Almanaque On-line Março/2023 – Nº 30

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EDITORIAL

Patrícia Ribeiro

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência. (Leia mais)

TRILHAMENTOS
A urgência do falasser e a presença sutil do analista: qual encontro possível?

Laura Rubião

O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada.  Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo. (Leia mais)


 

A presença real na análise


Gilles Chatenay

A partir dos capítulos XVI, XVII e XVIII do Seminário 8: A transferência, de Jacques Lacan, o texto se propõe a delimitar o que realmente está presente em uma análise sobre a expressão “presença real”. (Leia mais)


 

Tem alguém aí?


Esteban Pikiewicz

O autor percorre os textos de Freud e de Lacan buscando elucidar o que estaria implicado na expressão presença do analista. Ele destaca a ideia inicialmente desenvolvida por Freud sobre o analista como objeto e retomada por Lacan quanto à função do “desejo do analista” e do analista enquanto semblante do objeto a causa de desejo, vinculando a sua presença ao próprio conceito de inconsciente. Porém, acrescenta o autor, trata-se de uma presença real e, nesse sentido, nos reenvia a Lacan para afirmar que há, nesse desejo, algo de impuro. (Leia mais)

ENTREVISTA
Almanaque on-line entrevista 

Margarida Elia Assad

Em seu texto “O impossível e o laço, o analista e a época” (2022), encontramos importantes contribuições. Ao retomar a frase de Lacan “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (LACAN, 1945/1998, p. 213), você nos adverte que o coletivo não é a soma dos indivíduos. Isso nos leva a indagar sobre um fenômeno de nosso tempo: a adesão crescente a coletivos, não mais sob os moldes da identificação a um ideal comum, mas a partir de um modo próprio de gozo, isto é, de um sintoma articulado ao laço social, tal como esclareceu Miller. (Leia mais)

ENCONTROS
As TCCs e sua tentativa de reduzir o ser falante ao organismo

Margaret Pires do Couto

O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo. (Leia mais)


 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat

Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época. (Leia mais)


 

Modos de presença


Florencia F. C. Shanahan

A autora levanta algumas questões, a partir de sua própria experiência, sobre os modos de presença em uma análise, apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona se haveria um final de análise caso assim permanecesse. (Leia mais)


 

A presença de Lacan 


Guy De Villers

O autor toma como ponto de partida o seu primeiro encontro com Lacan.  Durante o tempo em que estava dedicado à sua tese, na qual trabalhava a crítica freudiana à filosofia, ouviu Lacan contestar o coração do projeto filosófico: aquele de “tudo compreender”. Enquanto o autor encontrava no texto de Freud uma centralidade da pulsão que também verificava em sua própria experiência, reencontrou ecos disso em uma pergunta de Lacan: “Estou, será que estou presente quando falo com vocês?”. A partir dessa indagação, o autor discute o que a presença de Lacan introduz na prática da psicanálise. (Leia mais)

PRELÚDIOS
Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa 


Virgínia Carvalho

A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção. (Leia mais)


 

Uma defesa primária  


Cristina Drummond

O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo. (Leia mais)


 

O sintoma substituto  


Mônica Campos Silva

O presente artigo visa a tratar o lugar do sintoma como defesa. A partir da diferenciação realizada por Freud entre inibição, sintoma e angústia, é possível observar o funcionamento psíquico em seu aspecto dinâmico, bem como a função do Eu diante das demandas de satisfação. Assim, o sintoma como substituto evidencia tanto sua vertente de verdade como de real, estabelecendo consequências para a clínica e seu manejo(Leia mais)


 

Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior  


Cristiana Pittella

A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana. (Leia mais)


 

Perigos e defesas: a análise finita e a infinita  


Luciana Silviano Brandão

O texto acompanha o percurso de Freud sobre o tema do final de análise tendo como referência o artigo “A análise finita e a infinita”, que trouxe desdobramentos importantes na psicanálise. No entanto, Lacan, ao postular a inexistência da relação sexual, desafia a concepção de Freud e abre a possibilidade de um passe de ordem lógica. (Leia mais) 


 

Cisão do eu no processo de defesa — Ichspaltung 


Lucia Mello

Comentário sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientado pelas leituras de Lacan e Miller sobre o tema, que resultaram em contribuições fundamentais para a atualidade do trabalho clínico. Há, na cura psicanalítica, uma experiência da Spaltung, que atravessa dois grandes momentos do ensino de Lacan, do simbólico ao real, e preserva, nesse percurso, seu elemento de surpresa. (Leia mais)

INCURSÕES
A presença do analista na psicose ordinária  


Sérgio de Campos

Desde as últimas décadas, nos deparamos com casos clínicos que se manifestam sob formas de gozo, cujas manifestações convocam a uma construção diagnóstica não estruturalista. Tendo essas novas formações como casuística principal e sob a perspectiva de uma construção diagnóstica pautada na ética, em argumentos lógicos e baseada em um ponto de vista clínico, este artigo apresenta argumentações sobre a presença do analista na psicose ordinária orientadas pelo esforço de elaboração oriundos do Conciliábulo de Angers, da Conversação de Arcachon e da Convenção de Antibes, que resultou numa atualização dos conceitos de desencadeamento, conversão e transferência no âmbito das psicoses. As noções de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferências são apresentadas de maneira a orientar a presença do analista diante das tendências contemporâneas da psicose ordinária, demarcando as diferenças entre estabilização, suplência e sinthoma. (Leia mais)


 

Clínica do funcionamento: a psicose ordinária e a presença do analista  


Fernanda Otoni-Brisset

Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária? (Leia mais)


 

Os pais traumáticos, a data do trauma e a criança troumatisé


Philippe Lacadée

A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. (Leia mais)


Implicações da criminalização do aborto a partir da psicanálise


Ondina Machado

Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? (Leia mais)


Toxicomanias◊Adixões  


Ernesto Sinatra
 

Ernesto Sinatra fundamenta as suas razões para a criação do termo adixões, escrito com o X freudiano de fixierung, para ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Sem abandonar o termo toxicomanias, a proposta do termo adixiones encontra um fundamento ético em que o X aponta para a marca singular do gozo sinthomático de cada Um, que resiste a ser catalogado pela banalização do mercado de consumo com sua fabricação de objetos de gozo que pretende para todos o mesmo. O X marca a singularidade do gozo e a responsabilidade subjetiva pela própria satisfação. Dessa forma, Sinatra aponta que a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada Um aos objetos que intoxicaram sua existência. Nessa clínica, o singular é a bússola que cabe ao analista seguir. (Leia mais)


 

Um corpo de angu

Nathália Temponi Natal e Cláudia Reis 

Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e, Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro. (Leia mais)


Algoritmos, protocolos e conteúdos patrocinados: uma combinação problemática na clínica com crianças e adolescentes 


Sílvia Reis Soares 

A psicanálise com crianças e adolescentes tem apresentado diversos atravessamentos a partir da incidência da tecnologia, da internet e das redes sociais. Investiga-se aqui a implicação do analista nesse contexto, tendo em vista a mudança da relação com o saber, que já não passa mais pela suposição ao Outro. (Leia mais)


O grito silencioso: o corpo da criança na clínica da civilização 


Alessandra Thomaz Rocha

O texto trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças. Para isso, a autora aborda a questão do grito em Lacan e localiza a questão do silêncio e sua importância na psicanálise. Articula-os um ao outro e à clínica do falasser a partir do acontecimento de corpo político, considerando que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização. (Leia mais)

 

 

INCURSÕES

Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses  

Sérgio de Castro

O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino e determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade. (Leia mais)


 

O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares  

Alejandra Glaze

Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. (Leia mais)


 

Alocução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano

Tereza Facury

A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos. (Leia mais)


 

A criança, seus delírios e os delírios de seus pais

Suzana Faleiro Barroso

A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai. (Leia mais)


 

Supereu solúvel no álcool? 

Miguel Antunes 

A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo. (Leia mais)

DE UMA NOVA GERAÇÃO

A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo 

Paulo Henrique Assunção Rocha 

No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. (Leia mais)


 

Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea? (Leia mais)


 

Do dom de Mauss ao inominável da pulsão

Laydiane Pereira de Matos

Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. (Leia mais)




EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 29

A Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSMMG.

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CORPOS ANORÉXICOS E O AVESSO DA BIOPOLÍTICA[1] 

HENRIQUE OSWALDO GAMA TORRES
Professor Aposentado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG,
Coordenador Clínico do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB/HC/UFMG)
e participante da Coordenação do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina (NIPM/IPSM-MG)
henrique.gamatorres@gmail.com
ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES
Psicanalista praticante, Membro aderente da Seção Minas da Escola Brasileira de Psicanálise.
Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da UFMG. Coordenadora Técnica do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB/HC/UFMG)
e participante da Coordenação do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina (NIPM/IPSM-MG).
Resumo: O presente artigo articula a anorexia e o avesso da biopolítica, da lógica cartesiana, dos protocolos universais. Investiga-se o para além da medicina baseada em evidências, que padroniza e normatiza protocolos. Não se propõe o avesso dos avanços propedêuticos e terapêuticos, mas a aposta de que o corpo escapa às identificações prontas, pois o gozo transborda, o sintoma que faz sofrer “traumatiza”. A aposta no singular da invenção sintomática, ao fazer vacilar a clínica médica, a psiquiatria, entre outros saberes, permite que o sujeito anoréxico apresente o corpo marcado para além do puro organismo, corpos afetados pela linguagem. Investiga-se a relação de cada falasser com seu inconsciente e suas respostas à biopolítica de nossos tempos.

Palavras-chave: anorexia; biopolítica; avesso da biopolítica; medicina; psicanálise.

Anorectic bodies and the reverse of biopolitics

Abstract: This article articulates anorexia and the reverse of biopolitics, of Cartesian logic, and universal protocols. We investigate beyond evidence-based medicine, which standardizes and regulates protocols. We do not propose the opposite of propaedeutic and therapeutic advances, but we believe that the body escapes from predetermined identifications, because jouissance overflows, the symptom that causes suffering, “traumatizes”. The bet on the singular of the symptomatic invention by making the medical clinic, psychiatry, among other knowledges falter, allows the anorexic subject to present the body marked by something beyond the pure organism, bodies affected by language. We investigate the relationship of each speaking being with their unconscious and their responses to the biopolitics of our time.

Keywords: anorexia; biopolitics; the reverse of biopolitics; medicine; psychoanalysis.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 

Pensar a clínica da anorexia e o avesso da biopolítica coloca, aqui, um ponto de investigação para além da medicina baseada em evidências, que nomeia e torna universais as respostas sintomáticas do corpo, normatizadas e padronizadas por protocolos de tratamento. A condução clínica de cada caso, orientada pela psicanálise lacaniana, aposta no singular da invenção sintomática ao fazer vacilar a clínica médica, a psiquiatria, entre outros saberes.

O sujeito anoréxico nos demonstra a existência do corpo marcado para além do puro organismo, do corpo afetado pela linguagem. Então, a condução clínica orientada pelo falasser e pelo avesso da biopolítica exige que o sintoma passe a ser definido a partir da singularidade do gozo do corpo. É necessário desconstruir o saber universal que possibilita a identificação em torno do “sou anoréxica” para investigar a relação de cada falasser com seu inconsciente. A biopolítica reduz o corpo à lógica cartesiana, a algoritmos que definem tratamentos universais.

Não se trata, aqui, de propor o avesso dos avanços propedêuticos e terapêuticos, mas de fazer a aposta de que o corpo não é redutível à imagem, aos transtornos, às disfuncionalidades. O que se visa demonstrar é para além do discurso universal: anoréxicas, é possível a aposta no discurso psicanalítico diante das exigências intervencionistas, sem desconsiderar a gravidade de cada caso, mas dando lugar ao singular que cada sujeito inscreve nas marcas do corpo.

Nessa perspectiva, um dos eixos do nosso trabalho é interrogar sobre quais seriam as respostas do falasser à biopolítica de nossos tempos. A título de ilustração, duas situações clínicas desses impasses são demonstrativas. Uma senhora com 20 anos de anorexia foi internada sob crise de hipoglicemia, extremamente desnutrida. A principal preocupação da equipe médica era alcançar um determinado Índice de Massa Corporal (IMC), mesmo à custa de uma alimentação forçada e internação compulsória, para, após o êxito em atingir os níveis de segurança demonstrado pelas evidências científicas, consentir com a alta. O argumento principal seria que o negativismo, a recusa e a agressividade como consequência da desnutrição devessem ser tratados por meio de recuperação nutricional e reforço positivo. A história clínica e o desencadeamento pouco importam. Trata-se de uma anorexia pura e pronto.

O outro caso é de uma jovem de 14 anos que, após se recuperar de uma desnutrição grave, além do incômodo com o corpo recuperado, manifestava também uma nostalgia do corpo magro e de outros atributos que associava a ele: a mais magra das amigas, a mais bonita, a que tirava melhores notas. A perda do corpo magro lhe dava uma sensação de intensa mediocridade e de uma perda no nível do ser. Nesse sentido, verifica-se a ineficácia na tentativa de reduzir o acontecimento anoréxico às classificações, categorias e protocolos. O inconsciente — “sensação de intensa mediocridade e de uma perda do nível do ser” — aponta para a importância da subjetivação do sofrimento.

A biopolítica diz respeito à medicina na medida em que inclui as evidências científicas nos dispositivos utilizados na gestão da população, quando, segundo Foucault, o poder soberano sobre a vida e a morte dos súditos foi substituído, historicamente, pela incorporação da vida, no sentido biológico mesmo, nas considerações políticas dos estados e dos governantes. A partir do século XVIII, passa a se racionalizarem os problemas colocados à prática governamental por fenômenos característicos de um conjunto de seres vivos que formam uma população: saúde, higiene, natalidade, expectativa de vida, raça, entre outros, cuja importância cresce progressivamente desde o século XIX e suscitam importantes questões políticas e econômicas até o presente (EWALD; FONTANA; SENELLART, 2004).

A importância dessa questão não se dá apenas pela racionalidade administrativa que ela enseja, mas por sua face menos visível, a da associação a tecnologias de poder, de cunho disciplinar, que passam a regular a vida no sentido de uma adequação dos corpos aos imperativos da vida política e socioeconômica. Qual é o sentido então de se discutir a anorexia nervosa no contexto da biopolítica? Provavelmente pelo fato de que a anorexia, no seu enfrentamento aparentemente irracional dos pressupostos da saúde e da preservação do corpo biológico, desafia a racionalidade fundadora da biopolítica. Nesse sentido, o papel da medicina tem sido o de um disciplinador feroz dos corpos anoréxicos.

Nesse sentido, torna-se essencial uma breve retrospectiva histórica, em que se pode observar certo paralelismo entre a história da anorexia e a da biopolítica. De início, antes da definição da anorexia como entidade nosológica, temos o histórico da anorexia santa, com as descrições de casos tais como o de Catarina de Siena, na segunda metade do século XIV. Estudos sobre as santas anoréxicas indicam diferenças entre aquela anorexia e a anorexia moderna, destacando a ausência de questões com a imagem corporal nas primeiras, em quem a recusa alimentar encontrava-se atrelada a valores de pureza religiosa e proximidade de Deus. Não deixa de destacar, entretanto, principalmente no caso de Catarina de Siena, a condição feminina ou a afirmação feminina diante da estrutura masculina e patriarcal da igreja católica da época, que não deixa de ter algo de uma confrontação política, mas não necessariamente ligada à biopolítica. Destacam-se os casos em que anoréxicas foram submetidas a acusações e julgamentos por heresia e bruxaria, confrontadas com profundo ceticismo pela hierarquia clerical masculina (BELL, 1985).

A primeira descrição de um caso de anorexia nervosa será realizada por Robert Morton, em 1686, que destaca a recusa de alimento e tratamentos a uma jovem de 20 anos e expressa sua perplexidade com a escolha pela inanição, dando origem às considerações sobre o caráter emocional ou psíquico da condição. Destaca-se que coincide com a época da origem histórica da biopolítica. Relatos esparsos sobre anorexia ocorrem ao longo do século XVIII, mas o reconhecimento específico e a nomenclatura tiveram de aguardar os relatos independentes de William W. Gull, em 1868, e Lassegue, em 1874. Ambos destacam a possível gênese psíquica da anorexia e Lassegue faz uma descrição clínica muito rica, destacando o caráter egossintônico, a rigidez anoréxica, a perplexidade e a impotência da família. Momento que corresponde à ascensão da vida burguesa, com todo o seu aparato de costumes e com a posição da mulher, que deve ser contida, casta e virtuosa (BELL, 1985).

