O CORPO: DO CLÍNICO AO POLÍTICO[1] 

 

ELAINE ROCHA MACIEL
Psicanalista, mestre em Educação pela UFMG
elainermaciel@yahoo.com.br

Resumo: A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud e do ensino de Lacan. Focaremos no último ensino de Lacan, em que o corpo é afetado por lalíngua. Um encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tendo como resultado um acontecimento de corpo e produção de efeitos de gozo. Um gozo fora do sentido, que se apresenta enquanto excesso e que deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Palavras-chave: corpo; lalíngua; acontecimento de corpo; sintoma; política.

The body: from the clinician to the political

Abstract: The notion of body in psychoanalysis underwent redefinitions throughout Freud’s work and Lacan’s teaching. We will focus on Lacan’s last teaching, in which the body is affected by lalangue. A traumatic encounter, derived from the clash between language and body, resulting in a body event and producing effects of jouissance. A jouissance outside of meaning, which presents itself as an excess and which leaves marks on the body, events that are the symptoms. These symptoms manifest themselves in different ways in contemporary times. It is a matter of a clinical dimension articulated to a political dimension.

Keywords: body; lalangue; body event; symptom; policy

 

 

Desde o início da psicanálise, Freud se dedicou à difícil relação entre o sujeito e o seu corpo, quando do seu encontro com os sintomas corporais presentes na clínica da histeria. As conversões histéricas se referiam ao recalque, que, num primeiro momento, apoiava-se somente nas representações. Posteriormente, Freud percebeu que havia algo para além das representações, passando a considerar essas perturbações conversivas a partir da pulsão. Tratava-se de um corpo atravessado pelo real. Esse atravessamento indicava uma outra causalidade, referindo-se à existência de um corpo libidinal. Quer dizer, não se tratava tão somente de que as histéricas endereçassem sua fala ao Outro para ser decifrada, em busca de uma verdade que o recalque recobria, mas sim de um falar com seu corpo, advindo da marca nesse corpo (MILLER, 2004, p. 51).

Passa-se de uma lógica da representação para uma lógica da pulsão, fazendo surgir uma outra concepção de sintoma e uma nova noção de corpo. Miller (2004), em Biologia lacaniana e acontecimento de corpo, destaca em Freud uma articulação entre essas duas lógicas: “atrás das representações, há as pulsões. As pulsões se exprimem pelas representações. É a sua maneira de nos apresentar uma conexão do significante e do gozo. Em sentido próprio, o recalque recai sobre as representações, mas também sobre as pulsões” (MILLER, 2004, p. 55).

As investigações de Freud sobre a sexualidade infantil também corroboraram com a ruptura da concepção restrita de corpo biológico. Ela trouxe à tona o corpo pulsional e evidenciou que há algo que escapa ao domínio do saber, saber esse inerente ao corpo biológico. Seguindo nas suas construções, Freud se deparou com a fragmentação do corpo nas psicoses e com os fenômenos, derivados dessa fragmentação, que afetam o corpo. Essas construções fundamentaram a sua teoria do narcisismo e da constituição do eu.

A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud, bem como do ensino de Lacan, considerando a subjetividade de cada época. Em Lacan, primeiramente, tínhamos o corpo relacionado à sua forma, ou seja, encontrava-se ligado à imagem, sendo sua referência o estágio do espelho. Com isso, o gozo era da ordem imaginária, sendo governado pela articulação simbólica. Sobre esse momento, Miller diz que “O eixo do interesse de Lacan não é o acontecimento de corpo, é a irrupção do símbolo no real. Sua questão é saber como o significante vem a se desencadear no real. É uma questão que é, essencialmente, da parte do sujeito do significante” (MILLER, 2004, p. 56). A lógica em questão era a das estruturas significantes que decorrem do Outro, sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem.

 

O sintoma como acontecimento de corpo

No último ensino de Lacan, o corpo ganha um novo e significativo estatuto na sua relação com o gozo, o que acarreta uma orientação da clínica em direção ao real. Trata-se de um corpo afetado por lalíngua, ou seja, uma língua que precede à linguagem e que impacta o corpo. Segundo Miquel Bassols, lalíngua é “definida pela substância gozante veiculada pelo significante, uma substância que toca o real do corpo. O real de lalíngua dá corpo à imagem” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Esse encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tem como resultado um acontecimento de corpo. O acontecimento de corpo é o impacto do significante, que opera fora do sentido, sobre o corpo, marcando-o e produzindo efeitos de gozo. “Trata-se de um acontecimento produzido por um encontro que não responde a nenhuma lei prévia, impossível de ser abolido, um gozo silencioso e fixado de uma vez por todas, que não cessa e que também não tem por que, mas que se reitera” (MANDIL, 2014, p. 01).

Essa presença significativa da dimensão do real do corpo muda o estatuto do inconsciente e leva Lacan a propor a substituição do termo “inconsciente freudiano” por “falasser. Sobre essa substituição, Miller (2016), em O inconsciente e o corpo falante, propõe “tomá-la como índice do que muda na psicanálise no século XXI, quando ela deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 06).

Enquanto o inconsciente freudiano tem relação com a consciência e está articulado ao sentido, o falasser se refere ao acontecimento de corpo, o que leva Miller a dizer que falar com seu corpo caracteriza o falasser (MILLER, 2004, p. 51). O falasser não é o corpo que fala, pois a fala não tem relação com a função cognitiva do corpo, uma vez que a língua não está ligada ao aprendizado. Se assim o fosse, existiria, a princípio, um ser, e, posteriormente, esse ser adquiriria a capacidade de falar. De outra maneira, a estrutura de linguagem antecede ao sujeito, enquanto corpo e enquanto ser. Ela é a condição do corpo falante. Por isso, a língua não se aprende, mas se transmite, a partir de uma experiência de gozo que atravessa o corpo.

Isso tem como efeito a separação entre o corpo e o ser. É justamente por não se reduzir ao seu corpo que o humano se distingue do animal. O animal identifica o ser e o corpo, ele é um corpo, fazendo com que o seu saber esteja nesse corpo. Diferente disso, o humano não é o corpo, ele o tem. Não se trata somente de uma imagem especular do corpo, mas, como nos afirma Bassols, “principalmente uma experiência de ter um corpo como unidade na qual se localiza uma satisfação pulsional, uma experiência de gozo” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Um gozo opaco, por ser fora do sentido, e que se apresenta no corpo enquanto excesso. Ele deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Trata-se de um sintoma que se diferencia do sintoma entendido como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem. Ele não se refere à metáfora, ou seja, a um efeito de sentido passível de ser decifrável e que revela um desejo inconsciente. Diferente disso, o sintoma de um falasser é um acontecimento de corpo. Éric Laurent descreve o acontecimento de corpo como sendo “‘tudo o que chega’, com uma dimensão de surpresa ou de contingência, antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro. Apresentar assim o sintoma é acentuar sua dimensão fora do sentido” (LAURENT, 2016, p. 50). Trata-se do sintoma enquanto efeito de lalíngua diretamente sobre o corpo, produzindo efeitos de gozo. O fora de sentido do sintoma decorre da sua dimensão corporal, sendo que, mesmo separado, o corpo sofre efeitos do discurso.

Concomitantemente ao gozo do corpo, que se refere a um gozar de si mesmo, o falasser comporta também o gozo da fala. Sobre isso, Miller afirma que “O falasser tem que se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem que se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos dois outros” (MILLER, 2016, p. 09).

Assim como o ser só existe enquanto tal na medida em que fala, o ser também só tem um corpo na medida em que fala ou é falado pelo Outro. Ter um corpo, como vimos, implica em uma experiência de gozo, sendo que esse atravessamento do corpo pela linguagem produz uma operação de extração do que Lacan chamou de objeto a. Isso marca um gozo interdito, que perde seu caráter ilimitado e inaugura a cadeia de significantes (S1 – S2), possibilitando uma conexão entre o objeto e a função fálica.

Portanto, “a extração do objeto é a condição para que o sujeito tenha acesso à dimensão do Outro, para a incorporação do corpo simbólico e para sua inscrição num discurso” (BARROSO, 2014, p. 134). Essa operação de extração faz com que o objeto a torne causa de desejo. Ser causa de desejo significa que houve a incidência da falta do objeto no campo do Outro, assegurando a função de castração. Vemos então que, com a operação de castração, há uma separação, no imaginário, do gozo. Temos aí um gozo que se lança para fora do corpo, que Lacan identificou como gozo fálico. Nesse contexto, a falta se presentifica enquanto vazio central da estrutura e da amarração dos registros: real, simbólico e imaginário. Isso significa que o objeto a se localiza na interseção desses três registros, ordenando a estrutura do ser falante. A psicanálise lacaniana aborda o corpo segundo esses três registros, que corroboram para que se tenha um corpo e dele se faça uso.

Por outro lado, quando não há a extração do objeto a, este é impedido de se alojar no campo do Outro, não se configurando como causa de desejo, mas permanecendo como puro gozo que irrompe no corpo. Nesse contexto, há a junção do significante e do gozo (S1 = a) ou (S1 sozinho). O objeto permanece enquanto substância gozante, uma vez que ele não foi negativizado, o que seria obtido pela operação de castração. Sem a inscrição do objeto no discurso, não há a sua articulação à função fálica. Sem a significação fálica, faz-se presente uma instabilidade radical e constante do ser.

A irrupção do gozo no corpo acarreta a manifestação de variados fenômenos corporais, bem como de sentimentos de horror e de perplexidade. É o que vemos na clínica das psicoses, em que se encontra em destaque a questão da fragmentação, da dispersão e da inconsistência do corpo. Um corpo que está sempre sob ameaça de se desprender, de não se sustentar como uma unidade. A ele falta uma significação que o possibilite dar uma resposta sobre o seu ser, o que o impede de constituir como quem tem um corpo. Daí decorre a dificuldade desses sujeitos em construir uma certa unidade do corpo, pois muitas vezes se encontram à mercê do real do gozo do corpo. Por isso, Miller afirma que “o sintoma como acontecimento de corpo é altamente suscetível de ser posto em evidência na psicose (MILLER, 2004, p. 55).

Entretanto, a problemática decorrente de um gozo que afeta o corpo está posta não somente na clínica da psicose, ela é independente da estrutura. Cada um sofre os efeitos desse retorno do gozo no real de forma particular e nenhuma construção, seja ela qual for, dá conta do sem sentido que lhe afeta.

 

Uma dimensão política

Mais além de um sujeito fruto da articulação significante, em que o ser é efeito de sentido, há o acontecimento de corpo. Isso nos faz deparar com uma variedade de novos sintomas que decorrem desse impacto da língua sobre o corpo. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Lacan (1966-67), em seu Seminário Lógica da fantasia, afirma que o inconsciente é a política. Trata-se de uma construção de que o inconsciente não está articulado ao pai, mas que se apresenta como algo a ser definido. Essa construção provém de uma leitura da identificação, mecanismo político por excelência, a partir do acontecimento de corpo, ou seja, numa lógica do ilimitado do gozo. Um gozo sem lei, que se sobrepõe aos ideais. Por ser ilimitado, ele não se curva a nenhuma regulação, sendo soberano o imperativo ao gozo.

A partir da expressão “o inconsciente é a política”, Laurent extrai a concepção de inconsciente político, fazendo uma articulação ao acontecimento de corpo:

“A extensão da perspectiva do inconsciente político ao falasser nos leva aos limites do questionamento psicanalítico sobre a relação do sujeito com o discurso. Ao centrá-lo sobre o acontecimento de corpo e não sobre uma identificação, (…) o sujeito se mantém fora da garantia do ‘complexo de Édipo’. É preciso então confrontar o risco da identificação como delirante (…).  Com o acontecimento de corpo, retira-se a identificação ao Pai e se desnudam (…) os acontecimentos de gozo mais além da castração” (LAURENT, 2016, p. 219).

Sem a identificação paterna, não é mais pelos ideais que acontece o laço entre o corpo e o Outro, mas sim pelo acontecimento de corpo. Devido a essa conexão direta com o que afeta o corpo, Miller considera que o laço social na atualidade é o sintoma e, portanto, carrega em si o gozo. 

 


Referências 
BARROSO, S. F. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
BASSOLS, M. “Corpo da imagem e corpo falante”. In: Scilicet: o corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 12-15.
LACAN, J. (1966-67) Logica del fantasiaInédito
LACAN, J.  (1972-73) O seminário, Livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro: Jorge Zahar  Ed., 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, Livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAUREN, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
MANDIL, R. “Há um acontecimento de corpo”. Opção Lacaniana online, n.13, março 2014. Disponível em:           <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Ha_um_acontecimento_de_corpo.pd>. Acesso em 02/03/2022.
MILLER, J.-A. “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo”. In: Opção Lacaniana, n. 41. São Paulo: Eólia, 2004. Tradução: Ana Lúcia Paranhos Pessoa.
MILLER, J.-A. “Un-cuerpo”. In: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2020..
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. In: Sciliceto corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.
SANTIAGO, J. “Transferência e acontecimento de corpo: suposto-saber-ler de outra forma”. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, n. 47, 2019, p. 47-60.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito – Seção Clínica do IPSM-MG, em 18/03/2022



PSICOPATOLOGIA DO RACISMO COTIDIANO: DO CORPO POLÍTICO AO ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

LUÍS COUTO
Psicanalista praticante. Psiquiatra.
Doutorando em Estudos Psicanalíticos-UFMG.
Preceptor da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares/FHEMIG.
luisfdcouto@gmail.com

Resumo: O artigo visa partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

Palavras-chave: Racismo; segregação; gozo.

Title: Psychopathology of everyday racism: from body politcs to body event

Abstract: This article starts from the effects of the historical politics of racial segregation in our country to arrive at psychoanalysis’s politics of the symptom, from which it will be possible to collect, for each subject, the singular effects of the nominations coming from the Other and its relation to jouissance.

Keywords: Racism; segregation; jouissance.

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Neste semestre o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo do IPSM-MG tem se dedicado ao estudo do tema “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”. No entanto, tentarei propor uma disjunção do tema de nossa investigação que considerei pertinente: de um lado, o corpo político, e, de outro, o acontecimento de corpo.

Partiremos, então, dos sintomas da política para tentar avançar em direção à política do sintoma. Ou seja, partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo. É nesse sentido que propus, no título deste trabalho, uma “psicopatologia do racismo cotidiano”, fazendo uma alusão ao texto de Freud, “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, na medida em que Freud extrai, das pequenas falhas do discurso (atos falhos, lembranças encobridoras, etc.), não os índices de uma patologia, mas uma lógica inconsciente que nos indica os efeitos singulares do encontro da linguagem com o animal humano. Por isso, as vinhetas clínicas que trago pretendem seguir nessa direção de tentar extrair uma lógica subjetiva do racismo cotidiano, aquele que se apresenta no que poderíamos considerar um laço social primordial, o seio da própria família, ou ainda um pouco mais íntimo/êxtimo, aquele encontrado na relação do sujeito com o próprio corpo.

 

Sintomas da política

A articulação entre a questão racial e o uso de drogas pode ser tomada sob várias perspectivas, mas destaco um ponto que me pareceu interessante: a ocasião de uma primeira virada na legislação relativa às drogas em nosso país. Durante o Império e início da República, o Estado pouco interferia no uso de drogas. Não havia leis específicas sobre o uso de substâncias psicoativas, exceto a embriaguez alcoólica, que era punida com a prisão. Com a Proclamação da República, a medicina e a psiquiatria são convocadas ao debate a respeito do problema das drogas, e o desvio psíquico é localizado no lado primitivo e incivilizado da sociedade brasileira, ou seja, aquilo que divergia do modo europeu. Para se ter uma ideia, uma das consequências do ideal civilizatório foi a proibição de práticas culturais da população afrodescendente, como samba, capoeira, candomblé e o uso da maconha. Foi proposta, então, a proibição da maconha diante de uma suposta preocupação com o seu consumo pela população negra e rural do Nordeste, cujos efeitos levariam à loucura e à criminalidade (TRAD, 2009). Logo após a abolição da escravidão, portanto, torna-se necessária a criação de outras leis que incidirão diretamente sobre os negros, mantendo-se um regime de exclusão.

Não pretendo estender a discussão histórica, mas, dando um salto temporal, vemos ainda, nos dias de hoje, os efeitos da segregação racial em manifestações que vão desde o racismo mais explícito àquele que se manifesta no cotidiano das relações sociais. Há, por outro lado, uma também histórica organização dos movimentos de resistência negros, que se articulam para fazer frente às políticas de segregação. Mais recentemente temos observado alguns movimentos sociais que trazem à pauta “o corpo” com a afirmação: “meu corpo é político”. Trata-se de trazer o corpo feminino, preto, trans à cena da polis, no sentido de produzir uma visibilidade do corpo excluído e tentar perturbar o social e seus modos de segregação.

As várias formas de segregação estão imiscuídas em nosso percurso histórico de maneira que não temos observado sua mitigação, mas, pelo contrário, assistimos a uma escalada do racismo, como Lacan previu após os eventos de maio de 68. Diante das proposições que surgem nesse contexto, de uma sociedade sem o poder dos pais e acompanhada de um culto ao corpo, Lacan afirma que o que aí se enraíza é o racismo. No texto “O racismo 2.0”, Éric Laurent retoma essa previsão lacaniana que se sustenta em uma lógica da rejeição ao gozo do Outro. É o que se observa no movimento do colonialismo e a vontade de normalizar o gozo daquele que é emigrado em nome de seu bem: não se trata de choque de civilizações, mas de choque dos gozos. “Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador” (LAURENT, 2014 n/p.).

Ainda segundo Laurent, em “O avesso da biopolítica”, “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época (…)” (LAURENT, 2016, p. 213). É nesse sentido que trarei, em seguida, algumas vinhetas clínicas e o que foi possível recolher a partir de cada caso.

 

Política do sintoma

Esse primeiro caso foi publicado em uma edição da revista CliniCAPS, a propósito de uma discussão sobre a formação em saúde mental (BALTHA, 2015). Esse paciente tinha, à época, 33 anos, estava se tratando em um CAPS-AD devido ao uso abusivo de crack e era considerado pela equipe como sendo “de difícil manejo, indisciplinado, não obedece às regras da instituição”. Ele vê uma acadêmica de medicina jogando xadrez com um outro paciente e lhe demanda que o ensine a jogar. Durante as partidas de xadrez, passa a falar para a estudante a respeito da mãe que o negligenciava, deixava-o sozinho em casa sem comida, não lhe dava afeto. Percebia que o tratamento que recebia era diferente daquele dispensado aos irmãos. Ele, por exemplo, ao contrário dos outros, só fora registrado na adolescência.

Fala de uma cena em que conheceu o pai, aos 9 anos de idade. Estava na janela de sua casa e viu um carro se aproximar, conduzido por um homem. Sua mãe o recebeu e lhe disse: “seu filho está aqui”. Esse homem, ao vê-lo, respondeu: “esse menino é preto demais para ser meu filho”. Descobriu, assim, que esse era o seu pai, que, por muito tempo, ansiou por conhecer. Diz que essa cena o marcou muito e, depois disso, não mais tiveram contato.

