Uma introdução ao amor transferencia[1] 

Renata Mendonça
Psicanalista, doutoranda (UFMG), membro da Escola Brasileira de Psicanalise/AMP
renatalucindopsi21@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. 

Palavras-chave: método psicanalítico; amor transferencial. 

AN INTRODUCTION TO TRANSFERENCE LOVE 

Abstract: The author rereads the Freudian text “Observations on transference love” (1915 [1914]) to present Freud’s indications on the psychoanalytic method, also including in the debate some authors of our time, such as Lacan and Miller, showing how much the text Freudian is contemporary and necessary to the psychoanalytic clinic.

Keywords: psychoanalytic method; transference love.

Imagem: Renata Laguardia

 

O problema do amor nos interessa na medida em que
vai nos permitir compreender o que se passa na transferência
– e, até certo ponto, por causa da transferência.
(LACAN, 1960-61/2010, p. 52)

Quero agradecer à diretoria do Instituto e às coordenadoras da atividade, Lúcia Mello e Luciana Silviano Brandão, pelo convite. É uma boa responsabilidade estar aqui para tentar transmitir algo dos dois textos indicados.

Para iniciarmos a conversa, faço uso da questão feita por Iannini e Tavares (2017, p. 7) na “Apresentação” ao livro Fundamentos da clínica psicanalítica: “O que separa a Psicanálise de outras práticas de cuidado, como o tratamento medicinal, as diversas psicoterapias ou as curas religiosas?”.

Uma pergunta difícil, principalmente nos dias de hoje, em que a certeza desinibida circula e faz laço na contemporaneidade, em que o uso da Psicanálise nos parece indiscriminado nas redes, em que a técnica parece muitas vezes substituir a ética. Uma pergunta que precisa ser reatualizada a cada vez, tanto pela necessidade ética de verificar as práticas psicanalíticas, quanto pelas mudanças que ocorrem na subjetividade de nossa época.

Com isso, podemos afirmar que a escolha da Diretoria em estudar os Fundamentos da clínica psicanalítica é essencial, na atualidade, diante das mudanças nos laços sociais, da constatação da diluição do Outro e de um mundo que precisa ser lido, ou lido de outra maneira, como nos mostra o título da XXVI Jornada da EBP Seção Minas, “Há algo de novo nas psicoses… ainda”, e o tema do XI ENAPOL, “Começar a se analisar”. Temas que são atualizados a partir do que há de novo em nossa época, da verificação da nossa clínica, para que as orientações e construções não se percam, mantendo assim, o rigor transmitido por Freud e Lacan.

Nessa mesma “Apresentação”, Iannini e Tavares (2017, p. 7) afirmam que os textos ali reunidos “constituem o essencial dos escritos freudianos sobre o método e a técnica, em sua constituição, em sua história e em seus desdobramentos”. O que, entretanto, nos interessa especificamente em “Observações sobre o amor transferencial” é que, no trabalho de Freud, e na Psicanálise, o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento. Um amor lido e provocado pela análise. Uma das belezas de Freud e de seu método.

Observações sobre o amor transferencial 

O texto foi escrito no final de 1914 e publicado em 1915, e Freud achava que esse era um dos artigos fundamentais para a transmissão da técnica psicanalítica. Penso que, provavelmente, mesmo com as notícias da eclosão da guerra, as questões que surgiram nos consultórios de seus “alunos” fizeram com que ele pensasse na publicação independente do momento histórico.

Escutamos em nossos consultórios, seja em análise, seja em supervisão, os jovens praticantes se perguntando diariamente o que fizeram para que o paciente tenha ido embora, faltado à sessão, sumido sem responder, etc. Muitas vezes pensam nessas questões como um erro técnico, algo que sempre retorna invariavelmente, como nos afirmou Jésus Santiago na última conversação do Instituto. Ele nos diz que houve uma época em que a Psicanálise tinha manuais, que diziam o que deveríamos fazer a cada circunstância ou situação, seja relativo a pagamento, às faltas ou sobre quando o analisante estaria de fato em análise ou se tornaria um analista (essa decisão se dava, por exemplo, pelo número de sessões feitas).

O retorno a Freud feito por Lacan e o retorno a Freud nas “Lições Introdutórias” é fundamental, pois ele afirma no início do texto em tela que, apesar dos incômodos dos jovens psicanalistas, “as únicas dificuldades realmente sérias são encontradas no manejo da transferência” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 165).

Esse manejo nos é caro e implica vários sentimentos dirigidos ao corpo do analista – amor, interesse, raiva. Em minha leitura, nesse texto, Freud (1915[1914]/2017, p. 166), de forma bem “brincalhona”, elege o amor como algo que surge em uma análise e nos relata as várias soluções sobre o amor que não cabem a um psicanalista:

1ª: a união dos dois protagonistas, analista e analisante, médico e paciente, e diz: “uma união duradoura e legítima”;

2ª: a separação do médico e do paciente, encerrando assim o tratamento, “desistindo do trabalho iniciado”;

3ª: a confirmação da relação entre os dois, “o início de relações amorosas ilegítimas e não destinadas à eternidade; mas essa se tornaria impossível devido à moral burguesa e a dignidade médica”.

A segunda saída incluída no texto: a separação do médico e do paciente, com o abandono do tratamento, é desaconselhada por Freud, mas nos ensina como o amor transferencial funciona. Ele afirma que, quando o tratamento com aquele psicanalista é interrompido, suspenso, as questões do paciente continuam, ele já sabia que o paciente seria perturbado pelo seu sofrimento e que o amor não o salvou de suas dificuldades. Ao se dirigir a outro analista, o amor será transferido para esse segundo, em um deslocamento.

Com isso, podemos afirmar:

1. É preciso enfrentar o amor transferencial! Melhor dizendo, nos utilizarmos dele.

2. O paciente não está, de fato, enamorado pela pessoa do psicanalista.

É importante que o psicanalista saiba que o amor não se dirige a ele, enquanto pessoa; estar avisado disso é imprescindível para o tratamento, pois a transferência e o método psicanalítico dão trabalho, e não é viável para o analista, desavisado, dar trabalho também.

Nesse momento do texto, Freud vai nos relatar as várias situações que caberiam a um livro de romance, a relação com a família, a ideia de tirar a paciente do tratamento, etc., sempre nos avisando pontualmente, como mencionei anteriormente, o que não cabe ao tratamento psicanalítico. Depois, ao retomar o caminho das possibilidades relativas ao amor transferencial, traz-nos um ponto essencial a ser lido em uma análise: “tudo aquilo que atrapalha a continuidade do tratamento pode ser uma expressão de resistência. No aparecimento daquela exigência tempestuosa de amor, a resistência indubitavelmente tem grande participação” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 169). Ele ainda completa, dizendo-nos que, provavelmente, é ao nos depararmos com um ponto importante para o tratamento ou algum ponto difícil para o analisante que o amor transferencial age como resistência. Podemos afirmar que vários sentimentos podem surgir nesse momento: o amor transferencial aparece com um xingamento ou com um convite para o seu aniversário. Algo a ser avaliado, lido, a cada vez.

Existe, nesse texto de Freud, uma informação de trabalho indispensável a ser escutada: quando o amor transferencial se torna a mola de trabalho e os sentimentos ao redor do psicanalista ficam presentes no tratamento, esses sentimentos, ou esse enamoramento, não podem ser expulsos. Esses sentimentos, ideias, sensações surgem e não podem ser simplesmente dissolvidos rapidamente, essa é uma das condições para o tratamento psicanalítico.

Ele afirma que quando pretendemos trabalhar com o método psicanalítico invocamos “um espirito do submundo para que venha à superfície” e que não é coerente ao tratamento “mandarmos ele de volta, sem ao menos lhe fazermos uma pergunta” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 171). Podemos concluir também que, tal qual o amor de transferência, que surge no corpo do outro psicanalista, o “espírito do submundo” não vai deixar de aparecer para aquele analisante, de um jeito ou de outro – tal qual ocorre, por exemplo, no filme O Lodo.[2]

Logo depois, Freud conta uma anedota do pastor e do corretor para nos dizer que se cairmos no jogo do analisante estaremos, nesse momento, simplesmente abrindo mão do tratamento. Que nada pode ser feito ao toparmos, cedermos, a esse amor. Isso não quer dizer que devemos “desviar a transferência amorosa, afugentá-la ou estraga-la na paciente; também nos abstermos ferrenhamente de toda correspondência desse amor” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 174).

É necessário darmos espaço para escutarmos o sentimento para além do sofrimento, para além do amor e fazermos uma interrogação sobre esse sentimento. No texto “A metáfora do amor: Fedro”, que está no capitulo “A mola do amor” do Seminário 8, Lacan (1960-61/2010, p. 54) avisa que “nada de melhor podemos fazer, nesse sentido, do que partir de uma interrogação sobre aquilo que o fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: o amor”. Assim, os sentimentos que surgem em uma análise precisam ser lidos, o analista não pode abstrair deles ou evitá-los, mas interrogá-los.

Lacan avisa que o texto freudiano fica às voltas com o amor, diferenciando-o do amor transferencial, em que há uma “suspensão no problema do amor, uma discórdia interna” (LACAN, 1960-61/2010, p. 55), pois é preciso tentar saber o que se passa numa análise, numa “ação analítica”. Mas, podemos assegurar a partir do texto freudiano, que há um objetivo nesse amor transferencial: é a “descoberta da escolha do objeto infantil e das fantasias que o enredam” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 176). Ele se pergunta se há diferença entre o amor transferencial e outros amores e afirma que os dois têm uma certa autenticidade, mas só a transferência coloca o trabalho psicanalítico da escuta do inconsciente em movimento.

O enamoramento, por sua vez, é composto de “reedições de traços antigos e repete reações infantis”, já que

a natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo ou do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções, mas não pode mais livrar-se delas. (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 248).

No amor transferencial existem algumas diferenças, já que este é provocado pela análise, potencializado pela resistência ao tratamento e menos preocupado com as consequências sociais. Ele cabe ao tratamento.

Para Lacan é necessário entender a transferência como uma articulação e implicação ao simbólico, ao imaginário e ao real, é uma condição de leitura da transferência e é “impossível comparar a transferência e o amor, e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada um, e reciprocamente, de ilusão ou de verdade” (LACAN, 1960-61/2010, p. 51).

No texto “Uma conversa sobre o amor”, Miller (2010) fala que Freud nos avisa que o vínculo social é um vínculo erótico ou amoroso, que a psicanálise, em Lacan, inventou um novo amor, e que Freud inventou um novo Outro, um tipo de Outro ao qual o analisante possa dirigir o seu amor. Um Outro que possa dar novas respostas ao amor, respostas diferentes e, talvez, mais adequadas àquelas que encontramos cotidianamente. Ler esse texto de Miller, que apresenta uma leitura do que Freud inventou – “Um novo Outro” –, nos faz retornar a “Observações sobre o amor transferencial”, pois todas as recomendações implicam esse novo Outro. Todas as recomendações são para o psicanalista e seu lugar no mundo. No texto, Freud tenta ensinar ao analista a suportar e a usar, a favor do tratamento, o amor dirigido a ele – o que o analisante dirige ao analista e o que é possível que o analista “devolva” ao analisante.

Para finalizar, Freud (1915[1914]/2017) faz observações importantes, equivalendo o psicanalista a um químico e dizendo que não é porque o químico trata de materiais explosivos que ele é proibido de manuseá-los, assim como o psicanalista também fica às voltas e trata de materiais explosivos. Afirma que não precisamos, e nem o mundo precisa, do furor sanandi, ou seja, tentar curar o doente a qualquer custo. Para ele, o material a ser manuseado precisa de tempo e uma certa coragem, ou aposta no inconsciente, e que, principalmente, a ética precisa estar próxima da técnica. Me parece, portanto, que, nesse texto, o que orienta Freud é a ética. Assim, dizer “sim” ao amor transferencial é dizer “sim” ao tratamento e ao inconsciente.

O texto do Miller (1997) “O método psicanalítico” faz laço com o texto de Freud ao dizer que esse método não tem padrões, mas tem princípios. Melhor dizendo, não é orientado pela técnica, mas sim pela ética, e que em “análise não há paciente à revelia de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 223). Há uma diferença entre o paciente que está na análise e aquele da psiquiatria que pode ser encaminhado por outros, tal qual a criança que é encaminhada pelos pais: em análise, o paciente precisa querer ser paciente. No texto “Observações ao amor transferencial” Freud (1915[1914]/2017, p. 168) nos avisa inclusive que a família decidir pelo paciente não tem nenhum efeito de tratamento, pode no máximo atrapalhar, e conclui: “O amor dos parentes não consegue curar uma neurose”.

Em relação ao texto de Miller e ao de Freud poderíamos também afirmar que precisamos localizar numa análise sempre o dito e o dizer, o enunciado e a enunciação, e que a declaração de um amor de transferência precisa ser lida desta forma: isso foi dito, mas o que isso quer dizer, a que se refere? Isso para que, de um modo ético, possamos encontrar ou formular uma resposta que tenha lugar para o tratamento ou para o inconsciente, que dê lugar para a “boca maldita”, pois, no amor transferencial, o analisante demanda uma resposta que o inclua na repetição infantil, no mesmo de sempre, colocando em ordem o sintoma que funcionava muito bem até aquele momento.

Isso que Miller traz sobre o dito e o dizer se mostra em seus exemplos pelo enamoramento dirigido a uma análise, mesmo que não seja o amor transferencial estabelecido por Freud – uma paixão –, mas, em todos os aspectos, a palavra precisa ser escutada, dando lugar para o que vem junto dela, acoplado a ela. Miller dá o exemplo de uma mulher que chega aos prantos no seu consultório: ela sabia que ele iria viajar, e ele diz que talvez seja por isso que ela chega dessa forma, dizendo que os filhos sairiam de viagem sem ela. Ele sorri, dizendo que esperava que seu sorriso tenha sido verdadeiro, pois não cabe ao psicanalista “participar emocionalmente das situações afetivas dos pacientes demonstrando sempre que compreende ou sente ternura” (MILLER, 1997, p. 244), e que é preciso avaliar cada caso, tal qual Freud. Isso não significa não acolher, mas fazer um cálculo que possa autorizar o que pode vir a posteriori, que é no dizer, na enunciação.

O que fazer com o amor que surge em análise? 

Ao ler o texto de Freud, lembrei-me de um caso que Oscar Ventura (2020) trouxe na XXIV Jornada da EBP Seção Minas, em uma conferência com o nome “O Amor. Sempre Outro”, que tratava do amor, do amor repetição, do amor em Freud e do amor em Lacan como elaboração de saber, ligado ao Outro. Mas trago aqui o texto intitulado “A mulher pródiga”, que apresenta um caso muito bem trabalhado por Ventura (2003/2005) e que está em La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jacques-Alain Miller em Barcelona.

Nesse texto, Ventura traz o caso de uma psicose ordinária estável por mais ou menos 37 anos, que ele chama, tal qual Miller (1997) em Lacan Elucidado, de pré psicose. Ela estava estabilizada em um casamento em que o marido, por causa dos trabalhos, fazia viagens. Quando esse casal decide ter um pouso e pensar em filhos, surge a instabilidade. Em seguida, surge uma posição delirante em relação a um professor de Yoga e a separação do marido. Nesse momento, ela estava em uma primeira análise. Ao se separar, ela decide vender todas as suas coisas e voltar para a sua cidade, com uma mala e o endereço de um novo analista. Fica errante na cidade por um tempo, entre hotéis, lugares e com seus perseguidores, pois havia um delírio de perseguição ao seu redor.

Na análise com Oscar Ventura, ela tira os objetos da mala, os deposita no tapete e começa a falar, e depois que se encerra a sessão, os recolhe novamente. Em um certo momento, passa a deixar seu dinheiro nos lugares, a pagar muito mais que o necessário, a não aceitar troco e, na análise, quer pagar em dobro, o valor do ano todo, com o que o analista não consente. Até o momento em que ela decide entregar a ele os objetos da mala: o analista não aceita, mas consente em guarda-los. Nesse momento, esse lugar vira uma âncora na cidade e o “aumento progressivo do amor começa a ser notado” (VENTURA, 2003/2005, p. 201).