O emprego do diagnóstico de anorexia mental por Charcot acaba por consolidar a anorexia nervosa (ou mental, ou histérica) como categoria, e a apresentação de Pierre Janet, em 1906, em Harvard, consolida as bases para a definição de uma etiologia psíquica para a anorexia nervosa. Entretanto, pouco tempo depois da palestra de Janet, em 1914, a publicação de Simmonds acerca dos achados de necrópsias com lesões destrutivas da hipófise em grávidas gravemente desnutridas desloca completamente a avaliação etiológica para o campo da doença somática, e os achados psicológicos isolados por Gull e Lassegue passam a ser ignorados pelos próximos vinte anos. Dessa forma, a abordagem da desnutrição extrema, mesmo aquela claramente autoinflingida, foi, nesse período, abordada como uma condição endocrinológica. Mesmo após a distinção entre os achados de Simmonds e a anorexia ser finalmente alcançada no fim dos anos 1930, abordagens somáticas passaram a ser proeminentes nas tentativas de tratamento da desnutrição autoinflingida (BELL, 1985).

Os anos 60 trazem o importante marco de Hilde Bruch, que retoma os aspectos psíquicos da anoréxica mas destaca a “anorexia pura”, diferente da anorexia associada a outras condições psíquicas e considerada pouco permeável às técnicas psicanalíticas de escuta e interpretação tradicionais. Em trabalho inaugural, que se torna referência importante, destaca-se o aspecto da recusa e aponta a mudança de comportamento da jovem anoréxica que, de criança boa e cordata, transformava- se em uma criança negativista, raivosa e desconfiada, que rejeitava ajuda e cuidado de forma obstinada, alegando deles não necessitar, e insistindo no direito de ser tão magra quanto quisesse. Contudo, destaca o papel fundamental da fala como elemento da cura da anorexia (BRUCH, 1982).

Mais recentemente, o pêndulo pende novamente para uma etiologia biológica da anorexia nervosa. Essa disposição pode ser observada na mudança ocorrida no DSM-IV para o DSM-5, em que a palavra recusa (recusa em manter o peso corporal igual ou acima do peso minimamente normal para a idade e estatura, critério letra A), presente no DSM-IV, foi retirada de forma deliberada do DSM-5. O argumento principal foi de que a recusa implica um processo psicológico ativo e consciente, frequentemente não observável nesses pacientes, e que o modelo psicológico inicial é aquele de pacientes que se engajam em dietas com o objetivo de perder peso, sem necessariamente buscar uma perda que levaria à condição anoréxica. A manutenção ativa da perda de peso promovida pelo jejum ocorreria naqueles casos em que se dispara o mecanismo biológico hipotético presente nos predispostos, ligado à deficiência genética de uma enzima do metabolismo lipídico. Os propositores da retirada da palavra “recusa” afirmam que a interpretação da forma usual de perder peso como um processo intencional e deliberado tem influenciado excessivamente a forma de pensar sobre o paciente portador de anorexia (DSM-5, 2014).

Chegamos então à atualidade, em que a abordagem médico-psiquiátrica da anorexia se radicaliza no sentido da afirmação de sua origem geneticamente determinada a partir dos estudos GWAS (Genome-wide association studies). Paralelamente, as jovens anoréxicas e bulímicas vão se organizando em comunidades virtuais, autodenominadas como “Anas” e “Mias”, respectivamente. As comunidades virtuais procuram preservar a identidade anoréxica, ainda que à custa de dispositivos medicamente justificados.

Composto por uma série de referências cruzadas e sites em constante mudança, o movimento é entendido como de defesa da anorexia e outras práticas semelhantes relacionadas à alimentação e como um estilo de vida e escolha de identidade legítimos. Indivíduos — principalmente mulheres — participam do movimento, em grande parte de forma anônima e por pseudônimos, compartilhando dicas e truques para perda de peso, dietas, exercícios e materiais de “thinspiration” (destinados a promover ou sustentar a perda de peso) on-line, com blogs pessoais, poesia, salas de bate-papo e, mais recentemente, postagens no YouTube e Facebook expandindo sua troca virtual. Trata-se de vozes inaceitáveis nos discursos mainstream sobre anorexia, e essa troca virtual é censurada não só pelo seu conteúdo perigoso, mas também pelo seu potencial de contaminação. Se há uma grande discussão na literatura sobre tratamentos coercitivos e compulsórios da anorexia, a formação dessas comunidades constitui uma resistência ao discurso médico normativo sobre o corpo e sobre a anorexia (BELL, 2009).

Aqui, um desafio se coloca na condução do tratamento psicanalítico, que é a aposta em saídas que não sejam pela identificação, tal como as comunidades de gozo e os novos e crescentes modos de segregação. Será o desejo decidido do analista, acolhendo esses sujeitos, suportando a repetição monótona do tema em torno do alimento, do peso, das práticas purgativas que, via transferência, possibilita o tratamento, que visará dar lugar a uma nova subjetivação do sofrimento.

Se a posição médica normativa e a reação das comunidades anoréxicas autorizam pensar em biopolítica em relação à anorexia, faz-se essencial que se discuta o que foi abordado no texto “O avesso da biopolítica”, de Éric Laurent. O psicanalista alerta continuamente que é necessário diferenciar sobre qual corpo estamos falando e sobre que discurso se procura consumar na modernidade científica e tecnológica, a identificação entre o corpo-máquina e o ser falante (LAURENT, 2016).

Se a medicina constrói sua prática (seu saber-poder) no registro do corpo-máquina, a essa abstração cartesiana parece que, apesar do caráter de resistência que se encontra na base da formação das comunidades anoréxicas, estas também parecem estar submetidas a esse mesmo paradigma quando se utilizam de versões do saber médico para disseminar suas práticas e moldar seus corpos. O movimento pró-anorexia está inextricavelmente ligado à lógica médica e não escapa da sua autoridade ao tentar ressignificar sua força disciplinar.

O discurso médico dominante é central para a identidade “Ana” — comunidades de gozo. Os sites diagnosticam anorexias, prescrevem métodos para perda de peso ou manutenção do baixo peso, conforme uma lógica do corpo-máquina, manipulável conforme o efeito que se deseja. Essa manipulação toma proporções às vezes dramáticas no uso de vomitivos, laxantes, diuréticos ou de restrição alimentar, isolados ou em combinação, levando pacientes aos limites da tolerância fisiológica, ao fio da navalha entre a vida e a morte. Observa-se uma crença nas tecnologias medicamentosas para a purgação e a perda de peso e um regozijo com a capacidade de se controlar e manipular a fome e a silhueta, como se a natureza que demanda nutrição adequada pudesse ser colocada sob controle sem qualquer prejuízo.

Em suma, a aposta de tratar o corpo anoréxico via o avesso da biopolítica é pela via que nos ensina a psicanálise, pois o corpo escapa às identificações prontas, o gozo transborda, o sintoma que faz sofrer, que “traumatiza” quando acolhido em seu falasser pelo analista, pode permitir que o sujeito escreva, de outro modo, o que se inscreve desse encontro traumático.

 


 

Referências
BELL, R. M. Holy anorexia. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.
BELL, M. “@ the doctor´s office: pro-anorexia and the medical gaze”. Surveillance & Society, n.6. vol.2, p. 151-162. Dispnível em: http://www.surveillance-and-society.org.
BRUCH, H. “Anorexia Nervosa: therapy and theory”. The American Journal of Psychiatry. n. 139, v. 12, dez. 1982. Disponível em:       https://ajp.psychiatryonline.org/doi/abs/10.1176/ajp.139.12.1531
EWALD, F.; FONTANA, A.; SENELLART, M. (1978–79) The Birth of Biopolitics Lectures at the collège de france. Paris: Editions du Seuil/Gallimard, 2004.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina – Seção Clínica do IPSM-MG, em 06/05/2022.



DISCURSOS DE GÊNERO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES

RODRIGO ALMEIDA
Psicanalista, psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG
romabh2003@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.

Palavras-chave: Gênero; queer; discurso; sexuação; falasser.

Gender discourses and psychoanalysis: possible interlocutions

Abstract: This paper discusses some aspects of “gender discourses” and their theories in what they counterpose to psychoanalysis by briefly reviewing the discourse of psychoanalysis, its practice and place in the social sphere. With that said, we interrogate how the debate with gender theories can contribute to psychoanalysts in reading the subjectivity of their time.

Keywords: Gender; queer; discourse; sexuation; parlêtre.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Em nossa condição de seres falantes e sexuados, chegamos ao mundo onde diversos discursos nos precedem antes mesmo de nosso nascimento. Somos atravessados pelo real e pelo encontro sempre traumático com o sexual. Lacan (1977, inédito, tradução nossa), mais ao final de seu ensino, afirma que “o sexo é um dizer”. Para além do falo, o ser sexuado pode ser lido em termos de sexuação, portanto, o que vamos levar em conta é a posição de gozo do sujeito.

O discurso psicanalítico demonstra seu alcance como “um instrumento poderoso” (LAURENT, 2016, p. 219) para questionar tanto outros discursos quanto os corpos e seus modos de gozo. O conceito de falasser, ao incluir o corpo e, por extensão, a noção de inconsciente político, possibilita interrogar a relação do sujeito com o discurso. Seguindo com Laurent (2016, p. 213), “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado”. Há assim uma dimensão coletiva, que surge em suas nomeações e desencontros, em que a subjetividade individual é marcada pela época em que se inscreve. Nas palavras de Brousse (2018, p. 137), “Trata-se de considerar os falasseres como solidões numerosas e irremediáveis, que fazem série e não grupo. A experiência analítica nos cura do Nós, ao preço de uma perda do sentido, frequentemente gozoso”. Podemos afirmar que a psicanálise, ao levar em conta o real e o gozo, ao ler a subjetividade de sua época, vai mais além dos discursos vigentes. Com relação aos discursos de gênero, o que ela teria a dizer?

Diante dessa questão, vale ressaltar que qualquer ideia de normatização da sexualidade não está presente na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela opera para além dos gêneros com os quais o falasser possa se identificar. Constatamos, hoje, a propagação dos discursos de gênero abarcada pelas chamadas teorias queer, que se propõem a reorganizar o discurso sexual, interrogando outros saberes e a sociedade, que aparecem como reguladores de corpos e de sua vivência da sexualidade e identidades. Importante salientar que o que chamamos aqui de discurso de gênero tem relação com os enunciados que governam e norteiam momentos históricos específicos, e a noção de discurso fundamenta-se em conceitos foucaultianos. Conforme Salih (2009, p. 69), “Foucault está interessado particularmente na posição de sujeitos pressupostas pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente constituídos”.

Com a disseminação de tais discursos, a psicanálise se viu convocada a revisitar as elaborações lacanianas sobre a diferença sexual, colocando em relevo a tábua da sexuação, o não-todo e a conjugação do corpo com o gozo, confrontando-se, assim, com o lugar privilegiado de saber sobre a sexualidade. Nos últimos anos, foi possível observar que a psicanálise foi alvo de diversos posicionamentos contrários ao seu discurso teórico, e até mesmo à sua ética. Desse modo, julgamos relevante abordar alguns pontos sobre o “discurso de gênero” e suas teorias, tentando localizar pontos de diálogo para o debate e que podem nos interessar enquanto praticantes da psicanálise.

Nessa interlocução de saberes proposta pelas teorias de gênero, a psicanálise está presente como instrumento de leitura e diálogo com seus teóricos. A partir da insurgência de um debate, a psicanálise se vê convocada não só a responder, como também a marcar seu posicionamento diante do contemporâneo, norteado por sua ética e sua política. Cada vez mais a prática clínica se vê interrogada por aqueles que buscam uma análise, seja, inicialmente, para um acompanhamento em um processo de transição — no caso de sujeitos trans —, seja para aqueles que se interrogam sobre as mudanças advindas pela diversidade sexual diante de suas escolhas e do outro do laço social.

Na obra Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, vista por muitos como referência para os estudos queer, Judith Butler afirma, num primeiro momento de suas formulações, que a teoria feminista presume a existência de uma identidade definida e que a “(…) concepção dominante da relação entre teoria feminista e política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2020, p. 18). A filósofa — que hoje se identifica como gênero não binário e que atualmente propõe pensar as questões de gênero a partir da ideia de decolonização e racismo —, em seus primeiros estudos, demonstrava a complexidade de presumir certa identidade fixa e a impossibilidade de conjecturar um feminino universal. Butler afirma que várias pessoas não se identificam ou não se veem representadas pelo feminismo. Esse movimento pode ser notado também em outros grupos minoritários, como o de gays e de lésbicas. Há dissidências dentro dos próprios grupos; a vivência da sexualidade é diferente para cada sujeito e as ideias se movimentam, o que leva a distintas noções de identidade. Poderíamos dizer que, para Butler, o queer origina-se de uma ruptura com o que se estabelece enquanto norma na construção de uma identidade. A autora vai propor que as identidades se constroem a partir de um corpo social e se conecta à ideia de performance e performatividade na elaboração de sua teoria sobre o gênero. Butler faz uma interface com a psicanálise, o estruturalismo e a genealogia foucaultiana em suas formulações.

Em relação à psicanálise, ela vai interrogar, a princípio, se não seria a psicanálise mais um saber, entre outros, que propõe uma leitura das identidades com base em uma matriz heterossexual e que funciona a favor de uma hierarquia já estabelecida em relação ao gênero. Vale ressaltar que o conceito de gênero ordena um conjunto interdisciplinar de saberes, devido à sua complexidade. Para Butler (2020, p. 27), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscriçãocultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Tanto o queer quanto as teorias de gênero trazem em sua origem a semente da recusa a um enquadramento, levando-se em consideração resistir à possibilidade de domesticação acadêmica.

Rafael Leopoldo (2020), em seu livro Cartografia do pensamento queer, esclarece sobre a palavra inglesa queer: inicialmente, sua acepção era de insulto e nomeava o estranho e bizarro, estando fora do que se nomeava como normal. Um fora de lugar, nem lá nem cá, nem isso nem aquilo, simplesmente queer. Esses corpos excluídos e marcados, muitas vezes, de forma violenta, rechaçados do social e do espaço público, apropriam-se do termo e fazem dele outro uso, um uso como ferramenta de ruptura frente à normalizaçãoda sociedade. De acordo com Leopoldo:

“O queer, ante isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e normalização. (…) O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).

A questão do gênero não é formulada pela psicanálise da mesma forma que para os estudos de gênero, visto que aquilo que a psicanálise entende por homem e mulher em relação ao gênero se difere do que propõem os estudos de gênero. Tomamos aqui uma definição oferecida por Leguil:

“Para a psicanálise, o gênero é da ordem de uma posição subjetiva dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro. (…) Para a psicanálise, o gênero é, antes, aquilo atrás do qual o sujeito corre, tentando, assim, ir ao encontro de alguma coisa de seu ser, sem nunca sê-lo totalmente” (LEGUIL, 2016, p. 40).

Marie-Hélène Brousse (2019) nos diz que o gênero se torna um significante mestre no lugar do sexo; o termo “gênero” vai evitar o equívoco que se apresenta no significante “sexo” em relação ao binário masculino/feminino, introduzindo assim um terceiro termo, o neutro. Parece ser importante a possibilidade de adentrar no debate das questões de gênero e identidade, apoiando-se na ética da psicanálise e para além da noção do discurso do mestre, levantando as modificações que surgem no social e o que dela é possível recolher no discurso dos analisantes.

Se, antes, a diferença sexual e o binarismo homem/mulher serviam de bússola para o sujeito, as questões de identidade e de gênero vêm, de certa maneira, reorganizar o conjunto dos discursos. Brousse (2019, p. 73) ressalta ainda que Lacan, ao final de seu ensino, “mudou a distribuição dos mecanismos de identificação”; há uma destituição do Outro e o sujeito é pensado a partir dos três registros.

Em relação ao falasser, Miller observa: “(…) não se trata mais do sujeito, do sujeito do significante, do sujeito da identificação” (MILLER, 2009, p. 110). Com a ideia do falasser, o Outro não é mais o lugar das identificações; em seu lugar está o corpo, o corpo próprio. Corpo e gozo se conjugam na identidade daquele que fala. Assim, o processo de identificação vai surgir não mais do Outro, mas de Um-corpo, esse corpo que o falasser adora por acreditar que o tem, esse corpo que se conjuga com o gozo.

Recebemos cada vez mais sujeitos que interrogam sobre o gênero e suas identificações, recolhendo assim os efeitos do discurso de gênero na clínica. Se, enquanto analistas, nos orientamos pelo sintoma e o gozo, indo além da ideia de identidade, cabe a nós acolher a forma como o falasser se apresenta, assim, “tomamos a identidade sexual como qualquer outra portada pelo falasser” (FAJNWAKS, 2017, p. 38).