Parou de frequentar a escola, cometia pequenos furtos para ajudar a pagar as contas em casa. Sentia-se desamparado, “sozinho no mundo”. Passou a usar drogas na adolescência e intensifica o uso após os 20 anos. Quando sob efeito das substâncias, envolve-se em brigas na rua e apresenta ideação persecutória, além de ouvir vozes. Diz que em diversas ocasiões pensou em tirar a própria vida e justifica que não conseguiu encontrar um lugar no mundo.

Com muita frequência fala do peso que a cor da pele tem para ele. Não consegue melhorar de vida ou ter empregos em razão de sua cor. As pessoas não gostam dele porque é negro e é a cor da pele que o impede de manter relações sociais. Durante a conversa com a acadêmica, pergunta-lhe: “você acha que sou muito preto?”.

Em determinado dia, diz, de maneira jocosa, que estava fazendo movimentos errados no xadrez porque estava jogando com as peças pretas; preferiria jogar com as brancas. A aluna, advertida dos elementos de uma primeira construção do caso, intervém dizendo que é importante aprender a jogar com as peças pretas.

Como pensar a segregação nesse caso? No texto “A toxicomania não é mais o que era”, Antônio Beneti propõe um discurso da segregação como sendo derivado do discurso do mestre amputado do lugar da verdade, onde estaria o sujeito do inconsciente. Seria, então, um discurso de três termos (BENETI, 2014):

S1 → S2

//  a

Poderíamos investigar, no caso apresentado, se a segregação se daria por um S1 vindo do Outro, “preto demais”, que comandaria um S2, “não tenho lugar no mundo”. Assim, haveria uma identificação ao S1 tomado pelo sujeito do campo do Outro e uma espécie de “saber-fazer” que irá sustentar essa nomeação: “sim, sou preto demais para ter um lugar no desejo do Outro”. Há, no entanto, um problema na relação desse sujeito com o discurso e o laço social e poderíamos questionar se ele se insere no discurso e, se sim, como isso se daria. Uma hipótese que leve em conta uma entrada precária no discurso e o coloque numa posição de rejeitado pelo Outro resultaria, como consequência lógica, no sistema explicativo: “sou preto, logo, não devo existir” — efeito paradoxal desse discurso, porque tende à sua retirada. Dito de outro modo, parece tentar fabricar uma entrada à força no campo do Outro a partir das brigas, violações das regras institucionais, o que acaba por produzir sua rejeição a cada vez. É esse sistema que a acadêmica tenta discretamente perturbar ao propor que poderia jogar com o significante “preto”. Colocar-se, então, em jogo. Estamos, até aqui, no campo da linguagem e do discurso.

Como o sintoma não é produzido apenas em termos da linguagem, partimos para uma outra questão, que diz respeito ao sintoma como acontecimento de corpo. Freud desenvolve a tese de um sintoma metaforizado, que poderia ser interpretado ao nível da linguagem. No entanto, em sua teoria encontramos também as bases para a ideia de um sintoma que não se reduz a um sistema lógico decifrável tomando por base o significante. Ou seja, quando Freud se refere ao sintoma como uma satisfação substitutiva de uma pulsão, introduz aí uma outra vertente do sintoma, ligada ao gozo. É nesse sentido que Jacques-Alain Miller irá afirmar que “a definição do sintoma como acontecimento de corpo é necessária e inevitável, porquanto o sintoma constitui, como tal, um gozo” (MILLER, 2004, p.45).

É devido a uma espécie de imbricação entre linguagem e gozo que podemos afirmar que a linguagem desnaturaliza o organismo, ou seja, com a entrada no mundo da linguagem, o corpo terá um funcionamento estranho ao que seria um bom funcionamento do organismo com base nas leis da física, química ou biologia — as leis da natureza. Assim, nos seres falantes, ao contrário dos outros animais, o circuito pulsional passa pelo corpo, mas encontra seu representante na linguagem, o que produz efeitos. Entre eles, uma discordância entre o organismo e o corpo, de onde Lacan deduz sua tese de que não se é o corpo, mas se o tem.

Sendo habitado pela língua, o corpo é marcado pelas ficções de verdade. Essas ficções podem tornar-se mais ou menos fixas a partir de sua relação com o gozo. De acordo com Miller, o corpo “é a vergonha da criação porque são corpos doentes da verdade”. “Eles são doentes, porque a verdade os embaraça” (MILLER, 2004, p. 45). É assim que o corpo sai de um saber naturalista, instintual, para uma verdade que o parasita e o desnaturaliza, chegando ao ponto, como no caso, de a verdade “preto demais” modificar o que seria um bom funcionamento do corpo: erra as jogadas de xadrez, não é capaz de se inserir no laço social etc.

Podemos investigar, no caso apresentado, como a ficção “preto demais” se articula à série prazer-desprazer. Ou seja, podemos abordar o caso advertidos de que a verdade que o sujeito dispõe traz consigo, atrelado a ela, o gozo, como nos dá prova o tom jocoso que utiliza ao justificar seus erros no xadrez por estar jogando com as peças pretas: a verdade é irmã do gozo, como afirma Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Uma outra hipótese, não discordante da anterior, é que sua verdade o mantém a certa distância do Outro, e, ao contrário de nos orientarmos por um imperativo de “ressocialização”, poderíamos tentar verificar a função dessa verdade e se teria um efeito de proteção contra a invasão de um Outro que ou abusa ou negligencia, de sorte que ele sempre resta como dejeto. Nesse sentido, penso ter sido interessante a intervenção da aluna, que não tenta provocar uma desidentificação com o significante “preto demais”, tampouco tenta levá-lo a um discurso de empoderamento, mas lhe lança uma questão a respeito da possibilidade de aprender a jogar com as peças pretas, o que coloca no horizonte um outro “saber-fazer” com isso.

Passo para um segundo caso, do qual trago apenas um recorte, mas que chamou atenção em relação a essa discussão. Trata-se de uma mulher de 41 anos que foi encaminhada do CAPS para internação no Instituto Raul Soares. Ela mora com um filho adolescente e havia tentado agredi-lo, dizendo ter tido pensamentos ou vozes mandando matá-lo. Logo que é internada, tais vozes somem e dão lugar a uma espécie de pensamento intrusivo: quando vê pacientes negras, vem-lhe à mente a ideia de chamá-las de “preta”, “macaca”, e teme não conseguir controlar isso e ser agredida. Não se trata de uma paciente toxicômana, mas sua relação com as drogas vem por outras vias. Fora criada pelos pais, mas todos os cuidados da casa eram dirigidos à mãe alcoolista. A mãe nunca lhe deu carinho, vivia bebendo. Quando tinha 16 anos, a mãe sofreu um acidente grave e parou de beber de uma vez, ocasião em que descreve que houve, pela primeira vez, paz em sua casa. Logo em seguida a esse “bom acidente” da mãe, a nossa paciente engravidou, mas nunca conseguiu cuidar dos três filhos que teve: “Não aprendi a ser mãe, não sei cuidar”. Frequentemente apresentava crises de depressão, era internada e, em poucos dias, o marido a retirava para que ele pudesse cuidar dela e dos filhos. Isso se deu em uma sequência de 14 internações no hospital de sua cidade, ao longo dos anos. No entanto, há poucos meses o marido faleceu e ela não sabe o que fazer. Sente-se culpada por ele ter tido cirrose e ela ter levado cachaça para ele sempre que pedia. Em um determinado dia, conta à residente que ela era modelo, tinha dentes, cabelos loiros, era magra e cantava na noite. Muito diferente da mãe, por quem diz ter um grande amor hoje, mas que é negra. “Eu tinha vergonha da minha mãe por ela ser negra”.

A partir de algumas intervenções da residente, faz uma frouxa associação entre os pensamentos intrusivos e a vergonha que tinha da mãe. Mas logo refuta a associação dizendo do amor que sente por ela. Propomos que ela tenha um espaço para falar disso com uma psicóloga de sua cidade, com o que prontamente concorda. Nesse caso há um fenômeno do pensamento disjunto de uma agressividade, que aparece no corpo, dirigida ao Outro. Os significantes “preta” e “macaca” aparecem, aí, separados de um afeto de ódio.

Um acontecimento produz traços, é isso o que Freud chamou “trauma”. Segundo Miller,

“o acontecimento fundador do traço de afetação é um acontecimento que mantém um desequilíbrio permanente, que mantém no corpo, na psiquê, um excesso de excitação que não deixa de se reabsorver. Temos, aqui, a definição geral do acontecimento traumático, aquele que deixará traços na vida subsequente do falante” (MILLER, 2004, p. 53).

Uma questão que trago é como poderíamos pensar o acontecimento traumático em cada um dos casos. No primeiro caso, a contingência do encontro com o pai e sua sentença teria sido o desencadeador para uma ruptura com o laço social? Haveria, nessa hipótese, o significante do racismo articulado ao ódio de si. No segundo caso, não observamos uma ruptura. A paciente não fica em um absoluto desamparo mesmo com os problemas da mãe com o alcoolismo. Tem um pai cuidadoso e uma irmã mais velha que “foi uma mãe”. No entanto, o significante do racismo dirigido à mãe aparece dissociado do afeto nesse momento de crise, sob a forma de um pensamento intrusivo. Ou seja, nesse caso, teríamos o significante do racismo articulado ao ódio dirigido ao Outro. Duas modalidades, portanto, da articulação significante do racismo/ódio de si ou ódio ao Outro. Uma outra questão que poderíamos discutir, a partir da consideração do sintoma em sua vertente de verdade e em sua vertente de gozo, seria como pensar a direção do tratamento em cada um dos casos.

 


Referências
BALTHA, A. C. et al. “Internato de saúde mental no curso de medicina: o xadrez da formação”. CliniCAPS, v. 9, n. 25/26, 2015.
BENETI, A. “A toxicomania não é mais o que era”. In: MEZÊNCIO, M.; ROSA, M.; FARIA, M. W. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
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[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, da Seção Clínica- IPSM-MG, em 14 de junho de 2022.



O ACONTECIMENTO DE CORPO POLÍTICO E A PSICANÁLISE HOJE[1] 

MARIA WILMA S. DE FARIA
Psicanalista, membro da EBP/AMP
Coordenadora da Rede TyA Brasil
mwilma62@gmail.com

RESUMO: O corpo falante testemunha o discurso como laço social e traz em si suas marcas enquanto corpo socializado. Tendo como referência o segundo ensino de Lacan, no que toca ao falasser político, o texto indaga o que pode hoje a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Interroga os sintomas contemporâneos que têm a toxicomania como paradigma, bem como as adições generalizadas, o uso excessivo de remédios, as instituições segregativas e a violência discriminatória exercida sobre usuários e dependentes de drogas e/ou em uso prejudicial de álcool.

PALAVRAS-CHAVE: Toxicomania; Clínica; Psicanálise; Política; Falasser.

The event of body political and psychoanalysis today 

ABSTRACT: The speaking body witnesses the discourse as a social bond and bears in itself its marks as a socialized body. Taking Lacan’s second teaching as a reference regarding the political parlêtre, this essay questions what psychoanalysis can do today in face of the drug addiction that our time promotes. It interrogates contemporary symptoms that have drug addiction as a paradigm, as well as generalized additions, excessive use of medication, segregative institutions, and  discriminatory violence against drug users and addicts and/or those in harmful use of alcohol.

KEY WORDS: Drug addiction; Clinic; Psychoanalysis; Politics; Parlêtre.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 

O tema de trabalho deste semestre, proposto por Lilany Pacheco (diretora-geral do IPSM-MG) e Cristiana Pittella (diretora da Seção Clínica), nos convida para começar uma investigação de conceitos preciosos do último ensino de Lacan, à luz da transmissão de Miller, tais como falasser, sintoma como acontecimento de corpo, laço social, gozo e corpo político, articulando-os e tentando fazer uma leitura do mundo atual globalizado, com sua lógica capitalista.

Em tempos marcados pelo desvanecimento do Ideal do Eu, assistimos à queda do pai como moderador de gozo, o que, por sua vez, leva a um empuxo à primazia de modalidades de gozo que não incluem o Outro. Cabem aqui todas as manifestações sintomáticas nas quais o excesso faz presença: bulimias, toxicomanias, obesidades, anorexias, comunidades de gozo. Enfim, sintomas, no limite do dizível, que chamam à cena o corpo em suas inúmeras dimensões. No discurso da ciência, tudo pode ser nomeado, quantificado, diagnosticado: para cada mal-estar, um tratamento, um protocolo, classificações e prescrições. Na lógica biomédica, é apropriado lidar com a questão das toxicomanias como elemento de controle, apresentando-a como doença a ser tratada e curada com pílulas de felicidade. Já no discurso capitalista, temos a lógica de que tudo pode ser comprado e adquirido sob a promessa da plenitude. O toxicômano faz-se um consumidor ideal, sempre fiel ao mesmo artefato, o que desemboca em ser consumido pelo próprio objeto de gozo. No entrecruzamento desses dois discursos, podemos tomar a toxicomania como paradigma dos novos sintomas, sintoma fruto de nossa época.

Para entender um pouco a toxicomania, tomemos uma referência de Miller, que parece ser preciosa:

“A repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível. Desde então, o sujeito se encontra ligado a um ciclo de repetições cujas instâncias não se adicionam e cujas experiências não lhe ensinam nada. Hoje, chamamos isso de adição a fim de qualificar essa repetição de gozo. Chamamos assim precisamente porque isso não é uma adição, já que as experiências não se adicionam. Essa repetição de gozo se faz fora do sentido” (MILLER, 2011a, p. 109).

Esse gozo que se itera e reitera presente nas toxicomanias só tem relação com o significante Um, S1. Ele não se direciona ao S2 como saber, e é um “autogozo do corpo. E o que faz função de S2, no caso, o que faz função de Outro desse S1 é o próprio corpo” (MILLER, 2011a, p. 109). Assim, temos o corpo como Outro, e desde sempre operamos na clínica das toxicomanias com esse desafio.

Uma importante pergunta que Miller faz em “Ler um sintoma” (MILLER, 2011b) é se o gozo presente no sintoma seria primário. Ele responde que, em um certo sentido, sim. “Pode-se dizer que o gozo é o próprio corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, um corpo é o que goza, reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, o que Freud chamava de autoerotismo” (MILLER, 2011b). Mas isso é verdade para todo corpo vivo, não só para os toxicômanos. Será que poderíamos pensar que os toxicômanos ficam fixados aí no gozo autoerótico?

“Assim, pode-se dizer que gozar de si mesmo é o estatuto do corpo vivo. O que distingue o corpo do ser falante é que seu gozo sofre a incidência da fala. E precisamente um sintoma demonstra que houve um acontecimento que marcou seu gozo no sentido freudiano de Anzeichen (sinal) e que introduz um Ersatz (substituição/ estepe/ peça sobressalente), um gozo que não deveria, um gozo que perturba o gozo que deveria, isto é, o gozo de sua natureza de corpo. Portanto, nesse sentido, não, o gozo em questão no sintoma não é primário. Ele é produzido pelo significante. E é precisamente essa incidência significante que faz do gozo do sintoma um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma demonstra que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo após o qual o gozo natural entre aspas, que se pode imaginar como sendo o gozo natural do corpo vivo, encontrou-se perturbado e desviado. Esse gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá, e o faz por meio de seu sintoma como interpretável” (MILLER, 2011b, n/p.).

Assim, podemos diferenciar o conceito de sintoma freudiano como aquele passível de ser decifrado, compreendido, interpretado, e o conceito lacaniano tendo o sintoma como aquele que não fala, mas que se inscreve sobre o corpo, silencioso, pura presença de gozo, próximo assim às apresentações sintomáticas dos toxicômanos. Esses se apresentam de forma bruta, com seus corpos depauperados, alquebrados, pura presença.

É na conferência em que anunciou o X Congresso da AMP em 2014 (MILLER, 2016) que Miller aponta a substituição do “inconsciente” feita por Lacan, em seu ensino, para o termo “corpo falante ou falasser”. Tal proposição assinala como a fala impacta o corpo, em um ponto de real, unindo os dois, linguagem e corpo (S1a). Isso porque o falasser não é o seu corpo, mas tem um corpo. Essa abordagem do falasser vai nos permitir aproximar da expressão usada por Lacan em “Intuições Milanesas”: “o inconsciente é a política”.

“A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan. ‘O inconsciente é a política’ é um desenvolvimento de ‘O inconsciente é o discurso do Outro’. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. ‘O inconsciente é a política’ radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir. A análise freudiana do Witz justifica o fato de Lacan articular o sujeito do inconsciente a um Outro, e qualificar o inconsciente como transindividual. É possível passar de ‘o inconsciente é transindividual’ para ‘o inconsciente é político’, desde que fique claro que esse Outro é dividido, que ele não existe como Um” (MILLER, 2011c, p. 6-7).

Assim, a formulação “a política é o inconsciente” repousa na referência freudiana de uma política articulada ao pai, à identificação, à censura. Já o dito de Lacan “o inconsciente é a política” parte não mais da política articulada ao pai, e sim do inconsciente separado da identificação, estruturado como linguagem, que nos leva a considerar o acontecimento de corpo no inconsciente político (LAURENT, 2016). Como poderíamos entender isso, então? O acontecimento de corpo afeta não só o corpo entendido como o organismo individual, mas também o corpo do sujeito da linguagem, logo, transindividual.

“O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época” (LAURENT, 2016, p. 213).

Esse ponto muito nos interessa. Tomemos assim como a subjetividade de nossa época vê os toxicômanos e os alcoolistas e seus corpos: bandidos, fracos, insubordinados, sem força de vontade. Cabe aqui toda uma concepção moral com seus adjetivos e déficits que, desconhecendo o campo pulsional, praticam toda sorte de violência discriminatória sobre usuários e dependentes de drogas e álcool. Assim, esses falasseres passam a ser vistos cotidianamente como não sujeitos, desprovidos de dignidade ou de direitos. De tal sorte que, assujeitados, são alvo de toda uma política higienista (presente também no discurso do atual governo) que preconiza a disciplina dos corpos com uma pretensa roupagem de “salvação” ou tentativa de erradicar as substâncias psicoativas, fazendo crer ser possível um mundo sem drogas e evitar um mal pior, que seria o consumo de substâncias.

Essa política visa a abstinência total via segregação pela internação e impera como tentativa de controlar o gozo e domar os corpos. Na clínica das toxicomanias, interessam-nos as relações mantidas pelo sujeito e seu corpo, ambos, objeto de discursos invasivos de um “programa político” que almeja colocar à margem a malfadada infelicidade. Na toxicomania observamos um certo apagamento do corpo via intoxicação, ou mesmo uma tentativa de anestesiar o corpo. Em sujeitos psicóticos, o recurso às drogas poderia ser uma forma de fazer um corpo ali onde o sujeito não tem um corpo, uma maneira de moldar, de esculpir o corpo que escapa a todo momento. De qualquer forma, para nós psicanalistas, a função que a droga tem é sempre construída, sujeito a sujeito, em sua singularidade.