Com as joias guardadas, algo se estabiliza e o mundo é dividido em dois: um, dos perseguidores, e o outro, de pessoas que assumem “o status de deuses, pelos quais vale a pena existir” (VENTURA, 2003/2005, p. 202). Ela começa, assim, a traduzir textos de psicanálise, fazendo o que chama de suas próprias versões; o analista passa a ser o depositário dessas versões e a análise ocupa um lugar fundamental para o seu tratamento e estabilização, um lugar para sua história, e os fenômenos persecutórios ficam mais distantes dela, menos invasivos. Nesse momento, o “analista agora encarna o fiador do psi, é um deus protetor e às vezes basta um simples chamado para organizar os ânimos” (VENTURA, 2003/2005, p. 203).

Em relação ao aumento do amor transferencial, Ventura relata que

a insistência em aumentar a periodicidade das sessões aparece como um obstáculo, ela aspira ser a única paciente, ela se diz analista! […]. Esse sujeito ama o analista e os deuses começam a exigir sacrifícios de amor, o corpo começa a tremer e não há país para onde fuja a menos que outro seja inventado. (VENTURA, 2003/2005, p. 202)

O manejo da transferência no caso da “mulher pródiga” é um instrumento evidentemente fundamental e algo a ser verificado. Até que ponto é possível regular essa erupção de gozo que recaí sobre o corpo do analista, já que a transferência se torna explicitamente erotomaníaca? Ventura descreve todas as artimanhas feitas por essa mulher para ter o objeto amado, tal qual descrito por Freud em “Observações sobre o amor transferencial”:  ela compra roupas, veste-se de modo sedutor, liga para o analista em horários desnecessários para perguntar se pode ser atendida, se pode ir para casa dele, convida-o para jantar e descobre o endereço de sua casa. Manda-lhe presentes pelo correio, que são imediatamente devolvidos.

Acontece aí o choro e o ranger de dentes, o bater de portas, os xingamentos, ela se enfurece… mas volta. Essa, talvez, nesse caso, seja a orientação dada pela analisante. Ela volta. Assim, “são esses momentos em que ela não é o manejo privilegiado da transferência, não se trata do não da rejeição ou do não de uma negação pura e arbitrária, mas um não de um manejo, um não que cumpre” (VENTURA, 2003/2005, p. 203). Ele age e esse manejo da transferência começa a produzir outros efeitos.

Vi nesse caso de Oscar Ventura uma ótima oportunidade de exemplificar as questões sobre o amor transferencial e seu manejo. Após essa intensa posição da analisante, ela passa a acreditar que ele a roubou, e logo que se esvazia esse excesso ela se sente em falta e passa a verificar os objetos, se eles continuam ali guardados. Depois de algum tempo, pede de volta os objetos para depositá-los em um banco, vai espaçando a periodicidade das sessões e o analista vai consentido. Em uma sessão, chega bem, arrumada discretamente, com uma caixa na mão e diz, de forma imperativa, que aquele presente ele precisava aceitar. Ele pede para ver: em uma caixa estava uma escultura do analista, feita por ela. Ela conta como foi feita, o material, etc. E ele o aceita: a escultura é um trabalho que inclui o analista e a história da analisante e seu pai.

Podemos concluir que o amor transferencial, a transferência, da forma que ela vier, está ali em função do método psicanalítico, é preciso escutar como algo a favor do tratamento, a favor do sujeito, pois, como afirmou Miller (1997, p.235), a “primeira incidência clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito”.


 

Referências
FREUD, S. (1915 [1914]). Observações sobre o amor transferencial. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 165-182.
LACAN, J. (1960-61). A mola do amor. In: O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 31-210.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Opção Lacaniana On-Line, n. 2, jul. 2010. Disponível em: opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2. Acesso em: 22 mai. 2023.
VENTURA, O. Uma mulher pródiga. In: La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jaques-Alain Miller em Barcelona. Barcelona: Ed. Paidós, 2003/2005
VENTURA, O. O Amor. Sempre Outro. In: XXIV Jornada da EBP-MG – Mutações do laço social: o novo nas parcerias. 2020. Disponível em:jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/ Acesso em: 22 mai. 2023.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 25 de abril de 2023.
[2] Filme de Helvécio Ratton, da produtora Quimera, lançado em 13 de abril de 2023.



EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 30

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Almanaque On-line Março/2023 – Nº 30

A ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO

EDITORIAL

Patrícia Ribeiro

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência. (Leia mais)

TRILHAMENTOS
A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?

Laura Rubião

O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. (Leia mais)


 

A presença real na análise


Gilles Chatenay

A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”. (Leia mais)


 

Tem alguém aí?


Esteban Pikiewicz

O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro. (Leia mais)

ENTREVISTA
Almanaque on-line entrevista 

Margarida Elia Assad

Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. (Leia mais)

ENCONTROS
As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto

O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo. (Leia mais)


 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat

Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época. (Leia mais)


 

Modos de presença


Florencia F. C. Shanahan

A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse. (Leia mais)


 

A presença de Lacan 


Guy De Villers

O autor toma como ponto de partida o seu primeiro encontro com Lacan.  Durante o tempo em que estava dedicado à sua tese, na qual trabalhava a crítica freudiana à filosofia, ouviu Lacan contestar o coração do projeto filosófico: aquele de “tudo compreender”. Enquanto o autor encontrava no texto de Freud uma centralidade da pulsão que também verificava em sua própria experiência, reencontrou ecos disso em uma pergunta de Lacan: “Estou, será que estou presente quando falo com vocês?”. A partir dessa indagação, o autor discute o que a presença de Lacan introduz na prática da psicanálise. (Leia mais)

PRELÚDIOS
Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa 


Virgínia Carvalho

A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção. (Leia mais)


 

Uma defesa primária  


Cristina Drummond

O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo. (Leia mais)


 

O sintoma substituto  


Mônica Campos Silva

O presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo(Leia mais)


 

Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior  


Cristiana Pittella

A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana. (Leia mais)


 

Perigos e defesas: a análise finita e a infinita  


Luciana Silviano Brandão

O texto acompanha o percurso de Freud sobre o tema do final de análise tendo como referência o artigo “A análise finita e a infinita”, que trouxe desdobramentos importantes na psicanálise. No entanto, Lacan, ao postular a inexistência da relação sexual, desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica. (Leia mais) 


 

Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung 


Lucia Mello

Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa. (Leia mais)

INCURSÕES
A presença do analista na psicose ordinária  


Sérgio de Campos

Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma. (Leia mais)


 

Clínica do funcionamento: a psicose ordinária e a presença do analista  


Fernanda Otoni-Brisset

Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária? (Leia mais)


 

Os pais traumáticos, a data do trauma e a criança troumatisé


Philippe Lacadée

A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. (Leia mais)


Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise


Ondina Machado

Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? (Leia mais)


Toxicomanias◊Adixões  


Ernesto Sinatra
 

Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir. (Leia mais)


 

Um corpo de angu

Nathália Temponi Natal e Cláudia Reis 

Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e, Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro. (Leia mais)


Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes 


Sílvia Reis Soares 

A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro. (Leia mais)


O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização 


Alessandra Thomaz Rocha

O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização. (Leia mais)

 

 

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)




EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 29

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PSICOPATOLOGIA DO RACISMO COTIDIANO: DO CORPO POLÍTICO AO ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

LUÍS COUTO
Psicanalista praticante. Psiquiatra.
Doutorando em Estudos Psicanalíticos-UFMG.
Preceptor da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares/FHEMIG.
luisfdcouto@gmail.com

Resumo: O artigo visa partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

Palavras-chave: Racismo; segregação; gozo.

Title: Psychopathology of everyday racism: from body politcs to body event

Abstract: This article starts from the effects of the historical politics of racial segregation in our country to arrive at psychoanalysis’s politics of the symptom, from which it will be possible to collect, for each subject, the singular effects of the nominations coming from the Other and its relation to jouissance.

Keywords: Racism; segregation; jouissance.

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Neste semestre o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo do IPSM-MG tem se dedicado ao estudo do tema “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”. No entanto, tentarei propor uma disjunção do tema de nossa investigação que considerei pertinente: de um lado, o corpo político, e, de outro, o acontecimento de corpo.

Partiremos, então, dos sintomas da política para tentar avançar em direção à política do sintoma. Ou seja, partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo. É nesse sentido que propus, no título deste trabalho, uma “psicopatologia do racismo cotidiano”, fazendo uma alusão ao texto de Freud, “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, na medida em que Freud extrai, das pequenas falhas do discurso (atos falhos, lembranças encobridoras, etc.), não os índices de uma patologia, mas uma lógica inconsciente que nos indica os efeitos singulares do encontro da linguagem com o animal humano. Por isso, as vinhetas clínicas que trago pretendem seguir nessa direção de tentar extrair uma lógica subjetiva do racismo cotidiano, aquele que se apresenta no que poderíamos considerar um laço social primordial, o seio da própria família, ou ainda um pouco mais íntimo/êxtimo, aquele encontrado na relação do sujeito com o próprio corpo.

 

Sintomas da política

A articulação entre a questão racial e o uso de drogas pode ser tomada sob várias perspectivas, mas destaco um ponto que me pareceu interessante: a ocasião de uma primeira virada na legislação relativa às drogas em nosso país. Durante o Império e início da República, o Estado pouco interferia no uso de drogas. Não havia leis específicas sobre o uso de substâncias psicoativas, exceto a embriaguez alcoólica, que era punida com a prisão. Com a Proclamação da República, a medicina e a psiquiatria são convocadas ao debate a respeito do problema das drogas, e o desvio psíquico é localizado no lado primitivo e incivilizado da sociedade brasileira, ou seja, aquilo que divergia do modo europeu. Para se ter uma ideia, uma das consequências do ideal civilizatório foi a proibição de práticas culturais da população afrodescendente, como samba, capoeira, candomblé e o uso da maconha. Foi proposta, então, a proibição da maconha diante de uma suposta preocupação com o seu consumo pela população negra e rural do Nordeste, cujos efeitos levariam à loucura e à criminalidade (TRAD, 2009). Logo após a abolição da escravidão, portanto, torna-se necessária a criação de outras leis que incidirão diretamente sobre os negros, mantendo-se um regime de exclusão.

Não pretendo estender a discussão histórica, mas, dando um salto temporal, vemos ainda, nos dias de hoje, os efeitos da segregação racial em manifestações que vão desde o racismo mais explícito àquele que se manifesta no cotidiano das relações sociais. Há, por outro lado, uma também histórica organização dos movimentos de resistência negros, que se articulam para fazer frente às políticas de segregação. Mais recentemente temos observado alguns movimentos sociais que trazem à pauta “o corpo” com a afirmação: “meu corpo é político”. Trata-se de trazer o corpo feminino, preto, trans à cena da polis, no sentido de produzir uma visibilidade do corpo excluído e tentar perturbar o social e seus modos de segregação.

As várias formas de segregação estão imiscuídas em nosso percurso histórico de maneira que não temos observado sua mitigação, mas, pelo contrário, assistimos a uma escalada do racismo, como Lacan previu após os eventos de maio de 68. Diante das proposições que surgem nesse contexto, de uma sociedade sem o poder dos pais e acompanhada de um culto ao corpo, Lacan afirma que o que aí se enraíza é o racismo. No texto “O racismo 2.0”, Éric Laurent retoma essa previsão lacaniana que se sustenta em uma lógica da rejeição ao gozo do Outro. É o que se observa no movimento do colonialismo e a vontade de normalizar o gozo daquele que é emigrado em nome de seu bem: não se trata de choque de civilizações, mas de choque dos gozos. “Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador” (LAURENT, 2014 n/p.).

Ainda segundo Laurent, em “O avesso da biopolítica”, “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época (…)” (LAURENT, 2016, p. 213). É nesse sentido que trarei, em seguida, algumas vinhetas clínicas e o que foi possível recolher a partir de cada caso.

 

Política do sintoma

Esse primeiro caso foi publicado em uma edição da revista CliniCAPS, a propósito de uma discussão sobre a formação em saúde mental (BALTHA, 2015). Esse paciente tinha, à época, 33 anos, estava se tratando em um CAPS-AD devido ao uso abusivo de crack e era considerado pela equipe como sendo “de difícil manejo, indisciplinado, não obedece às regras da instituição”. Ele vê uma acadêmica de medicina jogando xadrez com um outro paciente e lhe demanda que o ensine a jogar. Durante as partidas de xadrez, passa a falar para a estudante a respeito da mãe que o negligenciava, deixava-o sozinho em casa sem comida, não lhe dava afeto. Percebia que o tratamento que recebia era diferente daquele dispensado aos irmãos. Ele, por exemplo, ao contrário dos outros, só fora registrado na adolescência.

Fala de uma cena em que conheceu o pai, aos 9 anos de idade. Estava na janela de sua casa e viu um carro se aproximar, conduzido por um homem. Sua mãe o recebeu e lhe disse: “seu filho está aqui”. Esse homem, ao vê-lo, respondeu: “esse menino é preto demais para ser meu filho”. Descobriu, assim, que esse era o seu pai, que, por muito tempo, ansiou por conhecer. Diz que essa cena o marcou muito e, depois disso, não mais tiveram contato.

Parou de frequentar a escola, cometia pequenos furtos para ajudar a pagar as contas em casa. Sentia-se desamparado, “sozinho no mundo”. Passou a usar drogas na adolescência e intensifica o uso após os 20 anos. Quando sob efeito das substâncias, envolve-se em brigas na rua e apresenta ideação persecutória, além de ouvir vozes. Diz que em diversas ocasiões pensou em tirar a própria vida e justifica que não conseguiu encontrar um lugar no mundo.

Com muita frequência fala do peso que a cor da pele tem para ele. Não consegue melhorar de vida ou ter empregos em razão de sua cor. As pessoas não gostam dele porque é negro e é a cor da pele que o impede de manter relações sociais. Durante a conversa com a acadêmica, pergunta-lhe: “você acha que sou muito preto?”.

Em determinado dia, diz, de maneira jocosa, que estava fazendo movimentos errados no xadrez porque estava jogando com as peças pretas; preferiria jogar com as brancas. A aluna, advertida dos elementos de uma primeira construção do caso, intervém dizendo que é importante aprender a jogar com as peças pretas.

Como pensar a segregação nesse caso? No texto “A toxicomania não é mais o que era”, Antônio Beneti propõe um discurso da segregação como sendo derivado do discurso do mestre amputado do lugar da verdade, onde estaria o sujeito do inconsciente. Seria, então, um discurso de três termos (BENETI, 2014):

S1 → S2

//  a

Poderíamos investigar, no caso apresentado, se a segregação se daria por um S1 vindo do Outro, “preto demais”, que comandaria um S2, “não tenho lugar no mundo”. Assim, haveria uma identificação ao S1 tomado pelo sujeito do campo do Outro e uma espécie de “saber-fazer” que irá sustentar essa nomeação: “sim, sou preto demais para ter um lugar no desejo do Outro”. Há, no entanto, um problema na relação desse sujeito com o discurso e o laço social e poderíamos questionar se ele se insere no discurso e, se sim, como isso se daria. Uma hipótese que leve em conta uma entrada precária no discurso e o coloque numa posição de rejeitado pelo Outro resultaria, como consequência lógica, no sistema explicativo: “sou preto, logo, não devo existir” — efeito paradoxal desse discurso, porque tende à sua retirada. Dito de outro modo, parece tentar fabricar uma entrada à força no campo do Outro a partir das brigas, violações das regras institucionais, o que acaba por produzir sua rejeição a cada vez. É esse sistema que a acadêmica tenta discretamente perturbar ao propor que poderia jogar com o significante “preto”. Colocar-se, então, em jogo. Estamos, até aqui, no campo da linguagem e do discurso.

Como o sintoma não é produzido apenas em termos da linguagem, partimos para uma outra questão, que diz respeito ao sintoma como acontecimento de corpo. Freud desenvolve a tese de um sintoma metaforizado, que poderia ser interpretado ao nível da linguagem. No entanto, em sua teoria encontramos também as bases para a ideia de um sintoma que não se reduz a um sistema lógico decifrável tomando por base o significante. Ou seja, quando Freud se refere ao sintoma como uma satisfação substitutiva de uma pulsão, introduz aí uma outra vertente do sintoma, ligada ao gozo. É nesse sentido que Jacques-Alain Miller irá afirmar que “a definição do sintoma como acontecimento de corpo é necessária e inevitável, porquanto o sintoma constitui, como tal, um gozo” (MILLER, 2004, p.45).

É devido a uma espécie de imbricação entre linguagem e gozo que podemos afirmar que a linguagem desnaturaliza o organismo, ou seja, com a entrada no mundo da linguagem, o corpo terá um funcionamento estranho ao que seria um bom funcionamento do organismo com base nas leis da física, química ou biologia — as leis da natureza. Assim, nos seres falantes, ao contrário dos outros animais, o circuito pulsional passa pelo corpo, mas encontra seu representante na linguagem, o que produz efeitos. Entre eles, uma discordância entre o organismo e o corpo, de onde Lacan deduz sua tese de que não se é o corpo, mas se o tem.

