer que o analista pratica a “arte do enigma”, ou seja, “o enigma está para além do enunciado, porém, não se sabe”. E continua essa elaboração a partir da diferença entre a demanda e o desejo, visto que “a demanda é sempre a demanda de algo; o desejo do analista não é nunca o desejo de algo para os seus analisantes”. Conclui-se, assim, que “o desejo do analista se confunde com o desejo de nada”.

É essa articulação acerca do desejo do analista que permite estabelecer a diferença fundamental entre os cursos universitários e o ensino do Instituto, pois este último tem como horizonte a formação analítica, cujo princípio orientador é a passagem de analisante à analista. Nos cursos universitários de psicanálise, em seus programas, prepondera o saber em detrimento do desejo do analista, desejo este que, em última instância, concerne à passagem do analisante a analista. Mais ainda, constata-se que os cursos universitários se mostram fortemente atraídos pelos significantes-mestres que circulam, em nossa época, como eixos orientadores da civilização contemporânea. Daí a importância que assume, nesses cursos, o saber sociológico que busca interpretar, por exemplo, o fenômeno da segregação racial ou sexual. Acoplados a esses saberes, destaca-se inclusive a relevância da atividade militante de grupos que buscam a defesa das causas qualificadas como identitárias.

Nesse sentido, estou inteiramente de acordo quando você afirma que “o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica”. Em termos conceituais, eu afirmaria que: se o desejo do analista é o desejo de nada, se o desejo do analista é manter-se em posição de incógnita (x) para sua própria enunciação, isto supõe evitar posições e defesas animadas pelas identificações. Se a Escola e o Instituto se tornarem um sindicato em defesa das identidades, elas correm o risco, como você mesma afirma, de apagar aquilo que é o motor da clínica psicanalítica, ou seja, o desejo do analista. A psicanálise opta por não tratar, seja o problema do racismo, seja a questão trans, por meio do ativismo militante, reduzindo essas questões decisivas, para o rumo da civilização ao problema de defesa das identidades.

A operação analítica lida com o sintoma e, paradoxalmente, o sintoma é concebido, por Miller (1998, p. 55), por nada menos que “uma identidade a mais segura” de alguém”. A identidade, em psicanálise, não é da ordem de uma relação de si mesmo consigo próprio e, tampouco, da ordem de si mesmo a um grupo identitário; porém, ela é uma relação com algo. A identidade em psicanálise pode ser vista como uma relação singular à existência, relação que se faz por meio de um sintoma. Se o sintoma testemunha nossa inadaptação às normas e às exigências do Outro, ele testemunha também nossa verdade secreta, bem como nossa singularidade última. O sintoma, enquanto manifestação de um sofrimento, de um mal-estar, de uma dificuldade profunda na existência, é um obstáculo à toda transparência na relação do sujeito consigo próprio. Ao mesmo tempo, se o sintoma é o que o há de mais singular no ser falante, ele é o que vem perturbar a relação que cada um mantém com sua própria existência. É o sintoma que abala toda crença numa identidade determinada, identidade que supostamente nos tornaria transparentes para nós mesmos. Se a psicanálise toma o sintoma como seu meio de operação, é porque ela testemunha a incidência de um discurso – discurso do Outro – que marcou o nosso corpo, à revelia de nós mesmos. Compete a nós mesmos, portanto, buscar ler e tratar, de outro modo, esse enigma que é a escritura do sintoma.

Transcrição: Beatriz Espírito Santo, Daniela Gontijo de Souza, Jônatas Casséte, Luciana Romagnolli.

Referências
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[1] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[2] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOIRÉ, 1982, p. 182)



Construções e reminiscências[1] 

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
lucianasbl@gmail.com

Resumo: A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência.

Palavras-chave: construção, verdade histórica, rememoração, reminiscência.

CONSTRUTIONS AND REMINISCENCES 

Abstract: The author takes a journey through the text “Constructions in analysis”, working on the concepts of ultranitical memories, historical truth, remembrance, and reminiscence. Her hypothesis is that historical truth is conceptually equivalent to reminiscence. 

Keywords: construction, historical truth, remembrance, reminiscence.

Imagem: Renata Laguardia

“Construções em análise” foi publicado pela primeira vez em 1937 e, nele, Freud dá ênfase ao procedimento e à técnica analítica. Percebemos sua necessidade em defender a psicanálise, pois esta era alvo de ataques dos mais variados campos, e ele o inicia se referindo a um crítico que acusava os psicanalistas de se colocarem na postura daqueles que têm sempre razão, sem levar em conta o “não” do paciente. Para esse crítico, “se [o analisando] concorda conosco, estamos com razão; mas se ele nos contraria, então seria apenas um sinal de sua resistência e, portanto, também mostraria que temos razão” (FREUD, 1937/2017, p. 365).

No entanto, para a psicanálise, um simples “não” do paciente não abdica o psicanalista de sua interpretação, e é essa posição que pode servir de munição para a reprovação de tais críticos. Dessa forma, é necessário entrar em detalhes sobre como a psicanálise entende o “sim” ou o “não” do paciente.

Objetivo do trabalho analítico

O objetivo do trabalho analítico é a suspensão do recalque para substitui-lo por reações que correspondam a um estado de maturidade psíquica. Para que isso aconteça, é necessário que o analisando se recorde de determinadas vivências e moções de afeto que foram esquecidas. Qual seria o caminho para esse resgate? Freud responde que seria através dos fragmentos de lembranças nos sonhos, na associação livre e em alusões de repetições de afetos pertencentes ao recalcado. A transferência seria o caminho para alcançar a imagem dos anos esquecidos pelo paciente.

No entanto, temos que nos lembrar que o trabalho analítico é feito por duas partes – analista e analisando -, cada qual com uma função. Ao analisando, cabe a tarefa de se lembrar do material recalcado, e, ao analista, cabe interpretar esse material. O analista então, “terá de inferir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o esquecido” (FREUD, 1937/2017, p. 367).

Para caracterizar o trabalho do analista, Freud faz uma analogia com o do arqueólogo. Da mesma forma que o arqueólogo infere onde estaria uma parede em uma ruína, o analista faz o mesmo com as lembranças e associações do paciente. Outra fonte importante para a tarefa analítica de construção são as repetições “de reações oriundas de tempos primevos e tudo o que é revelado em termos de repetições através da transferência” (FREUD, 1937/2017, p. 368). Importante ressaltar que para Freud, nesse momento, há a aposta de ser impossível a destruição total das formações psíquicas. Ele acreditava que seria apenas uma questão de a técnica analítica conseguir trazer totalmente à tona o que está oculto.

Entretanto, é necessário levar em consideração que o objeto psíquico, diferentemente do arqueológico, é muito mais complicado que os restos arqueológicos. A construção é apenas um trabalho preliminar na análise de um sujeito.

O processo analítico, ou a construção, é feita passo a passo. Freud afirma que o analista

produz um pedaço de construção, comunica-o ao paciente, para que faça efeito sobre ele; depois, ele constrói mais um pedaço a partir do novo material que chega como um afluente e trabalha do mesmo jeito, e nessa alternância vai até o fim. (FREUD, 1937/2017, p. 369)

A grande questão é se o analista pegou o caminho certo em sua tentativa de fazer esse trajeto. Se não o tiver feito, poderá se retificar em momento oportuno quando nova construção puder ser feita.

O sim ou o não

Quanto ao “sim” ou ao “não” do paciente, esta é uma outra história, pois tanto um, quanto o outro, não garantem que a construção esteja correta. O que garante sua asserção é a produção, pelo analisando, de novas lembranças que complementam e ampliam a construção.

Importante ressaltar que, com frequência, o “não” do paciente pode ser um sinal de resistência, pois a construção analítica é sempre incompleta e abarca apenas um pequeno fragmento do acontecimento esquecido. Dessa forma, pode-se pensar que o analisando “fundamenta sua oposição com base na parte ainda não revelada” (FREUD, 1937/2017, p. 372). Para Freud, o analisando só dará a sua concordância quando souber de toda a verdade e esta, muitas vezes, é bastante ampla. “Portanto, a única interpretação segura do seu ‘não’ é aquela que aponta insegurança; que a construção certamente não lhe disse tudo” (FREUD, 1937/2017, p. 372).

Como saber se a construção tocou em um ponto importante? Podemos supor que seja através de tipos indiretos de comunicação, como, por exemplo, através da expressão idiomática “eu jamais pensei (ou teria pensado) isso (nisso)” (FREUD, 1937/2017, p. 373), que podemos traduzir por “Sim, nesse caso, você acertou o inconsciente na mosca”. (FREUD, 1937/2017, p. 373). Outra é a confirmação indireta através de associações que combinam com o conteúdo das manifestações. E, ainda, aquelas em que as confirmações se infiltram na oposição direta por meio de um ato falho.

Diante dessas constatações, Freud conclui que a crítica sofrida pela psicanálise não é devida, pois, ao se prestar atenção na resposta do analisando, pontos de apoio valiosos são retirados. Por outro lado, “essas reações do paciente geralmente têm múltiplos significados e não permitem uma decisão definitiva” (FREUD, 1937/2017, p. 375), o que nos leva a concluir que apenas a continuidade da análise vai provar se essas construções estavam corretas ou se foram inúteis.

Nem sempre uma construção feita pelo analista produz a recordação do recalcado, mesmo assim, em alguns casos, o paciente tem uma convicção segura da verdade da construção.

Recordações ultranítidas

Ocorre também que uma construção gere as chamadas recordações “ultranítidas” (überdeutlich) (FREUD, 1937/2017, p. 376). Nesse tipo particular de recordação, os pacientes não se lembram do acontecimento que fora o conteúdo da construção, e sim de detalhes muito nítidos: rostos, objetos no ambiente, espaço, etc. Como a elas nada é atrelado, o psicanalista sugere que foram resultado de um acordo em que a resistência conseguiu deslocar o recalcado para objetos secundários vizinhos.

Essas lembranças poderiam ser chamadas de alucinações, mas não apresentam a certeza característica do fenômeno e acontecem em casos que não podemos chamar de psicose. Por outro lado, há ocorrência ocasional de alucinações em casos de não psicóticos. Freud se pergunta se seria uma característica da alucinação que algo vivenciado nos primórdios e depois esquecido se insinue na consciência de forma deformada.

Talvez as formações alucinatórias, nas quais vemos inseridas essas alucinações, não sejam assim tão independentes da súbita vinda à tona do inconsciente e do retorno do recalcado. De forma geral, só sublinhamos dois fatores no mecanismo de uma formação alucinatória: o afastamento da realidade e a influência da realização de desejo sobre o conteúdo do delírio. Mas será que quando o recalcado emerge provocaria o afastamento da realidade, que, por sua vez, causaria a deformidade e o deslocamento do relembrado?

A verdade histórica

Freud sinaliza que o importante é que a loucura não só tem método como contém uma parte de verdade histórica.

Nos parágrafos finais de seu texto de 1937, assinala que, em casos patológicos, não se trata de demover o paciente do erro de seu delírio, de sua contradição diante da realidade, mas de encontrar

um fundamento comum no reconhecimento do cerne da verdade a partir do qual se poderá desenvolver o trabalho terapêutico. Esse trabalho consistiria em libertar aquela parte de verdade histórica de suas deformações e ligações [Anlehnungen] com o presente real, reconduzindo aquela parte do passado à qual pertence (FREUD, 1937/2017, p. 378).

Freud considera que as formações delirantes lembram as construções feitas pelo analista durante o tratamento analítico. Da mesma forma que a nossa construção só traz de volta uma parte da história de vida perdida, o delírio também deve o seu poder de convencimento à porção de verdade histórica que ele coloca no lugar da realidade rejeitada.

Ele conclui seu texto com o seguinte parágrafo:

Se abarcarmos a humanidade como um todo e a colocarmos no lugar de cada indivíduo humano, verificaremos que ela também desenvolveu formações delirantes inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, mesmo assim, elas puderem expressar um extraordinário poder sobre as pessoas, a análise levará à mesma conclusão que no caso de cada indivíduo. Elas devem o seu poder ao teor de verdade histórica que foram buscar lá no recalque dos tempos primordiais esquecidos. (FREUD, 1937/2017, p. 379) 

O que é verdade histórica?

Antes de finalizar, gostaria de voltar de forma mais detalhada ao termo “verdade histórica”. Ele aparece em alguns textos freudianos importantes, tais como “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936), “Moisés e o monoteísmo” (1938) e “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)” (1918).

Em “Um distúrbio de memória na Acrópole”, Freud relata sua peculiar experiência ao visitar a Acrópole. Seu primeiro pensamento ao vê-la foi: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!”. O que se segue é o sentimento de divisão do sujeito, pois era como se duas pessoas estivessem ali: “A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa”, e, a outra, “A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida” (FREUD, 1936/1976, p. 295).

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o psicanalista afirma:

Quando Moisés trouxe ao povo a ideia de um deus único, ela não constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana, alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma tradição. (FREUD, 1934/1975, p. 153)

E, em “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)”, há a seguinte passagem do paciente:

Quando eu tinha 5 anos de idade, estava brincando no jardim perto da minha babá e fazia cortes com meu canivete na casca de uma daquelas nogueiras, que também têm um papel em meu sonho. De repente percebi, com um terror indizível, que eu tinha cortado meu dedo mindinho da mão (direita ou esquerda?), de tal maneira que ele só estava pendurado pela pele. Eu não sentia dor nenhuma, mas uma grande angústia. Não me atrevia a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas poucos passos de distância, afundei no banco mais próximo e permaneci sentado lá, incapaz de olhar mais uma vez para o dedo. Finalmente me acalmei, olhei para o dedo, e, veja só, ele estava totalmente ileso. (FREUD, 1918/1976, p. 723)

Parece possível afirmar, a partir dos fragmentos apresentados, que, ao utilizar o conceito de “verdade histórica”, pode-se identificar uma estrutura que se repete, mas que é modificada pela realização de desejo e pelas percepções que são perturbadas pela linguagem. A repetição da representação deformada gera o delírio, mas, quando essa repetição compulsiva carrega consigo um retorno do passado, seria uma verdade histórica.

O que se repete não é a representação ou o sentido ligado à representação, mas uma certa estrutura discursiva, que, no caso de Freud em Atenas, seria a reapresentação da dúvida sobre a existência da Acrópole, no monoteísmo, a reapresentação do chefe da horda no Deus único, e, no Homem dos Lobos, a reapresentação da castração na alucinação do dedo cortado.

Verdade histórica ou reminiscência em “O homem dos Lobos”?

Pretendo me ater aqui ao relato do dedo cortado do Homem dos Lobos para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana: a reminiscência e a rememoração. Minha hipótese é ser possível equiparar a reminiscência à verdade histórica.

Parece-me interessante neste ponto explorar a distinção feita por Lacan entre rememoração e reminiscência. No Seminário 23, o psicanalista afirma:

A reminiscência é distinta da rememoração. […] A rememoração é evidentemente alguma coisa que Freud obteve forçosamente graças ao termo impressão. Ele supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso, e lhes conferiu letras, o que já é dizer muito, porque não há razão nenhuma para que uma impressão se figure como alguma coisa já tão distante da impressão quanto uma letra. Já há um mundo entre uma letra e um símbolo fonológico.

A ideia testemunhada por Freud no Projeto é de figurar isso através de redes, e foi talvez o que me incitou a lhes dar uma nova forma, mais rigorosa, fazendo com isso alguma coisa que se encadeia, em vez de simplesmente se trançar.

A rememoração consiste em fazer essas cadeias entrarem em alguma coisa que já está lá e que se nomeia como saber […]. (LACAN, 1975-76/2007, p. 127)

Em “Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico”, Freud retoma o relato do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos. Cito-o: “Quando me achava brincando no jardim com um canivete (isso se deu quando eu tinha cinco anos de idade) e cortei fora meu dedo mindinho – oh, eu só pensei que ele fora cortado – mas já lhe falei sobre isso” (FREUD, 1914/1996, p. 209). No entanto, o psicanalista, ao ouvir aquele relato, responde-lhe que nunca o havia narrado, mas o paciente afirma ter certeza de já o ter contado. Porém, ao repetir a estória, ele percebe seu engano.

Aqui há um real que fala sozinho, a experiência não é testemunha de um significante que falta, há um aspecto de descontinuidade temporal – extratemporal, melhor dizendo. Nesse caso, o que retorna é um conteúdo que deixou de ser simbolizado, que escapou da simbolização primária e que não pôde ser historiado. Segundo Miller, trata-se de uma forma imemorial que aparece quando o texto, “interrompendo-se (fora do texto simbólico, portanto), deixa desnudo o suporte da reminiscência” (MILLER, 2009, p. 54).

A rememoração, em contraposição ao fenômeno descrito no caso freudiano, acontece quando um elemento esquecido encontra a sua articulação simbólica. Já a reminiscência tem relação com a concepção platônica, pois o indivíduo não pode elaborar uma verdade a partir de sua experiência, só lhe restando o eterno, o que está fora do tempo.

No caso do Homem dos Lobos, diante da emergência do real, só lhe restou o mutismo, o mutismo aterrorizado e a imagem alucinada do dedo cortado. Nesse caso, ao lembrar-se da experiência e relatá-la posteriormente ao analista, não se pode dizer que essa estava na ordem de um mero esquecimento, como no texto “O mecanismo psíquico do esquecimento”, de Freud. Trata-se de uma experiência com uma significação tão estranha que o sujeito não tem como comunicá-la ao Outro. Não estaria, portanto, no registro de uma lembrança esquecida que retorna, de uma rememoração. Para um elemento ser historiado, ele deve, antes de tudo, ter sido simbolizado, ou seja, só há historização secundária se houver uma simbolização primária. A “rememoração está situada do lado da rede significante, das cadeias que se formam com o simbólico, ao passo que a reminiscência, aqui, é deixada em branco” (MILLER, 2009, p. 54).

A questão que proponho aqui, no caso do Homem dos Lobos, é pensar que a alucinação do dedo cortado pode revelar algo que irrompe no discurso do sujeito sem que haja uma historização – ou o que carrega consigo uma história que pode ser contada –, mas revela o puro real sem palavras. Concepção que se aproximaria do conceito de “verdade histórica” como modo de resposta a incidência do real traumático sobre o ser falante.


 

Referências
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXIII, 1975, p. 165-329. (Trabalho original publicado em 1934).
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1976, p. 238-247. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Um distúrbio de memória na Acrópole. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXII, 1976, p. 291-303. (Trabalho original publicado em 1936).
FREUD, S. Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1996, p. 207-212. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Histórias clínicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 631-773. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Construções em análise. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 365-381. (Trabalho original publicado em 1937).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 27 de junho de 2023.