Interessa-nos também pensar o toxicômano na cidade e tudo o que vem reforçar a identificação imaginária: “Você é toxicômano, você é drogado!”. Essa nomeação vinda do campo do Outro muitas vezes reafirma para o sujeito o que ele é, reduzindo o ser falante à substância que usa. Essa pode ser também uma forma de o sujeito se apresentar, totalmente submetido. Deparamos cada vez mais com microculturas movidas por identificações grupais que também não singularizam o sujeito, mas, antes, os determinam em subgrupos movidos pelo consumo: cachaceiros de um lado, noiados de outro, emos tristes que fazem apologia aos antidepressivos, medicalizados agitados que querem aumentar a performance no trabalho, grupos de ajuda mútua, dependentes de ritalina. Essa pretensa identidade grupal traz uma miragem de todos iguais, de pertencimento, em uma colagem imaginária que provoca uma pseudossegurança, expressão de um desvario de gozo, mas que acaba evidenciando toda a fragilidade dessas identificações subjetivas, uma vez que nada aplaca a solidão de cada um.

Nesse ponto seria interessante recorrer e diferenciar o que passou a ser chamado de “toxicomania generalizada”, ou “adição”, do conceito “toxicomanias”, propriamente dito, e dar um passo a mais, ao que o colega Ernesto Sinatra, de Buenos Aires, propõe chamar de “adixão”. A toxicomania generalizada, ou adições contemporâneas, se refere à lógica do mercado que oferece toda sorte de produtos cujo consumo pode tornar as pessoas “dependentes” em uma relação excessiva, passando a ter, assim, o estatuto de drogas. Tais objetos de consumo não são uma substância: internet, compras, celular, pornografia, jogos. Ou seja, há uma lista sem fim de produtos fazendo série e que obedecem ao imperativo “consuma!” bem na lógica de “todos gozam dos mesmos objetos”. Lembremos aqui o uso atual da palavra “tóxica” para se referir às pessoas que estão sempre se queixando, tornando o ambiente e as relações da vida impossíveis.

Já o termo toxicomanias, no plural, marca bem a questão de que a singular relação de um sujeito com uma substância a ser introduzida no corpo se dá de forma única para cada um. Considera assim que podemos ter pessoas usando a mesma substância, com frequência e quantidade iguais, mas em que a relação maníaca, bem como sua função na economia libidinal, será diferente. E isso tem sua pertinência e importância para todos nós do Campo Freudiano, que nos dedicamos a essa investigação.

Com o pequeno detalhe de mudança de uma letra, x, Sinatra batiza como adixão o nome sintomático do atual estado da civilização:

“uma versão pós-moderna da toxicomania generalizada. […] o x de adixão mostra a fixação do gozo singular e inalterado que não pode ser apagado e traz a marca do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado e que descompleta a pretensa generalização do consumo que vale para todos” (SINATRA, 2020, p. 97-98).

Ressalto ainda a multiplicação de instituições totais aos moldes de comunidades ditas terapêuticas em nosso país, o que aponta um retrocesso nos avanços até então conquistados. Assinalo aqui a importância e a responsabilidade de serviços de saúde do SUS, ou não, presentes na cidade fazerem valer a singularidade e trabalhar os preconceitos presentes dentro de cada um em relação a esses falasseres.

O que pode hoje a psicanálise? Penso que somente com a presença do discurso analítico podemos vir a abalar e furar as bolhas de certeza do discurso do Outro social que tenta promover o bem geral, causando uma fratura da verdade, instaurando assim um campo aberto à interrogação e considerando que a política está no campo do discurso do Outro, no campo da divisão.

Lidar com a tirania do supereu com a qual o sujeito toxicômano está submetido implica favorecer a desidentificação dos S1 provenientes do campo do Outro e apostar na construção do nome próprio.

Miller nos ensina que tratar o sintoma é visar a fixidez do gozo, a opacidade do real, de modo que, a partir do último Lacan, em uma análise, trata de reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo; ao choque puro da linguagem sobre ele (MILLER, 2011b).

O que pode o psicanalista hoje frente a tudo isso? Despindo de qualquer concepção ideal de cura, a aposta do analista é sempre que o sujeito toxicômano possa interrogar-se sobre o estreito laço que o liga ao objeto e que possa fazer deslocamentos mínimos que o reconectem a seu desejo. O discurso analítico pode ser uma importante ferramenta para questionarmos os corpos, os falasseres, seus gozos e também o discurso de nossa época, de tal sorte que este possa a vir a ser “partilhado pelo maior número possível de sujeitos do corpo político” (LAURENT, 2016, p. 219). 

 


REFERÊNCIAS
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J-A. Intuições milanesas. Opção lacaniana online. Nova série. ano 2, n. 5, jul. 2011c. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf> Acesso em:  01 mar. 2022.
MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante.  Apresentação do tema do X Congresso da AMP. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9>Acesso em: 01 mar. 2022.
MILLER, J-A. Seminário de orientação lacaniana. O ser e o um. Orientação lacaniana III, 13, VIII lição do curso (23 de março de 2011.) Inédito. 2011a.
MILLER. J-A. Ler um sintoma. AMPBlog. 01 ago. 2011b. Disponível em: <http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html>. Acesso em: 20 fev. 2022.
SINATRA, E. Adixiones. Olivos: Grama Ediciones, 2020.
[1]Texto apresentado na abertura do Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo – Seção Clínica do IPSM-MG, em 08 de março de 2022.



PSICANÁLISE E POLÍTICA[1] 

FABIÁN A. NAPARSTEK
Psicanalista, AME da EOL/AMP
fabiannaparstek@hotmail.com

Resumo: Neste artigo Fabián Naparstek parte de uma referência a Cervantes e Borges para, com as indicações de Lacan, abordar o laço entre psicanálise e política. Desse modo, o autor faz uma leitura da política envolvida no laço entre os analistas, na direção do tratamento, assim como na própria posição do analista no mundo, marcando uma orientação que vai contra os processos de segregação, propondo uma estratégia que segue, a cada época, uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro.

Palavras-chave: psicanálise; política; sintoma; segregação.

Psychoanalysis and Politics 

Abstract: In this essay, Fabián Naparstek makes reference to Cervantes and Borges in order to discuss the link between psychoanalysis and politics. The author comments on the politics involved in the bond between analysts, in the direction of treatment, as well as in the analyst’s own position in the world, marking an orientation that goes against segregation, proposing a strategy that has in mind the singular of the symptom that is not without the other. 

Keywords: psychoanalysis; politics; symptom; segregation.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

“Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face
do mundo. Sua tarefa persiste. Se nossas previsões não
estiverem erradas, daqui a cem anos alguém descobrirá
os cem tomos da segunda enciclopédia de Tlön. Então,
desapareceram do planeta o inglês, o francês e o mero
espanhol. O mundo será Tlön”.

(BORGES, 1940, p. 435, tradução nossa)

 

A leitura e a política

O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha passou da leitura para a cidade real. Isso o levou a pelejar contra os moinhos de vento.

Borges, por sua vez, pensava que a leitura poderia mudar o mundo. O borgeano, se é que isso existe, é a capacidade de ler tudo como ficção e acreditar no seu poder. Definitivamente, o mundo Tlön, de Borges, é a ilusão de um universo criado pela leitura e que depende dela. Lê-se o real perturbado e contaminado pela ficção. Uma ficção que tem consequências. Por sua vez, J.-A. Miller comparava esse mundo borgeano com a leitura de Jacques Lacan. Com efeito, Lacan dedicou uma vida a se colocar diante de seus alunos — os que o seguiam — fazendo uma leitura pública do retorno ao Freud. Uma leitura que supõe uma posição política e que tenta produzir consequências. Produziu para ele próprio, já que ousou ir mais além do pai e de Freud.

 

Três citações

Partirei de três indicações de Lacan para abordar o laço entre psicanálise e política. Em primeiro lugar, J. Lacan falava sobre a “falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos do Homem” (LACAN, 1985, p. 12). Imediatamente acrescentava, que “Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável” (LACAN, 1985, p. 12) e que “Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares” (LACAN, 1985, p. 13). Definição que pode ser estendida ao conceito de política em geral, mas que, nesse caso, se refere aos eventos de excomunhão aos quais Lacan foi submetido pela Associação Internacional de Psicanálise. Sublinha-se o fato de ele próprio ter sido objeto de negociação pelos seus próprios alunos e pacientes.

Em segundo lugar, vou deter-me em uma referência ao texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Ali J. Lacan propôs uma política específica na realização dos tratamentos. Destaca, em primeira instância, a impotência de sustentar uma práxis quando ela se reduz ao “exercício de um poder” (LACAN, 1998, p. 592). Com efeito, toma a perspectiva do lugar do analista e de suas dificuldades.

Por fim, fornece mais uma indicação que, surpreendentemente, remete “ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 2003, p. 235). Na verdade, essas são as perspectivas que J.-A. Miller (1999) apontou no início de seu seminário sobre a Política Lacaniana nos anos de 1997 e 1998.

 

A política do tratamento

Em relação ao tratamento, a política tem um lugar central na discussão da época. Em vez da suposta neutralidade do analista, Lacan se opõe propondo na psicanálise uma política bem determinada, na qual o analista é tudo, menos livre. É menos livre na tática e na estratégia. Existe apenas UMA política! Por outro lado, a referência à política no tratamento centra-se na ação que emana de sua falta a ser, e não de seu ser. De fato, como assinala J. Lacan, o analista “é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (LACAN, 1998, p. 593-594). Vale a pena mencionar aqui, como disse J.-A. Miller, que tal ação é o antecedente do que será mais tarde o ato analítico e que esse ato terá algo de não natural. É por isso que, para Lacan, o problema central não será que haja analisandos, mas que haja um analista. De fato, “a reprodução dos sintomas já não constitui um problema, mas somente a reprodução dos analistas; a dos pacientes está resolvida” (LACAN, 1998, p. 630).

 

A política e os analistas

Quanto ao laço entre os analistas, Lacan subverte o tipo de estrutura de associação possível e os modos de obtenção de títulos entre eles. A invenção dos dispositivos lacanianos — entende-se pela Escola, o cartel, o dispositivo do passe, etc. — perturba a tendência natural ao encontro dos analistas como grupo de ajuda mútua para o exercício de poder. De fato, vale ressaltar que a invenção de dispositivos é para forçar algo que vai contra uma tendência natural ao poder e à manutenção do vínculo libidinal entre iguais. A Escola e seus dispositivos, na política de Lacan, visam acolher o diferente, colocar o analista como um desconhecido, um de cada vez, e a uma elaboração coletiva a partir da heterogeneidade das singularidades. Uma política na qual “tudo é da ordem do analítico” (MILLER, 2016, p. 12).

 

A política da psicanálise no mundo

Finalmente, nos referimos ao aspecto da psicanálise e dos analistas no mundo. Como já foi apontado, J. Lacan atribui um dever ao analista no mundo. Aqui também não se trata da neutralidade. A referência não é tanto que o analista participe como cidadão (algo que não lhe é proibido obviamente), mas que ele possa introduzir algo a partir da perspectiva analítica. A questão é sobre o que a psicanálise pode fazer valer a partir de sua própria orientação. Se a política em geral responde ao discurso do mestre na medida em que tenta introduzir a captura do sujeito por um significante mestre, a posição da psicanálise visa destituir o sujeito desse significante para que ele possa contribuir com o que nele há de singular.

  1. Lacan (2003, p. 560) nos fala do direito ao sintoma. Surge daí uma política que visa a desidentificação para que cada sujeito possa contribuir a partir de sua perspectiva mais singular, de sua “luz interior”, como coloca S. Weil (2021). De fato, percebe-se que qualquer política que vise sustentar identificações necessariamente leva à segregação. Questão que foi de grande preocupação para J. Lacan em diferentes momentos de seu ensino. Os efeitos de uma segregação que, em seu extremo, leva ao extermínio do diferente.

 

A proposição

Na “Proposta de 9 de outubro de 1967…”, J. Lacan apresenta sua preocupação com a segregação e sua ligação com os campos de concentração.

Quando fala sobre isso, ele nos diz que:

“(…) o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (LACAN, 2003, p. 263).

Nesse parágrafo, ele não apenas aborda a questão extrema dos campos de concentração como um evento recente, mas também anuncia que isso pode acontecer novamente no futuro. A análise política da questão é realmente uma revelação chocante. No ano de 1967, na época das grandes liberdades na Europa Ocidental e após o suposto aprendizado que os horrores da Segunda Grande Guerra poderiam ter acarretado, J. Lacan antecipa novas segregações. Na verdade, coloca os Naziz como precursores do que está por vir. Pode-se indicar que foram precursores do modo gueto, onde se separa o diferente e marca uma época já há algum tempo. Os agrupamentos sociais que se reorganizam podem ser vislumbrados nas diferentes formas de bairros, mais ou menos fechados, que servem para que cada um viva ao lado daqueles que assumem desfrutar do mesmo que si mesmos. Sua indicação aponta que, quanto maior a universalização da ciência — o que hoje chamamos de globalização —, maiores serão os efeitos da segregação.

O mais surpreendente é que essa indicação é feita na “Proposição” do dispositivo do passe. Quero dizer que, onde ele introduz sua política ou sua concepção do final da análise, assim como sua política de Escola para a seleção de analistas, é também o momento em que ele introduz essa análise de seu tempo e do que está por vir. Nesse texto encontramos articulados os três aspectos da política para J. Lacan: em torno da direção do tratamento, do laço entre os analistas e do analista na pólis. Assim, pode-se inferir que o problema da ação do analista ou do ato do analista será central na articulação entre política e psicanálise no que diz respeito aos três aspectos que focalizamos.

 

Lacan e o tempo

Nesse ponto, vale situar que Lacan pensa em seu tempo e faz a dedução do porvir. J.-A. Miller faz um desenvolvimento muito preciso do que podemos entender por tempo em J. Lacan. Lá ele aponta que se trata da “realidade transindividual do sujeito” (MILLER, 2021, p. 21, tradução nossa) em um dado momento no tempo. Miller indica que “o exemplo memorável que todos conhecem e lembram, mesmo que não sejam lacanianos, é o dos três prisioneiros. São três indivíduos, mas estão presos um ao outro, o que constitui uma subjetividade, uma subjetividade prisioneira, como um prisioneiro de seu próprio tempo” (MILLER, 2021, p. 22, tradução nossa).

Em 1944, J.-P. Sartre escreveu a sua famosa peça Entre quatro paredes (2008), na qual se mostrava que o inferno são os outros. A Segunda Guerra Mundial ainda não havia acabado, assim como Paris também não havia sido libertada, e Sartre colocou na mesa o problema do confinamento e dos outros. A obra mostrava uma única cena contrária a qualquer possibilidade de pensar um lugar diferente. De fato, J. Lacan (1998, p. 197) argumenta com Sartre — propondo exatamente o contrário —, pois para ele não há saída para o sujeito a não ser com o Outro.

Vale notar que Lacan tenta ler, como outro prisioneiro de seu tempo, as variáveis que determinam nossa posição e que nos dão a possibilidade de pensar uma estratégia específica a partir da dedução de nossa posição a cada momento. Uma estratégia que segue uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro. A era atual gera novos significantes aos quais o indivíduo pode se identificar gerando novos modos de segregação, e veremos se a psicanálise estará à altura da tarefa de contrapor esses novos modos de segregação a partir de seus dispositivos e de uma política que permita desidentificar e colocar no horizonte o fato de que não há solução total (final) que permita evitar totalmente o sofrimento.

Por fim, pode-se concluir que em Lacan há um “realismo” (MILLER, J-A., 1999, p. 9-12) em sua concepção de política. É um realismo que se opõe a qualquer idealismo segregativo. O uso dos significantes mestres, que se apresentam de maneira diferente em cada época, pode levar, em cada ocasião, a novos modos de segregação. Assim, a atual pressão por uma identidade que ofereça a ilusão da eliminação do sofrimento coloca os analistas diante do dever de ecoar que a saída é, para cada sujeito, no singular e que nenhuma identidade pode resolver o mal-estar na cultura.

Prosseguimos com uma advertência de J. Lacan no sentido de que:

“(…) O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se confirma nossa política — foi esse o passo que ela deu — implica, por outro lado, que tudo o que se articula dessa ordem é passível de interpretação. Por isso é que tem toda razão quem põe a psicanálise à frente da política. E poderia não ser nada fácil, para o que da política fez boa figura até aqui, se a psicanalise se revelasse mais esperta” (LACAN, 2009, p. 115).

Seguindo essas indicações, o sintoma, a política e o direito podem ser amarrados em seu laço com a singularidade. Que, finalmente, supõe o direito à interpretação em cada sujeito que decide tomar a palavra frente a uma época que pretende fazer valer os supostos direitos, para eliminar o mal-estar total na identificação à literalidade de uma palavra (MILLER, 2021).

Como dizia Lacan em “A terceira”, embora o real atravesse, “o analista tem por dever combatê-lo” (LACAN, 2015, p. 17, tradução nossa). Ele poderá fazer, em cada caso e em cada momento, a sua leitura e a sua interpretação.

 

Tradução: Jônatas L. Q. Casséte
Revisão: Renata Mendonça

Referências 
BORGES, J. L. (1940). “Tlön, Uqbar, orbis Tertius”. Ficciones, Obras completas, Buenos Aires: Emecé, 1974.
LACAN, J. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1964) “Ato de fundação”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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WEIL, S. Sobre a supressão geral dos partidos políticos. São Paulo: Iluminuras, 2021.

[1] Publicado originalmente em Lacan hispano. BRODSKY, G.; LAURENT, É.; BRIOLE, G.; compilación de GLAZE, A.; MILLER, J-A. 1ª. Ed. Olivos: Grama Ediciones, 2021.



DISCURSOS DE GÊNERO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES

RODRIGO ALMEIDA
Psicanalista, psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG
romabh2003@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.

Palavras-chave: Gênero; queer; discurso; sexuação; falasser.

Gender discourses and psychoanalysis: possible interlocutions

Abstract: This paper discusses some aspects of “gender discourses” and their theories in what they counterpose to psychoanalysis by briefly reviewing the discourse of psychoanalysis, its practice and place in the social sphere. With that said, we interrogate how the debate with gender theories can contribute to psychoanalysts in reading the subjectivity of their time.

Keywords: Gender; queer; discourse; sexuation; parlêtre.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Em nossa condição de seres falantes e sexuados, chegamos ao mundo onde diversos discursos nos precedem antes mesmo de nosso nascimento. Somos atravessados pelo real e pelo encontro sempre traumático com o sexual. Lacan (1977, inédito, tradução nossa), mais ao final de seu ensino, afirma que “o sexo é um dizer”. Para além do falo, o ser sexuado pode ser lido em termos de sexuação, portanto, o que vamos levar em conta é a posição de gozo do sujeito.