Sendo habitado pela língua, o corpo é marcado pelas ficções de verdade. Essas ficções podem tornar-se mais ou menos fixas a partir de sua relação com o gozo. De acordo com Miller, o corpo “é a vergonha da criação porque são corpos doentes da verdade”. “Eles são doentes, porque a verdade os embaraça” (MILLER, 2004, p. 45). É assim que o corpo sai de um saber naturalista, instintual, para uma verdade que o parasita e o desnaturaliza, chegando ao ponto, como no caso, de a verdade “preto demais” modificar o que seria um bom funcionamento do corpo: erra as jogadas de xadrez, não é capaz de se inserir no laço social etc.

Podemos investigar, no caso apresentado, como a ficção “preto demais” se articula à série prazer-desprazer. Ou seja, podemos abordar o caso advertidos de que a verdade que o sujeito dispõe traz consigo, atrelado a ela, o gozo, como nos dá prova o tom jocoso que utiliza ao justificar seus erros no xadrez por estar jogando com as peças pretas: a verdade é irmã do gozo, como afirma Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Uma outra hipótese, não discordante da anterior, é que sua verdade o mantém a certa distância do Outro, e, ao contrário de nos orientarmos por um imperativo de “ressocialização”, poderíamos tentar verificar a função dessa verdade e se teria um efeito de proteção contra a invasão de um Outro que ou abusa ou negligencia, de sorte que ele sempre resta como dejeto. Nesse sentido, penso ter sido interessante a intervenção da aluna, que não tenta provocar uma desidentificação com o significante “preto demais”, tampouco tenta levá-lo a um discurso de empoderamento, mas lhe lança uma questão a respeito da possibilidade de aprender a jogar com as peças pretas, o que coloca no horizonte um outro “saber-fazer” com isso.

Passo para um segundo caso, do qual trago apenas um recorte, mas que chamou atenção em relação a essa discussão. Trata-se de uma mulher de 41 anos que foi encaminhada do CAPS para internação no Instituto Raul Soares. Ela mora com um filho adolescente e havia tentado agredi-lo, dizendo ter tido pensamentos ou vozes mandando matá-lo. Logo que é internada, tais vozes somem e dão lugar a uma espécie de pensamento intrusivo: quando vê pacientes negras, vem-lhe à mente a ideia de chamá-las de “preta”, “macaca”, e teme não conseguir controlar isso e ser agredida. Não se trata de uma paciente toxicômana, mas sua relação com as drogas vem por outras vias. Fora criada pelos pais, mas todos os cuidados da casa eram dirigidos à mãe alcoolista. A mãe nunca lhe deu carinho, vivia bebendo. Quando tinha 16 anos, a mãe sofreu um acidente grave e parou de beber de uma vez, ocasião em que descreve que houve, pela primeira vez, paz em sua casa. Logo em seguida a esse “bom acidente” da mãe, a nossa paciente engravidou, mas nunca conseguiu cuidar dos três filhos que teve: “Não aprendi a ser mãe, não sei cuidar”. Frequentemente apresentava crises de depressão, era internada e, em poucos dias, o marido a retirava para que ele pudesse cuidar dela e dos filhos. Isso se deu em uma sequência de 14 internações no hospital de sua cidade, ao longo dos anos. No entanto, há poucos meses o marido faleceu e ela não sabe o que fazer. Sente-se culpada por ele ter tido cirrose e ela ter levado cachaça para ele sempre que pedia. Em um determinado dia, conta à residente que ela era modelo, tinha dentes, cabelos loiros, era magra e cantava na noite. Muito diferente da mãe, por quem diz ter um grande amor hoje, mas que é negra. “Eu tinha vergonha da minha mãe por ela ser negra”.

A partir de algumas intervenções da residente, faz uma frouxa associação entre os pensamentos intrusivos e a vergonha que tinha da mãe. Mas logo refuta a associação dizendo do amor que sente por ela. Propomos que ela tenha um espaço para falar disso com uma psicóloga de sua cidade, com o que prontamente concorda. Nesse caso há um fenômeno do pensamento disjunto de uma agressividade, que aparece no corpo, dirigida ao Outro. Os significantes “preta” e “macaca” aparecem, aí, separados de um afeto de ódio.

Um acontecimento produz traços, é isso o que Freud chamou “trauma”. Segundo Miller,

“o acontecimento fundador do traço de afetação é um acontecimento que mantém um desequilíbrio permanente, que mantém no corpo, na psiquê, um excesso de excitação que não deixa de se reabsorver. Temos, aqui, a definição geral do acontecimento traumático, aquele que deixará traços na vida subsequente do falante” (MILLER, 2004, p. 53).

Uma questão que trago é como poderíamos pensar o acontecimento traumático em cada um dos casos. No primeiro caso, a contingência do encontro com o pai e sua sentença teria sido o desencadeador para uma ruptura com o laço social? Haveria, nessa hipótese, o significante do racismo articulado ao ódio de si. No segundo caso, não observamos uma ruptura. A paciente não fica em um absoluto desamparo mesmo com os problemas da mãe com o alcoolismo. Tem um pai cuidadoso e uma irmã mais velha que “foi uma mãe”. No entanto, o significante do racismo dirigido à mãe aparece dissociado do afeto nesse momento de crise, sob a forma de um pensamento intrusivo. Ou seja, nesse caso, teríamos o significante do racismo articulado ao ódio dirigido ao Outro. Duas modalidades, portanto, da articulação significante do racismo/ódio de si ou ódio ao Outro. Uma outra questão que poderíamos discutir, a partir da consideração do sintoma em sua vertente de verdade e em sua vertente de gozo, seria como pensar a direção do tratamento em cada um dos casos.

 


Referências
BALTHA, A. C. et al. “Internato de saúde mental no curso de medicina: o xadrez da formação”. CliniCAPS, v. 9, n. 25/26, 2015.
BENETI, A. “A toxicomania não é mais o que era”. In: MEZÊNCIO, M.; ROSA, M.; FARIA, M. W. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
LAURENT, E. “O racismo 2.0”. Lacan cotidiano n. 371 – português. AMP blog, 26 de jan. de 2014. Disponível em: <http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html> Acesso em: 05 de jun. de 2022.
LAURENT, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”. Opção Lacaniana, n. 41. dez. 2004, p.45-54.
TRAD, S. “Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais”. In: NERY, A. et al. (orgs). Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA: CETAD, 2009.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, da Seção Clínica- IPSM-MG, em 14 de junho de 2022.



O ACONTECIMENTO DE CORPO POLÍTICO E A PSICANÁLISE HOJE[1] 

MARIA WILMA S. DE FARIA
Psicanalista, membro da EBP/AMP
Coordenadora da Rede TyA Brasil
mwilma62@gmail.com

RESUMO: O corpo falante testemunha o discurso como laço social e traz em si suas marcas enquanto corpo socializado. Tendo como referência o segundo ensino de Lacan, no que toca ao falasser político, o texto indaga o que pode hoje a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Interroga os sintomas contemporâneos que têm a toxicomania como paradigma, bem como as adições generalizadas, o uso excessivo de remédios, as instituições segregativas e a violência discriminatória exercida sobre usuários e dependentes de drogas e/ou em uso prejudicial de álcool.

PALAVRAS-CHAVE: Toxicomania; Clínica; Psicanálise; Política; Falasser.

The event of body political and psychoanalysis today 

ABSTRACT: The speaking body witnesses the discourse as a social bond and bears in itself its marks as a socialized body. Taking Lacan’s second teaching as a reference regarding the political parlêtre, this essay questions what psychoanalysis can do today in face of the drug addiction that our time promotes. It interrogates contemporary symptoms that have drug addiction as a paradigm, as well as generalized additions, excessive use of medication, segregative institutions, and  discriminatory violence against drug users and addicts and/or those in harmful use of alcohol.

KEY WORDS: Drug addiction; Clinic; Psychoanalysis; Politics; Parlêtre.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 

O tema de trabalho deste semestre, proposto por Lilany Pacheco (diretora-geral do IPSM-MG) e Cristiana Pittella (diretora da Seção Clínica), nos convida para começar uma investigação de conceitos preciosos do último ensino de Lacan, à luz da transmissão de Miller, tais como falasser, sintoma como acontecimento de corpo, laço social, gozo e corpo político, articulando-os e tentando fazer uma leitura do mundo atual globalizado, com sua lógica capitalista.

Em tempos marcados pelo desvanecimento do Ideal do Eu, assistimos à queda do pai como moderador de gozo, o que, por sua vez, leva a um empuxo à primazia de modalidades de gozo que não incluem o Outro. Cabem aqui todas as manifestações sintomáticas nas quais o excesso faz presença: bulimias, toxicomanias, obesidades, anorexias, comunidades de gozo. Enfim, sintomas, no limite do dizível, que chamam à cena o corpo em suas inúmeras dimensões. No discurso da ciência, tudo pode ser nomeado, quantificado, diagnosticado: para cada mal-estar, um tratamento, um protocolo, classificações e prescrições. Na lógica biomédica, é apropriado lidar com a questão das toxicomanias como elemento de controle, apresentando-a como doença a ser tratada e curada com pílulas de felicidade. Já no discurso capitalista, temos a lógica de que tudo pode ser comprado e adquirido sob a promessa da plenitude. O toxicômano faz-se um consumidor ideal, sempre fiel ao mesmo artefato, o que desemboca em ser consumido pelo próprio objeto de gozo. No entrecruzamento desses dois discursos, podemos tomar a toxicomania como paradigma dos novos sintomas, sintoma fruto de nossa época.

Para entender um pouco a toxicomania, tomemos uma referência de Miller, que parece ser preciosa:

“A repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível. Desde então, o sujeito se encontra ligado a um ciclo de repetições cujas instâncias não se adicionam e cujas experiências não lhe ensinam nada. Hoje, chamamos isso de adição a fim de qualificar essa repetição de gozo. Chamamos assim precisamente porque isso não é uma adição, já que as experiências não se adicionam. Essa repetição de gozo se faz fora do sentido” (MILLER, 2011a, p. 109).

Esse gozo que se itera e reitera presente nas toxicomanias só tem relação com o significante Um, S1. Ele não se direciona ao S2 como saber, e é um “autogozo do corpo. E o que faz função de S2, no caso, o que faz função de Outro desse S1 é o próprio corpo” (MILLER, 2011a, p. 109). Assim, temos o corpo como Outro, e desde sempre operamos na clínica das toxicomanias com esse desafio.

Uma importante pergunta que Miller faz em “Ler um sintoma” (MILLER, 2011b) é se o gozo presente no sintoma seria primário. Ele responde que, em um certo sentido, sim. “Pode-se dizer que o gozo é o próprio corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, um corpo é o que goza, reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, o que Freud chamava de autoerotismo” (MILLER, 2011b). Mas isso é verdade para todo corpo vivo, não só para os toxicômanos. Será que poderíamos pensar que os toxicômanos ficam fixados aí no gozo autoerótico?

“Assim, pode-se dizer que gozar de si mesmo é o estatuto do corpo vivo. O que distingue o corpo do ser falante é que seu gozo sofre a incidência da fala. E precisamente um sintoma demonstra que houve um acontecimento que marcou seu gozo no sentido freudiano de Anzeichen (sinal) e que introduz um Ersatz (substituição/ estepe/ peça sobressalente), um gozo que não deveria, um gozo que perturba o gozo que deveria, isto é, o gozo de sua natureza de corpo. Portanto, nesse sentido, não, o gozo em questão no sintoma não é primário. Ele é produzido pelo significante. E é precisamente essa incidência significante que faz do gozo do sintoma um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma demonstra que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo após o qual o gozo natural entre aspas, que se pode imaginar como sendo o gozo natural do corpo vivo, encontrou-se perturbado e desviado. Esse gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá, e o faz por meio de seu sintoma como interpretável” (MILLER, 2011b, n/p.).

Assim, podemos diferenciar o conceito de sintoma freudiano como aquele passível de ser decifrado, compreendido, interpretado, e o conceito lacaniano tendo o sintoma como aquele que não fala, mas que se inscreve sobre o corpo, silencioso, pura presença de gozo, próximo assim às apresentações sintomáticas dos toxicômanos. Esses se apresentam de forma bruta, com seus corpos depauperados, alquebrados, pura presença.

É na conferência em que anunciou o X Congresso da AMP em 2014 (MILLER, 2016) que Miller aponta a substituição do “inconsciente” feita por Lacan, em seu ensino, para o termo “corpo falante ou falasser”. Tal proposição assinala como a fala impacta o corpo, em um ponto de real, unindo os dois, linguagem e corpo (S1a). Isso porque o falasser não é o seu corpo, mas tem um corpo. Essa abordagem do falasser vai nos permitir aproximar da expressão usada por Lacan em “Intuições Milanesas”: “o inconsciente é a política”.

“A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan. ‘O inconsciente é a política’ é um desenvolvimento de ‘O inconsciente é o discurso do Outro’. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. ‘O inconsciente é a política’ radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir. A análise freudiana do Witz justifica o fato de Lacan articular o sujeito do inconsciente a um Outro, e qualificar o inconsciente como transindividual. É possível passar de ‘o inconsciente é transindividual’ para ‘o inconsciente é político’, desde que fique claro que esse Outro é dividido, que ele não existe como Um” (MILLER, 2011c, p. 6-7).

Assim, a formulação “a política é o inconsciente” repousa na referência freudiana de uma política articulada ao pai, à identificação, à censura. Já o dito de Lacan “o inconsciente é a política” parte não mais da política articulada ao pai, e sim do inconsciente separado da identificação, estruturado como linguagem, que nos leva a considerar o acontecimento de corpo no inconsciente político (LAURENT, 2016). Como poderíamos entender isso, então? O acontecimento de corpo afeta não só o corpo entendido como o organismo individual, mas também o corpo do sujeito da linguagem, logo, transindividual.

“O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época” (LAURENT, 2016, p. 213).

Esse ponto muito nos interessa. Tomemos assim como a subjetividade de nossa época vê os toxicômanos e os alcoolistas e seus corpos: bandidos, fracos, insubordinados, sem força de vontade. Cabe aqui toda uma concepção moral com seus adjetivos e déficits que, desconhecendo o campo pulsional, praticam toda sorte de violência discriminatória sobre usuários e dependentes de drogas e álcool. Assim, esses falasseres passam a ser vistos cotidianamente como não sujeitos, desprovidos de dignidade ou de direitos. De tal sorte que, assujeitados, são alvo de toda uma política higienista (presente também no discurso do atual governo) que preconiza a disciplina dos corpos com uma pretensa roupagem de “salvação” ou tentativa de erradicar as substâncias psicoativas, fazendo crer ser possível um mundo sem drogas e evitar um mal pior, que seria o consumo de substâncias.

Essa política visa a abstinência total via segregação pela internação e impera como tentativa de controlar o gozo e domar os corpos. Na clínica das toxicomanias, interessam-nos as relações mantidas pelo sujeito e seu corpo, ambos, objeto de discursos invasivos de um “programa político” que almeja colocar à margem a malfadada infelicidade. Na toxicomania observamos um certo apagamento do corpo via intoxicação, ou mesmo uma tentativa de anestesiar o corpo. Em sujeitos psicóticos, o recurso às drogas poderia ser uma forma de fazer um corpo ali onde o sujeito não tem um corpo, uma maneira de moldar, de esculpir o corpo que escapa a todo momento. De qualquer forma, para nós psicanalistas, a função que a droga tem é sempre construída, sujeito a sujeito, em sua singularidade.

Interessa-nos também pensar o toxicômano na cidade e tudo o que vem reforçar a identificação imaginária: “Você é toxicômano, você é drogado!”. Essa nomeação vinda do campo do Outro muitas vezes reafirma para o sujeito o que ele é, reduzindo o ser falante à substância que usa. Essa pode ser também uma forma de o sujeito se apresentar, totalmente submetido. Deparamos cada vez mais com microculturas movidas por identificações grupais que também não singularizam o sujeito, mas, antes, os determinam em subgrupos movidos pelo consumo: cachaceiros de um lado, noiados de outro, emos tristes que fazem apologia aos antidepressivos, medicalizados agitados que querem aumentar a performance no trabalho, grupos de ajuda mútua, dependentes de ritalina. Essa pretensa identidade grupal traz uma miragem de todos iguais, de pertencimento, em uma colagem imaginária que provoca uma pseudossegurança, expressão de um desvario de gozo, mas que acaba evidenciando toda a fragilidade dessas identificações subjetivas, uma vez que nada aplaca a solidão de cada um.