Para Lacan, a existência do inconsciente é inseparável da noção de sexualidade; o inconsciente é o índice do fracasso do biológico e do cultural. Importante salientar que Lacan, ao teorizar sobre a sexualidade, não a coloca em termos de gênero, mas de gozo. Alguns estudiosos do gênero que mantêm uma interlocução com a psicanálise afirmam que Lacan (2008), ao propor as fórmulas da sexuação e ao estabelecer o lado homem e o lado mulher em seu quadro, acaba criando uma padronização das identificações reduzida ao binarismo homem/mulher. De acordo com a leitura de Butler, “(…) a versão lacaniana do sexo e da diferença sexual coloca suas descrições de anatomia e desenvolvimento em um quadro não examinado de heterossexualidade normativa” (BUTLER, 2019, p. 195). Para ela, o que Lacan chama de posições sexuadas se estabelece “relegando as identificações não heterossexuais ao domínio do culturalmente impossível (…)” (BUTLER, 2019, p. 195).

Posto isso, interrogamos se, para os teóricos do gênero, os importantes desdobramentos das formulações lacanianas sobre a sexuação não são levados em conta no embate, visto que o que vai interessar à psicanálise é a posição de gozo do ser falante e o feminino que se localiza em cada falasser. De acordo com Ambra, Silva Jr. e Laufer:

“(…) a aposta lacaniana em localizar a sexuação numa diferença radical que aponta para o real subverteria os apegos imaginários identitários presentes em diversos usos das teorias de gênero. Mais ainda ficariam desarmadas as críticas feministas à centralidade do falo como significante privilegiado da subjetividade, na medida em que tais fórmulas de Lacan apontariam outro domínio da experiência, não todo marcado pela castração” (AMBRA; SILVA JR; LAUFER; 2019, p. 3).

Lacan, em “Les non-dupes errent”, propõe o aforismo: “O ser sexuado se autoriza de si mesmo e de alguns outros” (tradução nossa). Essa sentença que reverbera entre os psicanalistas não reduz a ideia da escolha para o ser sexuado. A questão simbólica imposta pelo binarismo homem/mulher permite também avançar teoricamente a partir das fórmulas da sexuação. Nas palavras de Lacan:

“(…) o ser sexual se autoriza de si mesmo. É nesse sentido que… que ele tem a ‘escolha’. Quero dizer que isto a que a gente ‘se limita’ enfim para classificar como ‘masculino’ ou ‘feminino’ no registro civil… enfim, isso… Isso não impede que haja escolha. (…) Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros.” (LACAN 1973, aula de 9/2/1974).

Fajnwaks (2020) nos diz ser importante interrogar quem são esses alguns outros, pois não se trata mais do grande Outro, mas do outro do imaginário. É importante ressaltar que, mesmo que Lacan proponha suas fórmulas da sexuação a partir do binarismo e evocando a ordem simbólica, ele inclui a dimensão do imaginário. Alguns outros fazem parte da escolha e da ideia de reconhecimento que o sujeito busca em suas identificações. Nesse percurso de leitura, aventamos a hipótese de que o discurso de gênero objetiva o Um da identidade ofertado pelo discurso do mestre contemporâneo. Nas palavras de Musachi  “(…) nessa tentativa se opera um certo ‘empuxo’ ao Um da identidade, o que produz uma suspensão em relação às identidades” (MUSACHI, 2020, n/p, tradução nossa). Ao tomarmos como referência a orientação lacaniana, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, temos uma leitura da sexualidade em que não se trata de universalizar, mas de singularizar o gozo, considerando o encontro de um real com lalíngua, que habita o falasser e determina suas identificações.

Se, para alguns teóricos, a questão do gênero concerne apenas à performatividade, a psicanálise não se limita a apenas uma questão de semblantes, mas busca interrogar as mutações no sexual, a partir do desacordo entre os lados feminino e masculino da sexuação. A psicanálise, ao se apropriar do aforismo lacaniano de “que não há relação sexual” (LACAN, 2008, p. 19), não trata as questões contemporâneas concernentes ao gênero como uma simples aparelhagem dos semblantes sem relação com o gozo. Em nossa clínica, recebemos sujeitos que se dizem trans e que colocam em xeque a construção de uma identidade. Para a psicanálise, diferentemente do que propõem algumas teorias de gênero, não há um unarismo do gozo no acolhimento da diversidade sexual. Para ela, a sexualidade é diversa em relação às soluções únicas que o próprio sujeito encontra para lidar com o gozo.

Enquanto praticantes, sabemos que a diferença sexual não se inscreve no inconsciente, mas é na relação com o inconsciente que o sujeito situa sua vida sexual numa outra cena, não se limitando, assim, à questão da anatomia e das normas sociais. Em tempo, parece importante não cairmos na idealização da psicanálise como absoluta, que tudo pode enunciar — vale lembrar que tanto Freud quanto Lacan se valeram de outros saberes diante daquilo que a prática clínica de sua época lhes interrogava. Assim, não devemos nos eximir de nossa responsabilidade ética e política diante da alteridade nem dos fenômenos contemporâneos.

 


 

Referências
AMBRA, Pedro; SILVA JR., Nelson; LAUFER, Laurie. O ser sexual só se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Psicologia em Estudo, [s. l.], v. 24, p. 1-14, 2019. Acesso em: 1 mar. 2022.
BROUSSE, Marie-Hélène. Democracias sem pai. In: O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 129-137.
BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo e a identidade um sintoma. In: Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019, p. 67-74.
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo:
Crocodilo edições, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
FAJNWAKS, Fabián. Lacan e as teorias queer: mal-entendidos e desconhecimentos. In: SANTIAGO, Ana Lydia et al. (org.). Mais além do gênero: corpo adolescente e seus sintomas. Belo Horizonte: Scriptum, 2017, p. 22-40.
FAJNWAKS, Fabián. Lo que el sujeto trans enseña al psicoanálisis. In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2008.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 9 de abril de 1974. (Inédito)
LACAN, J. Momento de concluir. Aula 15 de novembro de 1977. (Inédito, 1977-1978)
LAURENT, Éric. O Falasser político. In: O avesso da biopolítica: Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 201-220.
LEGUIL, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento queer. Salvador: Editora Devires, 2020.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
MUSACHI, Blanca. Ser sexuado en el siglo XXI: ¿ empuje a lo trans? In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.



PSICANÁLISE E POLÍTICA[1] 

FABIÁN A. NAPARSTEK
Psicanalista, AME da EOL/AMP
fabiannaparstek@hotmail.com

Resumo: Neste artigo Fabián Naparstek parte de uma referência a Cervantes e Borges para, com as indicações de Lacan, abordar o laço entre psicanálise e política. Desse modo, o autor faz uma leitura da política envolvida no laço entre os analistas, na direção do tratamento, assim como na própria posição do analista no mundo, marcando uma orientação que vai contra os processos de segregação, propondo uma estratégia que segue, a cada época, uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro.

Palavras-chave: psicanálise; política; sintoma; segregação.

Psychoanalysis and Politics 

Abstract: In this essay, Fabián Naparstek makes reference to Cervantes and Borges in order to discuss the link between psychoanalysis and politics. The author comments on the politics involved in the bond between analysts, in the direction of treatment, as well as in the analyst’s own position in the world, marking an orientation that goes against segregation, proposing a strategy that has in mind the singular of the symptom that is not without the other. 

Keywords: psychoanalysis; politics; symptom; segregation.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

“Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face
do mundo. Sua tarefa persiste. Se nossas previsões não
estiverem erradas, daqui a cem anos alguém descobrirá
os cem tomos da segunda enciclopédia de Tlön. Então,
desapareceram do planeta o inglês, o francês e o mero
espanhol. O mundo será Tlön”.

(BORGES, 1940, p. 435, tradução nossa)

 

A leitura e a política

O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha passou da leitura para a cidade real. Isso o levou a pelejar contra os moinhos de vento.

Borges, por sua vez, pensava que a leitura poderia mudar o mundo. O borgeano, se é que isso existe, é a capacidade de ler tudo como ficção e acreditar no seu poder. Definitivamente, o mundo Tlön, de Borges, é a ilusão de um universo criado pela leitura e que depende dela. Lê-se o real perturbado e contaminado pela ficção. Uma ficção que tem consequências. Por sua vez, J.-A. Miller comparava esse mundo borgeano com a leitura de Jacques Lacan. Com efeito, Lacan dedicou uma vida a se colocar diante de seus alunos — os que o seguiam — fazendo uma leitura pública do retorno ao Freud. Uma leitura que supõe uma posição política e que tenta produzir consequências. Produziu para ele próprio, já que ousou ir mais além do pai e de Freud.

 

Três citações

Partirei de três indicações de Lacan para abordar o laço entre psicanálise e política. Em primeiro lugar, J. Lacan falava sobre a “falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos do Homem” (LACAN, 1985, p. 12). Imediatamente acrescentava, que “Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável” (LACAN, 1985, p. 12) e que “Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares” (LACAN, 1985, p. 13). Definição que pode ser estendida ao conceito de política em geral, mas que, nesse caso, se refere aos eventos de excomunhão aos quais Lacan foi submetido pela Associação Internacional de Psicanálise. Sublinha-se o fato de ele próprio ter sido objeto de negociação pelos seus próprios alunos e pacientes.

Em segundo lugar, vou deter-me em uma referência ao texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Ali J. Lacan propôs uma política específica na realização dos tratamentos. Destaca, em primeira instância, a impotência de sustentar uma práxis quando ela se reduz ao “exercício de um poder” (LACAN, 1998, p. 592). Com efeito, toma a perspectiva do lugar do analista e de suas dificuldades.

Por fim, fornece mais uma indicação que, surpreendentemente, remete “ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 2003, p. 235). Na verdade, essas são as perspectivas que J.-A. Miller (1999) apontou no início de seu seminário sobre a Política Lacaniana nos anos de 1997 e 1998.

 

A política do tratamento

Em relação ao tratamento, a política tem um lugar central na discussão da época. Em vez da suposta neutralidade do analista, Lacan se opõe propondo na psicanálise uma política bem determinada, na qual o analista é tudo, menos livre. É menos livre na tática e na estratégia. Existe apenas UMA política! Por outro lado, a referência à política no tratamento centra-se na ação que emana de sua falta a ser, e não de seu ser. De fato, como assinala J. Lacan, o analista “é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (LACAN, 1998, p. 593-594). Vale a pena mencionar aqui, como disse J.-A. Miller, que tal ação é o antecedente do que será mais tarde o ato analítico e que esse ato terá algo de não natural. É por isso que, para Lacan, o problema central não será que haja analisandos, mas que haja um analista. De fato, “a reprodução dos sintomas já não constitui um problema, mas somente a reprodução dos analistas; a dos pacientes está resolvida” (LACAN, 1998, p. 630).

 

A política e os analistas

Quanto ao laço entre os analistas, Lacan subverte o tipo de estrutura de associação possível e os modos de obtenção de títulos entre eles. A invenção dos dispositivos lacanianos — entende-se pela Escola, o cartel, o dispositivo do passe, etc. — perturba a tendência natural ao encontro dos analistas como grupo de ajuda mútua para o exercício de poder. De fato, vale ressaltar que a invenção de dispositivos é para forçar algo que vai contra uma tendência natural ao poder e à manutenção do vínculo libidinal entre iguais. A Escola e seus dispositivos, na política de Lacan, visam acolher o diferente, colocar o analista como um desconhecido, um de cada vez, e a uma elaboração coletiva a partir da heterogeneidade das singularidades. Uma política na qual “tudo é da ordem do analítico” (MILLER, 2016, p. 12).

 

A política da psicanálise no mundo

Finalmente, nos referimos ao aspecto da psicanálise e dos analistas no mundo. Como já foi apontado, J. Lacan atribui um dever ao analista no mundo. Aqui também não se trata da neutralidade. A referência não é tanto que o analista participe como cidadão (algo que não lhe é proibido obviamente), mas que ele possa introduzir algo a partir da perspectiva analítica. A questão é sobre o que a psicanálise pode fazer valer a partir de sua própria orientação. Se a política em geral responde ao discurso do mestre na medida em que tenta introduzir a captura do sujeito por um significante mestre, a posição da psicanálise visa destituir o sujeito desse significante para que ele possa contribuir com o que nele há de singular.

  1. Lacan (2003, p. 560) nos fala do direito ao sintoma. Surge daí uma política que visa a desidentificação para que cada sujeito possa contribuir a partir de sua perspectiva mais singular, de sua “luz interior”, como coloca S. Weil (2021). De fato, percebe-se que qualquer política que vise sustentar identificações necessariamente leva à segregação. Questão que foi de grande preocupação para J. Lacan em diferentes momentos de seu ensino. Os efeitos de uma segregação que, em seu extremo, leva ao extermínio do diferente.

 

A proposição

Na “Proposta de 9 de outubro de 1967…”, J. Lacan apresenta sua preocupação com a segregação e sua ligação com os campos de concentração.

Quando fala sobre isso, ele nos diz que:

“(…) o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (LACAN, 2003, p. 263).

Nesse parágrafo, ele não apenas aborda a questão extrema dos campos de concentração como um evento recente, mas também anuncia que isso pode acontecer novamente no futuro. A análise política da questão é realmente uma revelação chocante. No ano de 1967, na época das grandes liberdades na Europa Ocidental e após o suposto aprendizado que os horrores da Segunda Grande Guerra poderiam ter acarretado, J. Lacan antecipa novas segregações. Na verdade, coloca os Naziz como precursores do que está por vir. Pode-se indicar que foram precursores do modo gueto, onde se separa o diferente e marca uma época já há algum tempo. Os agrupamentos sociais que se reorganizam podem ser vislumbrados nas diferentes formas de bairros, mais ou menos fechados, que servem para que cada um viva ao lado daqueles que assumem desfrutar do mesmo que si mesmos. Sua indicação aponta que, quanto maior a universalização da ciência — o que hoje chamamos de globalização —, maiores serão os efeitos da segregação.

O mais surpreendente é que essa indicação é feita na “Proposição” do dispositivo do passe. Quero dizer que, onde ele introduz sua política ou sua concepção do final da análise, assim como sua política de Escola para a seleção de analistas, é também o momento em que ele introduz essa análise de seu tempo e do que está por vir. Nesse texto encontramos articulados os três aspectos da política para J. Lacan: em torno da direção do tratamento, do laço entre os analistas e do analista na pólis. Assim, pode-se inferir que o problema da ação do analista ou do ato do analista será central na articulação entre política e psicanálise no que diz respeito aos três aspectos que focalizamos.

 

Lacan e o tempo

Nesse ponto, vale situar que Lacan pensa em seu tempo e faz a dedução do porvir. J.-A. Miller faz um desenvolvimento muito preciso do que podemos entender por tempo em J. Lacan. Lá ele aponta que se trata da “realidade transindividual do sujeito” (MILLER, 2021, p. 21, tradução nossa) em um dado momento no tempo. Miller indica que “o exemplo memorável que todos conhecem e lembram, mesmo que não sejam lacanianos, é o dos três prisioneiros. São três indivíduos, mas estão presos um ao outro, o que constitui uma subjetividade, uma subjetividade prisioneira, como um prisioneiro de seu próprio tempo” (MILLER, 2021, p. 22, tradução nossa).

Em 1944, J.-P. Sartre escreveu a sua famosa peça Entre quatro paredes (2008), na qual se mostrava que o inferno são os outros. A Segunda Guerra Mundial ainda não havia acabado, assim como Paris também não havia sido libertada, e Sartre colocou na mesa o problema do confinamento e dos outros. A obra mostrava uma única cena contrária a qualquer possibilidade de pensar um lugar diferente. De fato, J. Lacan (1998, p. 197) argumenta com Sartre — propondo exatamente o contrário —, pois para ele não há saída para o sujeito a não ser com o Outro.

Vale notar que Lacan tenta ler, como outro prisioneiro de seu tempo, as variáveis que determinam nossa posição e que nos dão a possibilidade de pensar uma estratégia específica a partir da dedução de nossa posição a cada momento. Uma estratégia que segue uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro. A era atual gera novos significantes aos quais o indivíduo pode se identificar gerando novos modos de segregação, e veremos se a psicanálise estará à altura da tarefa de contrapor esses novos modos de segregação a partir de seus dispositivos e de uma política que permita desidentificar e colocar no horizonte o fato de que não há solução total (final) que permita evitar totalmente o sofrimento.

Por fim, pode-se concluir que em Lacan há um “realismo” (MILLER, J-A., 1999, p. 9-12) em sua concepção de política. É um realismo que se opõe a qualquer idealismo segregativo. O uso dos significantes mestres, que se apresentam de maneira diferente em cada época, pode levar, em cada ocasião, a novos modos de segregação. Assim, a atual pressão por uma identidade que ofereça a ilusão da eliminação do sofrimento coloca os analistas diante do dever de ecoar que a saída é, para cada sujeito, no singular e que nenhuma identidade pode resolver o mal-estar na cultura.