O discurso psicanalítico demonstra seu alcance como “um instrumento poderoso” (LAURENT, 2016, p. 219) para questionar tanto outros discursos quanto os corpos e seus modos de gozo. O conceito de falasser, ao incluir o corpo e, por extensão, a noção de inconsciente político, possibilita interrogar a relação do sujeito com o discurso. Seguindo com Laurent (2016, p. 213), “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado”. Há assim uma dimensão coletiva, que surge em suas nomeações e desencontros, em que a subjetividade individual é marcada pela época em que se inscreve. Nas palavras de Brousse (2018, p. 137), “Trata-se de considerar os falasseres como solidões numerosas e irremediáveis, que fazem série e não grupo. A experiência analítica nos cura do Nós, ao preço de uma perda do sentido, frequentemente gozoso”. Podemos afirmar que a psicanálise, ao levar em conta o real e o gozo, ao ler a subjetividade de sua época, vai mais além dos discursos vigentes. Com relação aos discursos de gênero, o que ela teria a dizer?

Diante dessa questão, vale ressaltar que qualquer ideia de normatização da sexualidade não está presente na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela opera para além dos gêneros com os quais o falasser possa se identificar. Constatamos, hoje, a propagação dos discursos de gênero abarcada pelas chamadas teorias queer, que se propõem a reorganizar o discurso sexual, interrogando outros saberes e a sociedade, que aparecem como reguladores de corpos e de sua vivência da sexualidade e identidades. Importante salientar que o que chamamos aqui de discurso de gênero tem relação com os enunciados que governam e norteiam momentos históricos específicos, e a noção de discurso fundamenta-se em conceitos foucaultianos. Conforme Salih (2009, p. 69), “Foucault está interessado particularmente na posição de sujeitos pressupostas pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente constituídos”.

Com a disseminação de tais discursos, a psicanálise se viu convocada a revisitar as elaborações lacanianas sobre a diferença sexual, colocando em relevo a tábua da sexuação, o não-todo e a conjugação do corpo com o gozo, confrontando-se, assim, com o lugar privilegiado de saber sobre a sexualidade. Nos últimos anos, foi possível observar que a psicanálise foi alvo de diversos posicionamentos contrários ao seu discurso teórico, e até mesmo à sua ética. Desse modo, julgamos relevante abordar alguns pontos sobre o “discurso de gênero” e suas teorias, tentando localizar pontos de diálogo para o debate e que podem nos interessar enquanto praticantes da psicanálise.

Nessa interlocução de saberes proposta pelas teorias de gênero, a psicanálise está presente como instrumento de leitura e diálogo com seus teóricos. A partir da insurgência de um debate, a psicanálise se vê convocada não só a responder, como também a marcar seu posicionamento diante do contemporâneo, norteado por sua ética e sua política. Cada vez mais a prática clínica se vê interrogada por aqueles que buscam uma análise, seja, inicialmente, para um acompanhamento em um processo de transição — no caso de sujeitos trans —, seja para aqueles que se interrogam sobre as mudanças advindas pela diversidade sexual diante de suas escolhas e do outro do laço social.

Na obra Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, vista por muitos como referência para os estudos queer, Judith Butler afirma, num primeiro momento de suas formulações, que a teoria feminista presume a existência de uma identidade definida e que a “(…) concepção dominante da relação entre teoria feminista e política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2020, p. 18). A filósofa — que hoje se identifica como gênero não binário e que atualmente propõe pensar as questões de gênero a partir da ideia de decolonização e racismo —, em seus primeiros estudos, demonstrava a complexidade de presumir certa identidade fixa e a impossibilidade de conjecturar um feminino universal. Butler afirma que várias pessoas não se identificam ou não se veem representadas pelo feminismo. Esse movimento pode ser notado também em outros grupos minoritários, como o de gays e de lésbicas. Há dissidências dentro dos próprios grupos; a vivência da sexualidade é diferente para cada sujeito e as ideias se movimentam, o que leva a distintas noções de identidade. Poderíamos dizer que, para Butler, o queer origina-se de uma ruptura com o que se estabelece enquanto norma na construção de uma identidade. A autora vai propor que as identidades se constroem a partir de um corpo social e se conecta à ideia de performance e performatividade na elaboração de sua teoria sobre o gênero. Butler faz uma interface com a psicanálise, o estruturalismo e a genealogia foucaultiana em suas formulações.

Em relação à psicanálise, ela vai interrogar, a princípio, se não seria a psicanálise mais um saber, entre outros, que propõe uma leitura das identidades com base em uma matriz heterossexual e que funciona a favor de uma hierarquia já estabelecida em relação ao gênero. Vale ressaltar que o conceito de gênero ordena um conjunto interdisciplinar de saberes, devido à sua complexidade. Para Butler (2020, p. 27), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscriçãocultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Tanto o queer quanto as teorias de gênero trazem em sua origem a semente da recusa a um enquadramento, levando-se em consideração resistir à possibilidade de domesticação acadêmica.

Rafael Leopoldo (2020), em seu livro Cartografia do pensamento queer, esclarece sobre a palavra inglesa queer: inicialmente, sua acepção era de insulto e nomeava o estranho e bizarro, estando fora do que se nomeava como normal. Um fora de lugar, nem lá nem cá, nem isso nem aquilo, simplesmente queer. Esses corpos excluídos e marcados, muitas vezes, de forma violenta, rechaçados do social e do espaço público, apropriam-se do termo e fazem dele outro uso, um uso como ferramenta de ruptura frente à normalizaçãoda sociedade. De acordo com Leopoldo:

“O queer, ante isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e normalização. (…) O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).

A questão do gênero não é formulada pela psicanálise da mesma forma que para os estudos de gênero, visto que aquilo que a psicanálise entende por homem e mulher em relação ao gênero se difere do que propõem os estudos de gênero. Tomamos aqui uma definição oferecida por Leguil:

“Para a psicanálise, o gênero é da ordem de uma posição subjetiva dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro. (…) Para a psicanálise, o gênero é, antes, aquilo atrás do qual o sujeito corre, tentando, assim, ir ao encontro de alguma coisa de seu ser, sem nunca sê-lo totalmente” (LEGUIL, 2016, p. 40).

Marie-Hélène Brousse (2019) nos diz que o gênero se torna um significante mestre no lugar do sexo; o termo “gênero” vai evitar o equívoco que se apresenta no significante “sexo” em relação ao binário masculino/feminino, introduzindo assim um terceiro termo, o neutro. Parece ser importante a possibilidade de adentrar no debate das questões de gênero e identidade, apoiando-se na ética da psicanálise e para além da noção do discurso do mestre, levantando as modificações que surgem no social e o que dela é possível recolher no discurso dos analisantes.

Se, antes, a diferença sexual e o binarismo homem/mulher serviam de bússola para o sujeito, as questões de identidade e de gênero vêm, de certa maneira, reorganizar o conjunto dos discursos. Brousse (2019, p. 73) ressalta ainda que Lacan, ao final de seu ensino, “mudou a distribuição dos mecanismos de identificação”; há uma destituição do Outro e o sujeito é pensado a partir dos três registros.

Em relação ao falasser, Miller observa: “(…) não se trata mais do sujeito, do sujeito do significante, do sujeito da identificação” (MILLER, 2009, p. 110). Com a ideia do falasser, o Outro não é mais o lugar das identificações; em seu lugar está o corpo, o corpo próprio. Corpo e gozo se conjugam na identidade daquele que fala. Assim, o processo de identificação vai surgir não mais do Outro, mas de Um-corpo, esse corpo que o falasser adora por acreditar que o tem, esse corpo que se conjuga com o gozo.

Recebemos cada vez mais sujeitos que interrogam sobre o gênero e suas identificações, recolhendo assim os efeitos do discurso de gênero na clínica. Se, enquanto analistas, nos orientamos pelo sintoma e o gozo, indo além da ideia de identidade, cabe a nós acolher a forma como o falasser se apresenta, assim, “tomamos a identidade sexual como qualquer outra portada pelo falasser” (FAJNWAKS, 2017, p. 38).

Para Lacan, a existência do inconsciente é inseparável da noção de sexualidade; o inconsciente é o índice do fracasso do biológico e do cultural. Importante salientar que Lacan, ao teorizar sobre a sexualidade, não a coloca em termos de gênero, mas de gozo. Alguns estudiosos do gênero que mantêm uma interlocução com a psicanálise afirmam que Lacan (2008), ao propor as fórmulas da sexuação e ao estabelecer o lado homem e o lado mulher em seu quadro, acaba criando uma padronização das identificações reduzida ao binarismo homem/mulher. De acordo com a leitura de Butler, “(…) a versão lacaniana do sexo e da diferença sexual coloca suas descrições de anatomia e desenvolvimento em um quadro não examinado de heterossexualidade normativa” (BUTLER, 2019, p. 195). Para ela, o que Lacan chama de posições sexuadas se estabelece “relegando as identificações não heterossexuais ao domínio do culturalmente impossível (…)” (BUTLER, 2019, p. 195).

Posto isso, interrogamos se, para os teóricos do gênero, os importantes desdobramentos das formulações lacanianas sobre a sexuação não são levados em conta no embate, visto que o que vai interessar à psicanálise é a posição de gozo do ser falante e o feminino que se localiza em cada falasser. De acordo com Ambra, Silva Jr. e Laufer:

“(…) a aposta lacaniana em localizar a sexuação numa diferença radical que aponta para o real subverteria os apegos imaginários identitários presentes em diversos usos das teorias de gênero. Mais ainda ficariam desarmadas as críticas feministas à centralidade do falo como significante privilegiado da subjetividade, na medida em que tais fórmulas de Lacan apontariam outro domínio da experiência, não todo marcado pela castração” (AMBRA; SILVA JR; LAUFER; 2019, p. 3).

Lacan, em “Les non-dupes errent”, propõe o aforismo: “O ser sexuado se autoriza de si mesmo e de alguns outros” (tradução nossa). Essa sentença que reverbera entre os psicanalistas não reduz a ideia da escolha para o ser sexuado. A questão simbólica imposta pelo binarismo homem/mulher permite também avançar teoricamente a partir das fórmulas da sexuação. Nas palavras de Lacan:

“(…) o ser sexual se autoriza de si mesmo. É nesse sentido que… que ele tem a ‘escolha’. Quero dizer que isto a que a gente ‘se limita’ enfim para classificar como ‘masculino’ ou ‘feminino’ no registro civil… enfim, isso… Isso não impede que haja escolha. (…) Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros.” (LACAN 1973, aula de 9/2/1974).

Fajnwaks (2020) nos diz ser importante interrogar quem são esses alguns outros, pois não se trata mais do grande Outro, mas do outro do imaginário. É importante ressaltar que, mesmo que Lacan proponha suas fórmulas da sexuação a partir do binarismo e evocando a ordem simbólica, ele inclui a dimensão do imaginário. Alguns outros fazem parte da escolha e da ideia de reconhecimento que o sujeito busca em suas identificações. Nesse percurso de leitura, aventamos a hipótese de que o discurso de gênero objetiva o Um da identidade ofertado pelo discurso do mestre contemporâneo. Nas palavras de Musachi  “(…) nessa tentativa se opera um certo ‘empuxo’ ao Um da identidade, o que produz uma suspensão em relação às identidades” (MUSACHI, 2020, n/p, tradução nossa). Ao tomarmos como referência a orientação lacaniana, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, temos uma leitura da sexualidade em que não se trata de universalizar, mas de singularizar o gozo, considerando o encontro de um real com lalíngua, que habita o falasser e determina suas identificações.

Se, para alguns teóricos, a questão do gênero concerne apenas à performatividade, a psicanálise não se limita a apenas uma questão de semblantes, mas busca interrogar as mutações no sexual, a partir do desacordo entre os lados feminino e masculino da sexuação. A psicanálise, ao se apropriar do aforismo lacaniano de “que não há relação sexual” (LACAN, 2008, p. 19), não trata as questões contemporâneas concernentes ao gênero como uma simples aparelhagem dos semblantes sem relação com o gozo. Em nossa clínica, recebemos sujeitos que se dizem trans e que colocam em xeque a construção de uma identidade. Para a psicanálise, diferentemente do que propõem algumas teorias de gênero, não há um unarismo do gozo no acolhimento da diversidade sexual. Para ela, a sexualidade é diversa em relação às soluções únicas que o próprio sujeito encontra para lidar com o gozo.

Enquanto praticantes, sabemos que a diferença sexual não se inscreve no inconsciente, mas é na relação com o inconsciente que o sujeito situa sua vida sexual numa outra cena, não se limitando, assim, à questão da anatomia e das normas sociais. Em tempo, parece importante não cairmos na idealização da psicanálise como absoluta, que tudo pode enunciar — vale lembrar que tanto Freud quanto Lacan se valeram de outros saberes diante daquilo que a prática clínica de sua época lhes interrogava. Assim, não devemos nos eximir de nossa responsabilidade ética e política diante da alteridade nem dos fenômenos contemporâneos.

 


 

Referências
AMBRA, Pedro; SILVA JR., Nelson; LAUFER, Laurie. O ser sexual só se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Psicologia em Estudo, [s. l.], v. 24, p. 1-14, 2019. Acesso em: 1 mar. 2022.
BROUSSE, Marie-Hélène. Democracias sem pai. In: O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 129-137.
BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo e a identidade um sintoma. In: Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019, p. 67-74.
BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo:
Crocodilo edições, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
FAJNWAKS, Fabián. Lacan e as teorias queer: mal-entendidos e desconhecimentos. In: SANTIAGO, Ana Lydia et al. (org.). Mais além do gênero: corpo adolescente e seus sintomas. Belo Horizonte: Scriptum, 2017, p. 22-40.
FAJNWAKS, Fabián. Lo que el sujeto trans enseña al psicoanálisis. In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2008.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 9 de abril de 1974. (Inédito)
LACAN, J. Momento de concluir. Aula 15 de novembro de 1977. (Inédito, 1977-1978)
LAURENT, Éric. O Falasser político. In: O avesso da biopolítica: Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 201-220.
LEGUIL, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento queer. Salvador: Editora Devires, 2020.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
MUSACHI, Blanca. Ser sexuado en el siglo XXI: ¿ empuje a lo trans? In: TENDLARZ, Edith Beatriz. Género, cuerpo y psicoanálisis. Olivos: Grama, 2020. Ebook Kindle.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.



“TÁ TUDO AO CONTRÁRIO”: A CRIANÇA, SEUS PAIS E A VIA DO EQUÍVOCO[1] 

SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: Através de aspectos teóricos e clínicos, o artigo discute as duas abordagens da família hoje, isto é, a via do disfuncionamento familiar protagonizado pelo discurso da ciência em contraponto com a via do equívoco orientada pelo discurso psicanalítico.

Palavras-chave: Linguagem da ciência; família-holófrase; equívoco; discurso psicanalítico.

“Everything is backward”: the child, their parents and the route of misconception 

Abstract: Through theoretical and clinical aspects, the article discusses the two approaches to the family today, that is, the pathway of family dysfunction carried out by the science discourse in contrast to the pathway of misunderstanding guided by the psychoanalytic discourse.

Keywords: Language of science; family-holophase; misunderstanding; psychoanalytic discourse.

        

 

Imagem: Cecilia Vellos Batista


O que está acontecendo?

O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?
Eu estava em paz quando você chegou

(“Relicário”, Nando Reis, 2000)

Introdução

Inicio minha exposição dando um testemunho da dimensão política que está em jogo com a presença da psicanálise na sociedade hoje, mais precisamente na universidade. No dia 8 de abril deste ano, Paula Pimenta e eu fizemos a terceira de uma série de lives sobre autismo em um canal da PUC-Minas, aberto em 2020, que tem acolhido nossa participação. O tema proposto para esse evento foi “Como o autista aprende na perspectiva da psicanálise”.

Na véspera dessa live, fomos surpreendidos por uma mensagem que circulou no grupo de associação de pais de autistas. Transcrevo: “olha que maravilha a PUC com pseudociência para abordar o autismo. Convido a todos a entrarem e explicarem para esse povo que autismo não se trata com psicanálise”.

Compartilho esse acontecido com o NPPcri, pois demonstra a batalha da psicanálise neste tempo em que a soberania do saber do discurso da ciência segue se infiltrando nas instituições sociais, particularmente junto à família, às crianças e a seus sintomas.

A meu ver, cabe à psicanálise com crianças um papel decisivo na transmissão de nossa prática, uma transmissão que renove a política do inconsciente no campo ético aberto por Freud.


A linguagem da ciência, o catálogo das disfunções da criança e uma hipótese a ser desenvolvida sobre a noção de “família-holófrase”

Com frequência, a inconsistência da família pós-moderna quanto ao simbólico e sua incidência junto à criança assume o formato da disfuncionalidade a ser rastreada e consertada pela intervenção da neurociência, da medicalização e das técnicas cognitivas-comportamentais (TCCs) e/ou pelo coaching parental.

Verificamos como os significantes da transmissão familiar vêm sendo totalmente rebaixados em prol das certezas provenientes das medidas neuropsicológicas. Apostilas cheias de gráficos, números, medidas resultantes de testes neuropsicológicos são carregadas pelos pais quase como um álibi, visto que seu dizer se apaga sob o poder ilusório da certeza científica. Trata-se do saber unívoco que constrange o discurso familiar e obtura a via do inconsciente.

Contudo, essa parafernália não engana o real que retorna no corpo e no gozo da criança terrível, descrita por Daniel Roy no artigo “Pais exasperados – Crianças terríveis”. Essa criança, que se torna real demais para seus pais, encarna o objeto estranho e angustiante, com relação ao qual eles não sabem mais o que fazer.

Os diagnósticos catalogados congelam os sujeitos em suas supostas disfunções e os afastam dos significantes particulares da sua inserção no discurso familiar. Mais ainda, ao funcionar, sobretudo, com pequenas letras, com cifras mais do que com significantes, a linguagem da ciência consegue “neutralizar todas as outras funções do discurso e, em particular, o S1 e o S2, como produtores de sentido” (AFLALO, 2013, p. 44). Disso pode resultar o congelamento da lógica binária do significante e o incentivo ao império do Um. Esse congelamento evoca a noção de “família-holófrase”, presente no texto de Roy.

Promovida pela supressão do intervalo entre os significantes, a holófrase é a solidificação do par de significantes com a consequente suspensão da representabilidade do sujeito, das leis da linguagem, comprometendo as operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação.

O sujeito se constitui a partir da relação entre S1, significante-mestre que o representa para outro significante, S2, significante do saber do Outro. Essa operação, chamada alienação, requer a perda do objeto, concomitante à formulação da demanda do sujeito ao campo do Outro. O objeto perdido causa o intervalo entre os dois significantes e dá lugar à metáfora. Quando ocorre a holófrase do primeiro par de significantes, não há perda, não há intervalo.

A holófrase é uma figura retórica por princípio oposta à metáfora e que se presta bem para indicar o efeito de petrificação, de solidificação, de congelamento do sujeito devido a uma alienação sem separação.

“A holófrase é o nome que Lacan dá à ausência da dimensão da metáfora. Na verdade, que dois significantes sejam assim solidificados, holofraseados, que não haja intervalo entre eles, é equivalente a dizer que um não pode vir no lugar do outro, não podem se substituir — substituição e condensação estando no princípio da metáfora — uma vez que eles já ocupam o mesmo lugar” (STEVENS, 1987, p. 66).