Nesse ponto seria interessante recorrer e diferenciar o que passou a ser chamado de “toxicomania generalizada”, ou “adição”, do conceito “toxicomanias”, propriamente dito, e dar um passo a mais, ao que o colega Ernesto Sinatra, de Buenos Aires, propõe chamar de “adixão”. A toxicomania generalizada, ou adições contemporâneas, se refere à lógica do mercado que oferece toda sorte de produtos cujo consumo pode tornar as pessoas “dependentes” em uma relação excessiva, passando a ter, assim, o estatuto de drogas. Tais objetos de consumo não são uma substância: internet, compras, celular, pornografia, jogos. Ou seja, há uma lista sem fim de produtos fazendo série e que obedecem ao imperativo “consuma!” bem na lógica de “todos gozam dos mesmos objetos”. Lembremos aqui o uso atual da palavra “tóxica” para se referir às pessoas que estão sempre se queixando, tornando o ambiente e as relações da vida impossíveis.

Já o termo toxicomanias, no plural, marca bem a questão de que a singular relação de um sujeito com uma substância a ser introduzida no corpo se dá de forma única para cada um. Considera assim que podemos ter pessoas usando a mesma substância, com frequência e quantidade iguais, mas em que a relação maníaca, bem como sua função na economia libidinal, será diferente. E isso tem sua pertinência e importância para todos nós do Campo Freudiano, que nos dedicamos a essa investigação.

Com o pequeno detalhe de mudança de uma letra, x, Sinatra batiza como adixão o nome sintomático do atual estado da civilização:

“uma versão pós-moderna da toxicomania generalizada. […] o x de adixão mostra a fixação do gozo singular e inalterado que não pode ser apagado e traz a marca do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado e que descompleta a pretensa generalização do consumo que vale para todos” (SINATRA, 2020, p. 97-98).

Ressalto ainda a multiplicação de instituições totais aos moldes de comunidades ditas terapêuticas em nosso país, o que aponta um retrocesso nos avanços até então conquistados. Assinalo aqui a importância e a responsabilidade de serviços de saúde do SUS, ou não, presentes na cidade fazerem valer a singularidade e trabalhar os preconceitos presentes dentro de cada um em relação a esses falasseres.

O que pode hoje a psicanálise? Penso que somente com a presença do discurso analítico podemos vir a abalar e furar as bolhas de certeza do discurso do Outro social que tenta promover o bem geral, causando uma fratura da verdade, instaurando assim um campo aberto à interrogação e considerando que a política está no campo do discurso do Outro, no campo da divisão.

Lidar com a tirania do supereu com a qual o sujeito toxicômano está submetido implica favorecer a desidentificação dos S1 provenientes do campo do Outro e apostar na construção do nome próprio.

Miller nos ensina que tratar o sintoma é visar a fixidez do gozo, a opacidade do real, de modo que, a partir do último Lacan, em uma análise, trata de reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo; ao choque puro da linguagem sobre ele (MILLER, 2011b).

O que pode o psicanalista hoje frente a tudo isso? Despindo de qualquer concepção ideal de cura, a aposta do analista é sempre que o sujeito toxicômano possa interrogar-se sobre o estreito laço que o liga ao objeto e que possa fazer deslocamentos mínimos que o reconectem a seu desejo. O discurso analítico pode ser uma importante ferramenta para questionarmos os corpos, os falasseres, seus gozos e também o discurso de nossa época, de tal sorte que este possa a vir a ser “partilhado pelo maior número possível de sujeitos do corpo político” (LAURENT, 2016, p. 219). 

 


REFERÊNCIAS
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J-A. Intuições milanesas. Opção lacaniana online. Nova série. ano 2, n. 5, jul. 2011c. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf> Acesso em:  01 mar. 2022.
MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante.  Apresentação do tema do X Congresso da AMP. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9>Acesso em: 01 mar. 2022.
MILLER, J-A. Seminário de orientação lacaniana. O ser e o um. Orientação lacaniana III, 13, VIII lição do curso (23 de março de 2011.) Inédito. 2011a.
MILLER. J-A. Ler um sintoma. AMPBlog. 01 ago. 2011b. Disponível em: <http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html>. Acesso em: 20 fev. 2022.
SINATRA, E. Adixiones. Olivos: Grama Ediciones, 2020.
[1]Texto apresentado na abertura do Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo – Seção Clínica do IPSM-MG, em 08 de março de 2022.



O INCONSCIENTE E O CORPO POLÍTICO: A PSICANÁLISE HOJE[1] 

RICARDO SELDES
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ricardoseldes@gmail.com

Resumo: O futuro da psicanálise é algo que está sempre em questão, pois está ligado ao lugar de onde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado, algo que exige a abertura para o desconhecido e não ao que já está categorizado. Nessa perspectiva, se indicações ao analista existissem, elas estariam ligadas a uma transmissão da psicanálise, que se faz de analisante a analista e pela transferência de trabalho, apresentando o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Palavras chaves: futuro da psicanálise; transmissão.

Interpretation: The Unconscious and the body politic: psychoanalysis today.

Abstract: The future of psychoanalysis is something that is always in question because it relates to how each person managed to do with their analyzed symptom, something that requires an opening to the unknown and not to what is already categorized. From this perspective, if analyst referrals existed, it would be linked to a transmission of psychoanalysis, which happens from analysand to analyst and through transference of work, and having Lacan’s desire, which is always alive and new, against the freezing standards of an experience that can’t help but be as alive as this desire.

Keywords: future of psychoanalysis; transmission.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

Agradeço este convite por vários motivos: primeiro, pela amizade que tenho com vocês há muitos anos, pois não é novidade que eu gosto da Escola Brasileira de Psicanálise, e porque acredito que, nestes tempos em que existem tantos ataques à liberdade da palavra e o conseqüente ataque à psicanálise, os psicanalistas e, em particular, os de orientação lacaniana, têm que conseguir ficar mais unidos do que nunca.

Claro que, como o sangue não-todista corre em nossas veias, a pergunta que nos fazemos é: como podemos ser solidários com o futuro da psicanálise? Isso é algo que está sempre em questão.

Essa mesma proposta exige alguns princípios e alguns acordos que, como a verdade, nunca são definitivos, nem devem nos levar à burocratização da prática clínica ou da prática institucional, que são duas experiências subjetivas. Claro que o coletivo, o individual, as forças que fazemos juntos estão sempre em questão, mas pelo discurso analítico, desde o lugar aonde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado ou, podemos dizer, com seu “sinthoma”, na medida em que é sempre um arranjo.

Há alguns anos, em preparação para um dos Congressos da Associação Mundial de Psicanálise que aconteceu no Brasil, na Bahia[2], tive o prazer de fazer parte do Comitê de Ação junto com meus amigos Esthela Solano, Jésus Santiago e Marco Focchi. Na ocasião, o tema que escolhi foi o das indicações e contraindicações à psicanálise a partir de uma intervenção de Miller na International Psychoanalytical Association (IPA), na qual ele falou sobre as não-indicações à psicanálise, o que é uma forma de conceber a prática diferente daquela de muitos dos colegas da IPA.

O essencial poderia ser resumido dizendo que, com a psicanálise aplicada, não temos contraindicações, e podemos acrescentar: se, no passado, se falava das indicações para uma análise, era para localizar se uma determinada estrutura psíquica era adequada ou não. No tempo do falasser, quase todo mundo pode ser analisado.

Qual foi a principal contraindicação de Freud? Ele afirmou:

“Nos anos anteriores à guerra, quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da simpatia ou antipatia de minha própria cidade, eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sus juris, ou seja, que não fossem independentes nas questões essenciais da vida.” (FREUD, 1917, p.610)

Sui juris é uma frase latina que significa, literalmente ‘em seu próprio direito’. Em Direito Civil, indica a capacidade jurídica para administrar seus próprios negócios. Mas, é claro, continua Freud: “Não é algo que todo psicanalista pode se permitir” (FREUD, 1917, p.610).

Freud assim se manifesta: “Os senhores perceberão, naturalmente, como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cultural de uma família“ (FREUD, 1917, p.610). Freud mesmo teve que suportar abusos da família de uma paciente que foi retirada do tratamento por ter  revelado em análise segredos extraconjugais da mãe.

No início de um tratamento ainda não há um caso, mas há condições para que isso ocorra. Desde a primeira consulta, localizamos dados clínicos que nos permitam captar a decisão do sujeito. Estamos no limite do sujeito suposto saber, estamos nas provas que o analista, sutilmente, pede para que se permita que o sujeito suposto saber se instale.

Nos tempos atuais, tentamos trabalhar a inconsistência, ou seja, algo diferente da psicanálise construída na lógica das classes, a que permite dizer isso é ou isso não é. Assim como a primeira psicanálise foi erguida na lógica do para todo x, neste momento atual ela visa não a classe, senão a série, pois com ela temos a invenção, os arranjos e a abertura mais para o desconhecido do que para o que está categorizado.

Os trabalhos do IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise que investigou a prática sem standards, mas não sem princípios[2], estavam em andamento quando me detive sobre um Simpósio da IPA, do ano de 1967,[3] para pesquisar sobre como as regras técnicas, das quais Lacan nos dispensa, tentavam localizar o real que encontravam em sua prática. Nesse Simpósio descobri, em princípio, três períodos diferentes sobre as regras técnicas que interrogavam aqueles pontos limites, nos quais a experiência do real estava dentro ou fora da experiência analítica.

O esforço dos analistas das décadas de 1920 e 1930 se concentrou em conceituar o obstáculo que limita a intervenção analítica — não para retroceder, mas para tentar inventar uma maneira de ultrapassar o obstáculo. No segundo período, proliferaram as listas de contraindicações baseadas em traços de inadequação dos pacientes ao dispositivo. Também coincide com o que chamaram de um entusiasmo excessivo dos colegas para cuidar de pacientes decepcionados com a psiquiatria.

O terceiro e atual momento da IPA é aquele em que a psicanálise se desprende das regras — não em busca de desregulamentar os padrões e capturar a singularidade do gozo de cada pessoa, mas, ao contrário, para homogeneizar todos os gozos.

Para Lacan, não se trata de escolher os pacientes, mas de que eles possam dar forma de pergunta à sua demanda, que a problematizem. Estamos obrigados a saber o que se pede; mais precisamente, o que define a demanda é que nunca se sabe o que se deseja. Lacan pergunta: “O sujeito suposto saber de onde é suportada, definida a transferência é suposto saber o quê? Como opera? (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa). E acrescenta:

“Seria totalmente excessivo dizer que o analista sabe de que modo operar. O que seria necessário é que ele saiba operar convenientemente, ou seja, que possa se dar conta  do alcance das palavras para seu analisando, o que incontestavelmente ignora.” (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa)

Daí a indicação de não compreender. No lugar de técnicas e regras, que já vimos a que conduzem, colocamo-nos sob a noção de enfrentamento do real. Neste ponto, sabemos que não apostamos em interpretações padrão, mas que nossas interpretações são feitas sob medida.

O risco de assimilar a interpretação como formação do inconsciente é acreditar que ela é o que responde à associação livre, com a consequência de tomar a interpretação como associação do analista. Confundir interpretação com associação é pensar que o significante da interpretação preencheria um buraco nas associações do sujeito, supondo que o preenchimento desse buraco permitiria ao sujeito dar um passo. Partimos da ideia de que é a interpretação que vai ao encontro da transferência — não uma associação que proporciona ao sujeito a ligação com o S2, mas que opera no vetor de uma dissociação, de um corte na cadeia significante entre S1 e S2. Isso nos confronta com a dimensão do S1 sozinho.

Quando estamos nesse nível, podemos considerar que existem certas palavras que o sujeito distingue, que  lhe tocam; quaisquer palavras, inclusive palavras banais que  foram ditas a um terceiro e escutadas por acaso. Mas, se o sujeito as toma para si, elas adquirem um status de palavras primeiras, separadas, não binárias, como está na moda, pois a cadeia significante é binária. Visamos então o não binário para capturar, produzir, isolar o S1. O corte da interpretação produz uma separação significativa do S2 como se pode ver no andar inferior do Discurso do Analista.

Como evitar que a intervenção do analista, que denominamos, genericamente, de interpretação, não acrescente mais um significante à cadeia, mas a produção daquele S1? Vamos partir do mais básico, da idéia de que a psicanálise é uma oferta explícita de palavras: fale, estou ouvindo. O que está implícito é o não entendimento, sem limitar a curiosidade necessária ao que a palavra dita produz.

Entretanto, no momento em que o enquadramento analítico fica explícito ao estabelecer as regras do jogo, adiciona-se uma explicação: você associa, fala tudo, a mais plena bobagem, e aí eu vou interpretá-la. Alguns chamavam de devolver, termo de que nunca gostei, como uma espécie de reembolso; não há virtude em supor um dar e receber quando, muitas vezes, o que se impõe é o silêncio do analista.

Lacan vai propor no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), naquele momento de ruptura definitiva com a IPA, a função do analista como objeto, destacando, especialmente, a tensão que existe entre o inconsciente e a interpretação. Já não se trata do inconsciente como reservatório dos significantes do sujeito, pois, quando se trata do discurso do analista, é o inconsciente que interpreta. O que poderíamos acrescentar que não seja para redobrar essa interpretação?

Como dissemos antes, Lacan trará à tona a questão do fechamento do inconsciente, e há ai um paradoxo, pois ele nos dirá que esperamos esse efeito da transferência para interpretar, ao mesmo tempo em que a transferencia fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação. São os enganos do amor…

Isso não impedirá Lacan de avançar dizendo que a transferência é o amor que se dirige ao saber, o que implica que a interpretação não obtém seu alcance senão nos momentos em que o saber inconsciente é interrompido. E o que isso quer dizer?

Tentamos localizar uma erótica da presença do analista quando Lacan definiu a transferência como a atualização (no sentido do ato) da realidade do inconsciente como sexual.

Para entender isso, temos que fazer um pequeno loop porque, se o sujeito entra em jogo a partir do suporte fundamental que é o Sujeito Suposto Saber, isso não acontece simplesmente, sem que haja um porquê. Há uma causa anterior e Lacan aponta, de modo claríssimo, que, se há uma suposição de saber, isso se dá porque há um sujeito do desejo. Não é pouca coisa dizer isso. Se existe um suposto  saber, é porque o analista é o sujeito do desejo.

Disso decorre a dificuldade quando o Sujeito Suposto Saber é instalado em outra parte, em outra pessoa. Essa é uma estranha formulação, porque, nesse ponto, Lacan já não coloca mais  a análise como intersubjetiva. A torção que ele faz é percebida. Quando há amor de transferência isso remete ao narcisismo ou, como disse Freud, ama-se ser amado.

Mas que tipo de efeitos pretendemos? Os efeitos lacanianos são o que definem a experiência analítica como uma pesquisa clínica para encontrar os pontos onde se alcança a certeza, no encadeamento entre a cadeia significante e o gozo pulsional. Se existe um fenômeno lacaniano, isso implica que ele é escutado e, se existe, é porque ele é apresentado com um sentido. No entanto, o inconsciente tem mais a ver com o Witz. Esse é um princípio que nos leva a evitar a compreensão emocional dos pacientes.

Se indicações ao analista existissem, elas  indicariam aquele ponto em que a transmissão da psicanálise, que se faz de sujeito a sujeito e pela transferência de trabalho, apresenta o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.

Ao contrário da tarefa complicada e impossível de tentar homogeneizar os gozos, seja por decreto, seja por invasão, interrogamo-nos sobre algo que nos retira da lógica de um certo totalitarismo psicanalítico. Sabemos que o totalitarismo é uma esperança, a de reabsorver as decisões singulares, a multiplicidade da verdade. No totalitarismo só existe uma verdade, que é a enorme tarefa de estabelecer o reino do Um. No campo da política temos claramente o que Freud indicou em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Na política cidadã, o totalitarismo tem boas intenções; a aspiração a um mundo de harmonia, todo mundo reconciliado, como algumas religiões o buscaram (na superfície, é claro). Mas ainda é uma ilusão que não se sustenta.