Prosseguimos com uma advertência de J. Lacan no sentido de que:

“(…) O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se confirma nossa política — foi esse o passo que ela deu — implica, por outro lado, que tudo o que se articula dessa ordem é passível de interpretação. Por isso é que tem toda razão quem põe a psicanálise à frente da política. E poderia não ser nada fácil, para o que da política fez boa figura até aqui, se a psicanalise se revelasse mais esperta” (LACAN, 2009, p. 115).

Seguindo essas indicações, o sintoma, a política e o direito podem ser amarrados em seu laço com a singularidade. Que, finalmente, supõe o direito à interpretação em cada sujeito que decide tomar a palavra frente a uma época que pretende fazer valer os supostos direitos, para eliminar o mal-estar total na identificação à literalidade de uma palavra (MILLER, 2021).

Como dizia Lacan em “A terceira”, embora o real atravesse, “o analista tem por dever combatê-lo” (LACAN, 2015, p. 17, tradução nossa). Ele poderá fazer, em cada caso e em cada momento, a sua leitura e a sua interpretação.

 

Tradução: Jônatas L. Q. Casséte
Revisão: Renata Mendonça

Referências 
BORGES, J. L. (1940). “Tlön, Uqbar, orbis Tertius”. Ficciones, Obras completas, Buenos Aires: Emecé, 1974.
LACAN, J. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1964) “Ato de fundação”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975) “Joyce, o Sintoma”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1967) “Proposição de 9 de outubro de 1967”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1945) “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro XVIII: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
LACAN, J. (1974) “La tercera”. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, nº 18. Buenos Aires: EOL-Grama, 2015.
MILLER, J.-A. “Iluminaciones profanas”, aula de 9 de setembro de 2005, inédito.
MILLER, J.-A. (1997-1998) Política lacaniana. Buenos Aires: Colección Diva, 1999.
MILLER, J.-A. (2000) “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”. Opção Lacaniana online, nova série, ano 7, nº 21, novembro 2016. Disponível em:  http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf (Recuperado em 20/05/2022).
MILLER, J.-A. Polêmica política. Madrid: Gredos, 2021.
MILLER, J.-A. “L’écoute avec et sans interpretation” videoconferência de J.-A. Miller em Mosou, 2021. Disponível em Lacan Web Télévision: https://www.youtube.com/watch?v=F56PprU6Jmk.
SARTRE, J.-P. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
WEIL, S. Sobre a supressão geral dos partidos políticos. São Paulo: Iluminuras, 2021.

[1] Publicado originalmente em Lacan hispano. BRODSKY, G.; LAURENT, É.; BRIOLE, G.; compilación de GLAZE, A.; MILLER, J-A. 1ª. Ed. Olivos: Grama Ediciones, 2021.



PSICANÁLISE E POLÍTICA: QUATRO MODALIDADES DE UMA RELAÇÃO[1] 

ANAËLLE LEBOVITS-QUENEHEN
Psicanalista, AME da ECF/AMP
anaelle.lebovits.quenehen@gmail.com

Resumo: A autora trata, neste artigo, da relação entre psicanálise e política, “em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política”. Para tanto, distingue diferentes modalidades dessa relação, assim como diferentes níveis de implicação do psicanalista com o político. Ainda de acordo com a autora, a conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue a existir, ou seja, cabe aos analistas “não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética”.

Palavras-Chave: psicanálise; política; discurso analítico.

Psychoanalysis and politics: four modalities of a relationship

Abstract: In this article, the author discusses the relationship between psychoanalysis and politics, “particularly the way a psychoanalyst is interested in politics”.  In order to do so, she distinguishes different modalities of this relationship, as well as different levels of involvement of the psychoanalyst with the political. According to the author, the connection between psychoanalysis and politics always points to “not preventing” the analytic discourse from continuing to exist, that is, it is up to analysts “to never cease to make the impasses found in the world the occasion for an epistemic advance on the basis of ethical necessity”.

Keywords: psychoanalysis; politics; analytical discourse.

 

Pensar a relação entre psicanálise e política e, em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política, quer dizer, como intervém no campo político, sem dúvida supõe distinguir diferentes modalidades dessa relação.

Comecemos pela primeira, que se coloca de início. Um psicanalista está interessado, em primeiro lugar, pela política no sentido em que ela é de sua época, quer dizer, do tempo e do lugar em que vive e exerce a função de analista. Desde 1953, Lacan contempla a psicanálise completamente tomado, inclusive “arrastado”, pelo redemoinho de sua época. Essa passagem do “Discurso de Roma” é bem conhecida: “Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas” (LACAN, 1953, p. 322). Sobre esse ponto, Lacan não variará. Volta a encontrá-lo vinte anos mais tarde, em 1973, afirmando com a mesma ênfase e, ainda mais explicitamente, que um analista deve ser absolutamente “contemporâneo”. Nesse momento, faz dele um slogan:

“Somos de nosso tempo. Tive um amigo que produzia como Schlachwort, (quer dizer) slogan: ‘Sejamos significativamente contemporâneos’. Creiam, é um bom aforismo. Sejam significativamente contemporâneos tanto mais quanto que não tenham outro recurso. O que não é da sua experiência está perdido, perdido de uma vez por todas” (LACAN, 1973, p. 237-238. trad. nossa).

Certamente, essa afirmação é, em primeiro lugar, para nos prevenirmos contra a tentação de reação, mas também indica, uma vez mais, a afinidade de um analista com seu tempo, a forma em que é tomado, da qual depende, e isso à margem da sua vontade. O analista não está recluso em sua torre de marfim, não se mantém acima da contingência diária, não está ocupado mais além de se colocar à altura e pensar uma técnica que sirva para a eternidade e para um dia de uma determinada época, e isso sem escapatória possível. Por outro lado, ser de seu tempo é, na verdade, ter relação com a política como componente da época em que se vive. Por isso, é necessário sabê-lo e medir o que se implica em relação à prática analítica, esta mesma comprometida com certa evolução, assim como o saber que a orienta e a indexa, por sua vez.

Na história do mundo, na qual a política é um componente principal, por mais que não realize mais que revoluções, que se repita e veja o real voltar ao mesmo lugar, tal como a terra gira sobre si mesma (LACAN, 2017, p. 7), não é menos certo que o psicanalista que o habita não saiba ignorar aquilo do que é contemporâneo sem limitar o campo da sua experiência.

O primeiro nível de implicação de um psicanalista no político procede unicamente do fato que o político é um componente da época em que se vive.

O segundo, o terceiro e o quarto nível, que serão diferenciados, se situam de outro modo, a partir da experiência da Escola da Causa Freudiana ao longo dos últimos 20 anos. Lacan não tematizou esses níveis como tais, mas a orientação seguida pelos psicanalistas de sua Escola no campo político é afim àquela que oferece seu Ensino. Essa orientação se pode localizar, entre outras, na menção decisiva do “Ato de Fundação” (1971), no qual Lacan afirma que a Escola está feita para devolver “a práxis original que Freud instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 1971, p. 235). O que isso quer dizer, senão que, em primeiro lugar, a práxis freudiana tem um dever no mundo, o primeiro dos quais, sem dúvida, é o de se dar os meios de perdurar, de existir, e isso mantendo viva a subversão daquela que procede?

Importante destacar que a responsabilidade do psicanalista está comprometida quando o político se interessa pela psicanálise. Nesse ponto, figura o segundo tipo de relação entre psicanálise e política que abordaremos. Não é, portanto, o psicanalista que se interessa aqui, em primeiro lugar, pela política, mas o político que, se interessando por seu campo, o convoca às vezes a responder, ou seja, literalmente a fazer-se responsável. Assim, quando o político se interessa pela psicanálise, raras as vezes o faz para valorizá-la, senão — e isso desde alguns anos atrás — para impor uma ordem que se supõe que lhe falte, frequentemente com as melhores intenções, mas colocando em perigo as condições de sua existência.

Desse modo, vimos, por exemplo, o político pretender se misturar na formação dos psicanalistas. Em tal contexto, a responsabilidade do analista encontra-se convocada e comprometida, ao menos quando se atém ao discurso analítico. Todo o desafio está efetivamente em não deixar debilitar o progresso da psicanálise nem degradar sua utilização, para retomar as palavras de Lacan em “O Ato de Fundação” (1971). Isso é verdade tanto no interior quanto no exterior do campo psicanalítico. Do mesmo modo que a Escola está feita para proteger a psicanálise da errância de certos psicanalistas, também está feita para protegê-la das errâncias do político quando se apresentam contra ela.

Uma terceira forma de considerar a conexão entre psicanálise e política consiste em destacar a dependência da psicanálise do regime político em que se pratica. O Estado de direito, especialmente, é uma das condições de possibilidade do livre exercício da psicanálise — Judith Miller o assinala em Por que Lacan (MILLER, 2021, p.71). Freud e os primeiros psicanalistas vienenses o viveram bastante nos inícios do movimento analítico, dado que, nascida em Viena, a psicanálise foi rapidamente expulsa pela intervenção da política. Uma mudança de regime político é, então, suficiente para impor um pesado exílio à psicanálise. Lacan destaca, por sua vez, as consequências para o movimento analítico e certos desvios que então tomou.

De fato, a dependência do discurso analítico do Estado de direito é tal que todo ataque a esse discurso parece revelar a fragilidade do Estado de direito, ainda que o ataque ao Estado de direito seja ipso facto ataque ao discurso analítico. Aqui, todavia, tê-lo em conta é uma forma de fazer-se responsável quanto ao discurso analítico e de suas condições de possibilidade.

A quarta forma de considerar a conexão entre psicanálise e política nos é oferecida pela observação da forma como Jacques-Alain Miller interveio a propósito da “questão trans”, destacando aí um impasse do discurso corrente, não sem efeitos potenciais no discurso analítico. Quando esse discurso corrente tende, nessa questão em particular, a erguer a escuta em valor supremo, inspirando-se por outro lado, para isso, no mesmo discurso analítico e de sua propagação na opinião pública, este proíbe nesse impulso toda interpretação, faz como se interpretar se convertesse em rechaçar, como se perguntar ou interrogar fosse já negar, como se convidar para a elucidação fosse já trair, ou, pior ainda, humilhar. Por outro lado, um psicanalista está bem situado para saber que certos enunciados se interpretam e que interpretar não equivale nem a “julgar”, nem a “rechaçar”, nem a “negar” aquele que faz um enunciado no âmbito da relação analítica. Inclusive, frequentemente se apresentam casos em que interpretar ou interrogar uma ideia é, de fato, a única forma de acolhê-la dignamente, a fim de permitir aceder a sua própria verdade e, a partir daí, cernir o real que essa verdade bordeja. Isso se faz notar especialmente com certas crianças com sintomatologia inquietante, tanto mais inquietante quanto a acolhida que se faz a solidifica. Que os psicanalistas façam saber os efeitos de uma interpretação analítica é também para eles a ocasião de afirmar a dignidade de sua abordagem, assim como a dos sujeitos suscetíveis de fazer essa experiência. Realizando, se aproveitam de um impasse presente na civilização para fazer progredir os pontos importantes da doutrina que orientam ou reorientam sua prática. É, então, a ocasião de um progresso à medida daquilo que o espírito da época impõe.

Tomar “o lugar que lhe corresponde neste mundo”, para retomar as palavras de Lacan, é, assim, para o psicanalista, a melhor forma de não fixar seus princípios, de proscrever todo dogmatismo e de não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética.

Revela-se, então, que o dever que se tem de velar pela psicanálise é também uma das vias pelas quais a psicanálise progride, aquela que não cessa de restaurar a “sega cortante de sua verdade” utilizando a via que “denuncie os desvios e concessões” (LACAN, 1971, p. 235), que, sem essa, a aceitam. A conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue existindo. E esta é, para os psicanalistas, uma exigência mínima.

Cada um dos ataques mais ou menos dirigidos, cada um dos discursos que vão contra ela, seja de forma intencional, seja por acidente, são, assim, ocasiões em que os psicanalistas podem abordar para experimentar ou comprovar suas teses, inventar o que deve ser inventado, ler de outra maneira o que já foi lido, ou seja, manter-se vivos e no vivo. Assim, ocorre-lhe de meter-se em política, sempre e quando o discurso analítico dependa disso — nem mais nem menos.

 

Tradução e revisão: Tereza Facury e Giselle Moreira

REFERÊNCIAS
LACAN, J. “Função e Campo da Fala e da Linguagem” (1953). In: Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 322.
LACAN, J. “Ato de fundação” (1971). In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 235.
LACAN, J. “Intervención hecha en las ‘conclusiones de los grupos de trabajo’ del 4 de noviembre 1973”, pronunciada no Congreso de la Escuela freudiana de Paris, de 1º a 4 de nov. de 1973, no Bulletin intérieur de l’Ecole freudienne de Paris nº 15. Paris, jun. 1975. p. 237-238. (Trad. nossa).
LACAN J., Ideas aportadas por Regnault Fr., “Sus palabras me golpearon…”, La Movida Zadig, nº 1, jun. 2017, p. 7. (Trad. nossa).
MILLER J., “La reconquista del Campo freudiano”, en Lebovits-Quenehen Anaëlle (subdiretora), Pourquoi Lacan. Paris: Presses psychanalytiques de Paris, 2021, p. 71-85.
[1] Texto originalmente publicado na revista online Zadig España, em 29 de setembro de 2021.



PEQUENA GAROTA[1]

SILVIA BAUDINI
Psicanalista, A.M.E. da EOL/AMP
sbaudini@yahoo.com.ar

Resumo: a autora apresenta a sua leitura do documentário Pequena garota, que aborda a questão do transexualismo e sua incidência nos corpos das crianças. Sua análise o articula ao discurso de nossa época, o que lhe permite dizer que  se “na era vitoriana a histeria era a epidemia que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021”.

Palavras-chaves: transexual; crianças; corpos; impasse sexual. 

LITTLE GIRL 

Abstract: In this essay the author presents her thoughts on the documentary Little Girl that addresses transsexuality and its impact on children’s bodies. Her analysis articulates it to the discourse of our time wich allows her to say that if “in the Victorian era hysteria was the epidemic that explained the sexual impasse of the time, the trans cause is what is at stake today in the sexual impasse of 2021”. ” 

Keywords: transsexual; children; bodies; sexual impasse.

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Jacques-Alain Miller (2021) nos disse há um ano que a psicanálise corre e nós, analistas, corremos atrás, sempre atrasados[2]. A questão trans é um desses acontecimentos que nos fisgaram atrasados.

Embora na Argentina a Lei de Identidade de Gênero (lei 26.743) tenha sido sancionada em 9 de maio de 2012 e promulgada duas semanas depois, não começamos a questioná-la de maneira profunda até que Miller fizesse soar o alarme. Após as suas intervenções de março de 2021, posso identificar três questões centrais:

1) A escuta sem interpretação.

2) Os efeitos sobre a linguagem.

3) Os corpos a corrigir.

 

Pequena garota

Esse filme de Sébastian Lifshitz conta a história da vida de uma família confrontada com a experiência de uma criança que não sente que pertence ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Ao longo de um ano, o realizador filma e documenta momentos cruciais na vida de Sasha, de 7 anos, e sua família.

O documentário foi lançado em novembro de 2020, durante a pandemia, e recebeu críticas muito favoráveis por parte dos meios de comunicação. O jornal Le Monde [3] publicou o seguinte título: “Petite fille, a história da eclosão luminosa de uma criança transgênero”.

Benzine, uma webzine de essência cultural, diz: “Sasha é uma garota como qualquer outra, tirando o fato de ter nascido no corpo de um menino”[4].

As críticas entusiásticas atestam a delicadeza do filme e a qualidade do seu realizador. O respeito pela experiência atravessada por Sasha e sua família é evidente.

Em 9 de maio, na Web TV Lacan[5], ouvimos Caroline Eliacheff (psiquiatra infantil e psicanalista) e Céline Masson (psicanalista e professora universitária) falarem sobre seu livro, La fabrique des enfants transgenre (A fábrica de crianças transgêneros, em tradução nossa)Na capa, podemos ler: “Como proteger as crianças de um escândalo sanitário”.

Temos aqui dois níveis da questão: por um lado, o momento singular e íntimo na vida de uma criança confrontada com a marca significante sobre o corpo e sua família. Por outro, o empuxo atual midiático das redes, do movimento woke, da cultura do cancelamento da qual Eliacheff e Masson falaram na entrevista acima mencionada e do que as autoras chamam de “escândalo sanitário”. Em 29 de abril, ambas foram convidadas para dar uma conferência em Genebra sobre o livro, mas os militantes do CRAQ[6] (Collectif Radical d’Action Queer [Coletivo Radical de Ação Queer, em tradução nossa]) invadiram o local e impediram a palestra de acontecer.

Nesse ano e meio que transcorreu entre a estreia de Pequena garota e o episódio sofrido por Eliacheff e Masson, testemunhamos um aumento do empuxo à solução trans e, por outro lado, o crescimento daqueles que decidem destransicionar. O primeiro produz um apoio e uma militância sustentada, o segundo, por enquanto, impõe uma mordaça àqueles que o fazem e àqueles que o divulgam.