O sujeito não é mais representado pelo significante a outro significante, rejeitando todo o intercâmbio simbólico, cristalizando-se em uma identificação monolítica, que exclui qualquer divisão. Essa situação, segundo Lacan no Seminário 11, serve de modelo para uma série de casos.

Ao que parece, falar de “família-holófrase” privilegia a dimensão do gozo mais do que a dimensão significante em jogo nessa estrutura. “O conceito de holófrase é um modo de assinalar que não se trata de significantes que pertencem às leis do simbólico somente, mas ‘que é um significante que porta gozo’” (BAYON, 2020, p. 182).

Sobre a abordagem do sofrimento da criança e da família hoje, a partir da noção de disfuncionamento, cito Roy:

“O disfuncionamento não é o que se acredita, ele não se relaciona com um mau arranjo dos papéis parentais ou das relações pais-crianças, nem com o mau funcionamento de uma função psíquica ou cognitiva. O disfuncionamento consiste em não querer saber que a família já é um modo de tratamento do gozo dos corpos falantes” (ROY, D. 2021, n/p. tradução nossa).

O que o autor propõe é descompactar a família holófrase, o que entendo como dar-lhe voz, liberar suas articulações significantes, dar lugar ao equívoco, condição para colocar o inconsciente a trabalho e para desalojar a criança do lugar de objeto condensador de gozo.

 

As ditas “disfunções cognitivas” e os efeitos da rejeição do inconsciente

De artigos de J. C. Maleval e Véronique Mariage, publicados no livrinho L’anti livre noir de la psychanalyse (2006), recolhi algumas vinhetas clínicas sobre as consequências da abordagem das disfunções cognitivas das crianças e das famílias, sem que se leve em conta a via do equívoco.

Comentando uma crítica feita às TCCs, que promoveriam apenas uma substituição de sintomas, Maleval relata um caso de uma criança para a qual esse método teria promovido o retorno no real suscitado pela rejeição do simbólico. Trata-se de uma criança com fobia de um coelho branco que acaba tocando o objeto de seu medo após uma dessensibilização sistemática. Logo em seguida, essa criança, já sem o medo, foi hospitalizada com escarlatina, voltando somente dois meses depois.

Véronique Mariage, por sua vez, comenta como tem sido frequente que as crianças cheguem ao analista falando TCC, se “terapiando” TCC. Relata o caso Florette, de seis anos. Criança que habitava no campo, onde os animais ocupavam lugar importante em sua vida. A menina tinha medo de que seu cachorro a mordesse ou a fizesse cair, que seu gato a arranhasse ou que as galinhas a bicassem quando lhes desse comida. Submetida a um programa TCC, seu sintoma desapareceu após aproximações sucessivas dos animais. Junto à analista, Florette disse outra coisa, a saber, que seu pior medo, que, segundo Mariage, porta a marca de seu desejo, era de sua pequena irmã dar comida ao cachorro. Ela disse: “minha irmã poderia pisar no rabo dele e ser comida pelo cachorro”.

Nos dias atuais, diante das respostas da ciência aos medos infantis, é oportuno lembrar um dos conselhos freudianos que discute a importância de não se desprezar o sujeito e seus métodos particulares de proteção contra a angústia até que ele venha a elaborar, por meio da palavra, os motivos de sua incompreensível covardia.

“A experiência demonstrou que é impossível efetuar-se a cura de uma fobia (e até mesmo, em certas circunstâncias, perigoso tentar fazê-lo) por meios violentos, isto é, primeiro privando-se o paciente de suas defesas, e depois o colocando numa situação da qual ele não possa escapar da liberação da sua angustia” (FREUD, 1909/1976: 124).

O discurso psicanalítico e a via do equívoco

Segundo J.-A. Miller, a orientação do real não nos permite mais exaltar o simbólico, nem refugiar no imaginário, tampouco alienar no real da ciência. Somente nos resta, portanto, a via do equívoco.

No artigo “O engano do sujeito suposto saber”, Lacan (1967) nos adverte que o inconsciente é pouquíssimo tranquilizador, visto que o equívoco em questão diz respeito ao que não pode ser encontrado no saber articulado. Trata-se do inconsciente captado em uma equivocação, “aquilo que se pode designar o tema de cada um, aquilo que anima cada um” (MILLER, 2011, n/p.), advindo do encontro do corpo e do significante como acontecimento de gozo. É a forma como o sujeito foi impregnado por lalíngua, marca de uma singularidade absoluta que imprime um modo de gozo próprio.

Encontrar a via do equívoco implica o percurso lacaniano que vai da noção de Outro à noção do Um, do inconsciente como saber ao inconsciente real. Onde estava o Outro como lugar dos significantes, aparece como ponto de partida o Um sozinho, que destaca a ressonância corporal da palavra, eco do dizer no corpo.

 

O que dizem as crianças sobre suas famílias

Nas vinhetas que se seguem, poderemos verificar o que o psicanalista Daniel Roy chamou de abordagem do disfuncionamento familiar em contraponto com a abordagem da via do equívoco, esta sim, pertencente ao discurso psicanalítico.

 

Antônio e o avesso da família

É da fala de Antônio que extraímos o título da temática de hoje no NPPcri, “tá tudo ao contrário”. Ele estava com 4 anos quando veio à consulta, trazido por seus pais, que se queixavam de sua agitação: “ele põe a casa abaixo”, “até quadros da parede ele joga ao chão”. Não tem horário para dormir, desarvora seus familiares, impede o trabalho dos pais em casa, impede-os de dormir. Diziam que não conseguiam ter autoridade sobre o filho. Já tentaram de tudo, vários métodos, sem resultado. Tomados pela discórdia, os pais do menino discutem o tempo todo. Desorientados, brigam. Segundo a escola que frequenta, Antônio tem “resistência às autoridades”, agride as autoridades. O pai descreve que, ao falar com o filho qualquer coisa, ajoelha-se para ficar da altura dele, explicando, em vão, o que não pode fazer. O “para ficar da altura dele” ilustra bem o lugar de onde o pai se dirige ao filho, isto é, de igual para igual.

Na primeira entrevista, Antônio relatou as brigas de seus pais. Insistia em dizer que já falou para eles pararem de brigar, mas não adiantou. Quando lhe digo, em tom de surpresa e exclamação, “então é você quem cuida disso na família!”, ele responde: “tá tudo ao contrário!”.

A hipótese da inexistência do Outro implica a época da permissividade, do ocaso do significante mestre típico do império capitalista, destinado, segundo Lacan, a promover o sujeito barrado ao lugar do agente.

Na família de Antônio ficou evidente a destruição sistemática dos significantes mestres e do lugar da autoridade, o que acabou por inviabilizar a análise dessa criança. Logo depois de iniciadas as sessões do menino, sua mãe recebeu de um neuropsicólogo o diagnóstico que lhe pareceu tudo explicar, isto é, TOD (transtorno opositor do desenvolvimento). Acatando o protocolo receitado, a mãe de Antônio propõe um caminho paralelo à análise, isto é, a medicação do TOD e a TCC. Diante dessa atuação, assumo a posição de não ceder do discurso analítico, não avalizando a multiplicidade de intervenções propostas, bem ao estilo da época do mais, embora isso tenha acarretado a interrupção das sessões de Antônio.

 

Fernando e seu pharmakon: as poções contra-loucura

Diferentemente de Antônio, Fernando teve a chance de uma análise. Ele fazia uma terapia cognitiva-comportamental para resolver sua agressividade incontida em casa e na escola. Seus pais decidiram interromper essa terapia quando a psicóloga disse que não poderia fazer mais nada pelo menino. Sugerindo aos pais a existência de uma patologia grave da criança, os encaminhou ao psiquiatra.

Com quatro anos de idade, Fernando desafiava os pais, desacatava-os. Filho de um homem bastante agressivo, sua mãe se esmerava em protegê-lo desse pai. Alguns episódios exasperavam a mãe de Fernando, motivando sua demanda de falar ao telefone com a analista e pedir orientação. Fazendo jus à noção lacaniana de criança generalizada, filho e mãe choravam juntos em momentos de separação na porta do colégio, por exemplo.

No primeiro encontro com Fernando, ele me disse: “meu pai fez uma poção de loucura e eu tomei. Lá no colégio todos ficaram loucos, subiram na mesa, bateram, gritaram…”. Digo a ele que poderíamos fazer uma poção contra-loucura. Ele prontamente aceitou e me perguntou que ingredientes eu tinha para fazê-la.

Fernando passa a desenhar, fazer recortes, rasgar papel para fazer misturas com água e várias cores de tinta. Da poção de loucura passou à poção de bravura, fazendo semblante de bravo e, como ele dizia, “fortaço”, expressando-o de modo caricaturesco com seus gestos e tom de voz.

Cito Lacan: “os pais modelam o sujeito nessa função que intitulei de simbolismo. O que quer dizer, estritamente, […] que a forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais o aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9).

Atualmente, mais apaziguado, Fernando vem trazendo outros relatos sobre o que faz na escola, já não tão afetado pelas poções de gozo. Por exemplo, relata um lanche coletivo no qual ele e todos seus colegas foram para a cozinha preparar as guloseimas. Fizeram muitos sucos diferentes, de laranja, de uva, de morango, e biscoitos. Ele disse: “Não tinha só pão de queijo. Não gosto de pão de queijo. Meu pai quer que eu coma só pão de queijo”. Na última sessão, uma vez mais, me disse, ao chegar: “Você não acredita o que meu pai fez, uma poção doidaça!”. Em seguida, me pediu material para fazer poção-contra. Acredito que Fernando esteja se tratando por meio de poções de “ajuda contra”, o que o situa noutro lugar, diferente do da criança terrível.

 

Considerações finais

Para concluir, cito Lacan no artigo “Os complexos familiares”: “não estamos entre os que se afligem com um pretenso afrouxamento dos laços de família” (1938/2003, p. 66). Parece-me surpreendente que Lacan já tenha dito isso em 1938!

Se, por um lado, não nos afligimos com a desfamiliarização contemporânea, pois estamos advertidos quanto à noção de “família-resíduo” (LACAN, 1969/2003), por outro lado, inventar uma família é preciso. Como bem o diz Lacan: “mesmo que as repressões familiares não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, 1973/2003, p. 531). A psicanálise com crianças o demonstra. Para um sujeito em constituição, a família pode ser um modo de enlaçar o Um ao lugar do Outro. São as ficções infantis, e não os supostos concertos dos disfuncionamentos, tampouco os programas TCCs, que viabilizam esse enlaçamento.

“A neurose e não é tanto um fenômeno do Um, mas o resultado do mergulho do Um na esfera do Outro. Por isso, ela se articula de modo privilegiado ao contexto das relações familiares, cuja estrutura recobre o Um de gozo. Ao contrário, ‘o automatismo mental, a psicose, é um mergulho do Outro no Um” (MILLER, 2010, p. 166).

Os casos de Antônio e Fernando demonstram os acontecimentos de gozo que irrompem na estrutura das relações familiares. A operação do discurso psicanalítico pode viabilizar a articulação do acontecimento ao lugar do Outro.

 


 

Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro, Ed. Contracapa, 2012.
BAYÓN, P. A. El autismo entre lalengua y la letra. Buenos Aires: grama ediciones, 2020.
FREUD, S. (1976). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Strachey (Ed.), ESB, v. X, p. 15-158. Rio de Janeiro: Imago.
ROY, D. “Parents exaspérés – enfants terribles”. Pronunciado em 13 de março de 2021, na 6ª Jornada do Institut de l’Enfant. Editado por Frédérique Bouvet e Isabelle Magne. 2021.
LACAN, J. (1975) “Conferência sobre o sintoma”. In: Opção Lacaniana, v. 23, 1998, p. 6-16.
LACAN, J. (1969) “Nota sobre a criança”. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 369-370.
LACAN, J. (1973) “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
MILLER, J. A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan — O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010.
________. (2011) O Ser e o Um. Seminário inédito, 2011
STEVENS, A. “Aux limites du lien social, les autismes”. In : Les Feuiliets du Courtil, v. 29, Leers-Nord, jan. 2008, p. 9-28.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças – Seção Clínica, em 22/06/22.



PSICANÁLISE E POLÍTICA: QUATRO MODALIDADES DE UMA RELAÇÃO[1] 

ANAËLLE LEBOVITS-QUENEHEN
Psicanalista, AME da ECF/AMP
anaelle.lebovits.quenehen@gmail.com

Resumo: A autora trata, neste artigo, da relação entre psicanálise e política, “em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política”. Para tanto, distingue diferentes modalidades dessa relação, assim como diferentes níveis de implicação do psicanalista com o político. Ainda de acordo com a autora, a conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue a existir, ou seja, cabe aos analistas “não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética”.

Palavras-Chave: psicanálise; política; discurso analítico.

Psychoanalysis and politics: four modalities of a relationship

Abstract: In this article, the author discusses the relationship between psychoanalysis and politics, “particularly the way a psychoanalyst is interested in politics”.  In order to do so, she distinguishes different modalities of this relationship, as well as different levels of involvement of the psychoanalyst with the political. According to the author, the connection between psychoanalysis and politics always points to “not preventing” the analytic discourse from continuing to exist, that is, it is up to analysts “to never cease to make the impasses found in the world the occasion for an epistemic advance on the basis of ethical necessity”.

Keywords: psychoanalysis; politics; analytical discourse.

 

Pensar a relação entre psicanálise e política e, em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política, quer dizer, como intervém no campo político, sem dúvida supõe distinguir diferentes modalidades dessa relação.

Comecemos pela primeira, que se coloca de início. Um psicanalista está interessado, em primeiro lugar, pela política no sentido em que ela é de sua época, quer dizer, do tempo e do lugar em que vive e exerce a função de analista. Desde 1953, Lacan contempla a psicanálise completamente tomado, inclusive “arrastado”, pelo redemoinho de sua época. Essa passagem do “Discurso de Roma” é bem conhecida: “Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas” (LACAN, 1953, p. 322). Sobre esse ponto, Lacan não variará. Volta a encontrá-lo vinte anos mais tarde, em 1973, afirmando com a mesma ênfase e, ainda mais explicitamente, que um analista deve ser absolutamente “contemporâneo”. Nesse momento, faz dele um slogan:

“Somos de nosso tempo. Tive um amigo que produzia como Schlachwort, (quer dizer) slogan: ‘Sejamos significativamente contemporâneos’. Creiam, é um bom aforismo. Sejam significativamente contemporâneos tanto mais quanto que não tenham outro recurso. O que não é da sua experiência está perdido, perdido de uma vez por todas” (LACAN, 1973, p. 237-238. trad. nossa).

Certamente, essa afirmação é, em primeiro lugar, para nos prevenirmos contra a tentação de reação, mas também indica, uma vez mais, a afinidade de um analista com seu tempo, a forma em que é tomado, da qual depende, e isso à margem da sua vontade. O analista não está recluso em sua torre de marfim, não se mantém acima da contingência diária, não está ocupado mais além de se colocar à altura e pensar uma técnica que sirva para a eternidade e para um dia de uma determinada época, e isso sem escapatória possível. Por outro lado, ser de seu tempo é, na verdade, ter relação com a política como componente da época em que se vive. Por isso, é necessário sabê-lo e medir o que se implica em relação à prática analítica, esta mesma comprometida com certa evolução, assim como o saber que a orienta e a indexa, por sua vez.

Na história do mundo, na qual a política é um componente principal, por mais que não realize mais que revoluções, que se repita e veja o real voltar ao mesmo lugar, tal como a terra gira sobre si mesma (LACAN, 2017, p. 7), não é menos certo que o psicanalista que o habita não saiba ignorar aquilo do que é contemporâneo sem limitar o campo da sua experiência.

O primeiro nível de implicação de um psicanalista no político procede unicamente do fato que o político é um componente da época em que se vive.

O segundo, o terceiro e o quarto nível, que serão diferenciados, se situam de outro modo, a partir da experiência da Escola da Causa Freudiana ao longo dos últimos 20 anos. Lacan não tematizou esses níveis como tais, mas a orientação seguida pelos psicanalistas de sua Escola no campo político é afim àquela que oferece seu Ensino. Essa orientação se pode localizar, entre outras, na menção decisiva do “Ato de Fundação” (1971), no qual Lacan afirma que a Escola está feita para devolver “a práxis original que Freud instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 1971, p. 235). O que isso quer dizer, senão que, em primeiro lugar, a práxis freudiana tem um dever no mundo, o primeiro dos quais, sem dúvida, é o de se dar os meios de perdurar, de existir, e isso mantendo viva a subversão daquela que procede?

Importante destacar que a responsabilidade do psicanalista está comprometida quando o político se interessa pela psicanálise. Nesse ponto, figura o segundo tipo de relação entre psicanálise e política que abordaremos. Não é, portanto, o psicanalista que se interessa aqui, em primeiro lugar, pela política, mas o político que, se interessando por seu campo, o convoca às vezes a responder, ou seja, literalmente a fazer-se responsável. Assim, quando o político se interessa pela psicanálise, raras as vezes o faz para valorizá-la, senão — e isso desde alguns anos atrás — para impor uma ordem que se supõe que lhe falte, frequentemente com as melhores intenções, mas colocando em perigo as condições de sua existência.

Desse modo, vimos, por exemplo, o político pretender se misturar na formação dos psicanalistas. Em tal contexto, a responsabilidade do analista encontra-se convocada e comprometida, ao menos quando se atém ao discurso analítico. Todo o desafio está efetivamente em não deixar debilitar o progresso da psicanálise nem degradar sua utilização, para retomar as palavras de Lacan em “O Ato de Fundação” (1971). Isso é verdade tanto no interior quanto no exterior do campo psicanalítico. Do mesmo modo que a Escola está feita para proteger a psicanálise da errância de certos psicanalistas, também está feita para protegê-la das errâncias do político quando se apresentam contra ela.

Uma terceira forma de considerar a conexão entre psicanálise e política consiste em destacar a dependência da psicanálise do regime político em que se pratica. O Estado de direito, especialmente, é uma das condições de possibilidade do livre exercício da psicanálise — Judith Miller o assinala em Por que Lacan (MILLER, 2021, p.71). Freud e os primeiros psicanalistas vienenses o viveram bastante nos inícios do movimento analítico, dado que, nascida em Viena, a psicanálise foi rapidamente expulsa pela intervenção da política. Uma mudança de regime político é, então, suficiente para impor um pesado exílio à psicanálise. Lacan destaca, por sua vez, as consequências para o movimento analítico e certos desvios que então tomou.

De fato, a dependência do discurso analítico do Estado de direito é tal que todo ataque a esse discurso parece revelar a fragilidade do Estado de direito, ainda que o ataque ao Estado de direito seja ipso facto ataque ao discurso analítico. Aqui, todavia, tê-lo em conta é uma forma de fazer-se responsável quanto ao discurso analítico e de suas condições de possibilidade.