Do sentido à satisfação do sintoma[1]/ 

Kátia Mariás
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise /AMP
katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma.

Palavras-chave: sintoma; gozo; pulsão; sentido; referência; satisfação. 

FROM MEANING TO SYMPTOM SATISFACTION 

Abstract: The text addresses Freud’s XVII and XXIII Conferences on the meaning of symptoms and on the paths of symptom formation. In these conferences, by starting from the meaning – Sinn – and moving to the signification, the reference – Bedeutung –, Freud goes from the meaning to the jouissance of the symptom.

Keywords: symptom; jouissance; drive; meaning; reference; satisfaction.

Imagem: Renata Laguardia

O texto que fui encarregada de trabalhar é o único que não está na série de textos sobre os fundamentos da clínica psicanalítica publicados nas Obras Incompletas (FREUD, 2017). Ele compõe a série de conferências proferidas por Freud a um público de não analistas entre os anos 1915 e 1917, chamadas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”. O que Freud desenvolve ali não deixa de estar referido aos fundamentos da clínica e, inclusive, conversa com eles. De qualquer forma, como sugere Miller, o “perder-se um pouco” tem todo seu valor. Para estar bem orientado em um tema analítico é preciso também desorientar-se, quer dizer, não pensar no tema de forma demasiadamente familiar (MILLER, 2011, p. 11). Selecionei algumas passagens da Conferência XVII, “O sentido dos sintomas” (Der Sinn der Symptom) (FREUD, 1916-17/1990a), para que possamos extrair o que há de essencial nesse texto e o que podemos aprender com ele.

Num primeiro ciclo de conferências, Freud se ocupou dos sonhos e dos atos falhos. A fonte desse primeiro ciclo eram as obras da descoberta: “A interpretação dos sonhos”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e até “O chiste e sua relação com o inconsciente”. O segundo ciclo de conferências, presentes na parte III, dentre as quais está “O sentido dos sintomas”, trata dos sintomas neuróticos, as neuroses de transferência, como ele então as chamava: histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva. A conferência XVII é, então, uma aplicação aos sintomas neuróticos do que havia sido dito sobre os sonhos e atos falhos. É possível constatar que os sintomas são como os sonhos e atos falhos, ou seja, têm um sentido e podem ser interpretados (MILLER, 2011).

Esse texto já anuncia o que Freud vai complementar na Conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas” (Die Wege der Symptombildung) (FREUD, 1916-17/1990a)O que há entre as duas conferências? De que trata essas conferências que fazem ponte entre a XVII e a XXIII? Freud introduz aí o pulsional, a libido, o sexual e o perverso do sexual.

Vamos ao texto: “os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente” (FREUD, 1916-17/1990a, p.305).

Podemos observar que Freud aborda o sujeito em sua singularidade. O sintoma tem um sentido e se relaciona com a experiência do sujeito; não é possível tratar essa experiência como sendo da ordem do universal, do para-todos. O sentido deve ser interpretado no caso a caso, no um a um, no singular: “os sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos e, como estes, têm uma conexão com a vida de quem os produz” (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Mais uma vez, Freud conecta os sintomas à vida de quem os produz e não os liga a uma teoria geral, não universaliza os sintomas. Ele situa o sintoma dentro das formações do inconsciente, a saber, o lapso, o chiste, o ato falho, o sonho e o sintoma.

Para Freud, nesse momento, o sonho tem um “querer dizer”, tem um sentido, mas o sonho é efêmero, ao ser interpretado ele se esvai. O sintoma também tem um “querer dizer”, mas ele não é efêmero, ele não se esvai, ao contrário, ele se repete. O caráter de repetição pode levá-lo ao infinito, daí o termo “os etcéteras do sintoma”, que foi, aliás, título de um seminário que ocorreu nas XIV Jornadas do Campo Freudiano em Madrid, em 1997 (MILLER, 1997).

Freud vai tentar tornar a sua descoberta mais compreensível escolhendo exemplos de casos não de histeria, mas “de uma outra neurose muito mais extraordinária”, a neurose obsessiva.

A neurose obsessiva manifesta-se no fato de o paciente se ocupar de pensamentos em que realmente não está interessado, de estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e de ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe é totalmente impossível omitir. Os pensamentos (obsessões) podem ser, em si, carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Esses sintomas, geralmente, estão desprovidos de sentido, um sentido que não está dado de maneira imediata; ele tem que ser extraído. O sintoma aparece como um sentido recalcado, ele aparece como um enigma. O sintoma manifesta-se suportado por um significante cujo significado está recalcado, quer dizer, que não foi comunicado ao Outro ou por ele aceito.

Ao afirmar que a realização da ação obsessiva não lhe dá satisfação, é possível intuir algo que Freud só vai concluir na Conferência XXIII. Esse ciclo de conferências vai, portanto, do sentido ao gozo. Se o Sentido dos sintomas trata do sentido, O caminho da formação dos sintomas (FREUD, 1916-17/1990b, trata da libido, da satisfação, do gozo. Entre as conferências XVII e XXIII, trata-se exatamente do caminho que vai do sentido ao gozo do sintoma. É interessante destacar isso, porque vemos que já existia uma teoria da satisfação libidinal, do gozo, antes mesmo de “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/2020). 

Certamente, esta é uma doença louca. A imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria conseguido construir nada semelhante […] O que é posto em ação, em uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente não encontramos nada comparável na vida mental normal. […] A possibilidade de deslocar qualquer sintoma para algo muito distante de sua conformação original é uma das principais características desta doença. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 307)

Nada mais atual para nós do Campo Freudiano: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. O obsessivo não percebe o sofrimento de seu sintoma, ele o incorpora tão bem à sua personalidade que é motivo de prazer. Os sintomas obsessivos são prazerosos. O sujeito sofre como um condenado, mas não se queixa.

Toda a teoria freudiana dos sintomas, tal como está desenvolvida nas conferências, supõe que uma satisfação pode ser substituída por outra, supõe a possibilidade de substituição de satisfações. É o caráter metafórico do sintoma. Freud chama de Ersatz, uma satisfação nova, ou substitutiva, e isso faz pensar que o substituto não tem o mesmo valor que o original. Mas não é bem assim. A satisfação substitutiva é tão boa quanto a satisfação original. Não importa o objeto, a finalidade libidinal obtém-se custe o que custar e ela é sempre a mesma. A pulsão não conhece o semblante de gozar; a satisfação pulsional é um real.

O primeiro caso apresentado na Conferência XVII refere-se a uma mulher com uma ação compulsiva de proteger o marido impotente. O segundo consiste em um cerimonial de dormir que indica uma encenação da não-relação sexual, sustentada por um vínculo libidinal com o pai. A escolha desses casos talvez se deva ao fato de que Freud se dirigia a uma audiência de não praticantes e eram sintomas muito claros, que têm um sentido evidentemente sexual e se explicam por uma Bedeutung – termo difícil de traduzir por indicar, ao mesmo tempo, “significação” e “referência” –, pela referência a uma experiência anterior. A primeira mulher monta sua cena como repetição e correção de um evento anterior, traumático para ela. Através desses exemplos, Freud vincula o sentido e o libidinal. A Bedeutung é uma vivência anterior.

Retomemos o caso: uma mulher de 30 anos de idade, que sofria de graves sintomas obsessivos, realizava, várias vezes por dia, a seguinte ação obsessiva: corria do seu quarto até um outro cômodo, se colocava numa determinada posição ao lado de uma mesa no meio do aposento, soava a campainha chamando a empregada, lhe dava uma ordem qualquer ou a dispensava sem maiores explicações e, depois, corria de volta para seu quarto. Freud perguntava: “Por que faz isso? Qual o sentido disto?”. Ela respondia: “Não sei”. Certa vez, depois de Freud ter invalidado uma dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a resposta e lhe contou o que estava em conexão com o ato obsessivo. Freud realiza a seguinte leitura, a partir dos elementos fornecidos pela paciente: há 10 anos, na noite de núpcias, o marido, que era bem mais velho, se mostrou impotente e passou a noite correndo do seu quarto para o quarto da mulher, para renovar sua tentativa, mas sempre sem êxito. Na manhã seguinte, envergonhado perante a empregada que arrumaria seu quarto, pegou um frasco de tinta vermelha e derramou sobre o lençol, mas não no exato lugar em que uma mancha viria a calhar. A paciente leva Freud até uma mesa no segundo quarto e mostra-lhe uma grande mancha na toalha. Explicou-lhe que assumia sua posição em relação à mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não podia deixar de ver a mancha.

A explicação de Freud estabelece uma íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato obsessivo atual. Em primeiro lugar, fica claro que a paciente se identificava com seu marido; ela estava executando o papel dele, imitando suas corridas de um quarto a outro. Além disso, cama e lençol foram substituídos pela mesa e pela toalha. Mesa e cama, juntas, representam o casamento e, assim, podem facilmente tomar o lugar da outra.

O ato obsessivo tinha um sentido: uma representação, uma repetição daquela cena importante. Repetindo a cena, corrigia a falha do homem. Servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada. Separada há anos, debatia-se com a ideia de divorciar-se legalmente. Contudo, não havia como livrar-se dele. Era forçada a permanecer fiel; retirou-se do mundo para não ser tentada. Em sua imaginação, desculpava-o e engrandecia suas qualidades. O segredo de sua doença consistia em que, através da doença, protegia seu marido de comentários maldosos. Através do sintoma, a mulher faz o homem e, deste lugar, o protege e o sustenta na plena possessão de seus atributos. A leitura freudiana dessa ação obsessiva se limita a negar ou desmentir a impotência do marido.

A mulher se encontra, desde então, submetida à obrigação de chamar a empregada para corrigir a cena, convocando o olhar dessa mulher a se colocar sobre uma mancha na toalha da mesa e, assim, mostrando que não haveria de ter vergonha. Toda a cena é montada para corrigir a penosa impotência do marido.

Aqui, a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, sem qualquer influência ou interpretação do analista, e resultou de uma conexão com um acontecimento que não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente e permaneceu vivo em sua memória.

A pergunta que Freud faz ao seu público, nessa conferência é: foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida sexual?

O primeiro caso apresentado por Freud na Conferência XVII foi comentado por Esthela Solano (1993) e por Elisa Alvarenga (2019).

Cito Elisa Alvarenga (2019, p. 37), a propósito do comentário de Esthela Solano sobre essa cena que esconde algo, tanto quanto revela:

A mulher, colocando-se no lugar do marido, faz Um com ele, e a partir dessa solidariedade fálica, chama a empregada. A que lugar ela é convocada? Esta mulher obsessiva recorre a uma Outra mulher, não para interrogar nela o mistério da feminilidade, segundo a estratégia da histérica, mas para tomá-la como testemunha, como Outro diante do qual a mancha pode ser tomada como um semblante que faz valer seu poder de evocação do falo.

A mancha vela o recuo do marido diante do Outro sexo, tomando um valor de quase fetiche, que restitui ao marido seu ter para que ela possa assegurar, do seu lado o ser. Ela adivinha a posição do parceiro e a corrige através do seu sintoma.

Podemos concordar que esses dois casos de mulheres que Freud classifica como obsessão são, na verdade, fragmentos de casos de histeria e é o caráter de obrigação dos seus atos, Zwang, presentes nos dois casos descritos, o que o leva a caracterizar tais sintomas como obsessivos. O sentido do ato obsessivo escapa ao sujeito que se encontra, sempre, obrigado a executá-lo.

O sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente: “É necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir”. Ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. É a condição inconsciente do sintoma. “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (MILLER, 2011, p. 21).

Somente o sintoma nos introduz no mais íntimo da vida sexual. Os sintomas servem à mesma intenção: a satisfação de desejos sexuais. Para Freud, o uso do sintoma é sempre o mesmo – a satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida.

O caráter de formação de compromisso do sintoma revela a íntima conexão entre gozo e defesa. No sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dessa satisfação. Essa conexão leva Lacan a deduzir que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a defender-se do gozo que busca (MILLER, 2011).

O sintoma encontra sua significação (Sinn) e sua referência (Bedeutung) em seu a posteriori – Nachträglichkeit.

Um exemplo que nos ajuda a entender melhor essa temporalidade, considerando as duas indicações de Freud – o Sinn e a Bedeutung –, é o fragmento clínico que ele descreve como próton pseudos, a primeira mentira histérica (FREUD, 1895/1990c). O sintoma apresentado pela paciente Emma consistia na evitação de entrar sozinha nas lojas por temer os risos que sua roupa poderia suscitar. A agorafobia eclodiu a partir de uma primeira cena relatada pela jovem como motivo de seu adoecimento, na qual ela, então com doze anos, fugiu de uma loja ao perceber que dois vendedores riam de sua roupa. Um deles havia atraído Emma sexualmente. A análise com Freud promoveu o franqueamento das ideias recalcadas, possibilitando uma rearticulação dos enlaces associativos. A primeira cena evocou a lembrança de uma segunda cena, mais longínqua, datada de seus oito anos de idade, quando Emma havia sido molestada pelo dono de uma confeitaria. O riso dos vendedores atualizava o sorriso do proprietário da confeitaria que agarrou sua região genital através de seu vestido. Freud enfatiza a temporalidade Nachträglich estruturante das neuroses. Apenas mediante o estabelecimento de um elo entre a cena 1 e a cena 2, portanto só depois, o acontecimento primeiro adquire seu potencial traumático.

A angústia que leva Emma a erigir um sintoma fóbico não é experimentada na cena em que é assediada pelo dono da loja. A significação desse evento como traumático ocorre a posteriori. Apenas com a entrada na puberdade, no intervalo entre as duas cenas, a jovem se confronta com novas formas de satisfação a partir do despertar da sexualidade, se deparando com seu desejo, com o real da puberdade, o que acabou por ressignificar suas experiências anteriores.

Sem pretender fechar as inúmeras questões trazidas pela leitura das Conferências freudianas, podemos concluir que o estatuto do sintoma é problemático, ou melhor, há o que Lacan chamou de “o segredo do sintoma”, na medida em que se trata de um fenômeno articulado no significante e que tem um sentido. O valor metafórico de satisfação da pulsão encarna e eterniza sua exigência de satisfação (MILLER, 2008). É a vocação para mover-se, de ser errante, de mudar o objeto para permutá-lo por outro, para o deslocamento, para a substituição da libido que pode levá-la, inclusive, para a obra de arte. A libido pode, portanto, ser sublimada ou sintomatizada.

O trabalho de Elisa Alvarenga nos esclarece que, uma vez que a histérica não vai sem o Outro, na medida em que esse Outro muda no decorrer dos tempos, as manifestações da histeria também mudam. A neurose obsessiva feminina seria, portanto, uma resposta sintomática ou fantasmática, desencadeada por situações específicas relativas às experiências do sujeito, tal como Freud já havia postulado na Conferência XVII – resposta essa que encobre uma posição histérica.

Em 1978, Lacan manifestava sua incerteza quanto à existência da neurose histérica, mas afirmava a existência da neurose obsessiva, que teria sido descrita por Freud como um dialeto da histeria e seria, sim, a neurose contemporânea por excelência.

Diante do declínio da função paterna enquanto autoridade e de um Outro que se apresenta inconsistente, os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1 que nomeiam modos de gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço que tampa sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão; amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens para a neurose. (ALVARENGA, 2019, p. 26-27)

Enfim, são sujeitos que, devido à maior dificuldade de subjetivação da castração, apresentam, por sua vez, dificuldade também de dar sentido aos seus sintomas, o que nos leva a pensar a clínica a partir do uso que o sujeito faz dos sintomas, como cada sujeito amarra seu gozo ou, ainda, seria uma clínica dos modos de gozo.


 

Referências
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O sentido do sintoma). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990a, p. 305-322. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O caminho da formação dos sintomas). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990b, p. 419-439. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. A proton pseudos – a primeira mentira histérica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990c, p. 474-478. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
MILLER, J.-A. Síntoma, saber, sentido y real. Los etcéteras del síntoma. Rev. Folhas, n. 5/6, set. 1997.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. In: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. Seminário sobre os caminhos da formação dos sintomas. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 60, 2011.
SOLANO-SUAREZ, E. Névrose obsessionnelle et féminitéLa Cause freudienne, n.24, p. 16-19, 1993.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 13 de junho de 2023.



Lembrar, repetir, perlaborar[1]

Lucia Maria de Lima Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. 

Palavras-chave: lembrar; repetir; pulsão; inconsciente; transferência.

REMEMBERING, REPEATING AND WORKING-THROUGH

Abstract: The author comments on Freud’s 1914 text, Remember, repeat, work through, in the light of the modifications presented by the dialogue with Lacan in 1964 as a support for a rereading based on the Seminar The four fundamental concepts of psychoanalysis. Some clinical fragments illustrate aspects of Lacan´s contribution to research.

Keywords: remembering; repeating; drive; unconscious; transfer.

Imagem: Renata Laguardia

Dentre os princípios gerais dos fundamentos da prática psicanalítica, o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” (FREUD, 1914/2022) inicia com uma lembrança, uma advertência, sobre as profundas transformações sofridas pela técnica psicanalítica desde seus primórdios, não apenas incidindo sobre os três verbos, mas no contexto mais amplo dos conceitos que constituem a experiência psicanalítica. As transformações alcançam os conceitos fundamentais em 1964, no Seminário 11 de Lacan, e prosseguem até seu último ensino. Elucidadas por Miller nos cursos psicanalíticos, dentre outros, encontra-se orientação precisa para diferenciar leitura em três consistências, Simbólico, Imaginário, Real, outra lógica antecipatória das surpreendentes mudanças operadas pelo mal-estar na civilização.

Contarei com algum desses textos, dentre outros, na expectativa de seguir uma vereda já traçada, mas indicativa da pesquisa contínua orientada por um método renovado através das mudanças clínicas, subjetivas, políticas, sociais, ao mesmo tempo em que extrai consequências da parceria com o estranho, sem sentido, do silêncio das pulsões.

O lembrar, desde o início da descoberta freudiana, incide nas repetições, o recalcado, os sintomas, as fantasias, sonhos, os atos falhos, vivências incompreensíveis. Incidência esta que implica tanto o inconsciente, como linguagem, quanto a dimensão silenciosa da pulsão, as chamadas moções pulsionais, os destinos da vida e morte traços nos corpos resultando atos estranhos em sua vasta extensão.