Durante esse ano e meio, Miller também nos advertiu sobre a questão ainda pendente e inquietante da questão trans e de seu aliado, o movimento woke e seus efeitos sobre a linguagem, e, portanto, sobre o discurso analítico, sobre a ameaça que ele representa para esse discurso e para a existência do inconsciente. Sou o que digo é a alocução que Miller propõe como expoente linguageiro da época.

 

O filme

Sasha, uma pequena menina, percorre o documentário com uma atitude aérea. Grande parte do peso desse filme recai sobre a mãe. Protagonista, ativa, angustiada, combativa, ela não cede do seu desejo. Ela diz: “Sei que esta será a luta da minha vida”. A garotinha a acompanha e, por trás de uma aparente decisão, segue pela via que sua mãe vai abrindo, disposta a fazer qualquer coisa para responder à demanda de seu filho.

Muito cedo, Sasha, aos 3 anos de idade, pergunta à mãe se ela vai ser uma menina quando crescer. Isso toca intimamente essa mulher, que se encontra ali com seu próprio desejo e seu próprio rechaço: o desejo de que essa criança fosse uma menina e sua decepção ao saber o gênero de seu filho. Ela formulará esse desejo em vários momentos, por exemplo, na entrevista com a psiquiatra, mas está presente em sua iniciativa, determinada em não deixar ninguém atrapalhar o que Sasha profere, “querer ser uma menina”. O desejo e a culpa materna estão presentes de maneira cristalina no documentário.

Os irmãos acompanham Sasha sem qualquer oposição ou questionamento sobre sua situação; seu pai concorda e acompanha.

A ignorância e a covardia das instituições desempenham um papel significativo: a escola que se nega a aceitar Sasha em sua singularidade, a professora de dança que expulsa Sasha empurrando, gentilmente, a porta em seu rosto, a psiquiatra que tem respostas e não faz nenhuma pergunta. O diagnóstico, como cataplasma, permite um alívio na mãe e uma desresponsabilização da medicina. Desse modo, a psiquiatra infantil não hesita um minuto em levar adiante a possibilidade da tão almejada transformação e, sem qualquer reserva, faz o atestado para a escola — o que me faz lembrar Freud e sua reserva em dar o atestado que o Homem dos Ratos lhe pedia para aliviar sua culpa.

O que impacta Sasha e produz sua angústia é a relação com o laço social representada por sua situação escolar, seus colegas, seus amigos. Seu choro angustiado ao falar da escola, lugar eminente do laço social, completamente perturbado, e que poderia perder, seria o ponto de ruptura de seu sou o que digo, mas isso não produz nenhum efeito, nenhuma pergunta. Rapidamente se entende que é porque ela quer ser uma pequena garota. No entanto, Sasha faz uma pergunta que é transmitida por sua mãe à psiquiatra, depois de ser expulsa do grupo de dança: “Ela me perguntou se lutar serve para alguma coisa”. A mãe responde: “Todos nós temos uma missão a cumprir e Sasha pode mudar as mentalidades”.

O excelente texto de Hélène Bonnaud (2020), publicado na revista Lacan Quotidienne, dá conta da rejeição à psicanálise implicada no encontro com a psiquiatra infantil “que detém um saber sobre essa questão e será a interlocutora de Sasha e da mãe no processo de transição” (BONNAUD, 2020, n/p, tradução nossa). Nesse texto, ela se pergunta, embora o caminho esteja aberto para que ela tome o lugar de uma menina: “Como seria para ser uma mulher?”.

A escola, em sua recusa dogmática, também coloca em jogo o não quero saber nada disso, sobre aquilo que irrompe no real de um sujeito ainda criança, para finalmente ceder, com uma aceitação administrativa, a um certificado médico que permitirá a Sasha ir à escola como uma menina.

 

A lei

Em Todo el mundo es loco, Miller (2015) nos diz que, nos dias de hoje, os direitos estão à frente dos deveres. A lei de identidade de gênero da Argentina é pioneira no mundo. Atualmente, na Espanha está sendo discutida uma lei que envolve as questões que em 2012 foram sancionadas em nosso país. Os colegas na Espanha, através da Fundação para a Clínica Psicanalítica de Orientação Lacaniana (FCPOL), estão preparando documentos para serem incluídos na redação dessa lei, para que ela não faça desaparecer a possibilidade de interpretar, quer dizer, de fazer existir o inconsciente. Eles colocam ênfase especial em seu texto sobre as crianças e a prudência necessária na administração de hormônios e intervenções cirúrgicas em menores[7]. A École de la Cause Freudienne (ECF), recentemente, em dezembro de 2021, conseguiu introduzir modificações em um projeto de lei que impede a realização de terapias de conversão, tornando possível a inclusão da escuta psi.

A lei argentina tem uma característica marcante: ela elimina, uma a uma, qualquer instância que permita interrogar, abrir um tempo para compreender a livre escolha do gênero; é uma lei que desliza suavemente, flui, e qualquer um pode ser tentado a entrar nesse trem. Quando eu digo qualquer um, é claro que é no sentido figurativo. Penso de fato na desorientação subjetiva e no que Lacan nos diz em “Televisão”: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele” (LACAN, 1973/2003, p. 533). E aqui o Outro não está separado[8].

O que significa dizer que o Outro é separado? Lemos em Mais, ainda: “(…) é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa” (LACAN, 1972/1973, 1985, p. 52). Isso quer dizer que há uma hiância, um espaço, até mesmo um abismo, entre o que se diz e o que isso quer dizer. Suportar esse espaço é dever do analista, suportar no sentido de ser suporte, comprometer com sua presença: “Estou lhe dizendo que você está dizendo algo diferente do que você quer dizer”. Isso é o que Miller quer dizer quando nos adverte sobre a escuta sem interpretação. Anaëlle Lebovits-Quenehen (2021) diz que Miller, com a “questão trans”, assinala um impasse no discurso comum, não sem efeitos potenciais no discurso analítico.

 

Todo erro é sexual

“Tudo o que tem a ver com sexo sempre está errado. Todo erro é sexual” (MILLER, 2013, p. 64, tradução nossa).

O capítulo I da Lei n. 26.743 dispõe sobre o direito à identidade de gênero e suas consequências jurídicas: reconhecimento civil, livre desenvolvimento e o de ser tratado de acordo com a escolha de gênero. Ela apela para a não discriminação contra aqueles que não se reconhecem em uma norma. Nós, analistas, sempre trabalhamos nesse sentido, não advogamos por nenhuma norma. A psicanálise tem apenas uma prescrição: associação livre e uma exigência (que a pandemia perturbou): a presença dos corpos no mesmo espaço físico; o paciente deve trazer seu corpo para o consultório.

Pois bem, a esse direito humano, que está estabelecido no artigo 1º da lei e que nós celebramos, seguem-se uma série de artigos que, na minha opinião, são extremamente perigosos, porque não se trata apenas de um direito, mas, no extravio contemporâneo do modo de gozo, pode ser um empuxo, uma incitação, uma “revelação”. E o corpo já está comprometido com o assunto, o corpo como um objeto de “modificações”. Segue uma lista de quais, eventualmente, poderiam ser essas modificações: da aparência ou funções corporais através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, sempre que seja “livremente” escolhida. Atrevo-me a chamar essa enumeração de “provocadora”, uma vez que está escrita com a força de uma lei. A liberdade contida na palavra “livremente” é uma petição de princípios, pois ninguém age sobre esse julgamento, nem sobre quem o faz, nem de onde ele é feito; pelo menos a lei não o prescreve.

Miller, em La fuga del sentido, cita “Cortejo”, um poema de Prévert, e faz referência à enumeração feita pelo poeta como a presença da pulsão de morte, assinalando para “o domínio do significante sobre as significações humanas” (MILLER, 2012, p. 88, tradução nossa).

  1. Bonnaud continua em seu texto:

“O tempo para crescer e escolher é essencial. Esse tempo do qual Sasha foi privada ao ser informada de que ela é uma menina e que tudo o que ela não tem para ser uma menina lhe será retirado… mas fica uma resposta que afirma o gênero como determinado pela imagem do corpo” (BONNAUD, 2020 n/p.).

“Uma criança se autopercebe”: poderia ser esse o nome que hoje toma o “Bate-se numa criança” freudiano? Em outras palavras, a presença do Outro é apagada e o discurso da criança é transformado em uma palavra monolítica, uma holófrase, como disse Jacques Lacan. O valor metafórico da palavra perde seu lugar, a palavra se aproxima cada vez mais do real. As equipes médica e psicológica que recebem as crianças que desejam fazer a transição têm uma mordaça autoimposta? Ou, antes, o outro social representado pelas associações trans, a mídia, laboratórios, etc., etc., impõe uma sanção à equipe se eles não autorizarem a palavra monolítica. Perguntar, quer dizer, “(…) interpretar, não equivale nem a ‘julgar’, nem a ‘rechaçar’, nem a ‘negar’ (…)” (LEBOVITS-QUENEHEN, 2021, n/p.).

Em “Dócil ao trans” (2021), Miller nos lembra que Lacan elogia Freud por ter sido dócil à histérica e se pergunta se ele poderia felicitar o praticante de hoje por ser dócil ao trans. Como podemos ler isso?

Assim como na era vitoriana a histeria era a “epidemia” que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021. Por que ano trans e não século ou década? Porque dá a indicação de um lugar efêmero, que não assume a consistência que pode ser nomeada em termos de época, era, século, etc.

Dócil ao trans é a forma de dizer do compromisso do psicanalista com o tempo e o lugar em que vivemos e praticamos a psicanálise.

 

Alteridade real

O nome do pai, a função simbólica, a ordem simbólica, figuras, lugares de alteridade têm perdido a autoridade. Lacan, em seu Seminário 19: …ou pior, diz que o pai é quem surpreende, quem bate na mesa, quem impacta. Ele vincula a função do pai ao trauma. E também a função do analista ao trauma[9]. A alteridade da época é o trauma.

O trauma como disrupção de lalíngua sobre o corpo faz desse corpo um corpo falante. A experiência de um corpo que erra, que não se adequa; a experiência de uma palavra que também erra e falha ao dizer. Freud, em “Estudos sobre histeria”, escreve:

“Devemos antes presumir que o trauma psíquico — ou mais precisamente, a lembrança do trauma — atua como um corpo estranho que muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas descobertas” (FREUD, [1893/ 1996], p. 42).

O gozo é profundamente hétero para cada um, incompreensível, insuportável, impossível. A questão trans na infância apaga a diferença sexual, porque nunca se trata de sexo, mas de gênero. Poderíamos até dizer gênero humano, não vamos descartar o desejo de transição para o não humano. Esses são desvios a serem corrigidos. Se o erro for eliminado, o sexual desaparece.

O inconsciente é incorrigível, lapsos, sonhos, chistes são as faíscas que iluminam o caminho para a opacidade do sintoma, sintoma que implica em saber ler de outro modo.

A lei e o direito normatizam, se movem no campo do para todos. Eles protegem o cidadão, mas não resolvem o singular da relação com a sexualidade. E isso não pode ser corrigido, só pode se esclarecer a fim de tornar a vida vivível.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Patrícia Ribeiro

Referências
BONNAUD, H. “Sasha, une petite filie comme les autres?”. InLacan Quotidien, n. 903, 17 dez. 2020. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2020/12/LQ-903.pdf. Acesso em: 26 jun. 2022.
DUPONT, L. “Chronique du malaise: Cancel culture, la vérité et le un”. InL’Hebdo-Blog, 15 maio 2022. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/category/lhebdo-blog-270/. Acesso em: 26 jun. 2022.
FREUD, S. “Estudos sobre a histeria”. In: FREUD, S. Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda… Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. “Televisão”. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
LEBOVITS-QUENEHEN, A. “Psicoanálisis y política: cuatro modalidades de una relación”. Zadig España, set. 2021. Disponível em: https://zadigespana.com/2021/09/29/psicoanalisis-y-politica-cuatro-modalidades-de-una-relacion/. Acesso em: 26 jun. 2022.
MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J.-A. Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
MILLER, J-A. A escuta com e sem interpretação: bate-papo, Rússia, 15 mai. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F56PprU6Jmk. Acesso em: 26 jun. 2022.
MILLER, J-A. “Dócil ao trans”. Disponível em: https://uqbarwapol.com/wp-content/uploads/2021/04/JAM-DOCILE-AU-TRANS-PT.pdf
RICHARD, B. “Petite fille, le film émouvant de Sébastien Lifshitz sur une enfant transgenre”. Benzine, 24 mar. 2021. Disponível em: https://www.benzinemag.net/?s=petite+fille

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito, da Seção Clínica – IPSM-MG, em 20/05/2022.
[2] Disponível em: https://psicoanalisislacaniano.com/2021/05/15/jam-presentacion-revista-rusia-20210515/
[3] Disponível em: https://www.lemonde.fr/culture/article/2020/11/24/petite-fille-histoire-de-l-eclosion-lumineuse-d-un-enfant-transgenre_6060888_3246.html
[4] Disponível em: https://www.benzinemag.net/?v=D7Ju43F55ZM
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D7Ju43F55ZM
[6] Disponível em:https://360.ch/suisse/68062-une-conference-interrompue-par-des-militant%C2%B7e%C2%B7x%C2%B7s-trans-a-luniversite-de-geneve/
[7] Disponível em: https://fcpol.org/wp-content/uploads/2021/09/Alegaciones-y-propuestas-al-anteproyecto-de-la-Ley-Trans-LGTBI.pdf
[8] BAUDINI, S. Una ley revelada. In:Lacan Quotidien, no. 924, 23/03/2021. Disponível em:https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/03/LQ-924.pdf
[9] “É na medida em que converge para um significante que emerge dela que a neurose vem a se ordenar segundo o discurso cujos efeitos produziram o sujeito. Todo pai ou mãe traumático está, em suma, na mesma posição que o psicanalista. A diferença é que o psicanalista, da sua posição, reproduz a neurose, enquanto o pai ou mãe traumáticos a produzem inocentemente.” LACAN, J. O Seminário, livro 19:  …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.146, 2012.



A INFÂNCIA É TRANS…[1]

TÂNIA MARIA LIMA ABREU
A.E. (2020-2023) EBP/AMP
taniaabreu.ta@gmail.com

Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou.

Palavras chaves: infância; trans; sexuação; gozo.

Childhood is Trans

Abstract: This article is the result of a research that had as its guide the documentary Little Girl and the readings that the author could make of it through texts and videos with which she dialogued.

Keywords: childhood; trans; sexuation; jouissance.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 


Trata-se de um lindo documentário dirigido por Sébastien Lifshitz, que chegou aos cinemas e às plataformas digitais em dezembro de 2020. O longa emociona ao contar a história real de Sasha, uma criança de 7 anos que sempre soube que era uma garota, embora tivesse nascido menino, caracterizando, assim, o que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 6 (DSM 6) aparece como disforia de gênero. Durante um ano o diretor acompanhou a pequena Sasha e sua família, que residem na Alta França (Hauts-de-France). O filme, com muita sensibilidade (o que não impediu de tamponar, com saber, a castração), foi selecionado no Festival de Berlim e garantiu o prêmio de melhor longa-metragem internacional do Festival de Cinema Mix Brasil.

Meu comentário se divide em duas partes, seguindo o que o título, por mim escolhido, aponta. Assim, parto da ideia de que a infância é trans e, depois, me dedicarei às reticências.

Na versão em vídeo (que circulou na Lacan WEB TV), Daniel Roy (2021a), retomando Freud, nos relembra que uma desarmonia entre o que acontece no corpo e as palavras é característico da sexualidade infantil, mas, hoje, ter “nascido em um corpo errado” é um “passaporte” para ser enquadrado em uma transidentidade, como se as crianças, em suas pesquisas infantis, em sua latência, não pudessem ter dúvidas, ambiguidades e qualquer transitoriedade. Como nos adverte Roy, “não há caminho normal para a sexuação”, tampouco uma instância interna ou externa à criança que possa julgar se o próprio corpo é um bom ou um mau corpo. Sigo Roy ao afirmar que nas crianças há afetos e sintomas, mas dos quais só saberemos se as escutarmos. E por falar em sintomas, relembro Maleval (2021) que, também em vídeo da Lacan Web TV, nos sublinhou que a disforia de gênero — nomeação que acalma algumas crianças, por encontrarem um lugar no discurso do Outro — nem sempre é o problema maior, visto que pode vir acompanhada de outros sintomas, tais como anorexia, autismo ou perturbações de humor.