Não preciso explicar muito quando digo que, se falamos do sujeito do inconsciente, pensamos em desejo, e, quando colocamos a questão do falasser, estamos do lado do gozo e da pulsão, em que o sujeito é sempre feliz. Ele é feliz porque a pulsão é sempre satisfeita, direta ou indiretamente; do ponto de vista econômico, ela é satisfeita dolorosamente ou agradavelmente, do lado do prazer ou do desprazer. Esta tese corresponde a apontar que existem arranjos ou modos de gozo, como sugere Lacan, em Televisão (LACAN, 1974/2003), nos quais  o sujeito é sempre feliz na satisfação da repetição.

Assim, afirmamos que la urgencia dicha, como dizemos em espanhol, dita no sentido de falada — nos remete àquela estranha felicidade do silêncio das pulsões que podem atingir o mais mortífero.

Miller disse que afirmar que o sujeito é feliz é uma vociferação. Uma vociferação é uma exclamação que vem de uma voz muito alta. Não é uma afirmação, nem uma proposição. A  proposição sempre vem com sua suposta afirmação: é um fato sem valor de verdade ou falsidade. A vociferação, por outro lado, supera a divisão do enunciado e da enunciação, pois não suspende, nem se distancia de quem a pronuncia, mesmo quando não há outro que não se distancie de onde se pronuncia. Ela é, fundamentalmente, seu ponto de emissão.

Somos consultados, em várias ocasiões, devido à depressão:

“O que a tristeza tem de central é que ela é um saber; existe lucidez na tristeza, mas é um saber triste, por ser cortado da vida, separado do real do gozo. É um saber que se articula só, e que perdeu o vazio que o articularia ao gozo em si.” (LAURENT, 2000, p.88)

O analista é aquele que se orienta pela ética do bem dizer, que prescreve encontrar um acordo, uma harmonia, sim, mas se trata de uma certa harmonia entre o significante e o gozo. O problema da depressão é uma questão de saber, é fundamentalmente um saber triste, que não pode ser dito. Recebemos pacientes deprimidos, muitas vezes como uma emergência, moderados ou graves, que não conseguem colocar em discurso algo do não dito. Paradoxalmente, a chamamos de “a dita urgência”, aquela que se desfruta sem saber. A escuta da demanda de cada um marca uma virada, pois, para o discurso analítico, os fatos do desejo e a resposta do gozo são singulares.

Se a temporalidade da análise é a angústia, e isso vale também para a urgência, para aquele momento de perplexidade em que a palavra fica presa na garganta, como diria Chico Buarque. Temos a função operativa do desejo do analista que visa despertar um contorno de espera. Não de esperança, isso sempre complica. Podemos caracterizá-la como uma proposta que permite uma mistura de aborrecimento, nos momentos de agitação – o tédio está sempre à espera de Outra Coisa –  com a oferta de encontrar uma surpresa mais eficiente que a disjunção ou o desapego do Outro.

Freud descobriu  que o corpo do falasser fala. Mas também goza, especificou Lacan. É o que a psicanálise demonstra: não há gozo sem corpo e que uma análise não visa apenas decifrar a verdade, mas também o gozo produzido no sinthoma.

Na aula V do seminário Mais Ainda, Lacan dirá que “todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação – sublinhem as três últimas palavras – à qual elas podem faltar.” (LACAN, 1973, p.70)

Já sabíamos que não basta pensar na satisfação da necessidade para entender o que é satisfação, pois existe outra. Qual é o outro termo ao qual essa outra satisfação se somaria? Essa outra satisfação dará origem ao inconsciente, que se satisfaz no nível da linguagem, diz Lacan nessa aula do seminário Mais, ainda, na qual já está preparando seu conceito de falasser.

O inconsciente é o lugar da satisfação, e não apenas do que é interpretado ou decifrado.Nesse seminário, o salto é perceber que o significante não tem apenas efeitos de significação, mas também de gozo, ou seja, o significante não apenas mortifica o organismo do ser vivo, mas também produz gozo. E é com isso que temos que lidar na análise, que é, fundamentalmente, uma experiência de fala.

Isso é também, particularmente, verdadeiro para a interpretação que é o modo de intervenção do analista. A interpretação não é solicitada por seus efeitos de sentido, mas de gozo, por seus efeitos corporificados. Trata-se aí de colocar, junto à dimensão da verdade, a da materialidade do significante, ou seja, o som, o que nos leva à noção de lalíngua, na qual é o som, o fonema, que tem uma importância especial. Isso dá à interpretação uma cor especial, essa sua emigração da comunicação do saber para um grito, uma jaculatória, um uso do significante sem o uso do sentido, pois, o que importa é a sua consistência, “o que poderia fazer soar o sino do gozo de maneira conveniente para satisfazer-se com ele” (MILLER, 2011, p.268, tradução nossa).

E aqui estamos no ponto em questão: devemos separar o gozo da satisfação. Não haveria experiência analítica se o gozo fosse satisfatório. Somente a jaculação pode retificar, não o sujeito, mas o gozo para que possa ser concebido como satisfatório. Em outras palavras, temos um gozo que seria satisfatório e um outro que não.

Faço um curto-circuito para pensar no discurso da ciência que tende a ser universalista, pois não pode responder à questão que nos é colocada em consequência do que chamamos de a modalidade do gozo ou, pode-se dizer, o imperativo de gozo do qual cada um é escravo. E isso é em si uma resposta.

Pretende-se que o discurso científico ofereça respostas para o gozo, mesmo aquele  que vemos muito grosseiramente em nosso campo, que atua como um discurso científico, com suas extrações absurdas e estatísticas sugestivas.

 

Revisão: Beatriz Espírito Santo

REFERÊNCIAS: 
FREUD, S. (1917). Conferência 28, A terapia analítica. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 13, Conferências introdutórias à psicanálise (1916-17), São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FREUD. S. (1921) Psicologia das massas e análise do eu. In: Sigmund Freud, Obras Completas, v. 15. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos – 1920-23, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1974). Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1973). Aristóteles e Freud: a Outra satisfação, In: O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1977). Una práctica de charlataneria. In: O Seminário, livro 25: El momento de concluir, inédito.
LAURENT, E. (2000). As paixões do ser. Seminário da VII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise. Salvador, Bahia: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
MILLER, J.A. (2011). El goce no miente, In: Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2020.

[1] Conferência pronunciada na Aula Inaugural do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 07 de março de 2022.
[2] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[3] IV Congresso, em Comandatuba, 2004: “A prática lacaniana da psicanálise: sem standard mas não sem princípios”
[4] Trata-se do 25º. Congresso da International Psichoanalytical Association (IPA), ocorrido em Copenhagen, sobre o tema “Tratamento Psicanalítico da Neurose Obsessiva”



O DISCURSO COMO SAÍDA DO CAPITALISMO[1] 

 

PHILIPPE LA SAGNA
Psicanalista,  A.M.E. da ECF/AMP
plasagna@free.fr

Resumo: Lacan aponta uma afinidade entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, no qual o desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Nessa aliança, a verdade passa a ficar envolta em brumas e o saber vira um objeto de mercado. O discurso capitalista se apresenta sob a égide do consuma-se e deixe-se consumir, sempre com um mais-de-gozo que se impõe ao sujeito contemporâneo. O discurso analítico tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e, ao fazer do objeto a causa de desejo, arejar os efeitos do mais-de-gozar.

Palavras-chave: mais-de-gozar; mais-valia; mercado; discurso.

Discourse as a way out of capitalism

Abstract: Lacan points out that there is an approximation between the capitalist discourse and the discourse of science, where the development of the first follows the second. In this alliance, truth becomes surrounded by mist and knowledge becomes a market object. The capitalist discourse is presented under the mandate of consume and get consumed, always with a surplus jouissance that is imposed to the contemporary subject. The analytical discourse presents the possibility to unveil the machinery of the surplus jouissance, and freshen its effects by making the object the cause of desire.

Keywords: surplus jouissance; surplus value; market; discourse.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

 

“A crise consiste justamente no fato de que o antigo morre
e que o novo não pode nascer: durante esse intervalo
os mais variados fenômenos mórbidos são observados.”
Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere

Do capitalismo de produção ao discurso capitalista 

Muito cedo, Lacan foi um leitor de O capital, de Karl Marx. Mas ele soube tornar essa leitura útil ao longo de toda a elaboração de seu pensamento. Em seu Seminário 18, Lacan explica como ele utilizou o “godê da mais-valia” (LACAN, 1971/2003, p. 46) para despejar nele a relação de objeto de Freud. Essa homenagem a Marx é ambígua: se ela não apaga a mais-valia, ela a torna um pouco antiquada ao apresentar a categoria do mais-de-gozar. Hoje, a mais-valia, no sentido de Marx, não é mais o que era. A direita liberal a considera uma noção obsoleta e pouco científica. Curiosamente, uma parte crescente da extrema-esquerda questiona a tese clássica segundo a qual a apropriação da mais-valia representa o alfa e o ômega da força da exploração do homem pelo homem. Se considerarmos que essa exploração é também a das mulheres ou dos colonizados, o economismo subjacente à teoria da mais-valia marxista vacila. A construção teórica da mais-valia deve distinguir o trabalho e a força de trabalho e pensar esta última através da noção de um trabalho abstrato. O valor do trabalho, agora abstrato, poderia ser mercantilizado sem problema algum. Mas, se Lacan, em 1968, retomou seu debate com Marx, foi também no contexto do debate entre Sartre e Lévi-Strauss sobre a ação da história e da cultura. Em 20 de novembro de 1968, durante uma sessão de seminário, Lacan postula que a ideia de Marx de trabalho abstrato, necessária à teoria de mais-valia, passa pela “absolutização” do valor trabalho, o que não pode ser pensado sem um “desenvolvimento de certos efeitos de linguagem”, ao qual ele acrescenta: “e foi por isso que introduzimos o mais-de-gozar” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 37). Trata-se, portanto, de pensar o capitalismo como um discurso — para aquele que dirá “eu” para expressar sua frustração de “sujeito”, assujeitado, do discurso capitalista.

 

Mercado do trabalho/mercado do saber

Esse discurso capitalista supõe uma afinidade com o discurso da ciência. O desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Pouco antes, em seu texto “A ciência e a verdade”, Lacan havia afirmado que a ciência se especifica por nunca querer conhecer a verdade como uma causa. Do lado da verdade, o proletariado encarna a verdade do sistema capitalista e é para os marxistas o instrumento de sua subversão e da saída do discurso capitalista. Ora, a modernidade permitiu verificar a dificuldade que constitui o fato de que essa ação louvável supõe uma consciência de classe que, como mostra a história, muitas vezes não existe. O proletariado moderno não hesita em adotar os ares do narcisismo egoísta da sociedade dos indivíduos, ele sabe como oprimir sua “burguesia” e rejeitar, ou mesmo explorar, o colonizado; o que coloca a função despercebida da cultura na luta de classes, identificada por Gramsci.

Lacan observa, portanto, a função despercebida por uma parte na questão social do saber. A novidade, para Lacan, no final dos anos sessenta, é que o saber tem um preço, há um “mercado do saber”. Para Lacan, esse preço vem pagar uma perda: “a renúncia ao gozo” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39), aquela que justamente supõe o trabalho. Na época, Lacan vai chocar o auditório ao colocar que o saber não precisa necessariamente do trabalho para exercer seu papel no gozo! “Não é pelo fato de o trabalho implicar na renúncia ao gozo que toda renúncia ao gozo só se faz pelo trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39).

O que é novo, observa então Lacan, é que o saber se tornou uma mercadoria, como testemunha na época a crise da universidade. Podemos dizer que esse fenômeno, esse “mercado do saber”, assumiu uma dimensão enorme hoje, na era dos big data! Para Lacan, é o efeito da ciência ao reduzir todos os saberes a um único mercado. Essa operação, no entanto, deixa resto; há um saber que não é pago e, portanto, obtido para nada. E aí está a fonte do mais-de-gozar no processo de produção do saber. O mercado do saber, de um saber que serve ao gozo, produz o mais-de-gozar. Ele revela que, “A partir do saber, percebe-se, enfim, que o gozo se ordena e pode se estabelecer como rebuscado e perverso” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40).

 

Coletivização da verdade

O efeito do discurso capitalista no final do século XX é, portanto, fazer deslizar o tratamento do gozo do mercado de trabalho para o gozo do mercado do saber. O que se perde nessa passagem, por causa da ciência, é a singularidade da verdade. Ela não fala mais “eu”. Lacan nos diz que ela se tornou “social média, abstrata” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40). Em outros termos, ela fica suspensa no conformismo social da “multidão solitária”, tão bem retratada por David Riesman. O reino do mais-de-gozar como efeito do mercado do saber anda de mãos dadas com essa “coletivização” da verdade. Isso é o que fará Lacan dizer, a respeito da “comoção de maio”, que aí está de fato a “greve da verdade” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). Há aqui um equívoco sobre a verdade na greve: é uma questão de defendê-la ou de imobilizá-la?

O que é certo é que perdemos o “eu” e que o grito do proletariado se perde como verdade que fala “eu”: 1968 será um “nós” no discurso! E depois teremos um “todos juntos!”. A geração Facebook vai levar essa coletivização da verdade a um estágio superior, sob a forma da falsa verdade que não mente mais, por não ter chance de dizer a verdade! A internet é o lugar da pós-verdade e onde o “eu” que fala se apaga diante do sujeito que sou para os outros. Como mostrou Alain Supiot (2015) em seu livro La gouvernance par les nombres (A governança pelos números, em tradução livre)isso vai bem com um retorno da fidelidade nas relações sociais em detrimento da cidadania política real. O Facebook é o momento em que o “eu” se torna um “ele”, aquele que sou para os outros, aos olhos dos outros. Lacan se diverte e sublinha que a greve “é justamente uma espécie de relação que une o coletivo ao trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). O sucesso da greve supre a crise do trabalho! A verdade coletiva é também a estupidez das verdades que o Maio de 68 escreveu nos muros. Joseph Heath e Andrew Potter mostraram em seu livro Révolte consommée (Revolta consumida, em tradução livre) que a contracultura produziu os estereótipos do modo de gozar mercadológico contemporâneo: “Para que alguém suba na hierarquia do status ou do estiloso, ou do estilo, chame-o como quiserem, é preciso que algum outro seja rebaixado um degrau” (HEATH; POTTER, 2005, p. 408, tradução nossa). Os novos meios de comunicação tornaram exponencial a estupidez da verdade. O êxtase contemporâneo não chegou bruscamente. Em seu último livro, Il faut dire que les temps ont changé (É preciso dizer que os tempos mudaram, em tradução livre), Daniel Cohen (2018) assinala que, desde os anos cinquenta do último século, Jean Fourastié anunciava que iríamos passar da sociedade de produção, que sucedera o mundo agrícola, para se dedicar à matéria — e não à terra —, a uma sociedade de formação onde reinaria o mercado do saber!

Essa reviravolta foi também a da “sociedade do culto de si mesmo” e dos indivíduos isolados em uma formação contínua do ego. Vemos, portanto, que o capitalismo, antes de se tornar mais do que um mero discurso do capitalismo, já era, de alguma forma, uma “saída” do capitalismo de produção material produzida pelo capitalismo. A crise sanitária atual nos mostra que essa mutação não apagou a produção: ela a exportou para países supostamente menos avançados, como a China.

Para o Lacan desta época nos livramos da verdade, esta que insistia na palavra do “eu”. Nesse mundo dos ditos e dos não ditos, o que vai ser raridade é o dizer.

 

Necessidade de um novo discurso

Em um artigo escrito para o jornal Le Monde e nunca publicado[2], a respeito da reforma universitária, Lacan acentua a clivagem entre saber e trabalho. Ele postula ainda que o saber não precisa de nenhum trabalho! Ele distingue também o mais-de-gozar da mais-valia marxista para dizer que ele é a causa, e não o efeito do mercado. No mundo do consumo, a pressão do mais-de-gozar é a condição da existência do mercado, é a lei do consumismo. Se o mais-de-gozar fica confinado, o mercado desaparece…

Acontece que, para Lacan, nesse mundo do saber disponível e do “eu” difícil, o sujeito humano deve trabalhar para se identificar. O self é um permanente canteiro de obras que supõe fazer com que o saber contribua para construir uma identidade para o sujeito com o status social que lhe convém. Quando o discurso do mestre reinava, ele distribuía os lugares e, portanto, as identidades, mesmo a do proletariado! Hoje, é o discurso capitalista e o mercado do saber que perderam a necessidade da castração. Resta, portanto, tentar encontrar a dimensão da castração. O mais-de-gozar capitalista ignora o limite da castração, e é nisso que ele nos apreende e torna impossível o amor, já que o amor supõe que o gozo consente com uma perda que é constitutiva do desejo.