A quarta forma de considerar a conexão entre psicanálise e política nos é oferecida pela observação da forma como Jacques-Alain Miller interveio a propósito da “questão trans”, destacando aí um impasse do discurso corrente, não sem efeitos potenciais no discurso analítico. Quando esse discurso corrente tende, nessa questão em particular, a erguer a escuta em valor supremo, inspirando-se por outro lado, para isso, no mesmo discurso analítico e de sua propagação na opinião pública, este proíbe nesse impulso toda interpretação, faz como se interpretar se convertesse em rechaçar, como se perguntar ou interrogar fosse já negar, como se convidar para a elucidação fosse já trair, ou, pior ainda, humilhar. Por outro lado, um psicanalista está bem situado para saber que certos enunciados se interpretam e que interpretar não equivale nem a “julgar”, nem a “rechaçar”, nem a “negar” aquele que faz um enunciado no âmbito da relação analítica. Inclusive, frequentemente se apresentam casos em que interpretar ou interrogar uma ideia é, de fato, a única forma de acolhê-la dignamente, a fim de permitir aceder a sua própria verdade e, a partir daí, cernir o real que essa verdade bordeja. Isso se faz notar especialmente com certas crianças com sintomatologia inquietante, tanto mais inquietante quanto a acolhida que se faz a solidifica. Que os psicanalistas façam saber os efeitos de uma interpretação analítica é também para eles a ocasião de afirmar a dignidade de sua abordagem, assim como a dos sujeitos suscetíveis de fazer essa experiência. Realizando, se aproveitam de um impasse presente na civilização para fazer progredir os pontos importantes da doutrina que orientam ou reorientam sua prática. É, então, a ocasião de um progresso à medida daquilo que o espírito da época impõe.

Tomar “o lugar que lhe corresponde neste mundo”, para retomar as palavras de Lacan, é, assim, para o psicanalista, a melhor forma de não fixar seus princípios, de proscrever todo dogmatismo e de não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética.

Revela-se, então, que o dever que se tem de velar pela psicanálise é também uma das vias pelas quais a psicanálise progride, aquela que não cessa de restaurar a “sega cortante de sua verdade” utilizando a via que “denuncie os desvios e concessões” (LACAN, 1971, p. 235), que, sem essa, a aceitam. A conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue existindo. E esta é, para os psicanalistas, uma exigência mínima.

Cada um dos ataques mais ou menos dirigidos, cada um dos discursos que vão contra ela, seja de forma intencional, seja por acidente, são, assim, ocasiões em que os psicanalistas podem abordar para experimentar ou comprovar suas teses, inventar o que deve ser inventado, ler de outra maneira o que já foi lido, ou seja, manter-se vivos e no vivo. Assim, ocorre-lhe de meter-se em política, sempre e quando o discurso analítico dependa disso — nem mais nem menos.

 

Tradução e revisão: Tereza Facury e Giselle Moreira

REFERÊNCIAS
LACAN, J. “Função e Campo da Fala e da Linguagem” (1953). In: Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 322.
LACAN, J. “Ato de fundação” (1971). In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 235.
LACAN, J. “Intervención hecha en las ‘conclusiones de los grupos de trabajo’ del 4 de noviembre 1973”, pronunciada no Congreso de la Escuela freudiana de Paris, de 1º a 4 de nov. de 1973, no Bulletin intérieur de l’Ecole freudienne de Paris nº 15. Paris, jun. 1975. p. 237-238. (Trad. nossa).
LACAN J., Ideas aportadas por Regnault Fr., “Sus palabras me golpearon…”, La Movida Zadig, nº 1, jun. 2017, p. 7. (Trad. nossa).
MILLER J., “La reconquista del Campo freudiano”, en Lebovits-Quenehen Anaëlle (subdiretora), Pourquoi Lacan. Paris: Presses psychanalytiques de Paris, 2021, p. 71-85.
[1] Texto originalmente publicado na revista online Zadig España, em 29 de setembro de 2021.



PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA AMIZADE ESTRUTURAL[1]

GUSTAVO STIGLITZ
Psicanalista, AME da EOL/AMP
stiglitz.gustavo@gmail.com 

Resumo: O autor investiga a relação entre a psicanálise e a política e considera que Lacan tenha operado uma inversão na premissa freudiana. Se, para Freud, a política é o inconsciente, para Lacan, o inconsciente é a política. A partir daí, o autor delimita uma definição da política a partir da discussão sobre o final de análise, o que o conduz a abordar a política a partir de uma perspectiva não-toda. Por fim, se pergunta sobre qual seria a participação do psicanalista no campo político.

Palavras-chave: psicanálise; política; inconsciente, final de análise; não-todo.

Psychoanalysis and Politics: a structural friendship

Abstract: The author investigates the relationship between psychoanalysis and politics and proposes that Lacan operated an inversion of the freudian premise. If, for Freud, politics is the unconscious, for Lacan, the unconscious is politics. From there, the author delimits a definition of politics through the discussion of the end of analysis, which leads him to approach politics from a not-whole perspective. And finally, questions the participation of psychoanalyst’s in the political field.

Keywords: psychoanalysis; politics; unconscious; end of analysis; not-whole.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

A psicanálise, desde sua origem, esteve ligada à política.

Não é uma causalidade que tenha nascido na Viena de Freud, cosmopolita, multirracial e multirreligiosa, na qual o reinado do pai começava a se rachar e onde o social prescrevia a repressão da sexualidade.

Freud estabeleceu a relação entre psicanálise e política nos primeiros parágrafos de “Psicologia de grupo e a análise do ego”, ao afirmar que “a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social”, já que “Algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente” (FREUD, 1921/1996, p. 81).

Para Freud, portanto, a política é o inconsciente no sentido de que ambos respondem à mesma estrutura e causa. Lacan, por sua vez, foi imprimindo sua própria marca a essa relação até invertê-la.

Uma ideia inicial — a encontramos no Seminário 1 — é a de relacionar o final da análise com a política. Cito-o:

“Uma vez realizado o número de voltas necessárias para que os objetos do sujeito apareçam, e sua história imaginária seja completada, uma vez que os desejos sucessivos, tensionários, suspensos, angustiantes do sujeito estejam nomeados e reintegrados, nem por isso tudo está acabado. O que esteve inicialmente lá, em O e depois aqui em O’, depois de novo em O, deve ir se reportar no sistema completado dos símbolos. A saída mesma da análise o exige. Onde deve parar esse reenvio? Será que deveríamos levar a intervenção analítica até diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética? É uma questão. Não é fácil de resolver, porque, na verdade, o homem contemporâneo se tornou singularmente inábil para abordar esses grandes temas. Prefere resolver as coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo e outras banalidades. Donde a gravidade do problema que coloca a formação humana do analista” (LACAN, 1953-54/1986, p. 229-230).

Não seria esse um convite para a participação política do analista, ou, pelo menos, sua entrada no debate?

É claro, como disse Miller, que o debate fundamental de Lacan sempre foi com a civilização, na medida em que ela elimina a vergonha com o que está em curso na globalização (MILLER, 2002).

“Nem tudo está acabado”, como diz a citação, o que faz do final de análise não um ponto de fechamento, mas sim de abertura em relação a uma lógica não-toda. Nesse sentido, a pergunta de Lacan — precedida por esse “nem tudo está acabado” — contém uma armadilha.

A grande tradição dialética é a que opõe tese e antítese para chegar a uma síntese, o que fecha a questão em jogo; enquanto a experiência analítica nos confronta hoje com uma dialética no campo social, mas mais no estilo da “dialética negativa” de Theodor Adorno (1966), que ataca a tradição libertando-a de sua natureza afirmativa e questionando qualquer totalidade.

Hoje, teria que acrescentar, deveríamos impulsionar a intervenção analítica para dialogar com algumas tantas novidades na civilização: com os defensores da tese neuro, que pretendem uma ciência natural da mente e dos fundamentos neuronais do pensamento separado da linguagem; com aqueles que defendem tomar ao pé da letra os dizeres de uma criança que, sem saber direito do que se trata, afirma que quer trocar de sexo; com os que acreditam que as neuroimagens permitem ver “o invisível do pensamento” (SANCLAY apud CASTENET, 2008, tradução nossa.).

Por fim, há um laço entre psicanálise e política — tanto a nível de micropolítica (condução de um tratamento analítico, intervenções analíticas em instituições de saúde, educação, jurídicas) como no nível da macropolítica (impacto na elaboração e regulação das leis, a difusão dos tratamentos, etc.) — que pode ser resumido na ideia de que os analistas têm uma responsabilidade no campo social, a de ler e interpretar as inconsistências dos discursos através dos quais a sociedade contemporânea se sustenta.

Assim, à pergunta de Lacan sobre se deveríamos promover a intervenção analítica seguindo a tradição dialética, podemos responder à maneira do conjunto aberto colocado pela dialética negativa, que se aproxima mais da ideia de resto — e de resto sintomático —, própria do ensino mais tardio de Lacan.

 

A inversão lacaniana

Lacan (1967) inverte a ideia freudiana das relações entre psicanálise e política no seminário “A lógica do fantasma”.

Ao contrário de Freud, que explica a política através do recurso ao inconsciente pela identificação, repressão das representações e satisfação e retorno do recalcado, Lacan enuncia: “não digo que a política é o inconsciente, digo simplesmente que o inconsciente é a política” (LACAN, 1967, tradução nossa). É a inversão da posição freudiana.

No desenvolvimento de “Intuições milanesas”, Miller (2011) ressalta que o interesse de tal afirmação é que ela levanta a questão da política como o que explicaria o inconsciente e encontra uma boa definição “infiltrada de lacanismo” na obra A democracia contra ela mesma, de Marcel Gauchet: “É nisto que consiste especificamente a política: ela é o lugar de uma fratura da verdade” (GAUCHET apud MILLER, 2011). Ou seja, a política definida como um campo estruturado em torno de uma falta, que podemos escrever com o matema lacaniano S(A/).

Para esse autor, a democracia implica um efeito depressivo devido a um consentimento com a divisão da verdade. E diz:

“Doravante sabemos que estamos destinados a encontrar o outro sob o signo de uma oposição sem violência, mas também sem retorno nem remédio. Encontrarei sempre diante de mim não um inimigo que deseja minha morte, mas um contraditor. Há qualquer coisa de metafisicamente aterrorizante nesse encontro pacificado — gosto muito dessa ligação entre terror e pacificação — a guerra se ganha, diz ele, embora essa confrontação nunca tenha terminado” (GAUCHET apud MILLER, 2011).

Novamente encontramos uma analogia com a lógica dos conjuntos abertos, como na dialética negativa de Adorno. É uma visão da política a partir de uma perspectiva que se opõe ao todo dos ideais.

 

Uma perspectiva não toda

Em “Nota italiana”, Lacan afirma que o analista surge do não todo. Há também um confronto que nunca termina: aquele que se dá frente ao real do psicanalista. O que é um psicanalista? É a pergunta que condensa a fratura da verdade no campo da psicanálise, de onde emerge seu próprio real.

Há uma espécie de “amizade estrutural” entre a posição do analista e a política, não necessariamente a dos políticos.

Pela via da orientação lacaniana e com as perspectivas de Adorno sobre a dialética e de Gauchet sobre a política, podemos sustentar que, assim como a transferência analítica coloca em ato a realidade sexual do inconsciente — ou seja, a inexistência da relação sexual —, a política coloca em ato a inexistência do Outro.

A perspectiva não-toda, na psicanálise e na política, justifica e orienta a questão da incidência política da psicanálise.

 

O corpo político

“Lacan fala em algum lugar de uma participação política onde o psicanalista teria o seu lugar se fosse capaz disso. Vamos tomar como um desafio e ver se podemos enfrentá-lo”, disse Miller em 1997.

Esse desafio, ao qual nos convidou formalmente em 2017, na conferência de Madrid, com a criação da rede Zadig, tem seu fundamento no fato de que o não todo — aquele com que se depara ao final de análise — se conecta com a política entendida como a arte de lidar com o Outro que não existe (VICENS, 2018) e com os outros que, sim, existem.

É um desafio porque “o discurso político, o discurso do mestre, faz da identificação a chave de uma captura” (LAURENT, 2018), enquanto, no nível do corpo, temos que “Um corpo é o lugar que experimenta afetos e paixões, tanto o corpo político como individual. Paixões políticas novas surgem como acontecimentos de corpos políticos novos, e logo se transformam” (LAURENT, 2018).

Sobre o que aprendemos com os movimentos sociais no Brasil em 2013, Éric Laurent afirma que, nas mobilizações contemporâneas, se trata de

“[…] dois tempos da fantasia, que indicam perfeitamente um modo de laço social que não passa pela identificação de um traço comum, mas que, no entanto, funciona no registro de um corpo político produzido na qualidade de existência lógica, atravessado pelas paixões fantasísticas” (LAURENT, 2018).

O primeiro tempo do fantasma é do sujeito sem lugar, fading; o segundo é o “surgimento da articulação do sujeito com o gozo” (LAURENT, 2018).

A estrutura do Witz pode nos auxiliar a articular o corpo próprio com o corpo político. O Witz é um processo social em que a satisfação ressoa nos corpos ao mesmo tempo que produz, em cada um, uma satisfação singular no momento de rir (MILLER, 2011).

 

O destino é a política

O inconsciente é a política é um ponto de chegada que abre uma série de questões, dentre as quais destacamos a potência para a incidência política da psicanálise. Potência, que devemos dizer, não se efetiva como gostaríamos, questão que, no momento, deixaremos na nossa conta, como devedores.

É um ponto de chegada que tem como ponto de partida a ideia de que o sujeito do inconsciente é transindividual, como Lacan coloca em “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” e está demonstrado pela estrutura do Witz. Também é ponto de chegada a partir de “A anatomia é o destino”, de Freud (1924), que parafraseia “O destino é a política”, de Napoleão.

Se substituirmos a anatomia pelo corpo que fala, no lugar do destino teremos a palavra que condiciona o gozo, que, por sua vez, pela ausência da relação sexual, condiciona seu destino a ser social, político.

O destino do ser que fala é a política, devido à ausência de relação sexual.

E então?

Uma vez articulados inconsciente e política, qual seria a participação política da psicanálise?

“Talvez um efeito de despertar. Um despertar em relação ao que é, em última análise, sobre os ideais sociais” (MILLER, 1997, tradução nossa.), mesmo que isso seja… “pouca coisa”. Mas não importa quão pouco seja, não é pouco, por exemplo, demonstrar e transmitir a ideia do epistemólogo Georges Canguilhem de que a saúde é eminentemente social. Isso quer dizer que depende do discurso dominante, ou seja, para nós, os discursos da tecnociência e do capitalismo.

Não é pouca coisa apontar que as investigações no campo da saúde não começam por evidências, mas por decisões de mercado. E se há um tema em que a participação da psicanálise é necessária e urgente — inclusive para sua própria sobrevivência —, é o discurso avaliativo, e seu “grito estatístico”, que tem uma longa história.

Nosso adversário constante é a sociedade preditiva, na qual o desejo, o risco e o amor se desfazem frente à fascinação do regime do todo.

Não se trata de eliminá-lo, já que isso poderia nos eliminar, mas de mantê-lo assim, como adversário, porque, paradoxalmente, torna-se, desse modo, um fiador do não todo que pretende eliminar.

 

Tradução: Bernardo Micherif
Revisão: Cecília Batista 

Referências
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LACAN, J. (1953-54) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
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VICENS, A. No todo es política en la orientación lacaniana. Barcelona: Gredos, 2019.

[1] Texto originalmente publicado em Lacan hispano. Olivos: Grama Ediciones, 2021.



ALMANAQUE ON-LINE ENTREVISTA SÉRGIO LAIA A.M.E. da EBP/AMP 

 

Imagem: Fred Bandeira 

 

Almanaque On-Line: Há mais de trinta anos, em seu seminário O banquete dos analistas, Miller convocava os psicanalistas para uma tomada de posição diante do avanço de um discurso cujo cerne implicava o apagamento do desejo em favor de uma injunção ao mais de gozar.  Hoje, esse cenário se consolidou. Sabemos que, distintamente de um discurso que, por estrutura, faz barreira ao gozo, como vemos figurado no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao qual Miller se refere, possui uma configuração na qual o sujeito e o objeto mais de gozar gozo estão diretamente vinculados.

Uma de suas manifestações que interessa aqui isolar advém da parceria entre o discurso liberal — próprio ao capitalismo — e o saber da ciência, que exibe como palavras de ordem a utilidade e a rentabilidade, o que significa dizer que se ampara em uma lógica utilitarista que vai na contramão da existência do amor, do desejo e do gozo.

Nesse contexto, a prática analítica permanece sob a pressão de ceder a essas regras, seja, por exemplo, deixando-se incluir em sua burocracia, seja acatando o seu imperativo de eficácia medido por estudos e cálculos estatísticos. Diante dessa conjuntura, quais são as saídas para que a psicanálise possa se manter como um discurso que faz objeção a esse empreendimento de universalização ou de massificação anônima?

 

Sérgio Laia: Primeiramente, acho oportuno lembrar uma observação feita por Jacques-Alain Miller em uma de suas recentes apresentações virtuais, quando destaca que Lacan sempre se deixava tocar por uma oportunidade relativa a seu tempo, mas sem abrir mão de ser Lacan. O exemplo evocado, nessa ocasião, por Jacques-Alain Miller, é justamente o das referências que Lacan fez, no final dos anos 1960 e no início da década de 1970, a Marx e à mais-valia: elas não deixam de se valer da importância que o pensamento e a ação marxistas tinham, sobretudo entre os jovens comprometidos com lutas para um mundo mais justo e melhor, mas Lacan não se apresenta propriamente como mais um marxista ou alguém diretamente envolvido em ações anti-capitalistas, tampouco se coloca como um defensor do capitalismo — ele se serve, por exemplo, da noção marxista de mais-valia para ressaltar o que passa a formular, a partir da experiência psicanalítica, como mais-de-gozar.

Considero, por conseguinte, importante esclarecer que a formalização lacaniana dos discursos, embora passível de algum sequenciamento na história e de referência a certos contextos, não se restringe a essa historicização nem a esses referenciais. Em uma perspectiva que poderia ser qualificada de histórico-contextual, sabemos que o discurso do mestre foi relacionado por Lacan ao “roubo”, ao “rapto” e à “subtração” realizados pelo senhor; quanto ao “saber” que o escravo, particularmente na Grécia Antiga, derivava da própria prática, isso é como um savoir-faire que, exceto pela operação do senhor, jamais poderia ser articulado na forma de um saber valorizado e difundido como episteme (LACAN, 1969-1970/1991, p. 21). Igualmente por uma contextualização e uma localização histórica, o discurso universitário chegou a ser associado à universidade, que não mede esforços para colocá-lo “em posição dominadora” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 231). Em mais uma referência localizável historicamente, Lacan ressaltou a importância, para uma histérica, de “que o outro chamado homem saiba” o quanto “ela se torna nesse contexto de discurso” um “objeto precioso” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 37), e, certamente, no final do século XIX e nas quatro primeiras décadas do século XX, Freud escutou como poucos o que suas pacientes diziam e favoreceu, com sua descoberta do inconsciente nessa experiência singular de escuta, a formulação lacaniana do discurso do mestre, do discurso da histérica e do discurso analítico. Todavia, com sua “produção dos quatro discursos”, Lacan visa dar corpo a “uma estrutura… que ultrapassa bastante a fala, sempre mais ou menos ocasional” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11). Por essa ultrapassagem, cada um dos quatro discursos não se limita a ocasiões histórico-contextuais, mesmo se elas são evocadas por uma das designações que corresponde a cada um como sendo o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico. Em cada discurso, trata-se, segundo Lacan, do que “subsiste em certas relações fundamentais” que, “literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem”, mas, “no interior” dessas relações, aborda-se também “alguma coisa que é bem mais ampla e vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (LACAN, 1969-1970/1991, p. 11).