Ainda na direção da minha pesquisa nos áudios da Lacan Web TV, chamou a atenção o que disse Hélène de La Bouillerie, a propósito do prefixo “dis”: “Na experiência com crianças, na prática clínica, é comum encontrarmos crianças diagnosticadas ‘dis’: dislexia, disortografia, discalculias, dispraxia…”. Diagnósticos que fazem série àqueles de outras letrinhas, tais como TDAH, TOC entre outros. A propósito disso, Roy nos diz que:

“Talvez tenhamos agora a fala e o espírito com mais liberdade para nos confrontar com essa criança-terrível, a hiperativa, os ‘dis’ (dis: elemento que significa dificuldade, problema, por exemplo: dislexia), aquele que morde, aquele que não dorme, e aos seus pais exasperados, aflitos ou desesperados” (ROY, 2012, n/p).

No ano de 2005, Miller, no curso Piezas sueltas, na aula de 19 de janeiro de 2005, segundo Roy, adverte para:

“(…) a questão da continuação da psicanálise na época da leveza”. Ele destaca que, face a esse ‘domínio da leveza’ — que visa a conduzir o sujeito da sua particularidade ao universal — a psicanálise não tem que entrar ‘em uma competição de poder terapêutico’, uma vez que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto quanto como causa do desejo, como mais-de-gozar, mas, também, como consistência lógica, como um real ‘produto do simbólico’. Ele nos encoraja a tomar um ponto de vista ‘pragmático e de bricolagem’, que consiste em procurar, com os sujeitos, os significantes — os S1 —, que ‘ajudam a deixar legível o gozo’ e, portanto, ‘ajudam a deixar legível a história’” (ROY, 2012, n/p).

Assim, escutem as crianças: elas têm o que dizer, sobretudo sobre o mal-estar que lhes afeta o corpo. Posição, como mencionada acima, absolutamente freudiana — um pouco mais adiante, retomarei a questão da bricolagem, ao dialogar com Fórum Zadig (2021).

Para esta conversação, retomei um texto de Freud intitulado “O esclarecimento sexual das crianças” (1907), uma carta aberta endereçada ao Dr. Michael Fürst. Ali, encontrei a ferrenha defesa de Freud sobre a importância de se falar às crianças e, consequentemente, de escutá-las em suas curiosidades sexuais. Freud argumenta que:

“(…) certamente são a habitual hipocrisia e a própria má consciência em questões de sexualidade que levam os adultos a fazer mistério diante das crianças; mas é possível que influa nisso alguma ignorância teórica, contra a qual podemos agir mediante o esclarecimento dos adultos” (FREUD, 1907/2015, p. 221).

Passagem que se assemelha ao segredo de família, que, com Lacan, sabemos ser sempre um algo não dito sobre o gozo.

Na sequência, Freud traz o equívoco à tona, reinante, à época, nas famílias, nos educadores e na sociedade, ao suporem que “falta às crianças o instinto sexual, que somente na puberdade ele aparece, com o amadurecimento dos órgãos sexuais. Isso é um erro grosseiro, de sérias consequências para o conhecimento e para a prática” (FREUD, 1907/2015, p.221). Ainda, para Freud:

“Na verdade, o recém-nascido vem ao mundo com a sexualidade, determinadas sensações sexuais acompanham seu desenvolvimento no período da amamentação e da primeira infância, e pouquíssimas crianças deixariam de ter atividades e sensações sexuais antes da puberdade” (FREUD, 1907/2015, p.221).

O que, em termos lacanianos, quer dizer que as crianças gozam! Perversão polimorfa é gozo. Em sua argumentação, Freud segue, afirmando que:

“O que a puberdade faz é conferir aos genitais a primazia entre todas as zonas e fontes geradoras de prazer, forçando o erotismo a pôr-se a serviço da função reprodutiva, um processo que naturalmente pode sofrer certas inibições e que em muitos indivíduos, os futuros pervertidos e neuróticos, efetua-se apenas de modo incompleto. Por outro lado, bem antes de alcançar a puberdade a criança é capaz da maioria das atividades psíquicas da vida amorosa (ternura, dedicação, ciúme) e, com alguma frequência, a irrupção desses estados psíquicos vem acompanhada das sensações físicas da excitação sexual, de maneira que a criança não tem dúvida quanto à relação entre as duas coisas. Em suma, bem antes da puberdade, a criança é, tirando a capacidade de reprodução, uma criatura amorosa completa … O interesse intelectual da criança pelos enigmas da vida sexual, sua curiosidade sexual, manifesta-se insuspeitadamente cedo, portanto” (FREUD, 1907/2015, p.221).

Há um ponto que não desenvolverei, mas que gostaria de ressaltar, por permitir atualizar o texto freudiano ao confrontá-lo com o texto de Roy (2021b), uma vez que, ali, localizamos o lugar privilegiado do mal-entendido que transmite o gozo: “(…) a família está, daqui em diante, mergulhada no banho de nossa civilização, onde os objetos vindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, se tornaram a autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal. O gozo está aí em primeiro lugar” (ROY, 2021b).

Em um dos seus últimos seminários, de 10 de junho de 1980 — intitulado, por Jacques-Alain Miller, “O mal-entendido” —, Lacan extrai as consequências e evoca “(…) dois falantes que não falam a mesma língua (…), dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado (…)”, dando a vida, transmitem esse mal-entendido (LACAN, 1980/2016, p. 11). Trata-se, aqui, de um mal-entendido que se refere ao gozo, acrescenta Roy.

Aí estão dadas as condições para podermos afirmar que a infância é trans, na acepção de transitar e transportar. A criança curiosa pergunta, investiga, hipotetiza, experimenta o seu corpo e o corpo do outro, identifica-se e, desse modo, exerce a sexualidade infantil. Identificações livres, influenciadas pelo afeto e pela pulsão, mas, também, livres em sua diversidade. Identificação que não se guia tanto pelo Outro, mas pelo gozo que habita o próprio corpo.

O enigma da diferença sexual não escapa a essa lógica infantil, e, como preconiza Roy (2021a), em vídeo já referenciado, seguindo Freud, “é um momento no qual a criança está só”, momento de crise, no qual descobre que o Outro é barrado, não possui respostas para tudo. Por outro lado, o fato de ser esse o caminho para todos, “a crise é a norma”, “não há um caminho padrão para encontrar sua via para sua sexuação”, completa. Freud nomeou essa fase de latência, aquela na qual o gozo, advindo do sexual, é desviado para atividades sublimatórias e fixa o sujeito em seu modo de gozar.

Partamos, agora, para o que me despertou atenção no filme, tendo como eixo norteador Sasha, sua família e, dentro dela, a relação mãe-criança.

Trata-se de uma família de quatro filhos, sendo a mais velha uma adolescente e os outros três nascidos meninos. Ao longo do filme, escutamos a mãe de Sasha, em consulta com um psicólogo, dizer de seu desejo de ter uma menina durante a gravidez de Sasha — único dos quatro filhos que possui um nome comum aos dois gêneros. É notório que Sasha nasceu em uma família amorosa e teve a sorte de ter uma mãe que olhava para cada filho em sua singularidade, embora tenha ficado claro o idílio amoroso que havia entre ela e Sasha, o que, por vezes, deslocava seu olhar dos outros filhos.

O pai, aquele que só tem direito ao amor e ao respeito ao fazer de uma mulher objeto a causa do seu desejo e se ocupar dos seus produtos, como nos ensinou Lacan (1974/1975), me pareceu bem em sua função de cuidar do produto Sasha, mas inoperante para barrar o desejo da mãe. Seu discurso é de normalizar o que se passava com a criança, não podendo alcançar o sofrimento que a atingia.

No tocante à mãe, é interessante como ela é sensível e se questiona sobre a força do seu desejo, mas o diretor do filme opta pela via do saber, aqui, representado pela psiquiatra infantil Anne Bargiacchi, do hospital Robert Debré, em Paris, que, de um golpe, elimina qualquer lugar tanto para o desejo quanto para o discurso psicanalítico: não sabemos a causa da disforia, mas não é fruto do desejo dos pais. Nesse ponto, detenho-me no vídeo que Fabian Fajnwaks (2021) gravou para a 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, no qual observou que as diferentes teorias do gênero e dos terapeutas querem “abordar a sexuação pelo viés do semblante, modo de gozo feminino ou masculino, curto-circuitando o Outro, e, como se o Outro não existisse, abolem o desejo (…)” (tradução nossa).

A partir daí, o que se vê é que a psiquiatria, tal como representada no filme, não deixou espaço para que o dito de uma criança pudesse ser escutado, o que, com o tempo e sob transferência, poderia ser transformado em um dizer. Afinal, Sasha afirmou que queria ser uma menina quando crescesse. A família passa a travar uma cruzada contra a escola na qual estudava e nas aulas de ballet, que não a aceitam porque, na certidão de nascimento, está registrado menino, ignorando o que recomendou Roy:

“Existe a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como ‘causa de seu desejo’ e ‘como dejeto de seu gozo’. Esse deciframento, uma criança o faz com os significantes que ela retira, que tomam o valor singular do gozo pulsional que os flexibiliza. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enoda, em volta do objeto indizível, as extremidades do corpo, os fios de gozo e os fragmentos de discurso. Esse objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha, o espaço para uma separação” (ROY, 2021b).

Para concluir a primeira parte do meu trabalho, continuo com o referido texto de Roy, mas, agora, colocando-o frente a frente com o evento Zadig, recém ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Nele, destaco a passagem

“Nós partimos, pois, de um outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre então muitas perspectivas para todos aqueles que estão numa situação delicada com suas famílias ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, existem possibilidades de bricolagem. Respondendo a uma lógica do não-todo (pas-tout), a instituição ‘família’ oferece outros recursos: aqueles, para as crianças, de serem não-todo (pas-tout) dependentes das identificações familiares, não-todo (pas-tout) dependente do amor, filial e parental, quer dizer, de poder explorar as facetas menos amáveis. E isso vale também para os seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros ‘familiares’” (ROY, 2021b).

Do Fórum Zadig, ocorrido em 1º de julho de 2021, retiro a entrevista com Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari, e os ensinamentos extraídos dos dez minutos que nos concedeu, sobretudo no tocante à relação dela com a moda, que, ao vestir a própria pele, a liberta.

Sasha e Are têm, ambas, uma paixão que, entretanto, encontrou destinos distintos. Are relata como tem sido libertador cuidar de sua pele, por intermédio da moda. Sasha, uma criança cujo discurso foi, segundo Maleval (2021), tomado como “discurso científico”, não foi ouvida naquilo que a movia: a dança. A tristeza no olhar de Sasha poderia ter sido interpretada como a de quem não podia fazer o que o desejo lhe apontava? Nesse contexto, o da “bricolagem” acima citado, podemos questionar: Sasha poderia ter sido um “menino bailarino”? Bricolagem, por esse prisma, com o que a pulsão vivificava em seu corpo, ressonância do eco de um dizer? Teria sido essa sua saída sinthomática, seu modo de ser mulher?

 

Parto, agora, para as reticências…

É do conhecimento de todos que Jacques-Alain Miller denominou o ano de 2021 como “ano trans”. Toda nomeação implica alguma fixação. No campo epistêmico, estamos ainda no instante de ver, de produção de ideias decorrentes dessa fixação, cabendo, então, dúvidas: o que é um trans? Binário ou não binário? O que é sexo fluido? Necessitaremos de algum tempo para compreender o que é um fenômeno global, atemporal e diverso: a teoria do gênero. Eric Marty (2021), entrevistado por Jacques-Alain Miller sobre seu recém-lançado livro, O sexo dos modernos, elevou tais teorias à categoria de “última grande mensagem ideológica do ocidente ao resto do mundo”, destacando suas influências jurídicas em diversas democracias.

Diante da diversidade que o tema impõe — e assim deve ser tratado, a meu ver —, detenho-me agora em uma pequena digressão, contida no título do meu trabalho: as reticências, pois eles me levarão a tratar de outra fixação.

O que são as reticências? Quando usá-las? Em que contexto? A sua presença no título do meu trabalho levou-me a pesquisar as suas origens, e eis que me deparo com uma etiologia latina para os três pontinhos, que significam algo implícito. O que há de implícito no momento “trans”, que, de uma década para cá, assolou o mundo, levando as crianças em seu movimento? Será que a onda “trans” do mundo adulto pode ser “transportada” para o infantil que, em si, é uma transmutação por estrutura?

A infância é, por estrutura, “trans”: transição, transformação, transgressão. Mas, sobretudo, “transfixão”. Essa palavra é dicionarizada e significa um método de amputação cirúrgica em que se transpassa o bisturi de lado a lado, dividindo os músculos de dentro para fora, segundo o Michaelis. Qualquer semelhança com o que temos presenciado ao nível do esmagamento do infantil pelo discurso do adulto não é mera coincidência. É de “fixão” que se trata quando a ficção infantil é atravessada pelo discurso do Outro.

Freud nos legou o conceito de fixação, Lacan inventa a “fixão”. A criança do século XXI está a nos presentear, com sua divisão desde dentro, com os efeitos em seu corpo do Discurso do Mestre, aqui representados pela Ciência e pelas leis. Quem vem primeiro? Quem serve a quem? Isso não interessa ao infantil, pois, sobre ele, tombam os efeitos daí transportados. Se o músculo se divide de dentro para fora, a criança se divide de fora para dentro, a partir do que vê e ouve.

Voltemos às reticências, sem perder de vista que, além de apontarem para uma interrupção da frase, elas transmitem sentimentos: surpresas, dúvidas, suspense… Elas animam um texto! Eis o que interessa nesses pontinhos: a arte da vivificação que, no nosso affaire, tem como caminho privilegiado a prática clínica.

O que a psicanálise pode oferecer aos sujeitos falantes que sofrem por uma inadequação entre corpo e discurso? É de leitura do sintoma que se trata: encontro de significante e corpo.

Concluo lembrando que os significantes menina ou menino fazem eco no corpo de modo singular e o fazem gozar, uma vez que “um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972–73/2008, p. 29), desde que tal gozo seja corporizado de modo significante. Sasha nos demonstra que, no sexo, não há nada mais que uma questão de cor, como ensina Lacan: “pode haver mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” (LACAN 1975–1976/2005, p. 112).

 


Referências
FAJNWAKS, F. Entrevista concedida a Christine Maugin, publicada em Les Z’atelier 2, como atividade preparatória à 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, de 13 de março de 2021. Em https://institut-enfant.fr/organisation-jie6/zatelier-video-1/. Acesso em: 10 ago. 2021
FREUD, Sigmund (1907). O esclarecimento sexual das crianças (carta aberta ao Dr. M. Furst). Trad: Paulo César de Souza, In: Obras Completas. RJ: Companhia das Letras, 2015 vol. 8, p. 220/226.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXIII: o sinthoma. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975-1976/2005, p. 112.
LACAN, Jacques. O mal-entendido, lição de 10/06/1980, In: Opção Lacaniana, n. 72. São Paulo, março de 2016, p. 11.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XX: mais, ainda. (texto estabelecido por J-A Miller) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1972/1973/1985, p. 29.
LACAN, Jacques. O seminário, livro XXII: RSI. 1974/1975, inédito.
MALEVAL, J-C. La réassignation de genre chez l’enfant. In: Lacan Web Tv. YouTube.com. em 12 de abril de 2021. Acesso em: 10 ago. 2021. Tradução da autora.
MARTY, Éric. Entrevista sobre Le sexe des modernes, por Jacques-Alain Miller. Correio Express. 21 mar. 2021. Disponível em: https://www.ebp. org.br/correio_express/2021/04/14/entrevista-sobre-le-sexe-des-modernes/. Acesso em: 14 de abril de 2021.
MILLER, Jacques-Alain. Del objeto a al sinthome. In: Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 97/117.
ROY, Daniel. Être né dans le mauvais corps. (vídeo) In: Lacan Web TV. YouTube.com. em 28.6.2021a. Acesso em: ago. 2021. Tradução da autora.
ROY, Daniel. Parents exaspérés – Enfants Terribles. In: Zapresse : Lettre D’Information de L’Institut Psychanalitique de L’Enfant. Université Populaire Jacques Lacan.2021b. Disponível em : https://institut-enfant.fr/wp-content/uploads/2021/01/PARENTS_EXASPERES.pdf Acesso em: ago, 2021. Tradução da autora.
ZADIG. Fórum. Trans: Leituras. Evento da La movida Zadig Doces & Bárbaros, em 1º de julho de 2021, via Plataforma Zoom.

[1] Texto apresentado e debatido em forma de Conversação no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Seção-MG, em 18/09/2021.



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA SÉRGIO LAIA A.M.E. da EBP/AMP 

 

Imagem: Fred Bandeira 

 

Almanaque On-Line: Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. Sabemos que, distintamente de um discurso que, por estrutura, faz barreira ao gozo, como vemos figurado no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao qual Miller se refere, possui uma configuração na qual o sujeito e o objeto mais de gozar gozo estão diretamente vinculados.

Uma de suas manifestações que interessa aqui isolar advém da parceria entre o discurso liberal — próprio ao capitalismo — e o saber da ciência, que exibe como palavras de ordem a utilidade e a rentabilidade, o que significa dizer que se ampara em uma lógica utilitarista que vai na contramão da existência do amor, do desejo e do gozo.