Eva Illouz mostrou que, quando o amor se torna um mercado, a tendência ao afastamento se torna muito mais forte do que o compromisso: “O gozo se tornou o verdadeiro modo de desejo de uma sociedade de consumo onde os objetos, os afetos e a satisfação sexual deslocam o centro moral do eu. Mas, no gozo, é impossível encontrar ou constituir corretamente objetos de interação, de amor e de solidariedade” (ILLOUZ, 2020, p. 319, tradução nossa).

O mais-de-gozar é, no entanto, apenas um “mais” em relação a uma perda de gozo, já que representa de algum modo a frágil contrapartida da perda de gozo que supõe o saber que se torna somente “meio de gozo”. Esse saber e o mais-de-gozar que o acompanha apagam, então, da paisagem, o gozo que seria de uma outra natureza, que não a deles. O discurso capitalista ignora a castração, assim como o discurso da ciência ignora a verdade como causa. Nesse mercado, do saber que serve ao gozo, o problema será então de manter um desejo de saber. Lacan rapidamente identificou a ausência do desejo de saber quando o mais-de-gozar satura o desejo, transformando-o em adição.

Vemos que começa a se desenhar a necessidade de um novo discurso que possa dar lugar, nessa paisagem, ao mesmo tempo à castração e à verdade do desejo. Em particular, o discurso do Outro no feminino. A psicanálise, ou seja, o discurso analítico, é o que poderá fazer surgir do amor de transferência um outro amor por um outro saber: o saber inconsciente. Um amor pelo que é real nesse saber, real que escapa ao mercado.

Em 1970, em seu seminário O avesso da psicanálise, Lacan retoma esse fio condutor, segundo o qual a verdade coletiva se tornou irmã do gozo. Elas são irmãs em sua origem comum, que é o mercado do saber. Ao mesmo tempo, Lacan demonstra que a linguagem, em sua metonímia, serve ao gozo e ao mais-de-gozar, por falta de uma metáfora que venha oferecer uma saída. Lacan retoma também o fato que o capitalismo, a fim de assegurar seu desenvolvimento, deve assegurar o que era chamado na época de subdesenvolvimento. Hoje é o saber cujo subdesenvolvimento asseguramos, inclusive o da ciência que vive sob o reinado da burocracia de avaliação nas mãos das potências do mercado. A crise sanitária mostrou os efeitos deletérios da burocracia sanitária sobre o saber científico e a ação política.

Os GAFA[3] estão na vanguarda do mercado do saber e parecem destinados a comprar o conjunto dos valores do mercado. O Google o fez de tal forma que o consumidor é também produtor de um saber, saber que lhe é roubado e transforma aquele que o produz em produto, em mais-de-gozar invisível. Nesse mundo que parece gratuito, o produto é você! É uma ironia da história que a civilização da difusão esteja caindo devido à propagação de vírus invisíveis. Com o Facebook, trocamos o saber produzido pelo sujeito pelo mais-de-gozar da visibilidade obtida pelo sujeito que cria, ele próprio, a adição. Poderíamos sonhar, como os trans-humanistas, que isso levará os corpos a se emparelharem às máquinas para acabarem se tornando indistintos, reduzidos a saberes incorporais recarregáveis remotamente. Uma série inglesa traz uma adolescente anoréxica decidida a não mais poluir o planeta ao se postar post-mortem na web[4].

 

Sintoma e discurso do psicanalista

A pandemia nos mostrou que o gozo continua sendo, entretanto, o gozo dos corpos! E que o mercado do saber ainda não apaga o objeto produzido. Mas o objeto é desejável na medida em que se torna o semblante ou o caminho para um resto de saber imaterial que ele representa. Se tomamos o gadget como um “ter”, é para tentar fazer dele um parecer que nos faça encontrar a singularidade subjetiva perdida. Aquela que se torna o valor em um mercado coletivo que o apaga sempre mais. O objeto, no mercado do saber, não está conectado: ele nos conecta ao mercado do saber.

Lacan, em 1971, em seu Seminário 18, observa que a descoberta de Freud surge em um mundo onde o conhecimento, no sentido da singularidade da experiência, não tinha mais nenhum sentido. Nesse mundo, o que permanecia, no entanto, era o sintoma. Sem dúvida não foi por acaso que Lacan se apoiou em Marx para revisar o lugar do sintoma. O sintoma indica um furo no tecido que o mercado do saber tece. As crises, econômicas, sociais, sanitárias, fazem parte disso. Lacan pode, portanto, dizer: “A única coisa que lhe interessa e que não é um completo fiasco, que não é simplesmente inepta como informação, é aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em princípio, coisas que nos dão sinal, mas das quais não compreendemos nada” (LACAN, 1971/2009, p. 49). O psicanalista faz parte disso!

Todos esses dados serão retomados por Lacan em Milão, em 12 de maio de 1972, em sua conferência “Sobre o discurso psicanalítico”. A Itália foi um país onde a crise política foi a mais forte, ao mesmo tempo crise econômica do capitalismo, mas também crise do comunismo e surgimento de movimentos revolucionários que pregavam a ação direta, desde o projeto de insurreição do livreiro Feltrinelli até as Brigadas Vermelhas. Nessa conferência, Lacan anuncia a crise do capitalismo e prevê que ele estaria “condenado a explodir”[5]. Esse termo de 1856 (crevaison) designa evidentemente o destino de um pneu e a morte na linguagem popular, assim como uma fadiga extrema. Lacan diz: “isso funciona rápido demais, se consome, se consome de tal forma que é consumido”[6].

E, com efeito, a lógica do mercado necessita de uma aceleração permanente, teorizada hoje por Hartmut Rosa (2013). Acrescenta-se a isso um desperdício permanente dos recursos do planeta. Mas essa lógica do mercado também consume na adição os recursos dos corpos em direção a um-mais-de-gozar obeso. Lacan via em tudo isso algo da peste!

Lacan escreve no quadro o discurso capitalista como uma variante do discurso do mestre: /S1, S2/a. O significante-mestre não parece mais ser um semblante ativo, o encontramos dissimulado no lugar da verdade e, portanto, mais inapreensível. A verdade do sujeito, por outro lado, como no discurso do mestre, desaparece. O sujeito torna-se o agente por excelência do discurso. Vimos como esse sujeito não é mais o “eu” que fala, é de um outro sujeito que se trata. Também não é o sujeito “assujeitado” da política. O sujeito agente do discurso capitalista é livre, desassujeitado e desidentificado, ignorando o significante que o comanda, mas pronto a abrir mão de sua liberdade para todas as adições e todas as submissões. A própria lei se tornou um produto econômico: sofremos e aplicamos a lei da economia mais forte (o dólar!) ou da mais rentável (os paraísos fiscais). O sujeito está, portanto, submetido ao efeito do objeto mais-de-gozar diretamente, de um modo viciante. Por outro lado, esse sujeito não terá mais laço com o saber, exceto ao passar por um acesso à sua verdade no significante-mestre, que o comanda sem que ele saiba. Separado de S1 e de S2, esse sujeito que perdeu sua identidade irá procurar a si mesmo, seja através da transidentidade líquida, seja através de sua recusa em identidades delirantes regressivas e étnicas que são tão fixas quanto fabricadas.

Multiculturalismo e nacionalismo iliberal tornam-se produtos de mercado! Na ausência de um livre acesso ao saber, o sujeito deverá aprender a ser ele mesmo através de técnicas de vida e de corpo (desenvolvimento pessoal) que ditam seus comportamentos com a cumplicidade do Estado. O Estado, que se tornou um grande pedagogo, quer, de fato, mudar o povo pela formação/informação. É o que está por trás do slogan “mudar os comportamentos”, ignorando o saber do povo.

O discurso analítico, ao colocar o objeto a na posição de semblante, tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e de fazer valer o objeto a causa do desejo para que ele venha arejar os efeitos do mais-de-gozar. Ao produzir o S1, o discurso analítico pode dar acesso a um sujeito que o comanda e produzir daí o , a queda. Esse significante-mestre é também o coração do que anima seu sintoma.

A saída do discurso capitalista é, portanto, dupla. Enquanto tal, ele só pode sair de si mesmo e, então, encontrar novas formas, sendo que seu discurso faz parte delas. Mas esse capitalismo de mercado permanece preso ao fato de que há apenas gozo dos corpos. A vida nua, a longo prazo, poderia muito bem ser o agente invisível de sua morte.

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Rodrigo Almeida

Referências
COHEN, D. Il faut dire que les temps ont changé. Paris: Albin Michel, 2018.
HEATH, J.; POTTER, A. Révolte consommée : le mythe de la contre-culture. Les Editions l’Échappée: Paris, 2005.
ILLOUZ, E. La fin de l’amour. Paris: Seuil, 2020.
LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN. J. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
ROSA, H. Accélération: Une critique sociale du temps. Paris: La Découverte, 2013.
SUPIOT, A. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[1] Texto publicado originalmente em La Cause du désir, 105, julho de 2020.
[2] Cf. LACAN, J. “De uma reforma em seu furo”, texto publicado com a amável autorização de Jacques-Alain Miller em La Cause du désir, nº 98, março de 2018, p. 9-13. Cf. igualmente LACAN, J. O Seminário, livro 17: O Avesso da psicanálise, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991, p. 196.
[3] GAFA: acrônimo de Google, Amazon, Facebook e Apple, refere-se às quatro maiores companhias da internet. O termo surgiu pela primeira vez na imprensa em 2012 no jornal francês Le Monde. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/GAFA.
[4] Years and Years, série britânica da BBC (2019) exibida na França pelo MyCanal, disponível por streaming.
[5] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.
[6] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.



A INFÂNCIA É TRANS…[1]

TÂNIA MARIA LIMA ABREU
A.E. (2020-2023) EBP/AMP
taniaabreu.ta@gmail.com

Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou.

Palavras chaves: infância; trans; sexuação; gozo.

Childhood is Trans

Abstract: This article is the result of a research that had as its guide the documentary Little Girl and the readings that the author could make of it through texts and videos with which she dialogued.

Keywords: childhood; trans; sexuation; jouissance.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 


Trata-se de um lindo documentário dirigido por Sébastien Lifshitz, que chegou aos cinemas e às plataformas digitais em dezembro de 2020. O longa emociona ao contar a história real de Sasha, uma criança de 7 anos que sempre soube que era uma garota, embora tivesse nascido menino, caracterizando, assim, o que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 6 (DSM 6) aparece como disforia de gênero. Durante um ano o diretor acompanhou a pequena Sasha e sua família, que residem na Alta França (Hauts-de-France). O filme, com muita sensibilidade (o que não impediu de tamponar, com saber, a castração), foi selecionado no Festival de Berlim e garantiu o prêmio de melhor longa-metragem internacional do Festival de Cinema Mix Brasil.

Meu comentário se divide em duas partes, seguindo o que o título, por mim escolhido, aponta. Assim, parto da ideia de que a infância é trans e, depois, me dedicarei às reticências.

Na versão em vídeo (que circulou na Lacan WEB TV), Daniel Roy (2021a), retomando Freud, nos relembra que uma desarmonia entre o que acontece no corpo e as palavras é característico da sexualidade infantil, mas, hoje, ter “nascido em um corpo errado” é um “passaporte” para ser enquadrado em uma transidentidade, como se as crianças, em suas pesquisas infantis, em sua latência, não pudessem ter dúvidas, ambiguidades e qualquer transitoriedade. Como nos adverte Roy, “não há caminho normal para a sexuação”, tampouco uma instância interna ou externa à criança que possa julgar se o próprio corpo é um bom ou um mau corpo. Sigo Roy ao afirmar que nas crianças há afetos e sintomas, mas dos quais só saberemos se as escutarmos. E por falar em sintomas, relembro Maleval (2021) que, também em vídeo da Lacan Web TV, nos sublinhou que a disforia de gênero — nomeação que acalma algumas crianças, por encontrarem um lugar no discurso do Outro — nem sempre é o problema maior, visto que pode vir acompanhada de outros sintomas, tais como anorexia, autismo ou perturbações de humor.

Ainda na direção da minha pesquisa nos áudios da Lacan Web TV, chamou a atenção o que disse Hélène de La Bouillerie, a propósito do prefixo “dis”: “Na experiência com crianças, na prática clínica, é comum encontrarmos crianças diagnosticadas ‘dis’: dislexia, disortografia, discalculias, dispraxia…”. Diagnósticos que fazem série àqueles de outras letrinhas, tais como TDAH, TOC entre outros. A propósito disso, Roy nos diz que:

“Talvez tenhamos agora a fala e o espírito com mais liberdade para nos confrontar com essa criança-terrível, a hiperativa, os ‘dis’ (dis: elemento que significa dificuldade, problema, por exemplo: dislexia), aquele que morde, aquele que não dorme, e aos seus pais exasperados, aflitos ou desesperados” (ROY, 2012, n/p).

No ano de 2005, Miller, no curso Piezas sueltas, na aula de 19 de janeiro de 2005, segundo Roy, adverte para:

“(…) a questão da continuação da psicanálise na época da leveza”. Ele destaca que, face a esse ‘domínio da leveza’ — que visa a conduzir o sujeito da sua particularidade ao universal — a psicanálise não tem que entrar ‘em uma competição de poder terapêutico’, uma vez que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto quanto como causa do desejo, como mais-de-gozar, mas, também, como consistência lógica, como um real ‘produto do simbólico’. Ele nos encoraja a tomar um ponto de vista ‘pragmático e de bricolagem’, que consiste em procurar, com os sujeitos, os significantes — os S1 —, que ‘ajudam a deixar legível o gozo’ e, portanto, ‘ajudam a deixar legível a história’” (ROY, 2012, n/p).

Assim, escutem as crianças: elas têm o que dizer, sobretudo sobre o mal-estar que lhes afeta o corpo. Posição, como mencionada acima, absolutamente freudiana — um pouco mais adiante, retomarei a questão da bricolagem, ao dialogar com Fórum Zadig (2021).

Para esta conversação, retomei um texto de Freud intitulado “O esclarecimento sexual das crianças” (1907), uma carta aberta endereçada ao Dr. Michael Fürst. Ali, encontrei a ferrenha defesa de Freud sobre a importância de se falar às crianças e, consequentemente, de escutá-las em suas curiosidades sexuais. Freud argumenta que:

“(…) certamente são a habitual hipocrisia e a própria má consciência em questões de sexualidade que levam os adultos a fazer mistério diante das crianças; mas é possível que influa nisso alguma ignorância teórica, contra a qual podemos agir mediante o esclarecimento dos adultos” (FREUD, 1907/2015, p. 221).

Passagem que se assemelha ao segredo de família, que, com Lacan, sabemos ser sempre um algo não dito sobre o gozo.

Na sequência, Freud traz o equívoco à tona, reinante, à época, nas famílias, nos educadores e na sociedade, ao suporem que “falta às crianças o instinto sexual, que somente na puberdade ele aparece, com o amadurecimento dos órgãos sexuais. Isso é um erro grosseiro, de sérias consequências para o conhecimento e para a prática” (FREUD, 1907/2015, p.221). Ainda, para Freud:

“Na verdade, o recém-nascido vem ao mundo com a sexualidade, determinadas sensações sexuais acompanham seu desenvolvimento no período da amamentação e da primeira infância, e pouquíssimas crianças deixariam de ter atividades e sensações sexuais antes da puberdade” (FREUD, 1907/2015, p.221).

O que, em termos lacanianos, quer dizer que as crianças gozam! Perversão polimorfa é gozo. Em sua argumentação, Freud segue, afirmando que:

“O que a puberdade faz é conferir aos genitais a primazia entre todas as zonas e fontes geradoras de prazer, forçando o erotismo a pôr-se a serviço da função reprodutiva, um processo que naturalmente pode sofrer certas inibições e que em muitos indivíduos, os futuros pervertidos e neuróticos, efetua-se apenas de modo incompleto. Por outro lado, bem antes de alcançar a puberdade a criança é capaz da maioria das atividades psíquicas da vida amorosa (ternura, dedicação, ciúme) e, com alguma frequência, a irrupção desses estados psíquicos vem acompanhada das sensações físicas da excitação sexual, de maneira que a criança não tem dúvida quanto à relação entre as duas coisas. Em suma, bem antes da puberdade, a criança é, tirando a capacidade de reprodução, uma criatura amorosa completa … O interesse intelectual da criança pelos enigmas da vida sexual, sua curiosidade sexual, manifesta-se insuspeitadamente cedo, portanto” (FREUD, 1907/2015, p.221).