A ab-reação servira inicialmente para demonstrar a dissimetria entre o afeto e a representação. Freud encontra o desafio de traduzir e recompor um sofrimento histórico de fazer cessar a compulsão para repetir que, contrariamente ao sintoma que se deslocava rebelde sobre um corpo, mostrava sua consistência e coesão. Antes de 1914, anunciara um vasto conjunto de experiências clínicas, que alcançavam a sexualidade, a paranoia, a histeria, a fobia, a obsessão. O relativo fracasso da palavra para preencher as lacunas históricas ou traumáticas exigia “fazer as pazes com o recalcado que surge nos sintomas” (FREUD, 1914/2022, p.157)

Fazer as pazes com o recalcado implica o paciente em uma nova relação com a doença, outra posição subjetiva para além da queixa inicial, o que exige sua demanda e autorização. Por seu turno, a nova relação com a doença dependia do estabelecimento da neurose de transferência mais colaborativa, porque vem em substituição à neurose comum. As substituições conhecidas por Freud na esfera sintomática foram recurso tático no manejo da transferência, com a proposta da neurose de transferência substituindo a neurose comum, durante uma análise, além da expectativa de certa regulagem das “pulsões selvagens” pelo uso da transferência.

Quando lemos Miller (1997) no “Discurso do método psicanalítico”, de 1987, encontramos em outros termos a importância das entrevistas preliminares para a localização subjetiva e as coordenadas da verificação de mudança possível, posição suportada pelo ato ético do psicanalista.

Freud verificou que a simples nomeação das resistências por seu turno não alcançava superação imediaa, porque as moções pulsionais alimentavam as resistências.  O difícil trabalho conjunto de analista e do analisante, portanto, visaria localizar e superar a incidência da pulsão.

A clínica o ensinava e um dos grandes méritos freudianos foi não se deter diante dos obstáculos, prosseguir suas indagações e pesquisas através de vários enigmas e paradoxos. Descobre que o esquecimento podia ser o não reconhecimento de algo vivido, a denegação, marca neurótica em relação ao desejo, assinalando o mecanismo defensivo que indica e nega a responsabilidade do paciente. Que as lembranças encobridoras podem compensar a amnésia infantil, além de surgirem isoladas, sem qualquer conexão. Podem ocorrer conexões a posteriori de afetos precoces e sem sentido. O paciente se lembra de imagem nunca vista ou não se lembra do que ocorreu anteriormente. Os pensamentos podem não retornar como representações, mas como atuações, portanto, o paciente repete sem saber que repete e experimenta a lembrança como alheia ou permutada pelas defesas.

Um fragmento clínico ilustra bem um dos impasses apresentados pelo início do tratamento localizados por Freud nessa época e que se reencontra ainda segundo alguns depoimentos dos psicanalistas nas práticas clínicas atuais:

Uma senhora, de idade mais avançada, repetidas vezes abandonava a casa e o marido, em estados confusionais, fugindo para um lugar qualquer, sem ter consciência do motivo de tal “escapada”. Ela veio ao meu tratamento com uma transferência carinhosa bem formada, aumentando-a de forma espantosamente rápida nos primeiros dias, e, ao fim de uma semana, também “escapou” de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse impedi-la de incorrer nessa repetição. (FREUD, 1914/2022, p. 159)

É muito interessante nesse pequeno relato de 1914 Freud situar no significante que reitera, a “escapada” da paciente, considerando a possibilidade de contenção como manobra clínica. Faz lembrar a importante pergunta de Lacan, muitos anos depois: “Mas se o ato está na leitura do ato, isto quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido a posteriori que ela toma seu valor?” (LACAN, 1967-68, p. 26). O significado não pertence ao mesmo campo do significante. Essa importante questão surge tanto em Freud quanto em Lacan. O ato da leitura a posteriori marca a distância entre a compreensão e a significação vazia de sentido. É preciso considerar um gozo que se imiscui tanto na palavra falada quanto nas atuações e guarda sua deriva e o enigma para o Outro.

Os sintomas na forma de repetições apresentam-se muito variados como que por acaso, um tropeção, uma falha, mas que insistem, vão dos pequenos fisgamentos cotidianos até esquecimentos que levam à morte, como os que resultam em acidentes. O que está fora da palavra mostra sua insistência e requer um trabalho em outro circuito, labor que mereceu, da parte de Freud, o nome de perlaboração, indicando uma travessia, um percurso através de uma experiência, longamente investigada na “Psicopatologia da Vida cotidiana” (FREUD, 1901/1980), que se desdobra, no próprio Freud em 1937, nas construções em análise, que, por analogia à metáfora arqueológica, ressalta a importância do trabalho com os restos. O curioso é que essas repetições, embora reiteradas, não possuem registros, o inconsciente não toma nota, o sujeito traz a notícia de que ocorrem sempre mais uma vez, uma primeira vez.

Freud, a partir dos trabalhos com a pulsão, sobretudo com a libido, a satisfação, leva em conta dois tipos de repetição. Embora fora da linguagem, é possível traduzir num tempo posterior, ou seja, introduzir condições de legibilidade do ato falho que ele citou mais de uma vez, quando o presidente de uma sessão, ao abrir os trabalhos, levanta-se triunfante e diz: “a sessão está encerrada”. Mesmo aparentemente fora da linguagem, a frase está dentro do contexto significante, portanto pode ser traduzida, mas nem sempre compreendida.

A grande surpresa em 1964 foi a retomada por Lacan, no Seminário 11, do que formalizou nessa época como Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O diálogo com Freud se apoiou inicialmente no texto “Lembrar, repetir, perlaborar” para extrair elementos essenciais visando fundamentar outra modalidade da repetição, pesquisa seguidamente renovada conduzida até seu último ensino.

A pergunta de Lacan (1964/1988) situa o inassimilável na forma do trauma que comparece desvelado fora do sonho, não como portador do desejo, mas o trauma mostrando na face despida de semblantes, o impacto do real. Para além do traumatismo das situações de violência, de guerra, que se repetem e buscam o tratamento pelo sentido, há o trauma do real, que acompanha o sujeito para sempre na esfera do fora do sentido.

A repetição não é o retorno dos signos nem a simples reprodução, não é apenas a rememoração agida, não é um comportamento. A descoberta freudiana do inconsciente encontra nos fundamentos da clínica a experiência de uma memória falha, sempre aberta, repleta de contradições.  A pesquisa lacaniana localiza algo mais que uma memória, como programas que se desenvolvem sem que o sujeito saiba, um saber paradoxal que não é um conhecimento, mas localizado inicialmente apenas pelos seus efeitos, acontecimentos imprevistos, que indicam a relação não evidente entre o pensamento e seu limite, fora do conhecimento do sujeito, ou seja, o real inferido através de seus efeitos que foi verificado inicialmente por Lacan, como o que retorna sempre ao mesmo lugar.

Na repetição, portanto, comparecem dois níveis: o primeiro na rede de significantes, atualizada, insistentemente, nas diversas formas de automatismo da repetição, no automaton, das biografias, nas histórias, narrativas; e, no segundo, temos a tiquê, o acontecimento imprevisto, o inassimilável, o trauma, acontecimento que ressoa diretamente sobre um corpo. Esses dois níveis foram revisitados sob nova leitura a partir da clínica freudiana, precisamente no caso do “Homem dos lobos”, numa cena infantil comparando duas realidades sucessivas e antagônicas ocorridas na infância do paciente no terreno da percepção. A realidade de uma cena que pode ser posta em palavras, e a perplexidade, demarcada pela surpresa, por um instante sem palavras, enigma, alheio ao sujeito do inconsciente como linguagem.  Nessa clínica, as particularidades do estatuto desse inconsciente respondem por realidades surgidas através de fenômenos situados em lugares diversos, como rememoração e reminiscência, o que franqueou a elaboração e construção de hipóteses diagnósticas diversas através da minuciosa leitura a posteriori do caso.

Quando Lacan indaga insistentemente, por vários anos, sobre o estatuto do inconsciente freudiano, formaliza progressivamente algo além da atualização por substituição dos sonhos, atos falhos, chiste, fantasia, sintoma. Algo que desloca para o primeiro plano a Outra realidade, a outra cena. Essa outra cena, entretanto, foge ao enquadre fornecido pela fantasia, não é uma lacuna a ser preenchida, que retorna a um momento prefixado. É um fenômeno inédito, fugidio, alheio a qualquer interpretação.

O relato seguido do comentário de uma experiência pessoal de Lacan sobre a Outra realidade, a outra cena, é colhida em recorte marcante trazido por ele no campo do sonho, quando foi despertado do curto sono através do qual procurava repouso. Despertado, ele diz, “por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu não me despertasse” (LACAN, 1964/1988, p. 58), é a partir dessas batidas apressadas que ele iniciava a construção de um sonho, que manifestava conteúdo diverso das batidas, mas em torno delas, e que reconstitui todo um conjunto de representações:

sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação – de que eu sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked, em choque. (LACAN, 1964/1988, p. 51)

Com esse fenômeno, Lacan destaca o barulhinho, o pequeno ruído, e, através do instante experimentado sobre o choque do despertar, aponta a hiância, o estranho, que evidencia a oposição entre realidades diferentes. Algo muito diverso do que pode ocorrer na esfera dos sintomas e das fantasias ainda no circuito das repetições que surpreendem o sujeito.

A amplitude dos fenômenos na repetição entre realidades disjuntas foi evocada em Freud, no jogo do carretel no qual, ao lado da brincadeira da criança, surge o salto sobre o fosso que separa a borda do berço, salto que inscreve a falta no seio da representação simbólica diferenciadora da ausência – presença do Outro e localiza a angústia em outra dimensão. A repetição na brincadeira infantil, como os casos clínicos o demonstram, pode indicar uma lacuna a ser preenchida por uma palavra, mas o acontecimento imprevisto, sem sentido, na cena do sonho evocada por Lacan, tem ação de corte, surpresa, perplexidade, porque sem nome, indicativa do choque com o real.

As mudanças para os fundamentos da clínica decorrentes do “simples” exame do estatuto do inconsciente, a partir da outra modalidade de repetição, repercutem até a atualidade e ampliam a chance de trabalho com os difíceis casos clínicos atuais.

A importância do Seminário 11 de Lacan no diálogo com o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” reside em reordenar os fundamentos da clínica psicanalítica a partir de nova perspectiva, considerando o real como experiência do inassimilável, tarefa que prosseguirá até seu último ensino.

Assim, demarca a diferença entre dois tipos de repetição propostas por Freud e Lacan: a que concerne à biografia, à história, ao que pode ser lembrado e associado aos modos diversos de satisfação, desconhecidos, mas passíveis de leitura a posteriori. Já o encontro com o acaso, o imprevisto, ou imprevisível, situará novamente a sessão analítica entre repetição e surpresa, em que o lapso convoca seu uso, e não sua interpretação; o acontecimento imprevisto repete como um raio que atinge um corpo, fora da apreensão pelas palavras. Esse outro tipo de repetição, também de dupla forma, separa o gozo incluído na cadeia de linguagem, como defesa, e o gozo fora da lei significante.

A sutileza de Lacan impressiona porque chama atenção para a radicalidade da repetição em situações cotidianas, aparentemente simples, que foram assinaladas anteriormente por Freud como a dimensão lúdica, ou seja, a repetição demanda o novo, mas a modulação é apenas deslizamento da alienação do seu sentido. O verdadeiro segredo do lúdico “é a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” (LACAN, 1964/1988, p. 62).

Um comentário de Zenoni (2022) ilumina essa radicalidade, ao lembrar a frase “o sujeito é sempre feliz”: todo acidente, acaso, reencontro, tudo é bom para a satisfação da pulsão porque ela se repete. O bom para a pulsão se justifica porque o gozo não conhece seu contrário, tal como ocorre com o desejo. A renúncia ao gozo é também um gozo enquanto um desejo realizado, é o oposto de um desejo não realizado. A marca de gozo, sempre a mesma, restará como irredutível, ineliminável. O interessante é o convite ao trabalho que pode tocar um falasser, advindo dos paradoxos da repetição.

Esse convite ao trabalho tem no depoimento de Marcos André Vieira (2019) esclarecimento fundamental sobre os efeitos de uma análise. O psicanalista se expôs ao risco da violência em evento no qual compareceu, acompanhado de seus filhos, à favela da Maré, local onde desenvolveu longo trabalho clínico que resultou em várias publicações de pesquisa. Na entrada foi interrogado, em cena que se repetiu, por dois adolescentes fortemente armados. Da cena, resta a sensação de estranheza. Após intervenção de seu analista, encontra a evidência, na repetição, do desejo inconsciente, que expõe, por seu turno, um gozo ligado ao perigo que carregava, um real acompanhado do afeto: “Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar” (VIEIRA, 2019, p. 32). Trata-se, nesse caso, do inconsciente como efeito de leitura do que se fala.

O trabalho clínico a partir do remanejamento de conceitos fundamentais não corresponde a uma elucubração de saber, mas opera como instrumento para “renovar nossa prática no mundo” (MILLER, 2014, p. 21), considerando a possibilidade de lidar com as contingências que atingem incessantemente um falasser e a responsabilidade implicada na extimidade da prática psicanalítica.


 

Referências 
FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VI, 1980. (Trabalho original publicado em 1901).
FREUD, S. Lembrar, repetir, perlaborar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1914).
LACAN, J.  O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. 1967-68. (Inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964)
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
VIEIRA, M. A. Extimidades. Correio Express – Revista Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 82, 2019. Disponível em: www.ebp.org.br/correio_express. Acesso em: 27 jun. 2023.
ZENONI, A. La répétition, de Freud a Lacan. Quarto, n. 131, jun. 2022.
[1] Trabalho apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 30 de maio de 2023.



Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma[1]

Philippe la Sagna
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne
plasagna@free.fr

Resumo: Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele.

Palavras-chave: doenças mentais; despatologização; desmedicalização; forclusão; sintoma.

DEPATHOLOGIZATION AND DEMEDICALIZATION: THE FORECLOSURE OF THE SYMPTOM

Abstract: According to the author, after the DSM5 crisis and the emergence of the Research Domain Criteria (RDoC) in the clinic, the pathology model for mental illness became a “disorder” and weakened. In this new situation, the referent becomes the neuronal circuits associated with behaviors that are isolated in areas. One of the main and logical effects of this is depathologization and demedicalization with the erasure of therapy. Today, we educate, rehabilitate and aim at the power to act, the empowerment, and thus carry out a foreclosure of the symptom so dear to psychoanalysis, that it does not aim at its erasure, but at what the subject knows how to do with it.

Keywords: mental illness; depathologization; demedicalization; foreclosure; symptom.

Imagem: Sofia Nabuco

A questão trans lança luz sobre uma forte tendência na psiquiatria e até da medicina: a despatologização generalizada da clínica e até mesmo sua desmedicalização. Nós queremos cuidados, mas não queremos mais “fazer dela uma doença”. Em seu artigo “La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique”,[2] Éric Laurent (2014) havia apontado o fracasso do DSM-V. Em outro artigo, publicado em L’évolution psychiatrique, ele mostrou a lógica do que chamou de “a grande translação clínica contemporânea” (LAURENT, 2019, p. 57).  A crise do DSM levou ao aparecimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC)[3] na clínica.

Nessa nova situação, toma-se como o referente não mais as doenças, patologias ou mesmo pacientes, mas circuitos neuronais correlacionados com dados comportamentais que podem ser isolados em áreas. Em 2015, Steeves Demazeux, de Bordeaux, e Vincent Pidoux, em um artigo sobre este projeto RDoC, mostraram que o desafio dos RDoCs era abandonar o diagnóstico. O conceito do RDoC é o de formalizar construtos teóricos que serão os blocos de construção da classificação. O projeto é apresentado como uma pesquisa, o que o protege de uma verificação clínica efetiva. Os “campos” de pesquisa nunca deixam de surpreender: medo, circuito de recompensa, aversão, adicção, cognição (atenção e percepção, memória), aos quais acrescentamos “os processos sociais, e os sistemas de ativação e de modulação cerebrais”. Em seu livro l’Éclipse du Symptom, S. Demazeux (2019) mostra que o que antecedeu ao DSM, desde o início do século XX nos Estados Unidos, foram estudos estatísticos sobre a saúde mental: esses projetos têm em comum o fato de que eles viram as costas para toda herança da psiquiatria. Eles vão ainda mais longe, já que parecem querer abandonar a própria noção de sintoma.

À frente desse projeto RDoC está um psicólogo: Bruce Cuthbert. Em um recente artigo, ele define “a estrutura de trabalho do RDoC” (CUTHBERT, 2021). O essencial é o desenvolvimento de uma tabela de entrada dupla. No eixo das ordenadas, estão as áreas já mencionadas aqui, e no das abscissas há amontoados de “circuitos cerebrais”, os genes, as células, e até mesmo as moléculas e os comportamentos.

O autor especifica que os “construtos” são “conceitos não calculáveis” propostos a partir de conjuntos convergentes de dados (CUTHBERT, 2021, p. 78). Para ele, o essencial é definir trajetórias de desenvolvimento: “A maior parte das doenças mentais são distúrbios do desenvolvimento neurológico, a maturação do sistema nervoso interagindo com uma grande variedade de fatores externos mesmo antes do nascimento” (CUTHBERT, 2021, p. 78). E ele se refere à extensão das desordens do neurodesenvolvimento (TND):

A este respeito, para tomar um exemplo, Craddock e Owen propuseram um gradiente para a patologia de neurodesenvolvimento que, de forma contínua, parte da deficiência intelectual e avança para o autismo, a esquizofrenia, o transtorno esquizoafetivo, o transtorno bipolar e a depressão unipolar. (CUTHBERT, 2021, p. 84)

Aqui, não há descontinuidade no real onde um sujeito do transtorno poderia entrar sorrateiramente. A abordagem supõe uma continuidade entre o normal e o anormal que se torna o substituto do patológico. A abordagem é dimensional.

Em nosso campo, fomos capazes de avançar uma hipótese continuísta de natureza diferente com o “todo mundo é louco”. A ideia era modular a oposição do tipo estrutural neurose/psicose e passar da falta própria do significante para um exame das conexões e a uma clínica nodal, borromeana, ou mesmo para uma lógica difusa. Mas não é nunca uma continuidade baseada na avaliação dimensional de um déficit em referência ao normal.