No que concerne à linguagem, os matemas lacanianos dos discursos são compostos pelo significante-mestre (S1), pelo significante referente ao saber (S2) e por esse efeito significante que tampouco deixa de ser uma espécie de rasura significante, designada como sujeito barrado ou dividido (S). Contudo, essa “alguma coisa” que, embora se amplifique e extrapole as enunciações efetivas, também se encontra inscrita nos discursos, é o que Lacan chama de mais-de-gozar e localiza no objeto a. Assim, em cada discurso, considero que Lacan — sem confundi-los — procura articular e, portanto, aproximar dois tipos de elementos que, ao longo uma parte de seu ensino, eram tomados como heterogêneos: os elementos concernentes à dimensão significante (S1, S2, S) e aquele referente à dimensão do gozo (a). Essa heterogeneidade entre significante e gozo não deve ser confundida com uma oposição na qual um excluiria necessariamente o outro impedindo-lhe a ação: ela tem a ver com certa distância, entre gozo e corpo, demarcada pelo impacto do significante nos corpos humanos.

Prefiro me ater, aqui, à especificidade lacaniana da acepção do objeto a como mais-de-gozar, sem desenvolver o modo como se evoca aí, também, a noção marxista de mais-valia. Assim, da própria ação do significante nos corpos, há um resto impermeável à mortificação e Lacan — localizando-o como objeto a — destaca nele, a meu ver, tanto a insistência quanto certa anulação do gozo, valendo-se de toda uma ressonância própria à língua francesa, ao designar esse resto como plus-de-jouir. Na tradução “mais-de-gozar”, perde-se essa ressonância e, talvez, algo dela poderia ser mantida se optássemos por traduzir plus-de-jouir  como “mais-a-gozar”. Trata-se concomitantemente de insistência e anulação porque, em francês, o advérbio plus implica sempre o que é mais e, acompanhado da preposição de, aponta, ao contrário, para o que não há mais. Logo, como plus-de-jouir, o objeto a nos discursos implica, sem cessar, um mais gozo que não deixa de ser também experimentado, embora sem que se queira saber disso, como uma ausência, um menos que, ao mesmo tempo, convoca um mais que, a cada vez, tampouco se alcança. Estimo que, na configuração do discurso do capitalista por Lacan, essa insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir será levada ao extremo, e foi isso que, a meu ver, o fez se interessar pelo que tal discurso opera. Em outros termos, diferentemente de muitos envolvidos com as lutas políticas dos anos 1960-1970, Lacan não me parece propriamente apostar na instauração de outro modo de produção avesso ao capitalismo, tampouco se coloca como um defensor desse modo de produção cada vez mais dominante. Ao mesmo tempo, ao localizar esse extremo da insistência-anulação do gozo como plus-de-jouir, Lacan também vai se servir do discurso analítico para retificar ou, retomando um termo da questão de vocês, para fazer objeção a essa forma paradoxal de o gozo se impor e se esvair dos corpos dos seres afetados pelo significante.

Na formulação dos quatro discursos por Lacan no Seminário XVII, há uma vetorização ordenada da esquerda para a direita com relação ao giro dos quatro elementos (S1, S2, S, a) por quatro lugares diferentes entre si, mas que permanecem os mesmos em cada discurso. Respondendo a uma pergunta que lhe fiz no dia 19 de outubro de 2020, por ocasião de um evento virtual da Escola Brasileira de Psicanálise, Jésus Santiago pôde destacar que, no discurso do capitalista, essa vetorização ordenada deixa de se sustentar e vetores transversais e perpendiculares se impõem sem definir propriamente um giro dos elementos desse discurso cada vez mais dominante. O desmantelamento, no discurso do capitalista, dessa vetorização ordenada que, a princípio, norteava os discursos, me parece também destacar que nada gira como antes, mas o significante-mestre (S1) insiste e impera, com sua proliferação implacável e anônima, no adoecimento dos corpos e na configuração do que já designei certa vez como sujeitos objetalizados, ou seja, consumidos pelos objetos que muitas vezes eles mesmos consomem (LAIA, 2008). Por isso, o discurso do capitalista, embora seja, nos termos mesmo de Lacan, “o que se fez de mais astucioso como discurso”, acaba por ser tomado pela “explosão” (crévaison) na medida em que ele “se consuma (se consomme) tão bem a ponto de consumir-se (se consume)” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Há, no discurso capitalista e, ainda, na própria dimensão discursiva do inconsciente, uma espécie singular de autofagia, porque a degradação e a mortificação que lhe são concernentes colocam em perigo os corpos por ela impactados, mas também fazem desse risco sua consumação, ou seja, a realização de seu próprio domínio.

A pergunta de vocês também me faz indagar sobre como enfrentar essa dominação sem ser pela via sem saída da revolta, porque, nesta última, reitera-se o império do significante-mestre (S1) e a proliferação do mais-a-gozar (a). A via da incorporação do discurso tomado pela vontade imperiosa de gozo tampouco é uma saída, pois é o que já acontece quando — nos meandros obscuros da satisfação e na escalada contemporânea do capitalismo — passamos a ser todos capitalistas, agenciadores da linguagem do lucro, mas não menos segregados. Assim, o discurso do capitalista, inclusive como uma versão atualizada do discurso do inconsciente, é uma proliferação de mal-entendidos que mortificam todos aqueles por ele englobados. Porém, a experiência psicanalítica, tomando como seu princípio ativo o que é segregado na dimensão do gozo (a), endereça ao sujeito (S barrado) algumas interpretações quanto ao que o destitui de um corpo. Na escala, portanto, do discurso analítico, é encontrada, segundo Lacan, “uma forma de mal-entendido na qual” o sujeito, como hiância no campo dos significantes eivada de gozo, “se quita” e pode “subsistir” (LACAN, 1972/1978, p. 48). Importante destacar que a utilização lacaniana do verbo quitar me parece introduzir, para o sujeito (S), no discurso analítico, a dimensão do pagamento da qual tanto o capitalista-do-mercado quanto o inconsciente-capitalista insistem em se safar condenando-se, de todo modo, à insaciabilidade do mais-a-gozar (a). Por sua vez, a esse sujeito que se quita e pode passar a subsistir, com sua própria hiância imiscuída de gozo, em uma forma de mal-entendido, outros usos do corpo se tornam viáveis, diferentemente do que acontece na fantasia, porque esta, em um circuito mais privado que o do mercado, não deixa de ser prisão no mais-a-gozar insaciável (a).

A experiência analítica dá acesso, então, a outros modos de “viver a pulsão” (LACAN, 1964/1973, p. 246), mas também o inconsciente, porque, pelo “espaço de um lapso”, ou seja, de um mal-entendido, sobretudo ao fim de uma análise, quando o discurso analítico toma a forma mesma do ato, o inconsciente deixa de ter qualquer “alcance de sentido (ou interpretação)” (LACAN, 1976/2001, p. 571). Os testemunhos de passe são profícuos em nos mostrar o quanto, no discurso analítico, os significantes-mestres (S1) determinantes da dominação subjetiva pelo Outro passam a iterar de outra forma, porque não funcionam apenas nos lugares do agenciamento, da verdade ou do outro: eles passam a ser localizados no lugar da produção-perda. Trata-se, então, efetivamente de outro tipo de mal-entendido: o significante-mestre (maître) que me faz ser (m’être) e me assola como sujeito, se apresenta, pelo discurso analítico, no lugar de produção perdida e, com isso, temos “um outro estilo de significante-mestre” (LACAN, 1969–1970/1991, p. 205).

a  à   S

S2  –>   S1

Como se trata, no discurso analítico, de encontrar outro estilo para o significante-mestre (S1), me parece possível sustentar que há, então, pela experiência analítica, uma saída do império e da insaciabilidade do discurso do capitalista, mas sem a re-volta que, conforme esclarece Lacan, tanto quanto a sujeição, acaba fazendo imperar o S1. Não é, portanto, sem razão, que Lacan insistia na peculiaridade do discurso analítico frente aos outros discursos: “só o discurso analítico é exceção” porque “exclui a dominação”, “nada ensina” e “não tem nada de universal” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Mas a exceção concernente a esse discurso no âmbito da dominação se vale também do outro estilo encontrado para o Sdominador, que, ainda assim, não deixa de ser dominador. Também a exceção referente ao ensino não se separa  do enfrentamento do desafio de “como fazer para ensinar o que não se ensina” (LACAN, 1978/1979, p. 278). Por fim, se o discurso analítico pôde ser considerado por Lacan “até mesmo a saída do discurso capitalista”, ele também nos alerta que essa saída “não constituirá um progresso, se for apenas para alguns”. Nesse contexto de um progresso que pode até evocar o universal, considero oportuno destacar que, para lançar no universo esses produtos de uma análise que os analistas são, a escala é aquela do discurso analítico como “laço social determinado pela prática de uma análise”, ou seja, por uma experiência que é única e feita à medida de cada um que, como analisante e como analista, a ela se dedica.

 

A.O-L.: Em 1970, no seminário O avesso da psicanálise, Lacan nos apresenta a segregação como o fundamento de toda fraternidade. Só há fraternidade por estarmos isolados juntos, isolados do resto” (1969-70/1992, p. 107). Nesse momento, ele aborda a fraternidade como uma noção referida ao discurso, ao laço social como tal. Dois anos mais tarde, no Seminário 19, …ou pior, Lacan vai retomar a referência à fraternidade, mas, dessa vez, não mais sustentada no discurso, mas no corpo. Ele se refere ao racismo como algo que se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (1971-72/2012, p. 226). É curioso porque, no ano seguinte, Lacan definiria a raça como o que se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos, aqueles com que se perpetua a raça dos mestres/senhores e igualmente dos escravos” (O aturdito, 1973/2003, p. 462). É uma clara referência ao período colonial a partir do qual noção de raça surgiu e se consolidou em seguida junto ao discurso nacionalista, o que desembocaria mais tarde no surgimento dos campos de concentração. Considerando a atualidade, poderíamos dizer que a era dos mercados comuns operou uma mutação nessas noções de raça, fraternidade e racismo? O que implica para essas noções quando Lacan transita entre a referência ao discurso e ao corpo?

 

Sérgio Laia: Como vocês mesmos destacam nesta segunda pergunta, Lacan conclui o Seminário …ou pior dizendo que a revalorização da palavra “irmão” implica uma “fraternidade do corpo” diversa dos “bons sentimentos”, porque nela se enraíza, também, o “racismo” (LACAN, 1971–1972/2012, p. 227). Foi seu modo de pôr em suspeição a noção de irmandade em um mundo em que cada vez mais ela se apresentava como uma solução, inclusive (para usar um termo frequente daquela época) contra-cultural. Assim, o que afeta os corpos (como eles se satisfazem) e o que os irmana (com que se identificam) têm uma função tão importante para a concepção lacaniana do racismo quanto o que os segrega.

No que concerne à satisfação, sabemos que, nos corpos humanos, ela não segue rigorosamente um programa estabelecido pelo organismo: é perturbada pelo que se escuta e se diz. Nossa satisfação toma, portanto, trajetórias desvairadas e, para designar e orientar essa satisfação, contamos apenas com o Outro, ou seja, com um lugar do qual estamos separados e que nos referencia. Porém, essa separação e até muitas dessas referências nos são também insuportáveis: não conseguimos, segundo Lacan, “deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo” e lhe impomos “o nosso” (LACAN, 1973/2003, p. 533). O racismo, então, se apresenta quando nosso desvairado modo de satisfação procura se orientar rejeitando as formas diferentes (ou mesmo desconhecidas) de o Outro se satisfazer. Em outros termos, como esclarece-nos Laurent, o racismo sempre tem a ver, “em uma comunidade humana”, com “a rejeição de um gozo inassimilável” e que é relacionado “a uma barbárie possível” (LAURENT, 2013, p. 32).

Com a “globalização” — nome mais atual para o que, na pergunta de vocês, é evocado como “era dos mercados comuns” —, considero que o racismo se agrava porque se torna cada vez mais difícil localizar o que faz as vezes de Outro: as diferenças (sobretudo aquelas referentes às alteridades) tendem a se apagar, dando lugar a uma irmandade generalizada — o termo “irmão”, destacado por Lacan desde a última lição de …ou pior, se desdobra hoje em “brother”, “bro”, “mano”, “véi”, aplicáveis a todo mundo, conforme constatamos sobretudo nas falas dos jovens, mas também dos que já não são assim tão jovens. Se o contorno do Outro já não é tão palpável, se seu corpo deixa de existir e seu modo de gozo não delimita mais o que nos concerne em termos de satisfação e de identificação, o desvario das satisfações se intensifica ainda mais sem direção. Os jovens, ao terem seus corpos impelidos a buscar Outros corpos para sua satisfação sexual e sua identificação, são particularmente sensíveis a esse desvario e, nos nossos dias, quando todo mundo é incitado a ser jovem, tal desorientação toma proporções avassaladoras e efetivamente globalizadas.

Com essa diluição do campo simbólico do Outro, com a proliferação das irmandades, são os grupos que se tornam mais propensos, a meu ver, para fazer as vezes não de uma alteridade simbólica que parece cada vez mais inapreensível, mas de uma alteridade-corpo no qual as pulsões podem se satisfazer diretamente. Hoje, encontramos exposto o que a experiência analítica aborda, mais intimamente, desde os primeiros pacientes de Freud: as identificações promovidas pelo Outro (e que são, inclusive, cada vez mais frágeis) não respondem efetivamente às exigências de satisfação; há discrepâncias cada vez maiores entre o que nos satisfaz e o que nos identifica, inclusive porque as referências identificatórias estão diluídas ou até ausentes.

Para este contexto atual, a noção lacaniana de identificação ao sintoma pode se apresentar, a meu ver, como um leme, pois conjuga elementos que, na cena sócio-cultural atual, apresentam muitas vezes desarticulados, ou seja, corpo e fala, satisfação e identidade.

 

A.O-L.: O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se comprova nossa política implica (…) que tudo o que se articula dessa ordem seja passível de interpretação. Por isso que tem toda razão quem põe a psicanálise à testa da política(1971/2003, p. 23). Nessa citação de Lacan em Lituraterra, podemos entender que, para ele, a política é a do sintoma e sua interpretação. Em nossa época, o singular do sintoma regula o sujeito e as construções do laço social (do individual para o coletivo). O sintoma serve para pensar o político?

 

Sérgio Laia: Estimo que já pude responder a essa questão sobre o sintoma e a dimensão política no final de minha segunda resposta, quando faço menção à noção lacaniana de “identificação ao sintoma” e, ao longo de minha primeira resposta, quando mostro como o discurso do capitalista configurado por Lacan é uma espécie de update do discurso do inconsciente. Ainda assim, mesmo que, a meu ver, vocês tenham dado uma conotação mais coloquial ao verbo “pensar” (ao utilizá-lo na expressão “pensar o político”), eu faria uma ressalva de que não se trata propriamente de, a partir da psicanálise, pensar o político ou a política, mas de intervir sobre esse campo. Essa intervenção, no entanto, não seria propriamente equivalente ao que teríamos na chamada militância política nem ficaria restrita à chamada “territorialidade” dos nossos consultórios ou da clínica. Para esclarecer os matizes dessa intervenção, eu lhes lembraria o próprio modo como a psicanálise, desde Freud, se faz presente no mundo. Por um lado, desde o início, essa presença não se dá sem a manifestação de resistência ao discurso analítico (inclusive, segundo nos ensina Lacan, da parte dos próprios analistas) — assim, as resistências à psicanálise, as críticas e os impedimentos que lhe são impostos têm a ver com nossa coragem de operarmos com o que Freud mesmo chamou certa vez de “substâncias perigosas”, aproximando-a da química. Por outro lado, entre todas as propostas que, desde o final do século XIX, se formulam com o prefixo psi-, a psicanálise é a única que tem conseguido fazer passar para o uso comum, sem qualquer banalização, o que para ela tem uma caracterização muito específica e, como exemplo, cito-lhes o ato falho. Antes de a psicanálise existir e se difundir no mundo, não tínhamos essa concepção — hoje amplamente partilhada, inclusive por aqueles que sequer conhecem Freud — de que uma troca de palavras produzida casualmente quer dizer alguma coisa. A meu ver, nenhuma resistência ou crítica que temos sofrido como psicanalistas abala a força de como, por exemplo, a concepção psicanalítica do ato falho se tornou uma propriedade comum. Sabemos que Lacan, no Seminário 23, aproximou a noção de sintoma da operação de “fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum” (LACAN, 1975–1976/2017, p. 86) — não é ela que se processa também nesse uso difundido que temos do ato falho? Logo, considero que a política que cabe a um psicanalista sustentar é diferente da militância e, mais ainda, da irmandade partidária, porque não se pauta pela instauração de uma nova ordem, pela consolidação de um projeto, por uma revolta quanto ao estabelecido, e muito menos pelo apreço quanto ao já vigente e estabelecido. Na perspectiva psicanalítica, trata-se de fazer passar o que é próprio para o comum ou, como certa vez formulou Éric Laurent, procuramos desfazer o que é recebido como unidade de significação para fazer ecoar uma leitura singular do que nos é apresentado como já pronto para ser usado (LAURENT, 2005).

 


LACAN, J. (1972) “Du discours psychanalytique“. ______. Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978.
LACAN, J. (1964) Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.
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LACAN, J. (1976) “Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI “. ______. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
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LAIA, S. “Os sujeitos objetalizados e o analista como ‘parceiro-sintoma’”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, setembro 2008.
LAURENT, É. “Da linguagem pública à linguagem privada, topologia da passagem”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fevereiro de 2005.
LAURENT, É. “Racismo 2.0”. Opção Lacaniana, n. 67, 2013.
Perguntas formuladas por Bernardo Micherif, Patrícia Ribeiro e Rodrigo Almeida.



O DISCURSO COMO SAÍDA DO CAPITALISMO[1] 

 

PHILIPPE LA SAGNA
Psicanalista,  A.M.E. da ECF/AMP
plasagna@free.fr

Resumo: Lacan aponta uma afinidade entre o discurso capitalista e o discurso da ciência, no qual o desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Nessa aliança, a verdade passa a ficar envolta em brumas e o saber vira um objeto de mercado. O discurso capitalista se apresenta sob a égide do consuma-se e deixe-se consumir, sempre com um mais-de-gozo que se impõe ao sujeito contemporâneo. O discurso analítico tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e, ao fazer do objeto a causa de desejo, arejar os efeitos do mais-de-gozar.

Palavras-chave: mais-de-gozar; mais-valia; mercado; discurso.