Há um ponto que não desenvolverei, mas que gostaria de ressaltar, por permitir atualizar o texto freudiano ao confrontá-lo com o texto de Roy (2021b), uma vez que, ali, localizamos o lugar privilegiado do mal-entendido que transmite o gozo: “(…) a família está, daqui em diante, mergulhada no banho de nossa civilização, onde os objetos vindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, se tornaram a autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal. O gozo está aí em primeiro lugar” (ROY, 2021b).

Em um dos seus últimos seminários, de 10 de junho de 1980 — intitulado, por Jacques-Alain Miller, “O mal-entendido” —, Lacan extrai as consequências e evoca “(…) dois falantes que não falam a mesma língua (…), dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado (…)”, dando a vida, transmitem esse mal-entendido (LACAN, 1980/2016, p. 11). Trata-se, aqui, de um mal-entendido que se refere ao gozo, acrescenta Roy.

Aí estão dadas as condições para podermos afirmar que a infância é trans, na acepção de transitar e transportar. A criança curiosa pergunta, investiga, hipotetiza, experimenta o seu corpo e o corpo do outro, identifica-se e, desse modo, exerce a sexualidade infantil. Identificações livres, influenciadas pelo afeto e pela pulsão, mas, também, livres em sua diversidade. Identificação que não se guia tanto pelo Outro, mas pelo gozo que habita o próprio corpo.

O enigma da diferença sexual não escapa a essa lógica infantil, e, como preconiza Roy (2021a), em vídeo já referenciado, seguindo Freud, “é um momento no qual a criança está só”, momento de crise, no qual descobre que o Outro é barrado, não possui respostas para tudo. Por outro lado, o fato de ser esse o caminho para todos, “a crise é a norma”, “não há um caminho padrão para encontrar sua via para sua sexuação”, completa. Freud nomeou essa fase de latência, aquela na qual o gozo, advindo do sexual, é desviado para atividades sublimatórias e fixa o sujeito em seu modo de gozar.

Partamos, agora, para o que me despertou atenção no filme, tendo como eixo norteador Sasha, sua família e, dentro dela, a relação mãe-criança.

Trata-se de uma família de quatro filhos, sendo a mais velha uma adolescente e os outros três nascidos meninos. Ao longo do filme, escutamos a mãe de Sasha, em consulta com um psicólogo, dizer de seu desejo de ter uma menina durante a gravidez de Sasha — único dos quatro filhos que possui um nome comum aos dois gêneros. É notório que Sasha nasceu em uma família amorosa e teve a sorte de ter uma mãe que olhava para cada filho em sua singularidade, embora tenha ficado claro o idílio amoroso que havia entre ela e Sasha, o que, por vezes, deslocava seu olhar dos outros filhos.

O pai, aquele que só tem direito ao amor e ao respeito ao fazer de uma mulher objeto a causa do seu desejo e se ocupar dos seus produtos, como nos ensinou Lacan (1974/1975), me pareceu bem em sua função de cuidar do produto Sasha, mas inoperante para barrar o desejo da mãe. Seu discurso é de normalizar o que se passava com a criança, não podendo alcançar o sofrimento que a atingia.

No tocante à mãe, é interessante como ela é sensível e se questiona sobre a força do seu desejo, mas o diretor do filme opta pela via do saber, aqui, representado pela psiquiatra infantil Anne Bargiacchi, do hospital Robert Debré, em Paris, que, de um golpe, elimina qualquer lugar tanto para o desejo quanto para o discurso psicanalítico: não sabemos a causa da disforia, mas não é fruto do desejo dos pais. Nesse ponto, detenho-me no vídeo que Fabian Fajnwaks (2021) gravou para a 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, no qual observou que as diferentes teorias do gênero e dos terapeutas querem “abordar a sexuação pelo viés do semblante, modo de gozo feminino ou masculino, curto-circuitando o Outro, e, como se o Outro não existisse, abolem o desejo (…)” (tradução nossa).

A partir daí, o que se vê é que a psiquiatria, tal como representada no filme, não deixou espaço para que o dito de uma criança pudesse ser escutado, o que, com o tempo e sob transferência, poderia ser transformado em um dizer. Afinal, Sasha afirmou que queria ser uma menina quando crescesse. A família passa a travar uma cruzada contra a escola na qual estudava e nas aulas de ballet, que não a aceitam porque, na certidão de nascimento, está registrado menino, ignorando o que recomendou Roy:

“Existe a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como ‘causa de seu desejo’ e ‘como dejeto de seu gozo’. Esse deciframento, uma criança o faz com os significantes que ela retira, que tomam o valor singular do gozo pulsional que os flexibiliza. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enoda, em volta do objeto indizível, as extremidades do corpo, os fios de gozo e os fragmentos de discurso. Esse objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha, o espaço para uma separação” (ROY, 2021b).

Para concluir a primeira parte do meu trabalho, continuo com o referido texto de Roy, mas, agora, colocando-o frente a frente com o evento Zadig, recém ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Nele, destaco a passagem

“Nós partimos, pois, de um outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre então muitas perspectivas para todos aqueles que estão numa situação delicada com suas famílias ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, existem possibilidades de bricolagem. Respondendo a uma lógica do não-todo (pas-tout), a instituição ‘família’ oferece outros recursos: aqueles, para as crianças, de serem não-todo (pas-tout) dependentes das identificações familiares, não-todo (pas-tout) dependente do amor, filial e parental, quer dizer, de poder explorar as facetas menos amáveis. E isso vale também para os seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros ‘familiares’” (ROY, 2021b).

Do Fórum Zadig, ocorrido em 1º de julho de 2021, retiro a entrevista com Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari, e os ensinamentos extraídos dos dez minutos que nos concedeu, sobretudo no tocante à relação dela com a moda, que, ao vestir a própria pele, a liberta.

Sasha e Are têm, ambas, uma paixão que, entretanto, encontrou destinos distintos. Are relata como tem sido libertador cuidar de sua pele, por intermédio da moda. Sasha, uma criança cujo discurso foi, segundo Maleval (2021), tomado como “discurso científico”, não foi ouvida naquilo que a movia: a dança. A tristeza no olhar de Sasha poderia ter sido interpretada como a de quem não podia fazer o que o desejo lhe apontava? Nesse contexto, o da “bricolagem” acima citado, podemos questionar: Sasha poderia ter sido um “menino bailarino”? Bricolagem, por esse prisma, com o que a pulsão vivificava em seu corpo, ressonância do eco de um dizer? Teria sido essa sua saída sinthomática, seu modo de ser mulher?

 

Parto, agora, para as reticências…

É do conhecimento de todos que Jacques-Alain Miller denominou o ano de 2021 como “ano trans”. Toda nomeação implica alguma fixação. No campo epistêmico, estamos ainda no instante de ver, de produção de ideias decorrentes dessa fixação, cabendo, então, dúvidas: o que é um trans? Binário ou não binário? O que é sexo fluido? Necessitaremos de algum tempo para compreender o que é um fenômeno global, atemporal e diverso: a teoria do gênero. Eric Marty (2021), entrevistado por Jacques-Alain Miller sobre seu recém-lançado livro, O sexo dos modernos, elevou tais teorias à categoria de “última grande mensagem ideológica do ocidente ao resto do mundo”, destacando suas influências jurídicas em diversas democracias.

Diante da diversidade que o tema impõe — e assim deve ser tratado, a meu ver —, detenho-me agora em uma pequena digressão, contida no título do meu trabalho: as reticências, pois eles me levarão a tratar de outra fixação.

O que são as reticências? Quando usá-las? Em que contexto? A sua presença no título do meu trabalho levou-me a pesquisar as suas origens, e eis que me deparo com uma etiologia latina para os três pontinhos, que significam algo implícito. O que há de implícito no momento “trans”, que, de uma década para cá, assolou o mundo, levando as crianças em seu movimento? Será que a onda “trans” do mundo adulto pode ser “transportada” para o infantil que, em si, é uma transmutação por estrutura?

A infância é, por estrutura, “trans”: transição, transformação, transgressão. Mas, sobretudo, “transfixão”. Essa palavra é dicionarizada e significa um método de amputação cirúrgica em que se transpassa o bisturi de lado a lado, dividindo os músculos de dentro para fora, segundo o Michaelis. Qualquer semelhança com o que temos presenciado ao nível do esmagamento do infantil pelo discurso do adulto não é mera coincidência. É de “fixão” que se trata quando a ficção infantil é atravessada pelo discurso do Outro.

Freud nos legou o conceito de fixação, Lacan inventa a “fixão”. A criança do século XXI está a nos presentear, com sua divisão desde dentro, com os efeitos em seu corpo do Discurso do Mestre, aqui representados pela Ciência e pelas leis. Quem vem primeiro? Quem serve a quem? Isso não interessa ao infantil, pois, sobre ele, tombam os efeitos daí transportados. Se o músculo se divide de dentro para fora, a criança se divide de fora para dentro, a partir do que vê e ouve.

Voltemos às reticências, sem perder de vista que, além de apontarem para uma interrupção da frase, elas transmitem sentimentos: surpresas, dúvidas, suspense… Elas animam um texto! Eis o que interessa nesses pontinhos: a arte da vivificação que, no nosso affaire, tem como caminho privilegiado a prática clínica.

O que a psicanálise pode oferecer aos sujeitos falantes que sofrem por uma inadequação entre corpo e discurso? É de leitura do sintoma que se trata: encontro de significante e corpo.

Concluo lembrando que os significantes menina ou menino fazem eco no corpo de modo singular e o fazem gozar, uma vez que “um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972–73/2008, p. 29), desde que tal gozo seja corporizado de modo significante. Sasha nos demonstra que, no sexo, não há nada mais que uma questão de cor, como ensina Lacan: “pode haver mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” (LACAN 1975–1976/2005, p. 112).

 


Referências
FAJNWAKS, F. Entrevista concedida a Christine Maugin, publicada em Les Z’atelier 2, como atividade preparatória à 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, de 13 de março de 2021. Em https://institut-enfant.fr/organisation-jie6/zatelier-video-1/. Acesso em: 10 ago. 2021
FREUD, Sigmund (1907). O esclarecimento sexual das crianças (carta aberta ao Dr. M. Furst). Trad: Paulo César de Souza, In: Obras Completas. RJ: Companhia das Letras, 2015 vol. 8, p. 220/226.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXIII: o sinthoma. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975-1976/2005, p. 112.
LACAN, Jacques. O mal-entendido, lição de 10/06/1980, In: Opção Lacaniana, n. 72. São Paulo, março de 2016, p. 11.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XX: mais, ainda. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1972/1973/1985, p. 29.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXII: RSI. 1974/1975, inédito.
MALEVAL, J-C. La réassignation de genre chez l’enfant. In: Lacan Web Tv. YouTube.com. em 12 de abril de 2021. Acesso em: 10 ago. 2021. Tradução da autora.
MARTY, Éric. Entrevista sobre Le sexe des modernes, por Jacques-Alain Miller. Correio Express. 21 mar. 2021. Disponível em: https://www.ebp. org.br/correio_express/2021/04/14/entrevista-sobre-le-sexe-des-modernes/. Acesso em: 14 de abril de 2021.
MILLER, Jacques-Alain. Del objeto a al sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 97/117.
ROY, Daniel. Être né dans le mauvais corps. (vídeo) In: Lacan Web TV. YouTube.com. em 28.6.2021a. Acesso em: ago. 2021. Tradução da autora.
ROY, Daniel. Parents exaspérés – Enfants Terribles. In: Zapresse : Lettre D’Information de L’Institut Psychanalitique de L’Enfant. Université Populaire Jacques Lacan.2021b. Disponível em : https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: ago, 2021. Tradução da autora.
ZADIG. Fórum. Trans: Leituras. Evento da La movida Zadig Doces & Bárbaros, em 1º de julho de 2021, via Plataforma Zoom.

[1] Texto apresentado e debatido em forma de Conversação no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Seção-MG, em 18/09/2021.



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA SÉRGIO LAIA A.M.E. da EBP/AMP 

 

Imagem: Fred Bandeira 

 

Almanaque On-Line: Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. Sabemos que, distintamente de um discurso que, por estrutura, faz barreira ao gozo, como vemos figurado no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao qual Miller se refere, possui uma configuração na qual o sujeito e o objeto mais de gozar gozo estão diretamente vinculados.

Uma de suas manifestações que interessa aqui isolar advém da parceria entre o discurso liberal — próprio ao capitalismo — e o saber da ciência, que exibe como palavras de ordem a utilidade e a rentabilidade, o que significa dizer que se ampara em uma lógica utilitarista que vai na contramão da existência do amor, do desejo e do gozo.

Nesse contexto, a prática analítica permanece sob a pressão de ceder a essas regras, seja, por exemplo, deixando-se incluir em sua burocracia, seja acatando o seu imperativo de eficácia medido por estudos e cálculos estatísticos. Diante dessa conjuntura, quais são as saídas para que a psicanálise possa se manter como um discurso que faz objeção a esse empreendimento de universalização ou de massificação anônima?

 

Sérgio Laia: Primeiramente, acho oportuno lembrar uma observação feita por Jacques-Alain Miller em uma de suas recentes apresentações virtuais, quando destaca que Lacan sempre se deixava tocar por uma oportunidade relativa a seu tempo, mas sem abrir mão de ser Lacan. O exemplo evocado, nessa ocasião, por Jacques-Alain Miller, é justamente o das referências que Lacan fez, no final dos anos 1960 e no início da década de 1970, a Marx e à mais-valia: elas não deixam de se valer da importância que o pensamento e a ação marxistas tinham, sobretudo entre os jovens comprometidos com lutas para um mundo mais justo e melhor, mas Lacan não se apresenta propriamente como mais um marxista ou alguém diretamente envolvido em ações anti-capitalistas, tampouco se coloca como um defensor do capitalismo — ele se serve, por exemplo, da noção marxista de mais-valia para ressaltar o que passa a formular, a partir da experiência psicanalítica, como mais-de-gozar.

Considero, por conseguinte, importante esclarecer que a formalização lacaniana dos discursos, embora passível de algum sequenciamento na história e de referência a certos contextos, não se restringe a essa historicização nem a esses referenciais. Em uma perspectiva que poderia ser qualificada de histórico-contextual, sabemos que o discurso do mestre foi relacionado por Lacan ao “roubo”, ao “rapto” e à “subtração” realizados pelo senhor; quanto ao “saber” que o escravo, particularmente na Grécia Antiga, derivava da própria prática, isso é como um savoir-faire que, exceto pela operação do senhor, jamais poderia ser articulado na forma de um saber valorizado e difundido como episteme (LACAN, 1969-1970/1991, p. 21). Igualmente por uma contextualização e uma localização histórica, o discurso universitário chegou a ser associado à universidade, que não mede esforços para colocá-lo “em posição dominadora” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 231). Em mais uma referência localizável historicamente, Lacan ressaltou a importância, para uma histérica, de “que o outro chamado homem saiba” o quanto “ela se torna nesse contexto de discurso” um “objeto precioso” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 37), e, certamente, no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Freud escutou como poucos o que suas pacientes diziam e favoreceu, com sua descoberta do inconsciente nessa experiência singular de escuta, a formulação lacaniana do discurso do mestre, do discurso da histérica e do discurso analítico. Todavia, com sua “produção dos quatro discursos”, Lacan visa dar corpo a “uma estrutura… que ultrapassa bastante a fala, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11). Por essa ultrapassagem, cada um dos quatro discursos não se limita a ocasiões histórico-contextuais, mesmo se elas são evocadas por uma das designações que corresponde a cada um como sendo o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico. Em cada discurso, trata-se, segundo Lacan, do que “subsiste em certas relações fundamentais” que, “literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem”, mas, “no interior” dessas relações, aborda-se também “alguma coisa que é bem mais ampla e vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11).

No que concerne à linguagem, os matemas lacanianos dos discursos são compostos pelo significante-mestre (S1), pelo significante referente ao saber (S2) e por esse efeito significante que tampouco deixa de ser uma espécie de rasura significante, designada como sujeito barrado ou dividido (S). Contudo, essa “alguma coisa” que, embora se amplifique e extrapole as enunciações efetivas, também se encontra inscrita nos discursos, é o que Lacan chama de mais-de-gozar e localiza no objeto a. Assim, em cada discurso, considero que Lacan — sem confundi-los — procura articular e, portanto, aproximar dois tipos de elementos que, ao longo uma parte de seu ensino, eram tomados como heterogêneos: os elementos concernentes à dimensão significante (S1, S2, S) e aquele referente à dimensão do gozo (a). Essa heterogeneidade entre significante e gozo não deve ser confundida com uma oposição na qual um excluiria necessariamente o outro impedindo-lhe a ação: ela tem a ver com certa distância, entre gozo e corpo, demarcada pelo impacto do significante nos corpos humanos.