A frase de Lacan é um falso universal a ser lido à luz do não-todo da sexualidade feminina. Lacan, em Vincennes, em 1978, enfatizou que não havia nada de universal no discurso analítico. Ele acrescentou que, nesse aspecto, “não é uma questão de ensino”. A loucura é também: “ensinar, o que não pode ser ensinado” (LACAN, 1979, p. 278). Não se trata de dizer, para os RDoCs, que “todo mundo é louco”, mas, sim, que “todo mundo é normal”. Em um recente colóquio em Nantes, um dos participantes (Nicolas Georgieff) sublinhou: “Do lado das ‘doenças’, o modelo de patologia – que se tornou disorder – se enfraqueceu. Isso é particularmente verdadeiro para os distúrbios reunidos no novo compartimento do ‘neurodesenvolvimento’, supostos como sendo eminentemente médicos” (GEORGIEFF, 2021).

Para os TNDs, o genótipo substitui o sintoma e substitui a clínica. Um dos efeitos principais e lógicos dessa desmedicalização é o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos, visamos o reforço do poder de agir – empowerment – e elogiamos a resiliência. A doença mental escapa ao psiquiatra, mas também ao psicólogo, que é sempre um pouco psi demais tanto para os clientes que não são mais pacientes, como também para os seus cuidadoresInvestimos nos pares cuidadores. Realizamos assim uma foraclusão do real da doença. A doença, de fato, não é um ser; é o real da existência do vivente / sujeito. Como Lacan (1953/1998, p. 282) assinalou em 1953 citando a observação de Hegel: “a doença [é] a introdução do vivente na existência do sujeito”. A psicanálise não visa o apagamento do sintoma, mas sim aquilo com que o sujeito se vira, que ele saiba fazer com ele como faz com a sua imagem, que ele o manipule. Atualmente, embaralhamos tudo isso. Essa confusão contemporânea corre o risco de produzir o que Lacan evocava como os “hollow men” (MILLER, 2007), homens com a cabeça cheia da palha, com a palha dos circuitos neuronais e dos genes. O psicanalista é então um sintoma do qual queremos prescindir, como de resto. Lacan (1973/2003, p. 554) afirmava em 1973 “que os tipos clínicos decorrem da estrutura”. No entanto, tudo isso não permite que se constituam correlatos na neurose. “Os sujeitos de um tipo não têm, portanto, qualquer utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).  Lacan (1975-76, p. 55) argumentou que a função do sintoma é a de operar a nomeação do simbólico: “a nomeação é a única coisa no simbólico da qual temos certeza de que ela faz furo”. Essa nomeação não garante a consistência do sistema simbólico, mas, sim, seu furo. Isso se opõe à “futilidade” da ciência, “que é óbvio que ela apenas progride pela via – é seu método, é sua história, é sua estrutura – só progride pela via de preencher os furos” (LACAN, 1975).

Conversação 

Angèle Terrier: Obrigada Philippe La Sagna. Você nos apresenta pesquisas na vanguarda da tese “neuro”, na qual há muito claramente uma questão de se livrar de toda noção de patologia, de sintoma, de diagnóstico e até mesmo do paciente, a fim de estar interessado apenas em circuitos neurais correlacionados a dados comportamentais, estando a saúde mental reduzida, portanto, a um quadro de dupla entrada. É o que você nomeia como uma despatologização da clínica ou uma desmedicalização. E aqui, por falta de tempo, eu gostaria de ouvir você discutir isso com Hervé Castanet, que fala mais sobre a patologização da vida mental.

Philippe La Sagna: Sim, há alguma discussão; embora talvez seja um pouco a mesma coisa. Parece-me que a patologização da vida mental, sobre a qual evocava Hervé Castanet, diz respeito, acima de tudo, ao fato de que, a partir do momento em que as neurociências tomaram o poder – podemos ver isto de uma maneira diferente –, elas abordaram toda a vida mental como sendo suscetível a desordens e inventaram, portanto, as doenças. Foi isso que colocou o DSM no fosso. Depois de um tempo, eram quatrocentos e cinquenta tipos de doenças mentais, o que levou as pessoas a dizer: “Vamos parar”. Isso parou no dia em que nos perguntamos se o fato das mulheres estarem tristes durante seus períodos menstruais era uma doença mental ou não. As feministas responderam: “Não, não é uma doença mental”.

A pergunta que você me fez sobre os furos também é igualmente importante. O que acontece com os furos na ciência? Acredito que a ciência da qual falava Lacan e a ciência de hoje não têm muito a ver. É preciso entender que a ciência, no momento, funciona como uma startup, tanto no nível do financiamento, quanto das publicações. Os laboratórios também operam com esse modelo.

O caso Theranos[4] é um exemplo que está causando um escândalo no momento. Apesar de se afirmar como ciência, ela se verificou completamente manipulada. Estou recebendo em análise alguns cientistas que me dizem como é difícil fazer pesquisas sem adulterar os resultados para conseguir financiamento. Há uma retórica da promessa, como diz François Gonon; é preciso levar às pessoas a esperança dos amanhãs que cantam: transplantes de cérebro, por exemplo. Estamos quase lá! Parece-me que isto está de acordo com o que disse Hervé Castanet. Para obter amanhãs que cantem, você inventa coisas que não existem. Não é mais uma questão de tapar furos, mas de evitá-los. Esta ciência é muito mais louca do que a anterior. Antes, quando ela encontrava um furo, tentava respondê-lo, tampando-o. Agora, quando confrontados com um furo, passam para outra coisa.

A. Terrier: O que você está destacando é o delírio destas falsas ciências. A pergunta que eu estava me fazendo foi baseada nessa citação de Lacan que você retomou no final de sua palestra, na qual ele indica que a ciência só avança ao preencher furos. É realmente uma questão de foracluir o próprio furo do simbólico.

P. La Sagna: Talvez eu não concorde com você porque, se fosse uma questão de foraclusão, isso deixaria uma esperança. Tudo o que é foracluído no simbólico retorna no real, você sabe disso. A foraclusão do sujeito da ciência, é o cientista.

A. Terrier: Isso retorna, de fato.

P. La Sagna: Poderia dizer, por exemplo, que a ciência forclui o sujeito e, infelizmente, o cientista é um sujeito que retorna no real, que diz a si mesmo que não deveria ter feito a bomba atômica e que vai atirar uma bala na própria cabeça. Se os furos da ciência fossem foracluídos, eles retornariam no real. Mas, hoje, os cientistas os ignoram, ou seja, eles entram sorrateiramente por cima deles. Como demonstrava o meu amigo François Gonon, com quem trabalhei por muito tempo, apenas os resultados positivos são publicados. O que importa se, três meses depois, novos resultados são publicados demonstrando a falsidade dos resultados anteriores, se ninguém os lê. Eles aparecem em um pequeno parágrafo. É por isso que eu digo que eles evitam os furos. Isso não é mais a ciência de Lacan, na qual havia debates, colóquios. Hoje em dia, não é o mesmo real.

Hervé Castanet: Em sua palestra, você diz: “estas falsas ciências”. Podemos dizer isso em nosso campo, mas, assim que o deixamos, essa declaração não pode ser ouvida; essa é a prática que é valorizada em todos os dispositivos científicos atualmente, ou em quase todos. Portanto, a pergunta que fiz a mim mesmo é menos porque isso é assim, do que questionar como isso pôde ser possível. Como esse modo de proceder, do qual zombamos sempre, pode hoje prosperar? Aplicando uma epistemologia, por mais rudimentar e eficaz que seja, por exemplo a de Canguilhem, percebe-se que esses argumentos não se sustentam e, apesar de tudo, generalizaram-se a tal ponto que os laboratórios, não só na França, mas também no exterior, são mantidos por esse tipo de ciência. Daí minhas referências ao Collège de France e à Academia de Ciências.

Fiquei muito sensibilizado com a observação feita anteriormente por J.-A. Miller. Não ficamos obrigados, de uma certa forma, a estar nos porões, nas catacumbas, quando constatamos que todos os dispositivos são desse tipo? Os acadêmicos de psicologia não sonharam sempre com o jaleco branco? Zombamos tanto deles e de sua disciplina, ao nos referirmos ao famoso texto de Canguilhem. De maneira efetiva, suas esperanças de pertencer à ciência generalizaram esses procedimentos. Nossa crítica a essas “falsas ciências”, mesmo a nossa zombaria – porque é tão triste que temos que colocar um pouco de humor – não impede que elas tenham efeitos sobre a prática, mesmo em hospitais. Os textos aos quais me refiro não são marginais; há uma menção explícita de intervenção no cérebro.

Lembro-me de uma apresentação de pacientes para residentes no Hospital Universitário de Marselha (CHU). Após a apresentação, durante uma hora, nós tentamos determinar no departamento de geronto-psiquiatria se se tratava de uma demência frontal ou de esquizofrenia. Obviamente, ambas podem coexistir. Uma jovem residente me disse: “Mas você passou uma hora discutindo, enquanto uma varredura de scan, que não custa nada – era uma época em que havia um déficit de um bilhão no AP-HM – teria lhe esclarecido imediatamente”. Para ela, estávamos fazendo a história do pensamento.

A. Terrier: É de fato dessa história que esta ciência gostaria de prescindir.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Márcia Bandeira

Referências
CUTHBERT, B. N. Le cadre de travail des RDoC: faciliter la transition de la CIM et du DSM vers des approches dimensionnelles qui intègrent les neurosciences et la psychopathologie. Annales médico-psychologiques, v. 179, p. 75-85, 2021. Disponível em: https://www.em-consulte.com/article/ 1420731/le-cadre-de-travail-des-rdoc% C2%A0-faciliter-la-transit. Acesso em: 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/ revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023. .
DEMAZEUX, S. L’Éclipse du symptôme: L’observation clinique en psychiatrie (1800-1950). Paris: Ithaque, 2019.
LACAN, J. Intervention au Congrès de la Grande Motte de l’École freudienne de Paris. Lettres de l’École freudienne, n. 15, p. 69-80, 1975.
LACAN, J. Séminaire du 15 avril 1975. Ornicar?, n. 5, 1975-76.
LACAN, J. Lacan pour Vincennes!. Ornicar?, n. 17-18, 1979.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LAURENT, É. La grande translation clinique contemporaine. L’évolution psychiatrique. 2013. Disponível em: https://levolutionpsychiatrique.fr/activites-scientifiques/les-colloques-lanteri-laura/3e-colloque-lanteri-laura-histoire-epistemologie-et-psychopathologie-la-clinique-a-lepreuve-du-contemporain/eric-laurent-la-grande-translation-clinique-contemporaine/>. Acesso em : 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023.
GEORGIEFF, N. La psychiatrie: une médecine sans maladies? Disponível em: http://www.ch-le-vinatier.fr/actualites-23/la-psychiatrie-une-medecine-sans-maladies-951.html?cHash=4bba4d93f41da1a11697433871b582f1.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. Le tout dernier Lacan. Curso de 02 de maio de 2007. (Inédito). Disponível em: <https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2016/02/2006-2007-Le-tout-dernier-Lacan-JA-Miller.pdf>. Acesso em : 01 jun. 2023.
[1] Texto originalmente publicado em: Revue Quarto, n. 131, jun. 2022
[2] N.T.: Em português, “A crise pós-DSM e a psicanálise na era digital”.
[3] O RdoC é um projeto de pesquisa do Instituto de Saúde Mental dos EUA iniciado em 2009 cujo objetivo é formalizar um novo sistema diagnóstico psiquiátrico que seja capaz de alinhar as classificações do DSM às descobertas em genômica e neurociência.
[4] N.T.: Theranos é uma empresa de tecnologia de testes de sangue que se destina a ser usada em pacientes reais para diagnosticar uma infinidade de doenças. A empresa controlada por uma empresa de biotecnologia, seguiu sem amplo estudo de avaliação. Confrontados por outra empresa seus dados se mostraram inconsistentes. (Cf.: https://setorsaude.com.br/o-escandalo-theranos-pode-ser-apenas-o-comeco/)



Clínica psicanalítica do delírio[1]

Laurent Dupont
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne /AMP
laurentdupont.mail@gmail.com

Resumo: Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Palavras-chave: delírio; paranoia; sublimação; narcisismo; real.

PSYCHOANALYTIC DELIRIUM CLINIC

Abstract: In the “Psychoanalytic clinic of delirium”, Laurent Dupont starts from freudian considerations about delirium in the Schreber case and, throughout the text, he proposes to read the lacanian “everybody is crazy” as an attempt to cure the real. By resuming the three stages of delirium construction, Dupont sheds light on the role of narcissism and sublimation in this process. In this sense, the Lacanian thesis of generalized delirium points, according to the author, to an attempt to bring a signifier back to the hole: “everything that man builds, invents, thinks is a way of dealing with, of compensating for this fundamental hole of not sexual intercourse”.

Keywords: delirium; paranoia; sublimation; narcissism; real.

Imagem: Renata Laguardia

 

Proponho pensar sobre esta questão a partir de duas declarações, sendo a primeira de Freud (1911/1996, p. 78): “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”; e a outra, de Lacan (1978/2010, p. 31): “todo o mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Assim, é possível para nós entendermos o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura; mas curar o quê?

Freud (1911/1996, p. 78) propõe uma construção do delírio em três etapas. Primeiro, a ideia de uma catástrofe universal, um processo que é realizado de forma silenciosa, deixando o sujeito impossibilitado de dizer algo. Vamos falar de perplexidade, sideração. Nenhum significante vem nomear esse colapso, o surgimento de um furo. Segundo tempo freudiano: a libido se desprende de pessoas ou coisas antes amadas (FREUD, 1911/1996, p. 79), deixando o sujeito em uma solidão radical. Esse desprendimento é o sinal de uma frouxidão tanto do imaginário quanto do simbólico: o silêncio da pulsão torna-se ensurdecedor, deixando o sujeito fora de tudo. A terceira etapa pode ocorrer no instante exato da segunda: reinvestimento da libido nos objetos de amor anteriores, mas sob a forma de um delírio. Esta é a tentativa de cura:

O que chama tão ruidosamente a nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão, e traz de volta a libido para as pessoas que ele havia abandonado. Na paranoia este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna do lado de fora. (FREUD, 1911/1996, p. 79)

Lacan formula esse ponto da seguinte forma: o que está foracluído do simbólico, do exterior, retorna no próprio corpo do sujeito. O delírio é, portanto, uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo, uma tentativa de localizar o gozo; seja desesperada, vã ou eficaz, ela é sempre uma tentativa de cura.

Querer, portanto, como é proposto hoje na psiquiatria, erradicar o delírio, ou que o sujeito o critique, significa suprimir a única tentativa de solução que o sujeito consegue estabelecer.

O que fazer com um delírio?

Freud não sustenta o delírio, ele o analisa, ele o segue ao pé da letra e identifica seus detalhes. De fato, um sujeito só pode delirar a partir dos significantes dos quais ele dispõe. O delírio, como o sonho ou o desenho na criança, está lá para produzir significantes, significantes da língua do sujeito. “Porca” é o significante a partir do qual Lacan pode construir o caso, seu surgimento testemunha que é este e não um outro. Há, de uma forma ou de outra, uma espécie de escolha do sujeito, uma redução ao núcleo de uma cifração mínima do inconsciente a céu aberto.

Seguir o delírio ao pé da letra, ou seja, lê-lo sem se deter no sentido que se desprende, leva Freud a formular algumas hipóteses: todas as construções, “as engenhosas erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião – a hierarquia de Deus, […] podemos avaliar, retrospectivamente a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido” (FREUD, 1911/1996, p. 80).

No delírio, pode haver uma tentativa de cura através de uma forma de sublimação. Isso está relacionado com o fato de que, por causa do desinvestimento da libido nas pessoas amadas, o retorno a elas é feito de início pelo eu do sujeito: “a libido liberada vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste” (FREUD, 1911/1996, p. 79) e visa à amplificação desse eu condenado ao caos.

Lacan fala nesse delírio de grandeza, da função de exceção que visa a ocorrência do delírio no caso do Presidente Schreber. Há, portanto, uma localização feita por Freud de uma colagem, ao mesmo tempo uma tentativa de cura por um reforço do narcisismo e o recurso a uma forma de sublimação, ambos se sobrepõem, soldados um ao outro: numa tentativa de colocar em forma o que Lacan nomeia de o sinthoma em Joyce: escabelo.

Freud (1911/1996, p. 83) também argumenta que “podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento que busca devolver a libido a seus objetos”. Assim, Freud mostra três tempos no estabelecimento do delírio: 1) colapso do mundo, deixando o sujeito fora do sentido, silencioso, sem recurso possível tanto em relação ao simbólico quanto ao imaginário. 2) Fase de agitação alucinatória, “o que é abolido retorna do exterior”. 3) O delírio é uma tentativa de cura na medida em que tenta restaurar o sentido e permitir o reinvestimento nos objetos. E Freud acrescenta essa frase de uma atualidade fulgurante: “Mas é essa tentativa de cura que os observadores consideram ser a própria doença”. Muito pouco mudou hoje em relação a essa observação, o delírio é visto menos como uma tentativa de cura do que como uma produção a se erradicar.

O delírio testemunha um colapso do imaginário e do recurso ao significante S1, sozinho, não ligado a um S2, como tentativa de lidar com o que retorna no corpo Um que deixa o sujeito desamparado. Mas esse significante S1 frequentemente não fornece ao sujeito nenhum significado em relação àquilo que acontece com ele, ao contrário, ele é o traço do furo radical de qualquer sujeito confrontado com o real. A elaboração delirante é, portanto, neste momento, uma tentativa de remendar o desenlace imaginário. Algumas vezes, esta solução pode operar uma nomeação, como em Joyce.

Foi em 1978, em seu último ensino, que Lacan (1978/2010, p. 31) formulou: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que não há nada além de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”.  Se a metáfora paterna é responsável pela relação do sujeito com o Outro e por sua alienação ou não, a partir do Seminário XI, Lacan traz à tona, com o objeto a, a questão sob o ângulo da separação, da extração. Seja em relação ao S1 sozinho, falha de significantização do gozo, seja de defesa contra o real. Nos dirá Jacques-Alain Miller (1990): retorno de gozo para o lugar do Outro na paranoia, retorno de gozo generalizado no nível do corpo na esquizofrenia, o retorno do gozo, localizado, mas deslocado no corpo como Outro no fenômeno psicossomático.

O delírio generalizado seria uma defesa contra o real. Quanto mais Lacan avança em seu ensino, mais ele apresenta essa noção de que tudo é sonho, tudo é delírio, tudo é semblante. Em relação a quê? Em relação à relação sexual que não existe, que não se inscreve, que não pode se inscrever. Nada é pré-estabelecido, nada é programado para permitir o encontro. Lacan (1978, p. 8) dirá que a psicanálise, nesse sentido, é em si mesma um delírio: “A psicanálise não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, ela só pode estar à espera, a esperar por isso. É um delírio – um delírio que se espera que comporte uma ciência”. Lacan vai dizer que o objeto a é um semblante, que o amor é um semblante, que a verdade é uma mentira… tudo isso em relação a esse real que não é nem apreensível pelo imaginário, nem pelo simbólico.

Tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar esse furo fundamental da não relação sexual. Lacan (1972-73/2008, p. 149) chega ao ponto de dizer que “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalangue”. A própria linguagem é um delírio. Assim, o sujeito, na imaturidade de seu nascimento, nesse momento em que se trata apenas de uma substância gozante, experimenta de forma radical a ausência de um programa, de relação com o Outro nesse primeiro encontro com o significante, mordida do significante no corpo, marca que deixa um traço indelével, marca Um, essa que Jacques-Alain Miller (2011) diz em O Ser e o Um: “É o Um do significante”. Este Um é apagado pela ação da linguagem que faz emergir o ser. Em “Joyce, o Sinthoma”, Lacan (1975/2003, p. 561) diz desta forma: “A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”. O ser também é um semblante, o ser também é um delírio, uma elucubração sobre esse traço inicial, esse traumatismo inicial de lalangue, e é esta a marca, o traço da existência do sujeito, o qual itera. Isto é trans-estrutural. Todos são delirantes porque a partir desta marca, esta mordida no corpo pelo Um do significante, cada sujeito será elaborado, elucidado, construído. Essa marca, esse encontro inicial, é impossível de dizer porque o real não pode ser dito, só pode ser definido, unicamente com base na lógica, no equívoco, no que se itera no sujeito. É por isso que os testemunhos de passe não dizem o real, como tal eles são ficções, contam como cada um, um a um, tem sido capaz de desconstruir suas ficções, suas identificações, sua relação com o objeto, em suma, seus delírios. Isso é o que permitiu a Jacques-Alain Miller dizer que, tendo sido o passe feito uma vez, todos os escabelos foram queimados, restam os escabelos do passe: a ultrapassagem.[2] Recordo essa definição de escabelo por Jacques-Alain Miller (2016): aquilo em que se sobe para se fazer bonito e para se tornar belo, para se empurrar para cima, o cruzamento do narcisismo e da sublimação. Aqui vemos ressurgir os dois pontos de referência freudianos, o narcisismo e a sublimação, no que concerne a Schreber.

O delírio universal seria, portanto, uma tentativa de cura diante do real, do furo trans-estrutural da não relação sexual.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Giselle Moreira

Referências
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Ornicar?, n. 14, 1978.
LACAN, J. Joyce, o Sinthoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978). 
MILLER, J.-A. Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: WARTEL, R. et al. Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 87-97.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. L’être et l’Un, enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 16 mars 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: www.congressoamp2016.com/uploads/ Acesso em: 18 jan. 2023.
[1] Publicado originalmente em francês em L’hebdo–Blog, n. 136, em 6 de maio de 2018. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/clinique-psychanalytique-delire/
[2] No original: l’outrepasse.



“Folitiquement” incorreto[1],[2]

Pascale Fari
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne/AMP
pfaripsy@gmail.com

Resumo: O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Palavras-chave: loucura; doença mental; delírio.

“FOLITIQUEMENT” INCORRECT

Abstract: The signifier “madness” is no longer admissible in psychiatry. Psychism has been erased, the qualifier “mental” has become an uncomfortable relic and what remains is simply “the disease”. Faced with the current master suffix, neuro, what is essential is no longer what the patient has to say, but that he swallows it. The brain is the primary object of this disease, the machine is its original model. It is psychoanalysis that, by sustaining the dimension of subjectivity, constitutes the greatest obstacle to reducing madness to an organic disturbance.

Keywords: craziness; mental disease; delirium.

Imagem: Renata Laguardia

Talvez, um dia, se saberá melhor o que pode ser a loucura.
(FOUCAULT, 1964/2002)

Referimo-nos  à psiquiatria transformada numa questão para todos.
(LACAN, 1964/2003)

A cena se desenvolve em um setor de psiquiatria adulta na região parisiense. O caso de um paciente esquizofrênico que vai particularmente mal é abordado em reunião. A discussão está animada, rica de vinhetas clínicas trazidas por todos. Durante a conversação, eu digo: “Ele está completamente louco nesse momento”. Silêncio incomodado, todos olham para frente. Após um tempo de pausa, a conversação recomeça sobre outra coisa, como se nada tivesse acontecido. Um colega psiquiatra me explicará: “Não se pode mais falar de loucura, isso não se diz mais”. É verdade.

Investigação sobre um apagamento 

Eu já sabia, há muito tempo, que o termo doença mental tinha suplantado o termo loucura; que inúmeros loucos se encontram na rua ou na prisão; etc. Mas eu descobri lá, entretanto, o que é o corolário lógico disso: a loucura não é mais admissível em psiquiatria. O significante ele mesmo se tornou tabu. Silenciosamente obliterado. Politicamente incorreto.

Sempre excluídos, os loucos tinham um lugar no discurso psiquiátrico e no hospício. A exclusão lhes conferia um lugar. Lidaríamos, a partir daí, com a negação – até mesmo a forclusão – da loucura? Estamos nesse desenlaçamento antecipado por Michel Foucault (FOUCAULT, 1964/2002, 1973-74/2006), no qual a loucura e a doença mental terminam por se separar? À força de reduzir a doença mental à uma afecção orgânica chegou-se a “pasteurizar o hospital psiquiátrico” sem mais aí encontrar a loucura?

O silêncio embaraçado de meus colegas testemunha, apesar de tudo essa presença ainda quente de um real que não encontra mais como se nomear? O que é exatamente esse apagamento? O que é que o tornou possível? Quais são as consequências disso?

Engolir a doença (mental) 

Não se fundamentando senão por dados quantitativos, o cientificismo estuda sua distribuição “sem referência a nenhum conteúdo significativo ou absoluto” (MILLER, 2004, p. 8).  Nessa “ditadura da média”, a ideologia da objetividade das cifras se alimenta da vacuidade de sua significação. Nesse reino de quantificação desenfreada, joga-se uma cumplicidade implacável entre as exigências econômicas da Administração e a psiquiatria organicista, entre o Um gestor e o Um bioquímico ou neuronal.

Uma vez o psiquismo apagado, o qualificativo “mental” se torna uma relíquia incômoda; permanece “a doença”, simplesmente. Assim, se indica ao paciente que a “esquizofrenia é como o diabetes, é uma doença crônica”; detalha-se para ele os sintomas (todos deficitários); único recurso, tomar cuidadosamente todos os seus medicamentos para impedir a inevitável progressão do mal. O essencial não é o que o paciente teria a dizer, mas sim que ele engula a coisa. Às “velhas leis” [do hospital] (FOUCAULT, 1975/2002, p. 288): “Você não se mexerá, não gritará”, acrescentou-se esta: “Você engolirá” (neurolépticos, refeições, cuidados, explicações…). E Foucault (1975/2002, p. 289) conclui: “entre a loucura que não se quer mais e a cura que dificilmente se espera, [o] ‘bom doente’ [é] aquele que come bem”.

No entanto, atualmente a forma que toma a cifra quando ocupa o psíquico é o “significante-mestre, o sufixo-mestre, é neuro-” (MILLER, 2018). O cérebro é seu objeto primordial, a máquina é seu modelo original.

O homem-máquina: o “reset” do eletrochoque 

O imaginário contemporâneo comporta uma “identificação à máquina”, nós tratamos ou gostamos de “ser tratados como uma máquina”, continua Jacques-Alain Miller. A língua está impregnada disso – acionada, encarnada, “estar no clima” disso ou daquilo…, robotizada, superexcitada, etc.

Eis o que esclarece a volta surpreendente do eletrochoque: “Neurologia: mudança a respeito do eletrochoque”;[3] “Psiquiatria: a incrível revanche dos eletrochoques”;[4] “A sismoterapia é particularmente brilhante contra a depressão severa”.[5] 

Rebatizada “sismoterapia” ou “eletroconvulsivoterapia” (ECT), trata-se sempre de uma crise convulsiva provocada pela passagem de uma corrente elétrica no cérebro – entre 50 e 200 V (até 350 V), para uma intensidade de 50 a 800 mA. Mencionemos aqui que o custo dos eletrochoques é elevado, é um ato que “dá lucro”, principalmente às clínicas privadas.

Um novo padrão se impõe (GUELFI, ROUILLON, 2017, p. 660; SZEKELY; POULET, 2012), que promete o ECT como “o tratamento o mais eficaz da depressão severa”. Atualmente é admitido (senão preconizado) recorrer a ele logo de início (ao passo seu uso se limitava anteriormente aos casos resistentes à quimioterapia e que apresentem um risco vital). As indicações não esquecem ninguém (mulheres, grávidas, crianças, terceira idade). Se bem que “não consensuais”, elas se multiplicam em todas as direções, da primeira descompensação esquizofrênica até a adição à internet dos adolescentes…

Incrível, mas verdadeiro, poucos estudos tratam dos danos cerebrais causados pelos eletrochoques; grande parte desses estudos são antigos e insuficientes (SACKEIM et al., 2007). Em 2007, o primeiro estudo de envergadura conclui pela persistência de problemas cognitivos (memória, aprendizagem, pensamento).

Quanto ao mecanismo de ação, mistério… Alguns contam com “camundongos modificados geneticamente” por serem verdadeiramente deprimidos! As hipóteses são abundantes, evocam uma espécie de branle-bas de combat[6] para interromper as principais perturbações induzidas pela descarga elétrica. Sem se confessar explicitamente, o modelo que emerge dessas conjecturas se parece com a função reset de uma máquina.

Um problema, entretanto: a “taxa de recaída […] importante e precoce” após um tratamento de ECT (oito a doze sessões por algumas semanas). Pouco importa, os tratamentos “de manutenção” ou “de controle” são recomendados – ainda o modelo da máquina – para prevenir uma recidiva. Dentro de pouco tempo a adição aos eletrochoques?

… à lier[7]

A exacerbação da violência em psiquiatria ultrapassa a prática dos eletrochoques. Ela se deve precisamente a esse apagamento da loucura em proveito da saúde mental, aquela que “não tem outra definição senão a da ordem pública. Trata-se sempre do uso, do bom uso da força” (MILLER, 1999, p. 14). Negando a subjetividade, em nada querer saber do que os pacientes têm a dizer, nesses “confins onde a palavra se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos” nos advertia Lacan (LACAN, 1954/1998, p. 376).

Nada surpreendente, portanto, a inflação imoderada das medidas coercitivas (hospitalizações forçadas, isolamento, contenção). Em 2015, aproximadamente um quarto das hospitalizações foram feitas sem o consentimento de 100.000 pacientes concernidos (FAVEREAU, 2017),[8] ou seja, duas vezes mais que há dez anos. Surpreendente contraste com a ambição da Lei de 5 de julho 2011, que esperava limitar o recurso à força e garantir os direitos dos pacientes! O filme de Raymund Depardon, 12 dias, mostra isso de maneira de pungente: os pacientes são convidados a se expressar, mas a entrevista com o juiz encarregado de avaliar a medida, focalizada sobre a legalidade do procedimento, reduz sua palavra a uma casca vazia. Deste mal-entendido absoluto, o não-encontro redobra a alienação.

Da mesma maneira, a colocação em quarto de isolamento e a utilização das amarras de contenção vão crescendo, manifestando às vezes uma certa imprecisão entre cuidado e sanção disciplinar; para Geneviève Hazan, responsável pelo controle geral dos locais de privação de liberdade, as causas disso são múltiplas: a redução dos efetivos, a falta de formação das equipes…, mas também a amplificação mediatizada “de acontecimentos dramáticos, mas excepcionais” (CGLPL, 2016, p. 80).

Ora, a periculosidade, a passagem ao ato imprevisível, não é justamente o que resta (ou o que faz retorno) da loucura amarrada, negada, privada de subjetividade, extraída de toda psicopatologia? Do Daech[9] a Trump passando pelos fatos diversos, espelho de aumento disto que ameaça o laço social, a violência bruta, incontrolável, que angustia e fascina. “A loucura só existe em uma sociedade”, indicava Foucault, ela não existe fora das formas que a isolam, a excluem ou a capturam. Assim, o binário razão/não razão que servia para discriminar a loucura parece ter sido substituída por aquele da segurança/violência. “Cada cultura, afinal de contas, tem a loucura que merece” (FOUCAULT, 1961/2002, p. 150).

Eu “psychote”, tu “psychotes”… todo mundo delira 

Mas a dissolução do par razão/não razão tem igualmente outros motivos muito sérios: todo mundo delira, e a partir de agora todo mundo sabe disso. Não se surpreende mais que, na rua, todos falem sozinhos – com ou sem telefone –, é uma simples questão de modalidades de aparelhagem com o Outro.

A coisa passou para a língua. É claro, Le vocabulaire pours tous, de Berscherelle, confirma como “tabu” o termo “louco”, substituído pelo intolerável “doente mental”; essa modificação da terminologia médica data do século XX, conforme o Dictionnaire historique de la langue française das Edições Robert. Por outro lado, “delirar” e “delirante” são completamente banalizados. Last but not least, “psychoter” fez sua entrada oficial no Petit Robert em 2013, depois no Larousse em 2015. “Parano”, “schizo”, circulam. Esses novos usos, deslocados, provocadores, irônicos, levam uma parte da carga de real associada a seu emprego original.

Eles atestam, entretanto, também uma perturbação profunda. Com a decadência do Nome-do-Pai, o “todo”, garantia de uma organização estável, não tem mais utilidade ou lugar, mostra J.-A. Miller. Não se crê mais nas classes. As distribuições estanques são totalitárias e ultrapassadas. O DSM aninhou-se assim na crise das classificações que afetavam a nosografia psiquiátrica (MILLER, 2011, 2017).

Da mesma forma, na segunda clínica de Lacan, a perspectiva do sinthoma “é a versão lacaniana de […] fragmentação das entidades clínicas no DSM. Não se trata da mesma fragmentação, mas é o mesmo movimento de desestruturação das entidades”, observa ainda J.-A. Miller. O enunciado Todo mundo é louco, proferido em seu tempo por Lacan, chama uma nova clínica, na qual o “sintoma se torna uma unidade elementar”.

A psicanálise não é um humanismo

Não esqueçamos que o DSM foi concebido não somente para negar a dimensão psíquica, mas também para combater a psicanálise (BERCHERIE, 2010, p. 635-640). Esse combate permanece eminentemente atual. Assim, financiado por dois laboratórios farmacêuticos, uma pesquisa sobre a “imagem da esquizofrenia” (L’ObSoCo, 2015) na imprensa se descobre ser um cavalo de Tróia para incriminar a psicanálise. Os argumentos são misteriosos. Os adeptos da organicidade têm, entretanto, razão sobre um ponto: a psicanálise carrega a dimensão da subjetividade e constitui um obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Nessa configuração, protestos humanistas e voos literários são vãos. Face ao rolo compressor dos negativistas que se recusam a ouvir aqueles de quem deveriam cuidar, afiemos nossos conceitos e nossa clínica.

Há a loucura do mundo, há aquela que habita nossa abjeção a mais íntima e há a patologia psiquiátrica. Nós não temos saudade das classes perdidas. Mas nós sabemos que apagar ou negar as diferenças redobra a exclusão. Não negar a loucura é também abordar com rigor o real da psicose como tal.

De cada um, nós temos a aprender seu uso incomparável da língua, sua irredutibilidade absoluta, sua estranheza. A nos ligar às variações qualitativas do heterógeno, sem fascinação, sem romantismo, sem complacência.

Tradução: Tereza Cristina Côrtes Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira

Referências 
BERCHERIE, P. Pourquoi le DSM? L’obsolescence des fondements du diagnostic psychia  trique. L’Information psychiatrique, n. 7, v. 86, p. 635-640, set. 2010. Disponível em:  www.cairn.info. Acesso em: 01 jun. 2023.
CONTRÔLEUR GÉNÉRAL DES LIEUX DE PRIVATION DE LIBERTÉ (CGLPL). Rapport thématique: Isolement et contention dans les établissements de santé mentale. Paris: Éditions Dalloz, 2016. Disponível em: www.cglpl.fr. Acesso em: 01 jun. 2023.
FAVEREAU, É. Les chiffres affolants des soins psy sans consentement. Libération, 15 fev. 2017. Disponível em: www.liberation.fr. Acesso em: 01 jun. 2023. 
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FOUCAULT, M. A loucura, ausência de obra. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1964).
FOUCAULT, M. Bancar os loucos. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1975).
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[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, n. 98, p. 50-54, 2018. 50-54. Disponível em: www.cairn.info.
[2] N.T.: Título em francês: Folitiquement incorrect. Optamos por conservar o neologismo Folitiquement em referência à palavra francesa folie (“loucura”), mantendo o jogo de palavras da autora com a expressão “politicamente incorreto”.
[3] Cf.: CABUT, S. Neurologie: volte-face sur l’életrochoc. Le Monde, 18 nov. 2018. Disponível em: www.lemonde.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[4] Cf.: MALYE, F. ; VINCENT, J. ; LAGRANGE, C. Psychiatrie: l’incroyable revanche des életrochocs. Le Point, 25 ago. 2015. Disponível em: www.lepoint.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[5] Cf.: SZAPIRO-MANOUKIAN, N. La sismothérapie fait des étincelles contre la dépression sévère. Le Figaro, 27 nov. 2015. Disponível em: sante.lefigaro.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[6] A expressão “branle-bas de combat” remete a uma grande agitação durante os preparativos de uma operação ou uma ação, frequentemente realizada em uma emergência de maneira desordenada e barulhenta. Cf.: La Langue Française. Disponível em: www.lalanguefrancaise.com.
[7] A expressão francesa “fou à lier” tem o significado de “loucura” ou “doença mental”.
[8] N.A.: Conferir também o relatório publicado pelo L’Institut de recherche et documentation en économie de la santé (Irdes): COLDEFY, M.; FERNANDES, S.; LAPALUS, D. Les soins sans consentement en psychiatrie. Questions d´économie de la Santé, n. 222, fev. 2017. Disponível em: www.irdes.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[9] Uma das siglas, considerada como tendo conotação negativa, para o Estado Islâmico.



O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio[1] 

Dominique Laurent
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
laurent.dominique@wanadoo.fr

Resumo: A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. 

Palavras-chave: norma; lei; psicose, neurose, sinthoma; psicose ordinária.