Discourse as a way out of capitalism

Abstract: Lacan points out that there is an approximation between the capitalist discourse and the discourse of science, where the development of the first follows the second. In this alliance, truth becomes surrounded by mist and knowledge becomes a market object. The capitalist discourse is presented under the mandate of consume and get consumed, always with a surplus jouissance that is imposed to the contemporary subject. The analytical discourse presents the possibility to unveil the machinery of the surplus jouissance, and freshen its effects by making the object the cause of desire.

Keywords: surplus jouissance; surplus value; market; discourse.

 

Imagem: Fred Bandeira

 

 

“A crise consiste justamente no fato de que o antigo morre
e que o novo não pode nascer: durante esse intervalo
os mais variados fenômenos mórbidos são observados.”
Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere

Do capitalismo de produção ao discurso capitalista 

Muito cedo, Lacan foi um leitor de O capital, de Karl Marx. Mas ele soube tornar essa leitura útil ao longo de toda a elaboração de seu pensamento. Em seu Seminário 18, Lacan explica como ele utilizou o “godê da mais-valia” (LACAN, 1971/2003, p. 46) para despejar nele a relação de objeto de Freud. Essa homenagem a Marx é ambígua: se ela não apaga a mais-valia, ela a torna um pouco antiquada ao apresentar a categoria do mais-de-gozar. Hoje, a mais-valia, no sentido de Marx, não é mais o que era. A direita liberal a considera uma noção obsoleta e pouco científica. Curiosamente, uma parte crescente da extrema-esquerda questiona a tese clássica segundo a qual a apropriação da mais-valia representa o alfa e o ômega da força da exploração do homem pelo homem. Se considerarmos que essa exploração é também a das mulheres ou dos colonizados, o economismo subjacente à teoria da mais-valia marxista vacila. A construção teórica da mais-valia deve distinguir o trabalho e a força de trabalho e pensar esta última através da noção de um trabalho abstrato. O valor do trabalho, agora abstrato, poderia ser mercantilizado sem problema algum. Mas, se Lacan, em 1968, retomou seu debate com Marx, foi também no contexto do debate entre Sartre e Lévi-Strauss sobre a ação da história e da cultura. Em 20 de novembro de 1968, durante uma sessão de seminário, Lacan postula que a ideia de Marx de trabalho abstrato, necessária à teoria de mais-valia, passa pela “absolutização” do valor trabalho, o que não pode ser pensado sem um “desenvolvimento de certos efeitos de linguagem”, ao qual ele acrescenta: “e foi por isso que introduzimos o mais-de-gozar” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 37). Trata-se, portanto, de pensar o capitalismo como um discurso — para aquele que dirá “eu” para expressar sua frustração de “sujeito”, assujeitado, do discurso capitalista.

 

Mercado do trabalho/mercado do saber

Esse discurso capitalista supõe uma afinidade com o discurso da ciência. O desenvolvimento do primeiro acompanha o segundo. Pouco antes, em seu texto “A ciência e a verdade”, Lacan havia afirmado que a ciência se especifica por nunca querer conhecer a verdade como uma causa. Do lado da verdade, o proletariado encarna a verdade do sistema capitalista e é para os marxistas o instrumento de sua subversão e da saída do discurso capitalista. Ora, a modernidade permitiu verificar a dificuldade que constitui o fato de que essa ação louvável supõe uma consciência de classe que, como mostra a história, muitas vezes não existe. O proletariado moderno não hesita em adotar os ares do narcisismo egoísta da sociedade dos indivíduos, ele sabe como oprimir sua “burguesia” e rejeitar, ou mesmo explorar, o colonizado; o que coloca a função despercebida da cultura na luta de classes, identificada por Gramsci.

Lacan observa, portanto, a função despercebida por uma parte na questão social do saber. A novidade, para Lacan, no final dos anos sessenta, é que o saber tem um preço, há um “mercado do saber”. Para Lacan, esse preço vem pagar uma perda: “a renúncia ao gozo” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39), aquela que justamente supõe o trabalho. Na época, Lacan vai chocar o auditório ao colocar que o saber não precisa necessariamente do trabalho para exercer seu papel no gozo! “Não é pelo fato de o trabalho implicar na renúncia ao gozo que toda renúncia ao gozo só se faz pelo trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 39).

O que é novo, observa então Lacan, é que o saber se tornou uma mercadoria, como testemunha na época a crise da universidade. Podemos dizer que esse fenômeno, esse “mercado do saber”, assumiu uma dimensão enorme hoje, na era dos big data! Para Lacan, é o efeito da ciência ao reduzir todos os saberes a um único mercado. Essa operação, no entanto, deixa resto; há um saber que não é pago e, portanto, obtido para nada. E aí está a fonte do mais-de-gozar no processo de produção do saber. O mercado do saber, de um saber que serve ao gozo, produz o mais-de-gozar. Ele revela que, “A partir do saber, percebe-se, enfim, que o gozo se ordena e pode se estabelecer como rebuscado e perverso” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40).

 

Coletivização da verdade

O efeito do discurso capitalista no final do século XX é, portanto, fazer deslizar o tratamento do gozo do mercado de trabalho para o gozo do mercado do saber. O que se perde nessa passagem, por causa da ciência, é a singularidade da verdade. Ela não fala mais “eu”. Lacan nos diz que ela se tornou “social média, abstrata” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 40). Em outros termos, ela fica suspensa no conformismo social da “multidão solitária”, tão bem retratada por David Riesman. O reino do mais-de-gozar como efeito do mercado do saber anda de mãos dadas com essa “coletivização” da verdade. Isso é o que fará Lacan dizer, a respeito da “comoção de maio”, que aí está de fato a “greve da verdade” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). Há aqui um equívoco sobre a verdade na greve: é uma questão de defendê-la ou de imobilizá-la?

O que é certo é que perdemos o “eu” e que o grito do proletariado se perde como verdade que fala “eu”: 1968 será um “nós” no discurso! E depois teremos um “todos juntos!”. A geração Facebook vai levar essa coletivização da verdade a um estágio superior, sob a forma da falsa verdade que não mente mais, por não ter chance de dizer a verdade! A internet é o lugar da pós-verdade e onde o “eu” que fala se apaga diante do sujeito que sou para os outros. Como mostrou Alain Supiot (2015) em seu livro La gouvernance par les nombres (A governança pelos números, em tradução livre)isso vai bem com um retorno da fidelidade nas relações sociais em detrimento da cidadania política real. O Facebook é o momento em que o “eu” se torna um “ele”, aquele que sou para os outros, aos olhos dos outros. Lacan se diverte e sublinha que a greve “é justamente uma espécie de relação que une o coletivo ao trabalho” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 41). O sucesso da greve supre a crise do trabalho! A verdade coletiva é também a estupidez das verdades que o Maio de 68 escreveu nos muros. Joseph Heath e Andrew Potter mostraram em seu livro Révolte consommée (Revolta consumida, em tradução livre) que a contracultura produziu os estereótipos do modo de gozar mercadológico contemporâneo: “Para que alguém suba na hierarquia do status ou do estiloso, ou do estilo, chame-o como quiserem, é preciso que algum outro seja rebaixado um degrau” (HEATH; POTTER, 2005, p. 408, tradução nossa). Os novos meios de comunicação tornaram exponencial a estupidez da verdade. O êxtase contemporâneo não chegou bruscamente. Em seu último livro, Il faut dire que les temps ont changé (É preciso dizer que os tempos mudaram, em tradução livre), Daniel Cohen (2018) assinala que, desde os anos cinquenta do último século, Jean Fourastié anunciava que iríamos passar da sociedade de produção, que sucedera o mundo agrícola, para se dedicar à matéria — e não à terra —, a uma sociedade de formação onde reinaria o mercado do saber!

Essa reviravolta foi também a da “sociedade do culto de si mesmo” e dos indivíduos isolados em uma formação contínua do ego. Vemos, portanto, que o capitalismo, antes de se tornar mais do que um mero discurso do capitalismo, já era, de alguma forma, uma “saída” do capitalismo de produção material produzida pelo capitalismo. A crise sanitária atual nos mostra que essa mutação não apagou a produção: ela a exportou para países supostamente menos avançados, como a China.

Para o Lacan desta época nos livramos da verdade, esta que insistia na palavra do “eu”. Nesse mundo dos ditos e dos não ditos, o que vai ser raridade é o dizer.

 

Necessidade de um novo discurso

Em um artigo escrito para o jornal Le Monde e nunca publicado[2], a respeito da reforma universitária, Lacan acentua a clivagem entre saber e trabalho. Ele postula ainda que o saber não precisa de nenhum trabalho! Ele distingue também o mais-de-gozar da mais-valia marxista para dizer que ele é a causa, e não o efeito do mercado. No mundo do consumo, a pressão do mais-de-gozar é a condição da existência do mercado, é a lei do consumismo. Se o mais-de-gozar fica confinado, o mercado desaparece…

Acontece que, para Lacan, nesse mundo do saber disponível e do “eu” difícil, o sujeito humano deve trabalhar para se identificar. O self é um permanente canteiro de obras que supõe fazer com que o saber contribua para construir uma identidade para o sujeito com o status social que lhe convém. Quando o discurso do mestre reinava, ele distribuía os lugares e, portanto, as identidades, mesmo a do proletariado! Hoje, é o discurso capitalista e o mercado do saber que perderam a necessidade da castração. Resta, portanto, tentar encontrar a dimensão da castração. O mais-de-gozar capitalista ignora o limite da castração, e é nisso que ele nos apreende e torna impossível o amor, já que o amor supõe que o gozo consente com uma perda que é constitutiva do desejo.

Eva Illouz mostrou que, quando o amor se torna um mercado, a tendência ao afastamento se torna muito mais forte do que o compromisso: “O gozo se tornou o verdadeiro modo de desejo de uma sociedade de consumo onde os objetos, os afetos e a satisfação sexual deslocam o centro moral do eu. Mas, no gozo, é impossível encontrar ou constituir corretamente objetos de interação, de amor e de solidariedade” (ILLOUZ, 2020, p. 319, tradução nossa).

O mais-de-gozar é, no entanto, apenas um “mais” em relação a uma perda de gozo, já que representa de algum modo a frágil contrapartida da perda de gozo que supõe o saber que se torna somente “meio de gozo”. Esse saber e o mais-de-gozar que o acompanha apagam, então, da paisagem, o gozo que seria de uma outra natureza, que não a deles. O discurso capitalista ignora a castração, assim como o discurso da ciência ignora a verdade como causa. Nesse mercado, do saber que serve ao gozo, o problema será então de manter um desejo de saber. Lacan rapidamente identificou a ausência do desejo de saber quando o mais-de-gozar satura o desejo, transformando-o em adição.

Vemos que começa a se desenhar a necessidade de um novo discurso que possa dar lugar, nessa paisagem, ao mesmo tempo à castração e à verdade do desejo. Em particular, o discurso do Outro no feminino. A psicanálise, ou seja, o discurso analítico, é o que poderá fazer surgir do amor de transferência um outro amor por um outro saber: o saber inconsciente. Um amor pelo que é real nesse saber, real que escapa ao mercado.

Em 1970, em seu seminário O avesso da psicanálise, Lacan retoma esse fio condutor, segundo o qual a verdade coletiva se tornou irmã do gozo. Elas são irmãs em sua origem comum, que é o mercado do saber. Ao mesmo tempo, Lacan demonstra que a linguagem, em sua metonímia, serve ao gozo e ao mais-de-gozar, por falta de uma metáfora que venha oferecer uma saída. Lacan retoma também o fato que o capitalismo, a fim de assegurar seu desenvolvimento, deve assegurar o que era chamado na época de subdesenvolvimento. Hoje é o saber cujo subdesenvolvimento asseguramos, inclusive o da ciência que vive sob o reinado da burocracia de avaliação nas mãos das potências do mercado. A crise sanitária mostrou os efeitos deletérios da burocracia sanitária sobre o saber científico e a ação política.

Os GAFA[3] estão na vanguarda do mercado do saber e parecem destinados a comprar o conjunto dos valores do mercado. O Google o fez de tal forma que o consumidor é também produtor de um saber, saber que lhe é roubado e transforma aquele que o produz em produto, em mais-de-gozar invisível. Nesse mundo que parece gratuito, o produto é você! É uma ironia da história que a civilização da difusão esteja caindo devido à propagação de vírus invisíveis. Com o Facebook, trocamos o saber produzido pelo sujeito pelo mais-de-gozar da visibilidade obtida pelo sujeito que cria, ele próprio, a adição. Poderíamos sonhar, como os trans-humanistas, que isso levará os corpos a se emparelharem às máquinas para acabarem se tornando indistintos, reduzidos a saberes incorporais recarregáveis remotamente. Uma série inglesa traz uma adolescente anoréxica decidida a não mais poluir o planeta ao se postar post-mortem na web[4].

 

Sintoma e discurso do psicanalista

A pandemia nos mostrou que o gozo continua sendo, entretanto, o gozo dos corpos! E que o mercado do saber ainda não apaga o objeto produzido. Mas o objeto é desejável na medida em que se torna o semblante ou o caminho para um resto de saber imaterial que ele representa. Se tomamos o gadget como um “ter”, é para tentar fazer dele um parecer que nos faça encontrar a singularidade subjetiva perdida. Aquela que se torna o valor em um mercado coletivo que o apaga sempre mais. O objeto, no mercado do saber, não está conectado: ele nos conecta ao mercado do saber.

Lacan, em 1971, em seu Seminário 18, observa que a descoberta de Freud surge em um mundo onde o conhecimento, no sentido da singularidade da experiência, não tinha mais nenhum sentido. Nesse mundo, o que permanecia, no entanto, era o sintoma. Sem dúvida não foi por acaso que Lacan se apoiou em Marx para revisar o lugar do sintoma. O sintoma indica um furo no tecido que o mercado do saber tece. As crises, econômicas, sociais, sanitárias, fazem parte disso. Lacan pode, portanto, dizer: “A única coisa que lhe interessa e que não é um completo fiasco, que não é simplesmente inepta como informação, é aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em princípio, coisas que nos dão sinal, mas das quais não compreendemos nada” (LACAN, 1971/2009, p. 49). O psicanalista faz parte disso!

Todos esses dados serão retomados por Lacan em Milão, em 12 de maio de 1972, em sua conferência “Sobre o discurso psicanalítico”. A Itália foi um país onde a crise política foi a mais forte, ao mesmo tempo crise econômica do capitalismo, mas também crise do comunismo e surgimento de movimentos revolucionários que pregavam a ação direta, desde o projeto de insurreição do livreiro Feltrinelli até as Brigadas Vermelhas. Nessa conferência, Lacan anuncia a crise do capitalismo e prevê que ele estaria “condenado a explodir”[5]. Esse termo de 1856 (crevaison) designa evidentemente o destino de um pneu e a morte na linguagem popular, assim como uma fadiga extrema. Lacan diz: “isso funciona rápido demais, se consome, se consome de tal forma que é consumido”[6].

E, com efeito, a lógica do mercado necessita de uma aceleração permanente, teorizada hoje por Hartmut Rosa (2013). Acrescenta-se a isso um desperdício permanente dos recursos do planeta. Mas essa lógica do mercado também consume na adição os recursos dos corpos em direção a um-mais-de-gozar obeso. Lacan via em tudo isso algo da peste!

Lacan escreve no quadro o discurso capitalista como uma variante do discurso do mestre: /S1, S2/a. O significante-mestre não parece mais ser um semblante ativo, o encontramos dissimulado no lugar da verdade e, portanto, mais inapreensível. A verdade do sujeito, por outro lado, como no discurso do mestre, desaparece. O sujeito torna-se o agente por excelência do discurso. Vimos como esse sujeito não é mais o “eu” que fala, é de um outro sujeito que se trata. Também não é o sujeito “assujeitado” da política. O sujeito agente do discurso capitalista é livre, desassujeitado e desidentificado, ignorando o significante que o comanda, mas pronto a abrir mão de sua liberdade para todas as adições e todas as submissões. A própria lei se tornou um produto econômico: sofremos e aplicamos a lei da economia mais forte (o dólar!) ou da mais rentável (os paraísos fiscais). O sujeito está, portanto, submetido ao efeito do objeto mais-de-gozar diretamente, de um modo viciante. Por outro lado, esse sujeito não terá mais laço com o saber, exceto ao passar por um acesso à sua verdade no significante-mestre, que o comanda sem que ele saiba. Separado de S1 e de S2, esse sujeito que perdeu sua identidade irá procurar a si mesmo, seja através da transidentidade líquida, seja através de sua recusa em identidades delirantes regressivas e étnicas que são tão fixas quanto fabricadas.

Multiculturalismo e nacionalismo iliberal tornam-se produtos de mercado! Na ausência de um livre acesso ao saber, o sujeito deverá aprender a ser ele mesmo através de técnicas de vida e de corpo (desenvolvimento pessoal) que ditam seus comportamentos com a cumplicidade do Estado. O Estado, que se tornou um grande pedagogo, quer, de fato, mudar o povo pela formação/informação. É o que está por trás do slogan “mudar os comportamentos”, ignorando o saber do povo.

O discurso analítico, ao colocar o objeto a na posição de semblante, tem a possibilidade de desvendar a maquinaria do mais-de-gozar e de fazer valer o objeto a causa do desejo para que ele venha arejar os efeitos do mais-de-gozar. Ao produzir o S1, o discurso analítico pode dar acesso a um sujeito que o comanda e produzir daí o , a queda. Esse significante-mestre é também o coração do que anima seu sintoma.

A saída do discurso capitalista é, portanto, dupla. Enquanto tal, ele só pode sair de si mesmo e, então, encontrar novas formas, sendo que seu discurso faz parte delas. Mas esse capitalismo de mercado permanece preso ao fato de que há apenas gozo dos corpos. A vida nua, a longo prazo, poderia muito bem ser o agente invisível de sua morte.

Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Rodrigo Almeida

Referências
COHEN, D. Il faut dire que les temps ont changé. Paris: Albin Michel, 2018.
HEATH, J.; POTTER, A. Révolte consommée : le mythe de la contre-culture. Les Editions l’Échappée: Paris, 2005.
ILLOUZ, E. La fin de l’amour. Paris: Seuil, 2020.
LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN. J. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
ROSA, H. Accélération: Une critique sociale du temps. Paris: La Découverte, 2013.
SUPIOT, A. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[1] Texto publicado originalmente em La Cause du désir, 105, julho de 2020.
[2] Cf. LACAN, J. “De uma reforma em seu furo”, texto publicado com a amável autorização de Jacques-Alain Miller em La Cause du désir, nº 98, março de 2018, p. 9-13. Cf. igualmente LACAN, J. O Seminário, livro 17: O Avesso da psicanálise, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1991, p. 196.
[3] GAFA: acrônimo de Google, Amazon, Facebook e Apple, refere-se às quatro maiores companhias da internet. O termo surgiu pela primeira vez na imprensa em 2012 no jornal francês Le Monde. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/GAFA.
[4] Years and Years, série britânica da BBC (2019) exibida na França pelo MyCanal, disponível por streaming.
[5] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.
[6] “Du discours psychanalytique. Discours à l’Université de Milan, le 12 mai 1972”, publicado na obra bilíngue Lacan in Italia 1953-1978En Italie, Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 48.