Prefiro me ater, aqui, à especificidade lacaniana da acepção do objeto a como mais-de-gozar, sem desenvolver o modo como se evoca aí, também, a noção marxista de mais-valia. Assim, da própria ação do significante nos corpos, há um resto impermeável à mortificação e Lacan — localizando-o como objeto a — destaca nele, a meu ver, tanto a insistência quanto certa anulação do gozo, valendo-se de toda uma ressonância própria à língua francesa, ao designar esse resto como plus-de-jouir. Na tradução “mais-de-gozar”, perde-se essa ressonância e, talvez, algo dela poderia ser mantida se optássemos por traduzir plus-de-jouir  como “mais-a-gozar”. Trata-se concomitantemente de insistência e anulação porque, em francês, o advérbio plus implica sempre o que é mais e, acompanhado da preposição de, aponta, ao contrário, para o que não há mais. Logo, como plus-de-jouir, o objeto a nos discursos implica, sem cessar, um mais gozo que não deixa de ser também experimentado, embora sem que se queira saber disso, como uma ausência, um menos que, ao mesmo tempo, convoca um mais que, a cada vez, tampouco se alcança. Estimo que, na configuração do discurso do capitalista por Lacan, essa insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir será levada ao extremo, e foi isso que, a meu ver, o fez se interessar pelo que tal discurso opera. Em outros termos, diferentemente de muitos envolvidos com as lutas políticas dos anos 1960-1970, Lacan não me parece propriamente apostar na instauração de outro modo de produção avesso ao capitalismo, tampouco se coloca como um defensor desse modo de produção cada vez mais dominante. Ao mesmo tempo, ao localizar esse extremo da insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir, Lacan também vai se servir do discurso analítico para retificar ou, retomando um termo da questão de vocês, para fazer objeção a essa forma paradoxal de o gozo se impor e se esvair dos corpos dos seres afetados pelo significante.

Na formulação dos quatro discursos por Lacan no Seminário XVII, há uma vetorização ordenada da esquerda para a direita com relação ao giro dos quatro elementos (S1, S2, S, a) por quatro lugares diferentes entre si, mas que permanecem os mesmos em cada discurso. Respondendo a uma pergunta que lhe fiz no dia 19 de outubro de 2020, por ocasião de um evento virtual da Escola Brasileira de Psicanálise, Jésus Santiago pôde destacar que, no discurso do capitalista, essa vetorização ordenada deixa de se sustentar e vetores transversais e perpendiculares se impõem sem definir propriamente um giro dos elementos desse discurso cada vez mais dominante. O desmantelamento, no discurso do capitalista, dessa vetorização ordenada que, a princípio, norteava os discursos, me parece também destacar que nada gira como antes, mas o significante-mestre (S1) insiste e impera, com sua proliferação implacável e anônima, no adoecimento dos corpos e na configuração do que já designei certa vez como sujeitos objetalizados, ou seja, consumidos pelos objetos que muitas vezes eles mesmos consomem (LAIA, 2008). Por isso, o discurso do capitalista, embora seja, nos termos mesmo de Lacan, “o que se fez de mais astucioso como discurso”, acaba por ser tomado pela “explosão” (crévaison) na medida em que ele “se consuma (se consomme) tão bem a ponto de consumir-se (se consume)” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Há, no discurso capitalista e, ainda, na própria dimensão discursiva do inconsciente, uma espécie singular de autofagia, porque a degradação e a mortificação que lhe são concernentes colocam em perigo os corpos por ela impactados, mas também fazem desse risco sua consumação, ou seja, a realização de seu próprio domínio.

A pergunta de vocês também me faz indagar sobre como enfrentar essa dominação sem ser pela via sem saída da revolta, porque, nesta última, reitera-se o império do significante-mestre (S1) e a proliferação do mais-a-gozar (a). A via da incorporação do discurso tomado pela vontade imperiosa de gozo tampouco é uma saída, pois é o que já acontece quando — nos meandros obscuros da satisfação e na escalada contemporânea do capitalismo — passamos a ser todos capitalistas, agenciadores da linguagem do lucro, mas não menos segregados. Assim, o discurso do capitalista, inclusive como uma versão atualizada do discurso do inconsciente, é uma proliferação de mal-entendidos que mortificam todos aqueles por ele englobados. Porém, a experiência psicanalítica, tomando como seu princípio ativo o que é segregado na dimensão do gozo (a), endereça ao sujeito (S barrado) algumas interpretações quanto ao que o destitui de um corpo. Na escala, portanto, do discurso analítico, é encontrada, segundo Lacan, “uma forma de mal-entendido na qual” o sujeito, como hiância no campo dos significantes eivada de gozo, “se quita” e pode “subsistir” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Importante destacar que a utilização lacaniana do verbo quitar me parece introduzir, para o sujeito (S), no discurso analítico, a dimensão do pagamento da qual tanto o capitalista-do-mercado quanto o inconsciente-capitalista insistem em se safar condenando-se, de todo modo, à insaciabilidade do mais-a-gozar (a). Por sua vez, a esse sujeito que se quita e pode passar a subsistir, com sua própria hiância imiscuída de gozo, em uma forma de mal-entendido, outros usos do corpo se tornam viáveis, diferentemente do que acontece na fantasia, porque esta, em um circuito mais privado que o do mercado, não deixa de ser prisão no mais-a-gozar insaciável (a).

A experiência analítica dá acesso, então, a outros modos de “viver a pulsão” (LACAN, 1964/1973, p. 246), mas também o inconsciente, porque, pelo “espaço de um lapso”, ou seja, de um mal-entendido, sobretudo ao fim de uma análise, quando o discurso analítico toma a forma mesma do ato, o inconsciente deixa de ter qualquer “alcance de sentido (ou interpretação)” (LACAN, 1976/2001, p. 571). Os testemunhos de passe são profícuos em nos mostrar o quanto, no discurso analítico, os significantes-mestres (S1) determinantes da dominação subjetiva pelo Outro passam a iterar de outra forma, porque não funcionam apenas nos lugares do agenciamento, da verdade ou do outro: eles passam a ser localizados no lugar da produção-perda. Trata-se, então, efetivamente de outro tipo de mal-entendido: o significante-mestre (maître) que me faz ser (m’être) e me assola como sujeito, se apresenta, pelo discurso analítico, no lugar de produção perdida e, com isso, temos “um outro estilo de significante-mestre” (LACAN, 1969–1970/1991, p. 205).

a  à   S

S2  –>   S1

Como se trata, no discurso analítico, de encontrar outro estilo para o significante-mestre (S1), me parece possível sustentar que há, então, pela experiência analítica, uma saída do império e da insaciabilidade do discurso do capitalista, mas sem a re-volta que, conforme esclarece Lacan, tanto quanto a sujeição, acaba fazendo imperar o S1. Não é, portanto, sem razão, que Lacan insistia na peculiaridade do discurso analítico frente aos outros discursos: “só o discurso analítico é exceção” porque “exclui a dominação”, “nada ensina” e “não tem nada de universal” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Mas a exceção concernente a esse discurso no âmbito da dominação se vale também do outro estilo encontrado para o Sdominador, que, ainda assim, não deixa de ser dominador. Também a exceção referente ao ensino não se separa  do enfrentamento do desafio de “como fazer para ensinar o que não se ensina” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Por fim, se o discurso analítico pôde ser considerado por Lacan “até mesmo a saída do discurso capitalista”, ele também nos alerta que essa saída “não constituirá um progresso, se for apenas para alguns”. Nesse contexto de um progresso que pode até evocar o universal, considero oportuno destacar que, para lançar no universo esses produtos de uma análise que os analistas são, a escala é aquela do discurso analítico como “laço social determinado pela prática de uma análise”, ou seja, por uma experiência que é única e feita à medida de cada um que, como analisante e como analista, a ela se dedica.

 

A.O-L.: Em 1970, no seminário O avesso da psicanálise, Lacan nos apresenta a segregação como o fundamento de toda fraternidade. Só há fraternidade por estarmos isolados juntos, isolados do resto” (1969-70/1992, p. 107). Nesse momento, ele aborda a fraternidade como uma noção referida ao discurso, ao laço social como tal. Dois anos mais tarde, no Seminário 19, …ou pior, Lacan vai retomar a referência à fraternidade, mas, dessa vez, não mais sustentada no discurso, mas no corpo. Ele se refere ao racismo como algo que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (1971-72/2012, p. 226). É curioso porque, no ano seguinte, Lacan definiria a raça como o que se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravos” (O aturdito, 1973/2003, p. 462). É uma clara referência ao período colonial a partir do qual noção de raça surgiu e se consolidou em seguida junto ao discurso nacionalista, o que desembocaria mais tarde no surgimento dos campos de concentração. Considerando a atualidade, poderíamos dizer que a era dos mercados comuns operou uma mutação nessas noções de raça, fraternidade e racismo? O que implica para essas noções quando Lacan transita entre a referência ao discurso e ao corpo?

 

Sérgio Laia: Como vocês mesmos destacam nesta segunda pergunta, Lacan conclui o Seminário …ou pior dizendo que a revalorização da palavra “irmão” implica uma “fraternidade do corpo” diversa dos “bons sentimentos”, porque nela se enraíza, também, o “racismo” (LACAN, 1971–1972/2012, p. 227). Foi seu modo de pôr em suspeição a noção de irmandade em um mundo em que cada vez mais ela se apresentava como uma solução, inclusive (para usar um termo frequente daquela época) contra-cultural. Assim, o que afeta os corpos (como eles se satisfazem) e o que os irmana (com que se identificam) têm uma função tão importante para a concepção lacaniana do racismo quanto o que os segrega.

No que concerne à satisfação, sabemos que, nos corpos humanos, ela não segue rigorosamente um programa estabelecido pelo organismo: é perturbada pelo que se escuta e se diz. Nossa satisfação toma, portanto, trajetórias desvairadas e, para designar e orientar essa satisfação, contamos apenas com o Outro, ou seja, com um lugar do qual estamos separados e que nos referencia. Porém, essa separação e até muitas dessas referências nos são também insuportáveis: não conseguimos, segundo Lacan, “deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo” e lhe impomos “o nosso” (LACAN, 1973/2003, p. 533). O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Em outros termos, como esclarece-nos Laurent, o racismo sempre tem a ver, “em uma comunidade humana”, com “a rejeição de um gozo inassimilável” e que é relacionado “a uma barbárie possível” (LAURENT, 2013, p. 32).

Com a “globalização” — nome mais atual para o que, na pergunta de vocês, é evocado como “era dos mercados comuns” —, considero que o racismo se agrava porque se torna cada vez mais difícil localizar o que faz as vezes de Outro: as diferenças (sobretudo aquelas referentes às alteridades) tendem a se apagar, dando lugar a uma irmandade generalizada — o termo “irmão”, destacado por Lacan desde a última lição de …ou pior, se desdobra hoje em “brother”, “bro”, “mano”, “véi”, aplicáveis a todo mundo, conforme constatamos sobretudo nas falas dos jovens, mas também dos que já não são assim tão jovens. Se o contorno do Outro já não é tão palpável, se seu corpo deixa de existir e seu modo de gozo não delimita mais o que nos concerne em termos de satisfação e de identificação, o desvario das satisfações se intensifica ainda mais sem direção. Os jovens, ao terem seus corpos impelidos a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e sua identificação, são particularmente sensíveis a esse desvario e, nos nossos dias, quando todo mundo é incitado a ser jovem, tal desorientação toma proporções avassaladoras e efetivamente globalizadas.

Com essa diluição do campo simbólico do Outro, com a proliferação das irmandades, são os grupos que se tornam mais propensos, a meu ver, para fazer as vezes não de uma alteridade simbólica que parece cada vez mais inapreensível, mas de uma alteridade-corpo no qual as pulsões podem se satisfazer diretamente. Hoje, encontramos exposto o que a experiência analítica aborda, mais intimamente, desde os primeiros pacientes de Freud: as identificações promovidas pelo Outro (e que são, inclusive, cada vez mais frágeis) não respondem efetivamente às exigências de satisfação; há discrepâncias cada vez maiores entre o que nos satisfaz e o que nos identifica, inclusive porque as referências identificatórias estão diluídas ou até ausentes.

Para este contexto atual, a noção lacaniana de identificação ao sintoma pode se apresentar, a meu ver, como um leme, pois conjuga elementos que, na cena sócio-cultural atual, apresentam muitas vezes desarticulados, ou seja, corpo e fala, satisfação e identidade.

 

A.O-L.: O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação. Por isso que tem toda razão quem põe a psicanálise à testa da política(1971/2003, p. 23). Nessa citação de Lacan em Lituraterra, podemos entender que, para ele, a política é a do sintoma e sua interpretação. Em nossa época, o singular do sintoma regula o sujeito e as construções do laço social (do individual para o coletivo). O sintoma serve para pensar o político?

 

Sérgio Laia: Estimo que já pude responder a essa questão sobre o sintoma e a dimensão política no final de minha segunda resposta, quando faço menção à noção lacaniana de “identificação ao sintoma” e, ao longo de minha primeira resposta, quando mostro como o discurso do capitalista configurado por Lacan é uma espécie de update do discurso do inconsciente. Ainda assim, mesmo que, a meu ver, vocês tenham dado uma conotação mais coloquial ao verbo “pensar” (ao utilizá-lo na expressão “pensar o político”), eu faria uma ressalva de que não se trata propriamente de, a partir da psicanálise, pensar o político ou a política, mas de intervir sobre esse campo. Essa intervenção, no entanto, não seria propriamente equivalente ao que teríamos na chamada militância política nem ficaria restrita à chamada “territorialidade” dos nossos consultórios ou da clínica. Para esclarecer os matizes dessa intervenção, eu lhes lembraria o próprio modo como a psicanálise, desde Freud, se faz presente no mundo. Por um lado, desde o início, essa presença não se dá sem a manifestação de resistência ao discurso analítico (inclusive, segundo nos ensina Lacan, da parte dos próprios analistas) — assim, as resistências à psicanálise, as críticas e os impedimentos que lhe são impostos têm a ver com nossa coragem de operarmos com o que Freud mesmo chamou certa vez de “substâncias perigosas”, aproximando-a da química. Por outro lado, entre todas as propostas que, desde o final do século XIX, se formulam com o prefixo psi-, a psicanálise é a única que tem conseguido fazer passar para o uso comum, sem qualquer banalização, o que para ela tem uma caracterização muito específica e, como exemplo, cito-lhes o ato falho. Antes de a psicanálise existir e se difundir no mundo, não tínhamos essa concepção — hoje amplamente partilhada, inclusive por aqueles que sequer conhecem Freud — de que uma troca de palavras produzida casualmente quer dizer alguma coisa. A meu ver, nenhuma resistência ou crítica que temos sofrido como psicanalistas abala a força de como, por exemplo, a concepção psicanalítica do ato falho se tornou uma propriedade comum. Sabemos que Lacan, no Seminário 23, aproximou a noção de sintoma da operação de “fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum” (LACAN, 1975–1976/2017, p. 86) — não é ela que se processa também nesse uso difundido que temos do ato falho? Logo, considero que a política que cabe a um psicanalista sustentar é diferente da militância e, mais ainda, da irmandade partidária, porque não se pauta pela instauração de uma nova ordem, pela consolidação de um projeto, por uma revolta quanto ao estabelecido, e muito menos pelo apreço quanto ao já vigente e estabelecido. Na perspectiva psicanalítica, trata-se de fazer passar o que é próprio para o comum ou, como certa vez formulou Éric Laurent, procuramos desfazer o que é recebido como unidade de significação para fazer ecoar uma leitura singular do que nos é apresentado como já pronto para ser usado (LAURENT, 2005).

 


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LAIA, S. “Os sujeitos objetalizados e o analista como ‘parceiro-sintoma’”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, setembro 2008.
LAURENT, É. “Da linguagem pública à linguagem privada, topologia da passagem”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fevereiro de 2005.
LAURENT, É. “Racismo 2.0”. Opção Lacaniana, n. 67, 2013.
Perguntas formuladas por Bernardo Micherif, Patrícia Ribeiro e Rodrigo Almeida.