THE ORDINARY OF JOUISSANCE, FOUNDATION OF THE NEW CLINIC OF DELIRIUM

 Abstract: The neurotic norm is a false evidence imposed on the history of patriarchy. Norms are said in the plural, they proliferate, while the law is said in the singular. It is necessary to understand that the paternal metaphor is never fully realized, in order to go beyond the binary neurosis and psychosis. The concept of sinthome, in this sense, constituted an advance in the “unclassifiable” clinic, that is, in the clinic of ordinary psychosis. 

Keywords: norm; law; psychosis; neurosis, sinthome; ordinary psychosis.

Imagem: Renata Laguardia

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996 em seu seminário, inaugura, dizia ele, “a era lacaniana da psicanálise”, a “da errância, a dos não-tolos erram, a daqueles que são mais ou menos tolos do pai, mais ou menos tolos do Outro” (MILLER, 2005, p. 10-11).

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais como um todo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever em Gaia ciência que “Deus está morto”, já não estaria inscrevendo essa questão? Houve, entretanto, ideais que foram resistentes e puderam assentar de modo decisivo a função paterna, um dos detentores do título do Outro. Isso é tão verdadeiro que na psicanálise “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante que o Outro existe” (MILLER, 2005, p. 10). Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho de sua desconstrução e de sua pluralização no equívoco dos não-tolos erram. Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de basta. Não há mais necessidade de ninguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente se tornou louca. 

Crença e loucura

A função paterna se apresenta daqui para frente como o avesso do mestre, sob a forma depreciada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia para todos, para assegurar a satisfação de seus desejos e lhes devotando um amor igual. O verdadeiro Outro, ao qual se recorre como garantia, é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica para aquele que encarna a função de pai como se comportar, mas ela autoriza e reconhece, de modo inédito, estilos de vida outrora condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai tem conduzido os movimentos de reivindicação e de luta das mulheres, dos gays e lésbicas para registros diversos cujo último, depois do mariage pour tous,[2] diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber um filho por P.M.A.[3] 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para-além do pai. O bom uso da função do significante-mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não seja fora-da-lei. O discurso do direito, ao assegurar a promoção do direito à diferença, pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito com o gozo? Em outras palavras, a identificação a um significante-mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não se resolve apenas na prática sexual, o sintoma verifica isso, mesmo que o parceiro sexual seja ocasionalmente o parceiro sintoma do sujeito.

A norma neurótica, construída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan dava a entender em Os complexos familiares,[4] a neurose é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva tomado em uma relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs em um momento da história do patriarcado. Sem dúvida Lacan falava de um momento remoto. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, elas são falantes. A lei se diz no singular, ela pode, para Lacan, se reduzir aos comandos da fala segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também as que são majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo pelo qual se vive a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não é única. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas P.M.A., o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais casais ou não, encarregados de família ou não. O combate pela emancipação feminista em relação à ordem simbólica tradicional, seguido pela noção de gender, que tenta reduzir a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida até os queer que, confrontados a uma fuga de identificações, se prendem a modos de gozar cada vez mais singulares.

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma, isto é, do parceiro gozo.

Do patriarcado ao parceiro gozo 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal em sua composição e recomposição, assim como as da parentalidade. Mais ainda, estamos sendo confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, pelo retorno por artifício ao casamento funesto da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um regime novo, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado dos estilos de vida. O valor social atrelado a um ou a outro varia segundo o preço atribuído pela civilização ao ideal e ao objeto a. Não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem em seu modo de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil acreditar que elas sejam ainda a norma. 

Os tipos de sintomas e os imperativos de gozo 

Lacan apreendeu o sintoma em sua dimensão singular, isto é, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, já que ele remete sempre ao um a um. Essa perspectiva do sintoma é, entretanto, correlativa de uma outra, a do sintoma apreendido pela estrutura. Em “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan (1973/2003) coloca a questão sobre os tipos de sintomas como a clínica os isolou antes da psicanálise, pelo olhar da particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade desses tipos como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não respondem ao nominalismo da contingência, mas ao realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são então identificáveis pelo “imperativo de gozo”. A Zwangneurose deve ser generalizada para além daquilo que a neurose obsessiva permite perceber.

Essa questão do gozo está em primeiro plano no caso freudiano do Homem dos Lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, dedicou a ele todo um seminário de DEA.[5] É com esse caso que Freud introduz pela primeira vez o termo Verwerfung, rejeição à castração, que é acompanhado, ao mesmo tempo, de um reconhecimento da castração. Para Lacan, como observa J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado assim: “como formular uma coexistência da Verwerfung e do reconhecimento da realidade?” (MILLER, 1987-88, p. 11). J.-A. Miller situa em primeiro lugar a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele nomeia “forclusão como mecanismo simbólico” (LACAN, 1954/1998, p. 388-89). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento linguageiro significante – e não um sentido – que é subtraído do circuito”. É um elemento “que faz sentir seus efeitos somente por sua ausência, e que mobiliza muitas significações em torno dela, sem que essas significações cheguem a alcançar esse próprio significante” (MILLER, 1987-88, p. 16).

A forclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não põe em questão toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar na assunção […] da função paterna, mas sobre a função da castração” (MILLER, 1987-88, p. 21). A forclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956 com a “Questão preliminar…” (LACAN, 1957-58/1998). A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica numa forclusão do Nome-do-Pai?

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são interrogadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Assim que um menos se dirige ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito se desestabiliza. É o que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se esse falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (MILLER, 1987-88, p.40).

A paranoia e a clínica universal do delírio

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a forclusão generalizada vem evidenciar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente reabsorvido pela mortificação significante e que, a esse respeito, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que ali onde está o gozo, e não simplesmente o joui-sens[6] fálico, é a língua em seu conjunto que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se faz com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se imobilizam dependem do sinthoma e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthoma tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas de procurar em cada caso a singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

O conceito de sinthoma constituiu um avanço considerável para compreender uma clínica confusa, “inclassificável”, e aquela que chamamos desde a Conversação de Arcachon de clínica da psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, a ênfase dada por Lacan ao impacto do dizer sobre o corpo antes da entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade […] é a mesma coisa” (LACAN, 1975-76/2007, p. 52). Lacan havia mostrado desde o estádio do espelho a paranoia constitutiva do sujeito em seu imaginário em relação ao outro e elaborou os diferentes tratamentos desta paranoia constitutiva. Ele chega a concluir com a teoria dos nós que a psicose paranoica consiste em que o sujeito amarre a três, em uma continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros traz o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1964/1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S(Ⱥ).

O impacto do dizer no corpo, antes de qualquer entrada em cena do olhar no estádio do espelho, depende do troumatisme.[7] Ele é apreendido a partir do furo, da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como fazendo furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamava de “clínica universal do delírio aquela que toma seu ponto de partida disso, que todos nossos discursos são apenas defesas contra o real” (MILLER, 1996, p. 90). A fórmula “todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31) remete à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que concerne a sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso subverte as diferenças feitas até então entre neurose e psicose.

Para concluir, não é excessivo dizer que, com a declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico para se defender do real não é mais a norma mesmo que haja sempre pais e mães em torno dos quais o discurso se apega mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, a esse respeito, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello

Referências
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MILLER, J.-A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32
LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. (Texto original publicado em 1954).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).
LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original redigido em 1973).
 
[1]Texto publicado originalmente na revista La Cause du Désir, n. 98, p. 26-30, 2018.
[2] Lei de 17 de maio de 2013 que abre às pessoas do mesmo sexo, residindo na França, a possibilidade de se casarem.
[3] Procriação Medicamente Assistida.
[4] Cf. LACAN, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987.
[5] Cf. AFLALO, A. Réévaluation du cas de l’Homme aux loups. La Cause freudienne, n. 43, 1999, p. 85-117.
[6] N.T.: Jogo de palavras valendo-se da homofonia entre joui-sens, “sentido gozado”, e jouissance, “gozo”.
[7] N.T.: Jogo de palavras com trou, “furo”, e traumatisme, “traumatismo”.



Todo mundo é louco[1]

Frederico Zeymer Feu de Carvalho
Psicanalista, A.P. da Escola Brasileira de Psicanálise AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. 

Palavras-chave: loucura; psicose; delírio; discurso analítico.

EVERYONE IS CRAZY

Abstract: Explanation text of the Lacanian aphorism “everyone is crazy”, theme of the 2024 Congress of the World Association of Psychoanalysis, highlighting its enunciation context, linked to the impossible to teach, and Lacan’s last teaching, of which this aphorism is a compass. 

Keywords: craziness; psychosis; delirium; analytical speech.

Imagem: Renata Laguardia

1.
A frase “todo mundo é louco” é um aforismo criado por Lacan no ano de 1978. Ele pode ser tomado como um “condensado do seu ultimíssimo ensino”, conforme proposto por J.-A. Miller (2007-2008/2015, p. 309). Está sob a égide e o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à não garantia do Outro concernindo, portanto, à linguagem como tal. Esse aspecto recobre duas proposições negativas de Lacan: “não há Outro do Outro” e “não há metalinguagem”, proposições equivalentes entre si, que refletem tanto a incompletude do simbólico quanto a inconsistência de um sistema lógico, tal como abordado pela tradição lógico-filosófica do século XX. O segundo aspecto é a intraduzibilidade do gozo. Esse aspecto não concerne ao sistema da língua, tomado em si mesmo e por si mesmo, mas à falta de um significante no Outro para nomear ou referir o gozo, conforme o “princípio da indeterminação da tradução” de Quine (1951), segundo o qual haverá sempre inadequação entre a palavra e a coisa, o sentido e a referência.

No ensino clássico de Lacan, S(Ⱥ) designa, primordialmente, a incompletude e a inconsistência do Outro que está no fundamento da ordem simbólica, sendo então designado como “significante de uma falta no Outro” (LACAN, 1960/1998, p. 832), cujo correlato é $, o sujeito recoberto pela barra devido à falta de um significante que o represente, mas aludindo também àquilo que o Nome-do-Pai não é capaz de nomear.

No ultimíssimo ensino de Lacan, esse que começa, segundo a periodização proposta por Miller, no capítulo nono do Seminário 23, S(Ⱥ) se torna o “furo no real”. Ou seja, passamos da incompletude e inconsistência do simbólico a um furo no real. Lacan se refere a esse matema como o “verdadeiro furo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 130), remetendo ao troumatisme (em francês, trou significa um “buraco”), ao traumatismo da incidência do gozo fora do sentido que afeta o falasser, para além, portanto, da falta inerente ao simbólico que afeta o sujeito. No traçado dos nós, esse furo é localizado fora do registro simbólico, na medida em que não há o Outro do simbólico, e na conjunção entre o Imaginário e o Real, demarcando a opacidade do imaginário. Talvez a única proposição possível para esse furo no real seja uma outra proposição negativa: não há proporção sexual (Il n’a pas de rapport sexuel). Estamos, portanto, confrontados com a presença desse furo no real, com esse troumatisme, para além da falta ou limite do simbólico. Esse traumatismo é o que se apresenta no acontecimento de corpo que marca a incidência do gozo como fora do sentido.

Essas considerações nos remetem à questão enigmática por excelência, “que queres” (che vuoi), mas na medida em que ela permanece sem resposta. Para além da dialética do desejo que caracteriza o ensino clássico de Lacan, segundo a qual o desejo é sempre desejo de desejo, tal questão nos remete ao gozo como fora de sentido. Se pudéssemos localizar o furo no real, talvez seja justamente nessa inadequação do gozo, na medida em que o gozo do falasser não se articula ao Outro, diferentemente do que a falta ligada à castração permite articular na dialética do desejo, na medida em que o neurótico é aquele que “faz de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia da função do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 56). Desde esse ponto de vista, a loucura de todo mundo, ordinária, que se refere ao falasser, seria mais próxima de um parafuso a mais que permanece solto ou desarticulado do que de um parafuso a menos que faltaria no universo dos parafusos.

2.

Como proposição, “Todo mundo é louco” é um paradoxo, ou seja, não tem estatuto lógico, assim como a célebre frase de Epimênides, “todo cretense é mentiroso”, dita por um cretense (MILLER, 2022). O paradoxo consiste em que ambas as proposições só poderiam ser ditas ou de um ponto de vista transcendental, um ponto de vista fora do conjunto de todos os mentirosos cretenses ou de todos os loucos, lugar de exceção que desmente a proposição universal, ou de um ponto de vista imanente, ou seja, de um ponto de vista particular de quem é designado mentiroso ou louco, só podendo ser dita por um indivíduo do conjunto, ou seja, por um mentiroso ou por um desarrazoado, sem ter alcance universal.

Como um aforismo da prática analítica, por sua vez, a frase “todo mundo é louco” equivale a uma generalização decorrente da incidência de uma experiência enigmática de gozo conotada por um S1, uma marca de gozo, ao qual se liga um S2, ou seja, um saber, e à disjunção entre eles.

Se postulamos, com esse aforismo, a igualdade fundamental do falasser, é porque esse S1, como tal, é fora-de-sentido; como consequência, o S2, que busca engendrar algum sentido a essa experiência sem sentido, será necessariamente delirante. Passamos então do operador de perplexidade, S1, ao saber delirante, S2 (MILLER, 2007-2008/2015).

É a essa experiência primária do gozo que se refere o matema S(Ⱥ) no ultimíssimo ensino de Lacan. Não há resposta para o enigma endereçado ao Outro em relação a essa experiência. Ela se impõe ao ser falante a partir de uma dupla certeza: isso quer dizer alguma coisa e isso concerne a mim, visto que essa experiência é um acontecimento que concerne ao meu corpo; mas não se sabe o quê isso quer dizer, engendrando, assim, o trabalho inconsciente de cifração.

A certeza concerne, portanto, ao real, e não ao simbólico. Ela pode ser formulada nesses termos: há gozo ou há do gozo. Mas, quando essa certeza se estende ao campo da linguagem, entramos no delírio.

Duas vias se colocam a partir daí, duas formas de se arranjar com esse furo no real. A primeira delas consiste em atribuir um sentido retroativo a essa marca de gozo, S1, a partir do saber inconsciente, S2, no sentido de um trabalho de interpretação do inconsciente em torno do desejo do Outro, ou seja, levando em conta um laço com o Outro. Mas como o Outro é barrado, esse saber conserva seu caráter delirante. Freud chamou essa significação retroativa de naträglicha posteriori, chamando a atenção para seu caráter ficcional e falacioso. De fato, se a fantasia é uma resposta do real a essa experiência enigmática de gozo, ela não deixa de levar em conta um laço com o Outro por intermédio da extração do objeto a, ao qual o neurótico se consagra, ao transportar para o Outro a função desse objeto sob a forma da Demanda do Outro, $ <> D, como Lacan desenvolve em seu Seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-63/2005).

Essa via demonstra o limite do teste de realidade como uma barreira para o delírio. Miller aborda esse ponto a partir do texto freudiano “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (FREUD, 1911/1969). Freud diz, nesse texto, que a passagem do princípio do prazer ao princípio de realidade não afeta o inconsciente como tal e que o princípio de realidade é, na verdade, uma continuação do princípio do prazer sob novas condições. Em outras palavras, a renúncia ao princípio do prazer, que é soberano (há gozo), só é possível por intermédio de um ganho de prazer, de uma compensação, de uma infiltração da fantasia no campo da realidade, o que mostra que o gozo, como tal, é impossível de negativizar.

A segunda via do falasser para se arranjar com o furo no real refere-se à busca de uma significação da experiência enigmática fora do laço com o Outro, sem o apoio no Outro ou desacreditando o Outro, no sentido da Unglauben, da descrença. Essa possibilidade pode se dar de diferentes maneiras. O saber pode assumir a forma de um delírio extraordinário, de uma auto elaboração da experiência enigmática de gozo, como vemos em Schreber, ou de uma manipulação da língua, como vemos em Joyce, ou seja, a partir de uma invenção que não está no cardápio do Outro. Ambos se utilizam do material da própria língua para criar uma nova língua, particular, que remodela o Outro, em lugar de fazer um laço com ele.

Nesse sentido, podemos dizer ainda que a ironia esquizofrênica, como uma outra maneira de fazer frente ao furo no real, toma partido de S(Ⱥ), na forma de uma crítica feroz do Outro, sem remendá-lo, e sem que, necessariamente, esse furo no real seja tamponado pelo delírio.

Ao considerar essas duas vias, a via da neurose e a via da psicose, tomamos a afirmação genérica “todo mundo é louco” de uma forma restrita, o que permite dizer que a psicose, ao contrário da loucura, não é para todo mundo. Provisoriamente, podemos concluir, então, que todo mundo é louco antes de ser ou não psicótico.

A experiência universal do delírio (continuísta) se concilia, assim, com o realismo clínico da estrutura (descontinuísta). Em outros termos, o aforismo “todo mundo é louco” concerne mais a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica, do que a uma orientação clínica, no sentido da sua estratégia e da direção do tratamento.

3.

Se o contexto geral do aforismo “todo mundo é louco” pertence ao ultimíssimo ensino de Lacan, seu contexto específico pode ser localizado no ano de 1978. Miller solicita a Lacan que ele intervenha, a partir de um escrito, em favor do Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Universidade de Vincennes). Esse texto ficou conhecido com o título “Lacan a favor de Vincennes” e foi publicado em português no número 65 da Revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise.

Esse contexto específico leva em consideração as questões sobre o ensino da psicanálise, não só na universidade. Ele aborda, em primeiro lugar, a diferença entre o discurso do analista e o discurso da universidade, mas também as dificuldades de ensino da psicanálise se levarmos em consideração a estrutura do próprio discurso analítico, uma vez que o agenciamento desse discurso exclui o saber exposto da psicanálise. Como ensinar então o que não se ensina?

Nesse texto, a frase “todo mundo é louco” é acompanhada da explicitação “isto é, delirante”, que a complementa. A frase que se segue é a seguinte: “é isso mesmo que se demonstra no primeiro passo rumo ao ensino”. Ou seja, como afirma Miller (2022), afirmar que todo mundo delira é a condição de todo ensino. Trata-se de uma “crítica feroz à função do ensino” (MILLER, 2022, p. 11), forma da ironia analítica que não deixa de remeter à ironia esquizofrênica. A frase refere-se, portanto, ao impossível inerente ao ofício de ensinar qualquer coisa, ao impossível de educar, como dizia Freud, e não à clínica propriamente dita e ao impossível próprio do discurso analítico.