Nesse contexto, a prática analítica permanece sob a pressão de ceder a essas regras, seja, por exemplo, deixando-se incluir em sua burocracia, seja acatando o seu imperativo de eficácia medido por estudos e cálculos estatísticos. Diante dessa conjuntura, quais são as saídas para que a psicanálise possa se manter como um discurso que faz objeção a esse empreendimento de universalização ou de massificação anônima?

 

Sérgio Laia: Primeiramente, acho oportuno lembrar uma observação feita por Jacques-Alain Miller em uma de suas recentes apresentações virtuais, quando destaca que Lacan sempre se deixava tocar por uma oportunidade relativa a seu tempo, mas sem abrir mão de ser Lacan. O exemplo evocado, nessa ocasião, por Jacques-Alain Miller, é justamente o das referências que Lacan fez, no final dos anos 1960 e no início da década de 1970, a Marx e à mais-valia: elas não deixam de se valer da importância que o pensamento e a ação marxistas tinham, sobretudo entre os jovens comprometidos com lutas para um mundo mais justo e melhor, mas Lacan não se apresenta propriamente como mais um marxista ou alguém diretamente envolvido em ações anti-capitalistas, tampouco se coloca como um defensor do capitalismo — ele se serve, por exemplo, da noção marxista de mais-valia para ressaltar o que passa a formular, a partir da experiência psicanalítica, como mais-de-gozar.

Considero, por conseguinte, importante esclarecer que a formalização lacaniana dos discursos, embora passível de algum sequenciamento na história e de referência a certos contextos, não se restringe a essa historicização nem a esses referenciais. Em uma perspectiva que poderia ser qualificada de histórico-contextual, sabemos que o discurso do mestre foi relacionado por Lacan ao “roubo”, ao “rapto” e à “subtração” realizados pelo senhor; quanto ao “saber” que o escravo, particularmente na Grécia Antiga, derivava da própria prática, isso é como um savoir-faire que, exceto pela operação do senhor, jamais poderia ser articulado na forma de um saber valorizado e difundido como episteme (LACAN, 1969-1970/1991, p. 21). Igualmente por uma contextualização e uma localização histórica, o discurso universitário chegou a ser associado à universidade, que não mede esforços para colocá-lo “em posição dominadora” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 231). Em mais uma referência localizável historicamente, Lacan ressaltou a importância, para uma histérica, de “que o outro chamado homem saiba” o quanto “ela se torna nesse contexto de discurso” um “objeto precioso” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 37), e, certamente, no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Freud escutou como poucos o que suas pacientes diziam e favoreceu, com sua descoberta do inconsciente nessa experiência singular de escuta, a formulação lacaniana do discurso do mestre, do discurso da histérica e do discurso analítico. Todavia, com sua “produção dos quatro discursos”, Lacan visa dar corpo a “uma estrutura… que ultrapassa bastante a fala, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11). Por essa ultrapassagem, cada um dos quatro discursos não se limita a ocasiões histórico-contextuais, mesmo se elas são evocadas por uma das designações que corresponde a cada um como sendo o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico. Em cada discurso, trata-se, segundo Lacan, do que “subsiste em certas relações fundamentais” que, “literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem”, mas, “no interior” dessas relações, aborda-se também “alguma coisa que é bem mais ampla e vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11).

No que concerne à linguagem, os matemas lacanianos dos discursos são compostos pelo significante-mestre (S1), pelo significante referente ao saber (S2) e por esse efeito significante que tampouco deixa de ser uma espécie de rasura significante, designada como sujeito barrado ou dividido (S). Contudo, essa “alguma coisa” que, embora se amplifique e extrapole as enunciações efetivas, também se encontra inscrita nos discursos, é o que Lacan chama de mais-de-gozar e localiza no objeto a. Assim, em cada discurso, considero que Lacan — sem confundi-los — procura articular e, portanto, aproximar dois tipos de elementos que, ao longo uma parte de seu ensino, eram tomados como heterogêneos: os elementos concernentes à dimensão significante (S1, S2, S) e aquele referente à dimensão do gozo (a). Essa heterogeneidade entre significante e gozo não deve ser confundida com uma oposição na qual um excluiria necessariamente o outro impedindo-lhe a ação: ela tem a ver com certa distância, entre gozo e corpo, demarcada pelo impacto do significante nos corpos humanos.

Prefiro me ater, aqui, à especificidade lacaniana da acepção do objeto a como mais-de-gozar, sem desenvolver o modo como se evoca aí, também, a noção marxista de mais-valia. Assim, da própria ação do significante nos corpos, há um resto impermeável à mortificação e Lacan — localizando-o como objeto a — destaca nele, a meu ver, tanto a insistência quanto certa anulação do gozo, valendo-se de toda uma ressonância própria à língua francesa, ao designar esse resto como plus-de-jouir. Na tradução “mais-de-gozar”, perde-se essa ressonância e, talvez, algo dela poderia ser mantida se optássemos por traduzir plus-de-jouir  como “mais-a-gozar”. Trata-se concomitantemente de insistência e anulação porque, em francês, o advérbio plus implica sempre o que é mais e, acompanhado da preposição de, aponta, ao contrário, para o que não há mais. Logo, como plus-de-jouir, o objeto a nos discursos implica, sem cessar, um mais gozo que não deixa de ser também experimentado, embora sem que se queira saber disso, como uma ausência, um menos que, ao mesmo tempo, convoca um mais que, a cada vez, tampouco se alcança. Estimo que, na configuração do discurso do capitalista por Lacan, essa insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir será levada ao extremo, e foi isso que, a meu ver, o fez se interessar pelo que tal discurso opera. Em outros termos, diferentemente de muitos envolvidos com as lutas políticas dos anos 1960-1970, Lacan não me parece propriamente apostar na instauração de outro modo de produção avesso ao capitalismo, tampouco se coloca como um defensor desse modo de produção cada vez mais dominante. Ao mesmo tempo, ao localizar esse extremo da insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir, Lacan também vai se servir do discurso analítico para retificar ou, retomando um termo da questão de vocês, para fazer objeção a essa forma paradoxal de o gozo se impor e se esvair dos corpos dos seres afetados pelo significante.

Na formulação dos quatro discursos por Lacan no Seminário XVII, há uma vetorização ordenada da esquerda para a direita com relação ao giro dos quatro elementos (S1, S2, S, a) por quatro lugares diferentes entre si, mas que permanecem os mesmos em cada discurso. Respondendo a uma pergunta que lhe fiz no dia 19 de outubro de 2020, por ocasião de um evento virtual da Escola Brasileira de Psicanálise, Jésus Santiago pôde destacar que, no discurso do capitalista, essa vetorização ordenada deixa de se sustentar e vetores transversais e perpendiculares se impõem sem definir propriamente um giro dos elementos desse discurso cada vez mais dominante. O desmantelamento, no discurso do capitalista, dessa vetorização ordenada que, a princípio, norteava os discursos, me parece também destacar que nada gira como antes, mas o significante-mestre (S1) insiste e impera, com sua proliferação implacável e anônima, no adoecimento dos corpos e na configuração do que já designei certa vez como sujeitos objetalizados, ou seja, consumidos pelos objetos que muitas vezes eles mesmos consomem (LAIA, 2008). Por isso, o discurso do capitalista, embora seja, nos termos mesmo de Lacan, “o que se fez de mais astucioso como discurso”, acaba por ser tomado pela “explosão” (crévaison) na medida em que ele “se consuma (se consomme) tão bem a ponto de consumir-se (se consume)” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Há, no discurso capitalista e, ainda, na própria dimensão discursiva do inconsciente, uma espécie singular de autofagia, porque a degradação e a mortificação que lhe são concernentes colocam em perigo os corpos por ela impactados, mas também fazem desse risco sua consumação, ou seja, a realização de seu próprio domínio.

A pergunta de vocês também me faz indagar sobre como enfrentar essa dominação sem ser pela via sem saída da revolta, porque, nesta última, reitera-se o império do significante-mestre (S1) e a proliferação do mais-a-gozar (a). A via da incorporação do discurso tomado pela vontade imperiosa de gozo tampouco é uma saída, pois é o que já acontece quando — nos meandros obscuros da satisfação e na escalada contemporânea do capitalismo — passamos a ser todos capitalistas, agenciadores da linguagem do lucro, mas não menos segregados. Assim, o discurso do capitalista, inclusive como uma versão atualizada do discurso do inconsciente, é uma proliferação de mal-entendidos que mortificam todos aqueles por ele englobados. Porém, a experiência psicanalítica, tomando como seu princípio ativo o que é segregado na dimensão do gozo (a), endereça ao sujeito (S barrado) algumas interpretações quanto ao que o destitui de um corpo. Na escala, portanto, do discurso analítico, é encontrada, segundo Lacan, “uma forma de mal-entendido na qual” o sujeito, como hiância no campo dos significantes eivada de gozo, “se quita” e pode “subsistir” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Importante destacar que a utilização lacaniana do verbo quitar me parece introduzir, para o sujeito (S), no discurso analítico, a dimensão do pagamento da qual tanto o capitalista-do-mercado quanto o inconsciente-capitalista insistem em se safar condenando-se, de todo modo, à insaciabilidade do mais-a-gozar (a). Por sua vez, a esse sujeito que se quita e pode passar a subsistir, com sua própria hiância imiscuída de gozo, em uma forma de mal-entendido, outros usos do corpo se tornam viáveis, diferentemente do que acontece na fantasia, porque esta, em um circuito mais privado que o do mercado, não deixa de ser prisão no mais-a-gozar insaciável (a).

A experiência analítica dá acesso, então, a outros modos de “viver a pulsão” (LACAN, 1964/1973, p. 246), mas também o inconsciente, porque, pelo “espaço de um lapso”, ou seja, de um mal-entendido, sobretudo ao fim de uma análise, quando o discurso analítico toma a forma mesma do ato, o inconsciente deixa de ter qualquer “alcance de sentido (ou interpretação)” (LACAN, 1976/2001, p. 571). Os testemunhos de passe são profícuos em nos mostrar o quanto, no discurso analítico, os significantes-mestres (S1) determinantes da dominação subjetiva pelo Outro passam a iterar de outra forma, porque não funcionam apenas nos lugares do agenciamento, da verdade ou do outro: eles passam a ser localizados no lugar da produção-perda. Trata-se, então, efetivamente de outro tipo de mal-entendido: o significante-mestre (maître) que me faz ser (m’être) e me assola como sujeito, se apresenta, pelo discurso analítico, no lugar de produção perdida e, com isso, temos “um outro estilo de significante-mestre” (LACAN, 1969–1970/1991, p. 205).

a  à   S

S2  –>   S1

Como se trata, no discurso analítico, de encontrar outro estilo para o significante-mestre (S1), me parece possível sustentar que há, então, pela experiência analítica, uma saída do império e da insaciabilidade do discurso do capitalista, mas sem a re-volta que, conforme esclarece Lacan, tanto quanto a sujeição, acaba fazendo imperar o S1. Não é, portanto, sem razão, que Lacan insistia na peculiaridade do discurso analítico frente aos outros discursos: “só o discurso analítico é exceção” porque “exclui a dominação”, “nada ensina” e “não tem nada de universal” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Mas a exceção concernente a esse discurso no âmbito da dominação se vale também do outro estilo encontrado para o Sdominador, que, ainda assim, não deixa de ser dominador. Também a exceção referente ao ensino não se separa  do enfrentamento do desafio de “como fazer para ensinar o que não se ensina” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Por fim, se o discurso analítico pôde ser considerado por Lacan “até mesmo a saída do discurso capitalista”, ele também nos alerta que essa saída “não constituirá um progresso, se for apenas para alguns”. Nesse contexto de um progresso que pode até evocar o universal, considero oportuno destacar que, para lançar no universo esses produtos de uma análise que os analistas são, a escala é aquela do discurso analítico como “laço social determinado pela prática de uma análise”, ou seja, por uma experiência que é única e feita à medida de cada um que, como analisante e como analista, a ela se dedica.

 

A.O-L.: Em 1970, no seminário O avesso da psicanálise, Lacan nos apresenta a segregação como o fundamento de toda fraternidade. Só há fraternidade por estarmos isolados juntos, isolados do resto” (1969-70/1992, p. 107). Nesse momento, ele aborda a fraternidade como uma noção referida ao discurso, ao laço social como tal. Dois anos mais tarde, no Seminário 19, …ou pior, Lacan vai retomar a referência à fraternidade, mas, dessa vez, não mais sustentada no discurso, mas no corpo. Ele se refere ao racismo como algo que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (1971-72/2012, p. 226). É curioso porque, no ano seguinte, Lacan definiria a raça como o que se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravos” (O aturdito, 1973/2003, p. 462). É uma clara referência ao período colonial a partir do qual noção de raça surgiu e se consolidou em seguida junto ao discurso nacionalista, o que desembocaria mais tarde no surgimento dos campos de concentração. Considerando a atualidade, poderíamos dizer que a era dos mercados comuns operou uma mutação nessas noções de raça, fraternidade e racismo? O que implica para essas noções quando Lacan transita entre a referência ao discurso e ao corpo?

 

Sérgio Laia: Como vocês mesmos destacam nesta segunda pergunta, Lacan conclui o Seminário …ou pior dizendo que a revalorização da palavra “irmão” implica uma “fraternidade do corpo” diversa dos “bons sentimentos”, porque nela se enraíza, também, o “racismo” (LACAN, 1971–1972/2012, p. 227). Foi seu modo de pôr em suspeição a noção de irmandade em um mundo em que cada vez mais ela se apresentava como uma solução, inclusive (para usar um termo frequente daquela época) contra-cultural. Assim, o que afeta os corpos (como eles se satisfazem) e o que os irmana (com que se identificam) têm uma função tão importante para a concepção lacaniana do racismo quanto o que os segrega.

No que concerne à satisfação, sabemos que, nos corpos humanos, ela não segue rigorosamente um programa estabelecido pelo organismo: é perturbada pelo que se escuta e se diz. Nossa satisfação toma, portanto, trajetórias desvairadas e, para designar e orientar essa satisfação, contamos apenas com o Outro, ou seja, com um lugar do qual estamos separados e que nos referencia. Porém, essa separação e até muitas dessas referências nos são também insuportáveis: não conseguimos, segundo Lacan, “deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo” e lhe impomos “o nosso” (LACAN, 1973/2003, p. 533). O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Em outros termos, como esclarece-nos Laurent, o racismo sempre tem a ver, “em uma comunidade humana”, com “a rejeição de um gozo inassimilável” e que é relacionado “a uma barbárie possível” (LAURENT, 2013, p. 32).

Com a “globalização” — nome mais atual para o que, na pergunta de vocês, é evocado como “era dos mercados comuns” —, considero que o racismo se agrava porque se torna cada vez mais difícil localizar o que faz as vezes de Outro: as diferenças (sobretudo aquelas referentes às alteridades) tendem a se apagar, dando lugar a uma irmandade generalizada — o termo “irmão”, destacado por Lacan desde a última lição de …ou pior, se desdobra hoje em “brother”, “bro”, “mano”, “véi”, aplicáveis a todo mundo, conforme constatamos sobretudo nas falas dos jovens, mas também dos que já não são assim tão jovens. Se o contorno do Outro já não é tão palpável, se seu corpo deixa de existir e seu modo de gozo não delimita mais o que nos concerne em termos de satisfação e de identificação, o desvario das satisfações se intensifica ainda mais sem direção. Os jovens, ao terem seus corpos impelidos a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e sua identificação, são particularmente sensíveis a esse desvario e, nos nossos dias, quando todo mundo é incitado a ser jovem, tal desorientação toma proporções avassaladoras e efetivamente globalizadas.

Com essa diluição do campo simbólico do Outro, com a proliferação das irmandades, são os grupos que se tornam mais propensos, a meu ver, para fazer as vezes não de uma alteridade simbólica que parece cada vez mais inapreensível, mas de uma alteridade-corpo no qual as pulsões podem se satisfazer diretamente. Hoje, encontramos exposto o que a experiência analítica aborda, mais intimamente, desde os primeiros pacientes de Freud: as identificações promovidas pelo Outro (e que são, inclusive, cada vez mais frágeis) não respondem efetivamente às exigências de satisfação; há discrepâncias cada vez maiores entre o que nos satisfaz e o que nos identifica, inclusive porque as referências identificatórias estão diluídas ou até ausentes.

Para este contexto atual, a noção lacaniana de identificação ao sintoma pode se apresentar, a meu ver, como um leme, pois conjuga elementos que, na cena sócio-cultural atual, apresentam muitas vezes desarticulados, ou seja, corpo e fala, satisfação e identidade.