Pelo contrário, podemos dizer que é justamente por conceber que há um impossível em jogo, ou seja, por se orientar pelo real, que a prática analítica não é apenas um delírio. Pois nada pode fazer frente ao delírio senão o real, e não a razão ou a crença.

Isso não quer dizer que a prática analítica nada tenha a ver com o saber. Mas trata-se de um saber suposto e não de um saber exposto que se ensine ou que se aplique como uma técnica. No discurso do analista, o saber é sous-posé, sub-posto ao objeto a, seu agente (a/S2). Esse saber suposto é um saber deslocalizado e contingencial. Não sabemos quando ou de onde ele pode emergir, mas ele é suposto advir da transferência. Ele é também disjunto de S1 (S2 // S1), o significante mestre do inconsciente. O que isso quer dizer?

Trata-se, justamente, da emergência de um novo saber, disjunto da cadeia significante (S1 – S2) que subsiste no inconsciente como automaton (repetição do mesmo); de um saber que não engendra um novo sentido, mais um saber-fazer com o S1 isolado pela experiência analítica como marca de gozo. Esse saber disjunto, fruto da experiência analítica, de nada serve para outro analisante. Por isso não pode ser ensinado. Ele é limitado por seu alcance singular e pragmático. Mesmo que ele seja uma espécie de ficção ou de invenção, como acontece frequentemente na psicose, esse limite singular e pragmático é também um limite ao delírio. Mas podemos dizer que esse S2, oriundo da prática analítica, é um saber que concerne a um real e ao embate com o fora-do-sentido.

4.

É possível evocar, ainda, o contexto contemporâneo desse aforismo, ou seja, o imperativo da despatologização. Miller (2022, p. 10) observa que Lacan não diz “todo mundo é normal”, mas “todo mundo é louco”, o que convém mais a um apagamento dos limites entre normalidade e loucura do que a uma despatologização generalizada. Todo mundo é louco à sua maneira.

A despatologização, ao contrário, vista como um imperativo contemporâneo, supõe, por detrás da “reivindicação democrática de uma igualdade fundamental dos cidadãos” (MILLER, 2022, p. 9), a conversão de uma patologia a um modo identitário ligado a um determinado estilo de vida. O estilo de vida viria, assim, no lugar de uma designação clínica. O fim da clínica, que podemos ver no horizonte dessa reivindicação, busca também o fim de toda hierarquia fundamentada no saber, isto é, de toda assimetria na relação entre médico ou profissional psi e paciente.

Mas, ser nomeado por um estilo de vida pode ser tão alienante quanto uma nomeação diagnóstica – em relação à qual a psicanálise sempre se pautou por uma reserva, em especial em sua oposição ao DSM e a favor do respeito à singularidade –, embora a despatologização, seja, ao menos aparentemente, menos segregativa.

Essa reivindicação se estende ao campo jurídico, afirmando-se a partir do direito ao próprio corpo e à nomeação de si mesmo, como na frase autodeclarativa “eu sou o que eu digo que eu sou”, forma contemporânea do cogito ergo sum (“penso, logo existo”) de Descartes, que reafirma a soberania do Eu, ficando o médico ou o psi, apesar de algumas ressalvas da lei, sob a autoridade do paciente.

Em relação a essa autodeclaração, podemos formular a questão: o que é uma autoridade clínica? Recorro aqui a uma expressão conhecida de Carlo Viganò para se referir ao saber contingente que advém da experiência analítica, mesmo dentro de uma instituição. A autoridade clínica não é o saber do especialista; tampouco aquilo que o paciente pode dizer de si mesmo, mas o que se impõe por si mesmo na medida em que, como diz Lacan, “isso fala”.

5.

Por fim, gostaria de me referir à conferência feita por Pascale Fari, membro da Escola da Causa Freudiana de Paris, pronunciada na cidade de Rosário, em uma atividade preparatória da XXIII Jornada da Escola de Orientação Lacaniana, em outubro de 2022. Essa conferência parte de uma formulação de Miller durante a Conversação de Antibes, em torno das psicoses ordinárias: “falar é um transtorno de linguagem” (BATISTA; LAIA, 2012, p. 250), que se articula à frase dita por Lacan, em 1978.

De fato, a frase “todo mundo é louco” pode ser tomada em um sentido banal. Somos todos loucos na medida em que falamos a torto e a direito, em uma fuga desenfreada do sentido, sem nos preocuparmos se o que falamos existe ou não. A ideia de que “falar é um transtorno de linguagem” enfatiza, por sua vez, mais as repercussões e ressonâncias da linguagem no corpo, o fato de que padecemos da linguagem que falamos.

Isso é evidente, por exemplo, em relação à injúria. Mas todo delírio está ligado, de alguma forma, a uma significação íntima. Um elemento, um significante qualquer, de repente se destaca do conjunto articulado da linguagem e se absolutiza, torna-se louco, no sentido de um significante primordial que pode, até mesmo, ressignificar todo o conjunto da língua, como acontece com Schreber.

Lacan chamou de lalíngua a existência da língua fora do laço social e que subsiste à normalização da linguagem pelo discurso. “Lalíngua encarna esse núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana” (FARI, 2023, s/p). Sendo assim, podemos dizer que não existe A Língua, que a língua é uma multiplicidade inconsistente, e que só existem línguas particulares, efetivamente faladas, mutantes e vivas, como uma ficção gramaticalmente ordenada por regras de uso, mas cuja significação íntima não pode ser compartilhada. É o laço social que normaliza o sentido, isto é, os desvios de lalíngua, introduzindo uma rotina, uma pragmática de seu uso no mar dos mal-entendidos.

O que especifica o esquizofrênico, diz Lacan, é o fato de habitar a língua sem a ajuda dos discursos estabelecidos. É o que revela um paciente que se inquieta pelo fato de se sentir excluído do grupo de colegas na escola: “Eu me dirijo a eles, fazendo uma pergunta. Eles podem até me responder, mas isso não desencadeia nenhuma conversa”. Ele deseja entrar no laço social, mas é como se não tivesse a senha de acesso, e isso o angustia a ponto de se sentir um objeto estranho, não admitido nos agrupamentos sociais, por não compartilhar do mesmo regime de crenças, ou melhor, pela dificuldade em fazer semblante social com a linguagem.

Essa dificuldade típica da psicose é inerente a todo ato de tomar a palavra. Não quando se fala pelos cotovelos, como se diz, seguindo o moinho das palavras, mas quando o uso da palavra exige que se diga “eu” como sujeito da enunciação. Uma paciente, ao retornar para uma segunda entrevista, começou a sessão exatamente com essa pergunta essencial: “quem fala?”. A paciente se refere “a quem cabe tomar a palavra em uma sessão analítica?”. Certamente, há uma proliferação de vozes que falam em nós e que serão decantadas no decorrer de uma análise; mas essa pergunta, “quem fala?”, não deixa de evocar a emergência de um sujeito no moinho das palavras, seja quando se faz um ato falho ou um Witz, seja para operar o corte veiculado por um ato de enunciação.

Ao tomar a palavra, o falasser corre sempre o risco de se desconectar do Outro, por falar a mais ou a menos, por se mostrar inadequado, por expor uma forma de satisfação sintomática, enfim, uma forma particular de recortar e usar a linguagem e de usufruí-la como sua lalíngua. O corpo goza em silêncio, mas é com as marcas de gozo fixado em um acontecimento de corpo que se fala.

Não sem razão, o ato de tomar a palavra está na raiz de muitas formas de desencadeamento da psicose. Se falar é um transtorno de linguagem, podemos dizer que ele também é uma espécie de acontecimento de corpo que atualiza o seu trauma. De certa forma, sempre falamos sozinhos, desde o lugar em que se está fora do sistema da língua.

O discurso analítico é, nesse sentido, uma nova forma de laço social que permite acolher um sujeito a partir desse lugar de enunciação em que somos estranhos à linguagem, em sua inigualável singularidade, para além de um modo de vida identitário e de nossa alienação ao Outro. Nesse sentido, o discurso analítico é um laço social inusitado, destinado a desnudar nossa relação íntima com a língua, isolando seus pontos de ancoragem no corpo, seus S1s, a fim de que o analisante possa se virar com isso de uma outra maneira. Mas não é isso, precisamente, um delírio? A reconstrução de um saber a partir de seus elementos díspares, não simbólicos e intraduzíveis?


Referências
BATISTA, M.C.; LAIA, S. (Orgs.). A Psicose Ordinária (A Convenção de Antibes). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
FARI, P.  Hablar es um transtorno de lenguaje. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=qz4jD-2ONDw. Acesso em: 10 abr. 2023.
FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1969. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1960).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
[1] Seminário pronunciado no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em março de 2023, em torno do tema do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que terá lugar em Paris, no ano de 2024.



Schreber, ainda contemporâneo[1]

Sérgio Laia
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”.

Palavras-chave: psicose; emasculação; imaginário; real; ordem simbólica; Nome-do-Pai.

SCHREBER, STILL CONTEMPORARY 

Abstract: This text aims to demonstrate Schreber’s contemporaneity based on his Memory and the commentaries made by Freud and Lacan on this book. It highlights what Schreber experimented as a rupture of the Order of World, an emasculation and a resource invented and called by him as “drawing”.

Keywords: psychosis; emasculation; imaginary; real; symbolic order; Name-of-Father.

 

Imagem: Renata Laguardia

Ao propor, para Lilany Pacheco, Diretora do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), esta aula com este título, quis, de início, me servir daquele que pôde se tornar um “caso” decisivo para a clínica psicanalítica das psicoses (FREUD, 1912/2021; SCHREBER, 1903/1980) e articulá-lo à próxima Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) – Há algo de novo nas psicoses… ainda. Porém, em que uma psicose, marcada claramente pela anulação, no simbólico, desse significante ordenador fundamental que Lacan chamou de Nome-do-Pai, pode ser contemporânea deste nosso mundo perpassado muito mais por uma crítica (e mesmo uma derrocada) do patriarcado? O que o delírio schreberiano de procriação e de filiação, fortemente marcado por conotações religiosas e redentoras, pode ser contemporâneo aos nossos dias atravessados pela descrença no Pai, pelo desmantelamento dos ideais e por transformações que distanciam a família do que tradicionalmente se conceberia como sendo uma família? Por que, também, um caso assolado pela persistência de um delírio extraordinário, por alucinações auditivas e visuais, seria contemporâneo quando, em nossa clínica, as psicoses se apresentam de forma muito mais ordinária e sem essas características com que classicamente eram diagnosticadas?

Ora, a persistente contemporaneidade de Schreber já se destacaria pela permanente importância de seu texto para a clínica psicanalítica das psicoses. Assim, Schreber ainda seria contemporâneo porque se trata de um caso incontornável para cada um de nós que sustenta, com a psicanálise, tratamentos possíveis para as psicoses ou, valendo-me de um escrito de Lacan (1966/2001, p. 214), sua persistente contemporaneidade se alinha com aquela mesma de Freud pois “o texto de Schreber é um grande texto freudiano, no sentido de que, antes de ser Freud que o esclareça, é ele que ilumina a pertinência das categorias cunhadas por Freud, sem dúvida, para outros objetos”. O próprio Freud (1912/2021, p. 622) antecipa essa designação que lhe fará Lacan ao afirmar, no final de seu estudo sobre Schreber, que “na verdade, os ‘raios divinos’ de Schreber compostos por condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides são tão somente os investimentos libidinais materializados e projetados para fora, e emprestam ao seu delírio uma concordância flagrante com nossa teoria”. De fato, como um desses “outros objetos” aludido por Lacan (1966/2001, p. 214), o funcionamento do aparelho psíquico concebido por Freud não deixa de se fazer presente quando Schreber (1903/1980, p. 35) compara “a alma humana […] contida nos nervos do corpo” a “fios de linha mais finos” e, assim, por meio das impressões externas, “os nervos são levados a vibrações que, de um modo inexplicável, produzem o sentimento de prazer e desprazer; possuem a capacidade de reter recordações das impressões recebidas (a memória humana)”. A contemporaneidade de Schreber também pode ser relacionada ainda à própria contemporaneidade de Lacan (1966/2001, p. 215) pois este último ressalta que “o texto de Schreber se verifica como um texto a ser inscrito no discurso lacaniano” ao permitir-lhe “retomar o fio” que o leva à “aventura freudiana” a partir da “trincheira aberta” por sua tese de doutorado dedicada à psicose paranoica.

Publicado em 1903, sustento também que Memórias de um doente dos nervos pode ser lido como uma espécie de vanguarda para sua época e muito mais próximo de nossos dias. Afinal, entre tantas revelações realmente impressionantes, encontramos nele o relato de como um homem alemão e tradicional, Presidente da Corte de Apelação de Dresden, que se concebia como tendo “uma natureza tranquila, quase sóbria, sem paixão, com pensamento claro e cujo talento individual se orientava mais para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta” (SCHREBER 1903/1980, p. 82), foi a princípio surpreendido pela ideia de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”  e, algum tempo depois, não sem resistir, a princípio, à exigência de ser transformado em mulher, acabou por consagrar seu corpo a essa emasculação para, numa copulação com Deus, poder gerar uma nova raça humana e encontrar alguma solução para os males terríveis que o atormentavam (SCHREBER, 1903/1980, p. 60, 72-78 e 175-177).

Schreber (1903/1980, p. 60) sustentava que sua aspiração inicial de ser uma mulher em uma relação sexual seria, em “plena consciência”, rejeitada com “indignação” por ele, mas acabou por considerar que ela lhe havia “sido inspirada por influências externas que estavam em jogo”. Ao abordar o quanto a emasculação de seu corpo o deixava entregue a violentos assédios sexuais promovidos por Flechsig, chega mesmo a destacar que esse seu primeiro e mais renomado psiquiatra não aparecia aí como um homem, mas em sua “qualidade de alma” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Ainda assim, não deixa de afirmar o seguinte: “pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive certeza de ter tomado conhecimento dele” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Porém, também relata que, nessa mesma ocasião, foi “tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo, e excitado pelas primeiras revelações sobre as coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Portanto, é a nessa excitação ou, para utilizar um termo lacaniano, é a nesse gozo que Schreber se apoia para ceder sua “honra”, seu “amor-próprio viril” e sua “personalidade moral”. E, assim, o modo como se consagra, mesmo que não sem resistência, a esse fora que lhe afeta o corpo, feminizando-o, me parece ser um marco importante de sua contemporaneidade, na medida em que vivemos hoje em um mundo onde as diferenças de gênero são em geral abordadas como meros efeitos de uma dominação histórico-social e os corpos são cada vez mais convocados a viver o que há de fluido e múltiplo em seus modos de satisfação.

Um último aspecto da contemporaneidade de Schreber, relacionado a um modo como opera com o imaginário, me surpreendeu, embora, conforme veremos, não deixe de estar associado às suas experiências com a emasculação. Assim, vou explicitar um pouco mais, primeiro, o que me permitiu, de início, declarar Schreber ainda como contemporâneo a nós e, em seguida, abordar sua experiência com o que Lacan (1958/1966, p. 571, schéma I) chamou de “gozo transexualista”. Por fim, procurarei mostrar como ele faz uso da imagem para operar com o real do gozo que lhe toma o corpo, evocando, a meu ver, o que Miller (2006-2007/2013) destacou como o imaginário no último ensino de Lacan.

Fratura, desordenamento e reconstrução

Ao concluir um Congresso da AMP intitulado A ordem simbólica no século XXI e anunciar o seguinte, Um real para o século XXI, Miller (2014, p. 22) afirma que vivemos um “desarranjo da ordem simbólica” e a “pedra angular” dessa ordem, ou seja, “o Nome-do-Pai, se trincou”, na medida em que o capitalismo e a ciência colocam radicalmente em questão as referências paternas até então vigentes. Também nos lembra que o próprio Lacan, ao longo de seu ensino, “depreciou essa função-chave” relacionada ao pai, passando a considerá-la “nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo” (MILLER, 2014, p. 22). Por sua vez, esse furo que o Nome-do-Pai não colmata, afeta toda espécie humana, “é a inexistência da relação sexual” porque, para os “seres vivos que falam”, há uma “carência de saber concernente à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22) e a qualquer proporcionalidade entre os corpos sexuados. A foraclusão, portanto, não é mais apenas um mecanismo específico das psicoses e que atinge, no simbólico, o Nome-do-Pai: quanto à inexistência de uma proporcionalidade entre os sexos, a essa carência de um saber capaz de regular a sexualidade humana como acontece com a dos outros seres vivos não falantes, a esse “rebaixamento do Nome-do-Pai”, a foraclusão se generaliza e experimentamos, por conseguinte, uma “extensão da categoria de loucura a todos os seres falantes” (MILLER, 2014, p. 22).

Esse abalo das referências paternas, bem como a exposição, também cada vez mais atual, desse furo relativo aos corpos humanos sexuados, fazem Miller (2014, p. 23) declarar que há “uma grande desordem no real”. Essa declaração me parece mostrar, no âmbito do que nos tem acontecido, esta “ideia-limite” (MILLER, 2014, p. 28) encontrada no último ensino de Lacan (1975-76/2007, p. 133): “o real é sem lei” . Esse desordenamento no real e esse destaque à trinca (ou à fratura) que atinge o Nome-do-Pai como significante fundamental são, como insistirei a seguir, indícios importantes do que apresento como a atualidade de Schreber.

Em seu livro, a Ordem do Mundo é definida como “uma ‘construção prodigiosa’, diante de cuja sublimidade recuam todas as representações construídas pelos homens e povos, no curso da história, sobre suas relações com Deus” (SCHREBER, 1903/1984, p. 47). Em outros termos, a sublimidade da Ordem do Mundo se eleva frente às representações divino-paternais formuladas historicamente. Mais adiante, a função da Ordem do Mundo é articulada à conservação do que é vivo, na medida em que Schreber (1903/1984, p. 81, nota 35) a concebe como a “relação legítima”, ou seja, fundada em uma lei, e “que subsiste entre Deus e a criação” convocada “à vida, dada como algo em si, através da essência e das qualidades de Deus”.

Mesmo com o que tem de sublime, vital e prodigioso, a Ordem do Mundo foi alvo de um ataque: “ocorreu […] uma fratura, estreitamente ligada” a seu “destino pessoal” (SCHREBER, 1903/1984, p. 48), e Lacan (1958/1966, p. 558) se vale dessa fratura para localizar “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Logo, fraturada a Ordem do Mundo, nada mais fica como antes da vida do sujeito, tudo se desregula e ele sucumbe ao peso da mortificação real de seu corpo. Nesse contexto, é importante lembrar que Schreber (1903/1984, p. 49 e 227) atribuiu essa “fratura” a um “assassinato de alma” e – como “as almas eram feitas, segundo sua condição de existência, em conformidade com a Ordem do Mundo, apenas para gozar” enquanto “o homem ou outras criaturas da Terra” se dedicavam a “uma ação na vida prática” – tal assassinato faz como que uma desertificação do gozo atinja severamente todo o mundo. Evocando, então, Lacan (1960/1966, p. 819) e sua célebre citação de um poema de Valéry (1921/1984, p. 28-29), o mundo de Schreber se torna sem vida e vão, frente a essa falha que incide sobre o gozo e compromete gravemente também toda ação humana.

Especificamente para Schreber, tal comprometimento é o próprio adoecimento que, durante quase uma década, o afasta da regularidade de um convívio familiar e social, além de impedi-lo de gozar do posto vitalício, pautado em uma nomeação irreversível, definida por ordem do rei e que o consagrava como Juiz-Presidente da Corte de Apelação da cidade de Dresden. Mas essa fratura tem efeitos devastadores também sobre a própria Ordem do Mundo porque, como nos mostra a leitura que Freud (1912/2021, p. 558) faz do livro de Schreber, devido a tal lacuna, “a existência do próprio Deus parece ameaçada”, uma vez que os nervos dos seres humanos vivos […], no estado de uma excitação extrema” passam a exercer “uma atração tal sobre os nervos divinos que Deus não consegue mais se livrar deles”.

Minha questão, em termos lacanianos, é se não poderíamos ler essa fratura da Ordem do Mundo também como a própria constatação – tão contemporânea – de uma inexistência do Outro que, no entanto, não apaga a presença do Outro como corpo em nossas vidas. Nesse mesmo contexto, também indago se não haveria – nessa excitação extrema dos vivos demarcada por Schreber – uma antecipação do que hoje vivemos como uma imperiosa exigência de satisfação. Assim, a fratura da Ordem do Mundo experimentada por Schreber se realiza, em nossos dias, para todos, o que não deixa de ressoar a formulação lacaniana que Miller (2022) nos convidou a tomar como o título do próximo Congresso da AMP, em 2024: “todo mundo é louco”.

assassinato de alma – marca dessa fratura que incidiu sobre a Ordem do Mundo e desestabilizou Schreber, como ser humano, em sua ação na vida prática – envolvia “circunstâncias” que “não estão claras” para ele, relacionadas à sua vida privada e que precisaram ser excluídas do livro para garantir-lhe a publicação (FREUD, 1912/2021, p. 582). Logo, segundo Freud, esse “assassinato” poderia ter sido elucidado por fatos que estariam, por exemplo, no Capítulo III de Memórias de um doente dos nervos e que foi suprimido para que esse livro fosse publicado. Freud (1912/2021, p 583), seguindo as pistas literárias deixadas pelo próprio Schreber, particularmente aquelas do poema “Manfredo” de Byron, acaba encontrando a menção a um incesto, mas verifica que, nesse ponto, “se rompe […] o curto fio”. Logo após se deparar com tal ruptura e verificando o quanto uma suposta ligação com um incesto não se sustenta, passa a se referir à expressiva quantidade de poluções que Schreber tem no curto período quando as visitas diárias da esposa no hospital deixam de acontecer e, então, retoma a “suposição” de que “o adoecimento” teria a ver com “uma irrupção de uma moção homossexual” da qual o laço com a esposa e, também, a própria paranoia seriam uma espécie de defesa: o desejo homossexual perturbaria consideravelmente um homem como Schreber (sobretudo em sua época) e, então, a paranoia eclodiria como uma tentativa de afastá-lo dessa perturbação, embora também o abalou consideravelmente.

Freud (1912/2021, p. 584) não deixa de ressaltar que falta “um conhecimento mais preciso” da “história de vida” de Schreber para que se pudesse explicar as razões de a “irrupção da libido homossexual” ter se dado após sua nomeação como Presidente da Corte de Apelação. Ao não encontrar os dados que confeririam mais precisão ao que determinaria o “assassinato de alma” e sem conseguir qualquer acesso à presença de algum desejo homossexual recusado por Schreber antes do desencadeamento da psicose, Freud (1912/2021, p. 583) se vale do lugar que o psiquiatra Flechsig, ou seja, um homem, passou a ocupar no delírio de perseguição desse “doente dos nervos”, assim como da andropausa que, de algum modo, já poderia afetar-lhe o corpo e a disposição sexual, além dos fracassos vividos, juntamente com a esposa, com relação à geração de filhos. A figura de Flechsig, em que Freud (1912/2021, p. 589-590) chega também a localizar uma “transferência” do “anseio” vivido com relação ao pai e ao irmão com uma “intensificação erótica”, torna-se decisiva para a formulação da hipótese relativa à moção homossexual da qual a paranoia seria uma defesa:

o motivo do adoecimento foi o surgimento de uma fantasia feminina do desejo (homossexual passiva), que tomara por objeto a pessoa do médico. Contra essa mesma fantasia, ergueu-se parte da personalidade de Schreber, uma intensa resistência, e a luta defensiva, que talvez tivesse podido igualmente consumar-se em outras formas, escolheu, por motivos que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição. Aquele por quem o doente antes ansiava agora se tornava o perseguidor, e o conteúdo da fantasia de desejo, o conteúdo da perseguição. (FREUD, 1912/2021, p. 586)

Por sua vez, Lacan (1958/1966, p. 558) também associa o assassinato de alma a “um dano” que Schreber consegue “desvelar apenas em parte”. Porém, o que foi retirado para viabilizar a publicação do Memórias de um doente dos nervos  (cujo Capítulo III serve como referência-vazia por se encontrar literalmente suprimido) passa a ser lido como a instalação, no livro mesmo, do que foi assassinado, ou seja, da anulação, em uma psicose, do que Lacan (1969/2001, p. 373, grifos nossos) chama de transmissão […] de uma constituição subjetiva, ou seja, a presença mesma da foraclusão se demarca no corpo textual de um livro e, por isso, Lacan (1958/1966, p. 559) se empenha para mostrar, “na forma mais desenvolvida do delírio com a qual o livro se confunde […] uma estrutura que se verificará similar ao processo mesmo da psicose”. Assim, no que Schreber escreveu como suas Memórias, encontramos o furo da foraclusão do Nome-do-Pai, a presença do que é imemorável e não dá lugar a qualquer história de uma transmissão na qual um sujeito é tramado.

Nesse contexto, vale ainda citar o valor que Lacan (1958/1966, p. 535) confere à “cadeia quebrada” como marca da “irrupção no real” do “símbolo”. Afinal, se tradicionalmente o símbolo é junção de duas partes separadas, essa separação, essa ruptura, também o constitui, embora seja mais dissimulada pelas estruturas clínicas diferentes das psicoses, ou seja, pelas neuroses e perversões. É essa presença ineludível da quebra de um encadeamento, de uma transmissão subjetiva, de uma história, é essa separação característica do símbolo que, no entanto, se tenta dissimular e que, ao contrário, nas alucinações auditivas testemunhadas por psicóticos, implica que, “no lugar onde o objeto indizível é rejeitado no real, uma palavra (mot) se faz escutar […] vindo no lugar do que não tem nome” (LACAN, 1958/1966, p. 535, grifos nossos). Portanto, esse livro de Memórias do imemorável, de registro do que ficou foracluído de toda inscrição, é essa palavra que, mesmo sem lugar até então em sua vida subjetiva, Schreber quis fazer ecoar. Não foi sem razão que, com a expectativa de a ciência futuramente se beneficiar de suas descobertas e como o projeto de retornar à sua “vida prática” de Presidente da Corte de Apelação, Schreber fez todos os esforços para publicar esse livro que, sobretudo em sua época, não deixava de soar insólito e desconcertante para tais objetivos. Por conseguinte, é interessante considerarmos que conseguiu fazê-lo ser aceito pela editora Oswald Mutze de Leipzig (SANTNER, 1997, p. 18) que, diferente dos objetivos científico-profissionais que o mobilizavam, mas não sem dar-lhe a possibilidade de registro da palavra que não encontrava lugar em sua vida, publicava apenas livros ocultistas e teosóficos.

Lacan (1958/1966, p. 564), a partir de sua leitura do livro de Schreber, ressalta que “é em torno desse furo onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito”, onde a cadeia se quebra ou, ainda, em termos schreberianos, onde a Ordem do Mundo foi fraturada, “que é travada toda a luta onde o sujeito se reconstrói”. Nesse contexto, diferente dos pós-freudianos que insistiram na hipótese freudiana de que, com a paranoia, Schreber se defendia contra a homossexualidade, Lacan (1958/1966, p. 567) prefere indicar que tal hipótese só foi sustentada por Freud porque este, ao redigir e publicar seu estudo sobre tal caso, respectivamente em 1911 e 1912, ainda não havia escrito “Introdução ao narcisismo” (1914). Cotejando, então, o estudo sobre Schreber e as descobertas de Freud a propósito do lugar do narcisismo na economia libidinal e no adoecimento subjetivo (inclusive por suas incidências mortíferas), Lacan (1958/1966, p. 567) considera que, se “a ideia da Entmannung”, ou seja, da emasculação, da feminização do próprio corpo, deixa de suscitar, com o tempo, a indignação de Schreber, é porque ele acaba por experimentá-la como uma inversão da experiência de que como “sujeito estava morto”.

Evocando, então, de início, a célebre e terrível concepção schreberiana de si como um “o primeiro cadáver leproso” conduzindo “um cadáver leproso” (SCHREBER, 1903/1984, p. 106), Lacan (1958/1966, p. 568) a toma como uma “regressão do sujeito”, “tópica”, “ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aí a seu gume mortal”. Mas Lacan (1958/1966, p. 568-569) também nos mostra que, a essa morte do sujeito, responde “uma prática transexualista”, na qual Schreber se feminiza e acaba se entregando à “copulação divina”, que lhe servirá de restauração da “estrutura imaginária” mais além daquela regressão tópica que lhe assolou mortiferamente o corpo. Logo, não sem sofrimentos consideráveis, a emasculação serve a Schreber para ir além da própria cadaverização, para tentar ter outro corpo e, desse modo, podemos dizer, como mulher, um Outro diferente daquele que o persegue, assim como outra relação com a vida. Nessa direção em que o corpo, uma vez emasculado, possa fazer-lhe as vezes de Outro, Schreber mostra-nos também o quanto é mesmo contemporâneo ao arco-íris formado pelas cores LGBTQI+.

Imaginário

Muito ainda poderia ser apresentado e esclarecido sobre como a emasculação perturba, toma o corpo de Schreber e ganha um lugar nesse “problema de solução elegante” (LACAN, 1958/1966, p. 572) no qual as psicoses encontram-se envolvidas. Certamente, em outra ocasião, poderei me dedicar a essa explicitação. Neste texto, interessa-me agora muito mais focalizar um modo específico de Schreber se posicionar e conceber sua emasculação. Nesse modo, considero que encontramos um uso do imaginário que não se restringe àquele de uma reconstrução do que lhe foi solapado por sua morte como sujeito. Trata-se de um uso que me parece já apontar para a nova concepção do imaginário no último ensino de Lacan, elucidada por Miller (2006-2007/2012, p. 147-276).

Ainda no período em que a emasculação era experimentada apenas como uma injúria ou, mais especificamente, quando os “raios divinos” a aludiam como “supostamente iminente”, eles “acreditavam poder zombar” de Schreber dizendo-lhe: “‘Miss Schreber’” e, nesse contexto, é importante considerar o esclarecimento de Marilene Carone, tradutora brasileira, situado em uma nota de pé-de-página, de que, na Alemanha, o termo inglês Miss tinha então um sentido pejorativo, indicando uma mulher solteira cuja reputação era duvidosa (SCHREBER, 1903/1984, p. 136). Nessa mesma ocasião, outras expressões, segundo Schreber (1903/1984, p. 136), lhe eram “frequentemente usadas e repetidas até a exaustão”, tais como: “‘Você deve ser representado como alguém entregue à devassidão voluptuosa’, etc., etc.”. A palavra representado é destacada pelo próprio Schreber (1903/1984, p. 136), que também lhe agrega, em uma nota de pé-de-página, um esclarecimento que julgo decisivo:

O conceito de “representar”, isto é, dar a uma coisa ou pessoa outra aparência, diferente da que ela tem por sua natureza real (expressando em termos humanos [ou seja, acrescento, fora da língua dos nervos e das almas]: “falsificar”) desempenhou e ainda hoje desempenha um papel muito importante no universo conceitual das almas […] Talvez tenha-se chegado à convicção de que, uma vez que se conseguisse criar de um homem uma impressão diferente da que corresponde às suas características reais, também poderia ser possível tratar o homem em questão de acordo com esta impressão. Tudo isso se reduz, pois, a um autoengano, completamente sem valor do ponto de vista prático, uma vez que o homem, naturalmente, no seu comportamento de fato, e particularmente na linguagem (humana), sempre dispõe de meios de fazer valer suas características reais contra a “representação” intencionada.

Verificamos que a emasculação imposta a seu corpo, mesmo implicando-lhe transformações e experiências de gozo reais, não deixa de lhe ser, também, o que a língua dos nervos concebe como “representação” e, os humanos, “falsificação”.  Ela se compõe, portanto, como um “autoengano” o faz colocar-se “contra a ‘representação’ intencionada”. Nessa via contrária, nessa leitura do que pode existir de falso no que experimenta realmente como imposto, considero que Schreber se confere algum uso do benefício da dúvida e, assim, utiliza um recurso decisivo, a meu ver, para o tratamento das psicoses.

Essa possibilidade de ir contra, não sucumbir e, sobretudo, encontrar outro destino para o que lhe imposto parece-me se consolidar ainda mais com o que, segundo a concepção das almas, é o “desenhar”: trata-se do “‘uso consciente da imaginação, com o objetivo de produzir imagens (predominantemente imagens mnemônicas) que depois são vistas pelos raios’” (SCHREBER, 1903/1984, p. 222). Assim, frente ao “martírio espiritual” que lhe “era proporcionado pelo falatório idiota das vozes”, ele se permite desenhar, tornar “visível” em sua “cabeça ou também fora dela”, de forma que essas vozes passam a ter “a impressão” de que os “objetos e fenômenos” assim desenhados “realmente existiram” e, como essa imposição vinda das vozes e os nervos são experimentados como milagres, ele chega a chamar o procedimento do desenho de “milagre às avessas” (SCHREBER, 1903/1984, p. 223). Importante esclarecer que não se trata do desenho como o que se registra ou se esboça, com finalidade artística ou não, mas de uma espécie de projeção ou duplicação, em imagens, do que se está fazendo ou se pode fazer. Nos termos mesmos de Schreber (1903/1984, p. 223):

Posso me “desenhar” em outro lugar, diferente daquele no qual eu de fato estou; por exemplo, enquanto me sento ao piano, estar ao mesmo tempo no quarto ao lado em frente ao espelho, com roupas femininas […], criar para mim mesmo e para os raios, quando estou deitado na cama à noite, a impressão de que meu corpo é dotado de seios e de órgãos sexuais femininos. Desenhar um traseiro no meu corpo […] tornou-se para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino.

Para uma elucidação de como esse uso do imaginário chega a permitir-lhe não sucumbir ao que lhe é imposto, vale citar o modo com que por vezes lidava com os “pássaros miraculados” cujas vozes, em outras circunstâncias, exigiam-lhe trabalhar até a exaustão para respondê-las e decifrá-las: “fazendo troça” com tais aves, ele fazia com que aparecessem em sua cabeça a “própria imagem” desses pássaros “sendo devorados por um gato” (SCHREBER, 1903/1984, p. 224). Com isso, parece-me que ele acede a outro gozo, bem diferente daquele que lhe era imposto e o devastava “a satisfação produzida por esta atividade é realmente grande”, sobretudo ao conseguir “obter do modo mais fácil possível as imagens desejadas”, de forma que a “visão de imagens atua […] de um modo purificador sobre os raios, e eles”, assim, o “penetram […] sem a violência destrutiva que lhes é peculiar” (SCHREBER, 1903/1984, p. 225).

Segundo Miller (2006-2007/2012, p. 258), no ultimíssimo ensino de Lacan, uma análise implica “ultrapassar a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse ultrapassamento, o corpo tem uma função decisiva: “no silêncio do real, e enquanto sempre se tem que desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, isto é, ao corpo” (MILLER, 2006-2007/2012, p. 259). Vimos que a emasculação de Schreber toma seu corpo como uma saída frente ao furo da foraclusão do Nome-do-Pai no simbólico, mas, ainda assim, ele sucumbe a tal furo. Ela também lhe confere alguma voz para responder ao silêncio do real do gozo que lhe toma o corpo, esse silêncio que, no entanto, parece ser almejado na medida em que Schreber insiste na exaustação que lhe provoca o falatório das vozes e, nesse contexto, seu livro destemido e perturbador me parece ser um modo de ele se fazer escutar nessa que seria a sua voz. Logo, a emasculação, nesse caso, não deixa de ser, às avessas, uma consagração, mesmo que delirante, aos referenciais paternos. Não é sem razão que, evocando esse recurso paterno que é o falo, Lacan (1958/1966, p. 566) nos brindou com uma interpretação que se aplica à emasculação schreberiana: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”. Ora, a invenção do desenhar nos aponta para outra via e, mesmo que não tenha sido tão trilhada quanto aquela da emasculação, implica o corpo e me parece oferecer a Schreber uma oportunidade muito mais satisfatória para “superar”, como formula Miller (2006-2007, p. 259) “a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse contexto, se a consagração delirante ao pai na emasculação ganha mais corpo que o desenhar, é porque, possivelmente, Schreber habitava um mundo ainda muito centrado nas insígnias paternas e, assim, o recurso ao desenho, no modo como ele o inventa e pratica, soa mais contemporâneo ao nosso mundo desabitado do que é paternalmente ordenado.


 

Referências
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LACAN, L. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 531-583. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 793-827. (Trabalho original proferido em 1960).
LACAN, J. Présentation des “Mémoires d’un névropathe”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 213-217. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 373-374. (Trabalho original escrito em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. (Trabalho original proferido em 2006-2007).
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (org). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
MILLER, J.-A. Tout le monde est fou – AMP 2024. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 112, p. 48-57, nov. 2022.
SANTNER, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (Trabalho original publicado em 1903).
VALÉRY, P. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, A. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 26-57. (Poema original publicado em 1921).
[1] Aula inaugural do Curso de Psicanálise do IPSM-MG proferida em 6 de março de 2023.