 

A.O-L.: O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação. Por isso que tem toda razão quem põe a psicanálise à testa da política(1971/2003, p. 23). Nessa citação de Lacan em Lituraterra, podemos entender que, para ele, a política é a do sintoma e sua interpretação. Em nossa época, o singular do sintoma regula o sujeito e as construções do laço social (do individual para o coletivo). O sintoma serve para pensar o político?

 

Sérgio Laia: Estimo que já pude responder a essa questão sobre o sintoma e a dimensão política no final de minha segunda resposta, quando faço menção à noção lacaniana de “identificação ao sintoma” e, ao longo de minha primeira resposta, quando mostro como o discurso do capitalista configurado por Lacan é uma espécie de update do discurso do inconsciente. Ainda assim, mesmo que, a meu ver, vocês tenham dado uma conotação mais coloquial ao verbo “pensar” (ao utilizá-lo na expressão “pensar o político”), eu faria uma ressalva de que não se trata propriamente de, a partir da psicanálise, pensar o político ou a política, mas de intervir sobre esse campo. Essa intervenção, no entanto, não seria propriamente equivalente ao que teríamos na chamada militância política nem ficaria restrita à chamada “territorialidade” dos nossos consultórios ou da clínica. Para esclarecer os matizes dessa intervenção, eu lhes lembraria o próprio modo como a psicanálise, desde Freud, se faz presente no mundo. Por um lado, desde o início, essa presença não se dá sem a manifestação de resistência ao discurso analítico (inclusive, segundo nos ensina Lacan, da parte dos próprios analistas) — assim, as resistências à psicanálise, as críticas e os impedimentos que lhe são impostos têm a ver com nossa coragem de operarmos com o que Freud mesmo chamou certa vez de “substâncias perigosas”, aproximando-a da química. Por outro lado, entre todas as propostas que, desde o final do século XIX, se formulam com o prefixo psi-, a psicanálise é a única que tem conseguido fazer passar para o uso comum, sem qualquer banalização, o que para ela tem uma caracterização muito específica e, como exemplo, cito-lhes o ato falho. Antes de a psicanálise existir e se difundir no mundo, não tínhamos essa concepção — hoje amplamente partilhada, inclusive por aqueles que sequer conhecem Freud — de que uma troca de palavras produzida casualmente quer dizer alguma coisa. A meu ver, nenhuma resistência ou crítica que temos sofrido como psicanalistas abala a força de como, por exemplo, a concepção psicanalítica do ato falho se tornou uma propriedade comum. Sabemos que Lacan, no Seminário 23, aproximou a noção de sintoma da operação de “fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum” (LACAN, 1975–1976/2017, p. 86) — não é ela que se processa também nesse uso difundido que temos do ato falho? Logo, considero que a política que cabe a um psicanalista sustentar é diferente da militância e, mais ainda, da irmandade partidária, porque não se pauta pela instauração de uma nova ordem, pela consolidação de um projeto, por uma revolta quanto ao estabelecido, e muito menos pelo apreço quanto ao já vigente e estabelecido. Na perspectiva psicanalítica, trata-se de fazer passar o que é próprio para o comum ou, como certa vez formulou Éric Laurent, procuramos desfazer o que é recebido como unidade de significação para fazer ecoar uma leitura singular do que nos é apresentado como já pronto para ser usado (LAURENT, 2005).

 


LACAN, J. (1972) “Du discours psychanalytique“. ______. Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978.
LACAN, J. (1964) Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.
LACAN, J. (1969-1970) Le séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991.
LACAN, J. (1971-1972) O seminário, livro 19:... ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017.
LACAN, J. (1976) “Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI “. ______. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
LACAN, J. (1973) “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1978) “Transfert à Saint Denis? Journal d’Ornicar? Lacan pour Vincennes!”. Ornicar?, n. 17-18, Paris, 1979.
LAIA, S. “Os sujeitos objetalizados e o analista como ‘parceiro-sintoma’”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, setembro 2008.
LAURENT, É. “Da linguagem pública à linguagem privada, topologia da passagem”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fevereiro de 2005.
LAURENT, É. “Racismo 2.0”. Opção Lacaniana, n. 67, 2013.
Perguntas formuladas por Bernardo Micherif, Patrícia Ribeiro e Rodrigo Almeida.



PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA AMIZADE ESTRUTURAL[1]

GUSTAVO STIGLITZ
Psicanalista, AME da EOL/AMP
stiglitz.gustavo@gmail.com 

Resumo: O autor investiga a relação entre a psicanálise e a política e considera que Lacan tenha operado uma inversão na premissa freudiana. Se, para Freud, a política é o inconsciente, para Lacan, o inconsciente é a política. A partir daí, o autor delimita uma definição da política a partir da discussão sobre o final de análise, o que o conduz a abordar a política a partir de uma perspectiva não-toda. Por fim, se pergunta sobre qual seria a participação do psicanalista no campo político.

Palavras-chave: psicanálise; política; inconsciente, final de análise; não-todo.

Psychoanalysis and Politics: a structural friendship

Abstract: The author investigates the relationship between psychoanalysis and politics and proposes that Lacan operated an inversion of the freudian premise. If, for Freud, politics is the unconscious, for Lacan, the unconscious is politics. From there, the author delimits a definition of politics through the discussion of the end of analysis, which leads him to approach politics from a not-whole perspective. And finally, questions the participation of psychoanalyst’s in the political field.

Keywords: psychoanalysis; politics; unconscious; end of analysis; not-whole.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

A psicanálise, desde sua origem, esteve ligada à política.

Não é uma causalidade que tenha nascido na Viena de Freud, cosmopolita, multirracial e multirreligiosa, na qual o reinado do pai começava a se rachar e onde o social prescrevia a repressão da sexualidade.

Freud estabeleceu a relação entre psicanálise e política nos primeiros parágrafos de “Psicologia de grupo e a análise do ego”, ao afirmar que “a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social”, já que “Algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente” (FREUD, 1921/1996, p. 81).

Para Freud, portanto, a política é o inconsciente no sentido de que ambos respondem à mesma estrutura e causa. Lacan, por sua vez, foi imprimindo sua própria marca a essa relação até invertê-la.

Uma ideia inicial — a encontramos no Seminário 1 — é a de relacionar o final da análise com a política. Cito-o:

“Uma vez realizado o número de voltas necessárias para que os objetos do sujeito apareçam, e sua história imaginária seja completada, uma vez que os desejos sucessivos, tensionários, suspensos, angustiantes do sujeito estejam nomeados e reintegrados, nem por isso tudo está acabado. O que esteve inicialmente lá, em O e depois aqui em O’, depois de novo em O, deve ir se reportar no sistema completado dos símbolos. A saída mesma da análise o exige. Onde deve parar esse reenvio? Será que deveríamos levar a intervenção analítica até diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética? É uma questão. Não é fácil de resolver, porque, na verdade, o homem contemporâneo se tornou singularmente inábil para abordar esses grandes temas. Prefere resolver as coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo e outras banalidades. Donde a gravidade do problema que coloca a formação humana do analista” (LACAN, 1953-54/1986, p. 229-230).

Não seria esse um convite para a participação política do analista, ou, pelo menos, sua entrada no debate?

É claro, como disse Miller, que o debate fundamental de Lacan sempre foi com a civilização, na medida em que ela elimina a vergonha com o que está em curso na globalização (MILLER, 2002).

“Nem tudo está acabado”, como diz a citação, o que faz do final de análise não um ponto de fechamento, mas sim de abertura em relação a uma lógica não-toda. Nesse sentido, a pergunta de Lacan — precedida por esse “nem tudo está acabado” — contém uma armadilha.

A grande tradição dialética é a que opõe tese e antítese para chegar a uma síntese, o que fecha a questão em jogo; enquanto a experiência analítica nos confronta hoje com uma dialética no campo social, mas mais no estilo da “dialética negativa” de Theodor Adorno (1966), que ataca a tradição libertando-a de sua natureza afirmativa e questionando qualquer totalidade.

Hoje, teria que acrescentar, deveríamos impulsionar a intervenção analítica para dialogar com algumas tantas novidades na civilização: com os defensores da tese neuro, que pretendem uma ciência natural da mente e dos fundamentos neuronais do pensamento separado da linguagem; com aqueles que defendem tomar ao pé da letra os dizeres de uma criança que, sem saber direito do que se trata, afirma que quer trocar de sexo; com os que acreditam que as neuroimagens permitem ver “o invisível do pensamento” (SANCLAY apud CASTENET, 2008, tradução nossa.).

Por fim, há um laço entre psicanálise e política — tanto a nível de micropolítica (condução de um tratamento analítico, intervenções analíticas em instituições de saúde, educação, jurídicas) como no nível da macropolítica (impacto na elaboração e regulação das leis, a difusão dos tratamentos, etc.) — que pode ser resumido na ideia de que os analistas têm uma responsabilidade no campo social, a de ler e interpretar as inconsistências dos discursos através dos quais a sociedade contemporânea se sustenta.

Assim, à pergunta de Lacan sobre se deveríamos promover a intervenção analítica seguindo a tradição dialética, podemos responder à maneira do conjunto aberto colocado pela dialética negativa, que se aproxima mais da ideia de resto — e de resto sintomático —, própria do ensino mais tardio de Lacan.

 

A inversão lacaniana

Lacan (1967) inverte a ideia freudiana das relações entre psicanálise e política no seminário “A lógica do fantasma”.

Ao contrário de Freud, que explica a política através do recurso ao inconsciente pela identificação, repressão das representações e satisfação e retorno do recalcado, Lacan enuncia: “não digo que a política é o inconsciente, digo simplesmente que o inconsciente é a política” (LACAN, 1967, tradução nossa). É a inversão da posição freudiana.

No desenvolvimento de “Intuições milanesas”, Miller (2011) ressalta que o interesse de tal afirmação é que ela levanta a questão da política como o que explicaria o inconsciente e encontra uma boa definição “infiltrada de lacanismo” na obra A democracia contra ela mesma, de Marcel Gauchet: “É nisto que consiste especificamente a política: ela é o lugar de uma fratura da verdade” (GAUCHET apud MILLER, 2011). Ou seja, a política definida como um campo estruturado em torno de uma falta, que podemos escrever com o matema lacaniano S(A/).

Para esse autor, a democracia implica um efeito depressivo devido a um consentimento com a divisão da verdade. E diz:

“Doravante sabemos que estamos destinados a encontrar o outro sob o signo de uma oposição sem violência, mas também sem retorno nem remédio. Encontrarei sempre diante de mim não um inimigo que deseja minha morte, mas um contraditor. Há qualquer coisa de metafisicamente aterrorizante nesse encontro pacificado — gosto muito dessa ligação entre terror e pacificação — a guerra se ganha, diz ele, embora essa confrontação nunca tenha terminado” (GAUCHET apud MILLER, 2011).

Novamente encontramos uma analogia com a lógica dos conjuntos abertos, como na dialética negativa de Adorno. É uma visão da política a partir de uma perspectiva que se opõe ao todo dos ideais.

 

Uma perspectiva não toda

Em “Nota italiana”, Lacan afirma que o analista surge do não todo. Há também um confronto que nunca termina: aquele que se dá frente ao real do psicanalista. O que é um psicanalista? É a pergunta que condensa a fratura da verdade no campo da psicanálise, de onde emerge seu próprio real.

Há uma espécie de “amizade estrutural” entre a posição do analista e a política, não necessariamente a dos políticos.

Pela via da orientação lacaniana e com as perspectivas de Adorno sobre a dialética e de Gauchet sobre a política, podemos sustentar que, assim como a transferência analítica coloca em ato a realidade sexual do inconsciente — ou seja, a inexistência da relação sexual —, a política coloca em ato a inexistência do Outro.

A perspectiva não-toda, na psicanálise e na política, justifica e orienta a questão da incidência política da psicanálise.

 

O corpo político

“Lacan fala em algum lugar de uma participação política onde o psicanalista teria o seu lugar se fosse capaz disso. Vamos tomar como um desafio e ver se podemos enfrentá-lo”, disse Miller em 1997.

Esse desafio, ao qual nos convidou formalmente em 2017, na conferência de Madrid, com a criação da rede Zadig, tem seu fundamento no fato de que o não todo — aquele com que se depara ao final de análise — se conecta com a política entendida como a arte de lidar com o Outro que não existe (VICENS, 2018) e com os outros que, sim, existem.

É um desafio porque “o discurso político, o discurso do mestre, faz da identificação a chave de uma captura” (LAURENT, 2018), enquanto, no nível do corpo, temos que “Um corpo é o lugar que experimenta afetos e paixões, tanto o corpo político como individual. Paixões políticas novas surgem como acontecimentos de corpos políticos novos, e logo se transformam” (LAURENT, 2018).

Sobre o que aprendemos com os movimentos sociais no Brasil em 2013, Éric Laurent afirma que, nas mobilizações contemporâneas, se trata de

“[…] dois tempos da fantasia, que indicam perfeitamente um modo de laço social que não passa pela identificação de um traço comum, mas que, no entanto, funciona no registro de um corpo político produzido na qualidade de existência lógica, atravessado pelas paixões fantasísticas” (LAURENT, 2018).

O primeiro tempo do fantasma é do sujeito sem lugar, fading; o segundo é o “surgimento da articulação do sujeito com o gozo” (LAURENT, 2018).

A estrutura do Witz pode nos auxiliar a articular o corpo próprio com o corpo político. O Witz é um processo social em que a satisfação ressoa nos corpos ao mesmo tempo que produz, em cada um, uma satisfação singular no momento de rir (MILLER, 2011).

 

O destino é a política

O inconsciente é a política é um ponto de chegada que abre uma série de questões, dentre as quais destacamos a potência para a incidência política da psicanálise. Potência, que devemos dizer, não se efetiva como gostaríamos, questão que, no momento, deixaremos na nossa conta, como devedores.

É um ponto de chegada que tem como ponto de partida a ideia de que o sujeito do inconsciente é transindividual, como Lacan coloca em “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” e está demonstrado pela estrutura do Witz. Também é ponto de chegada a partir de “A anatomia é o destino”, de Freud (1924), que parafraseia “O destino é a política”, de Napoleão.

Se substituirmos a anatomia pelo corpo que fala, no lugar do destino teremos a palavra que condiciona o gozo, que, por sua vez, pela ausência da relação sexual, condiciona seu destino a ser social, político.

O destino do ser que fala é a política, devido à ausência de relação sexual.

E então?

Uma vez articulados inconsciente e política, qual seria a participação política da psicanálise?

“Talvez um efeito de despertar. Um despertar em relação ao que é, em última análise, sobre os ideais sociais” (MILLER, 1997, tradução nossa.), mesmo que isso seja… “pouca coisa”. Mas não importa quão pouco seja, não é pouco, por exemplo, demonstrar e transmitir a ideia do epistemólogo Georges Canguilhem de que a saúde é eminentemente social. Isso quer dizer que depende do discurso dominante, ou seja, para nós, os discursos da tecnociência e do capitalismo.

Não é pouca coisa apontar que as investigações no campo da saúde não começam por evidências, mas por decisões de mercado. E se há um tema em que a participação da psicanálise é necessária e urgente — inclusive para sua própria sobrevivência —, é o discurso avaliativo, e seu “grito estatístico”, que tem uma longa história.

Nosso adversário constante é a sociedade preditiva, na qual o desejo, o risco e o amor se desfazem frente à fascinação do regime do todo.

Não se trata de eliminá-lo, já que isso poderia nos eliminar, mas de mantê-lo assim, como adversário, porque, paradoxalmente, torna-se, desse modo, um fiador do não todo que pretende eliminar.

 

Tradução: Bernardo Micherif
Revisão: Cecília Batista 

Referências
ADORNO, T. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
FREUD, S. “A dissolução do complexo de édipo”. In: obras completas de Sigmund Freud: o ego e o id, uma neurose demoníaca do séc. XVII e outros trabalhos. 1923-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do ego”. In: Obras completas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. 1925-1926. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1953-54) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
LACAN, J. (1966-1967) Seminario, libro 14: la lógica del fantasma.. Inédito.
LAURENT, É. “O traumatismo do final da política das identidades”. Opção Lacaniana online, ano 9, nº 25, mar.–jul. 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/O_traumatismo_do_final_da_politica_das_identidades.pdf
MILLER, J.-A. “Intuições Milanesas”. Opção Lacaniana online, ano 2, nº 5, jul. 2011. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf
MILLER, J.-A. (1997). “El psicoanálisis, la ciudad, las comunidades”. Revista lacaniana de psicoanálisis, nº 22, Buenos Aires, EOL- Grama, 2017.
MILLER, J.-A. (2002). “El desengaño del psicoanálisis”. Revista lacaniana de psicoanálisis, nº 29, Buenos Aires, EOL- Grama, 2021.
VICENS, A. No todo es política en la orientación lacaniana. Barcelona: Gredos, 2019.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan hispano. Olivos: Grama Ediciones, 2021.