HENRIQUE OSWALDO GAMA TORRES
Professor Aposentado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG,
Coordenador Clínico do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB/HC/UFMG)
e participante da Coordenação do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina (NIPM/IPSM-MG)
henrique.gamatorres@gmail.com
ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES
Psicanalista praticante, Membro aderente da Seção Minas da Escola Brasileira de Psicanálise.
Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da UFMG. Coordenadora Técnica do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB/HC/UFMG)
e participante da Coordenação do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Medicina (NIPM/IPSM-MG).
Resumo: O presente artigo articula a anorexia e o avesso da biopolítica, da lógica cartesiana, dos protocolos universais. Investiga-se o para além da medicina baseada em evidências, que padroniza e normatiza protocolos. Não se propõe o avesso dos avanços propedêuticos e terapêuticos, mas a aposta de que o corpo escapa às identificações prontas, pois o gozo transborda, o sintoma que faz sofrer “traumatiza”. A aposta no singular da invenção sintomática, ao fazer vacilar a clínica médica, a psiquiatria, entre outros saberes, permite que o sujeito anoréxico apresente o corpo marcado para além do puro organismo, corpos afetados pela linguagem. Investiga-se a relação de cada falasser com seu inconsciente e suas respostas à biopolítica de nossos tempos.
Palavras-chave: anorexia; biopolítica; avesso da biopolítica; medicina; psicanálise.
Anorectic bodies and the reverse of biopolitics
Abstract: This article articulates anorexia and the reverse of biopolitics, of Cartesian logic, and universal protocols. We investigate beyond evidence-based medicine, which standardizes and regulates protocols. We do not propose the opposite of propaedeutic and therapeutic advances, but we believe that the body escapes from predetermined identifications, because jouissance overflows, the symptom that causes suffering, “traumatizes”. The bet on the singular of the symptomatic invention by making the medical clinic, psychiatry, among other knowledges falter, allows the anorexic subject to present the body marked by something beyond the pure organism, bodies affected by language. We investigate the relationship of each speaking being with their unconscious and their responses to the biopolitics of our time.
Keywords: anorexia; biopolitics; the reverse of biopolitics; medicine; psychoanalysis.
Pensar a clínica da anorexia e o avesso da biopolítica coloca, aqui, um ponto de investigação para além da medicina baseada em evidências, que nomeia e torna universais as respostas sintomáticas do corpo, normatizadas e padronizadas por protocolos de tratamento. A condução clínica de cada caso, orientada pela psicanálise lacaniana, aposta no singular da invenção sintomática ao fazer vacilar a clínica médica, a psiquiatria, entre outros saberes.
O sujeito anoréxico nos demonstra a existência do corpo marcado para além do puro organismo, do corpo afetado pela linguagem. Então, a condução clínica orientada pelo falasser e pelo avesso da biopolítica exige que o sintoma passe a ser definido a partir da singularidade do gozo do corpo. É necessário desconstruir o saber universal que possibilita a identificação em torno do “sou anoréxica” para investigar a relação de cada falasser com seu inconsciente. A biopolítica reduz o corpo à lógica cartesiana, a algoritmos que definem tratamentos universais.
Não se trata, aqui, de propor o avesso dos avanços propedêuticos e terapêuticos, mas de fazer a aposta de que o corpo não é redutível à imagem, aos transtornos, às disfuncionalidades. O que se visa demonstrar é para além do discurso universal: anoréxicas, é possível a aposta no discurso psicanalítico diante das exigências intervencionistas, sem desconsiderar a gravidade de cada caso, mas dando lugar ao singular que cada sujeito inscreve nas marcas do corpo.
Nessa perspectiva, um dos eixos do nosso trabalho é interrogar sobre quais seriam as respostas do falasser à biopolítica de nossos tempos. A título de ilustração, duas situações clínicas desses impasses são demonstrativas. Uma senhora com 20 anos de anorexia foi internada sob crise de hipoglicemia, extremamente desnutrida. A principal preocupação da equipe médica era alcançar um determinado Índice de Massa Corporal (IMC), mesmo à custa de uma alimentação forçada e internação compulsória, para, após o êxito em atingir os níveis de segurança demonstrado pelas evidências científicas, consentir com a alta. O argumento principal seria que o negativismo, a recusa e a agressividade como consequência da desnutrição devessem ser tratados por meio de recuperação nutricional e reforço positivo. A história clínica e o desencadeamento pouco importam. Trata-se de uma anorexia pura e pronto.
O outro caso é de uma jovem de 14 anos que, após se recuperar de uma desnutrição grave, além do incômodo com o corpo recuperado, manifestava também uma nostalgia do corpo magro e de outros atributos que associava a ele: a mais magra das amigas, a mais bonita, a que tirava melhores notas. A perda do corpo magro lhe dava uma sensação de intensa mediocridade e de uma perda no nível do ser. Nesse sentido, verifica-se a ineficácia na tentativa de reduzir o acontecimento anoréxico às classificações, categorias e protocolos. O inconsciente — “sensação de intensa mediocridade e de uma perda do nível do ser” — aponta para a importância da subjetivação do sofrimento.
A biopolítica diz respeito à medicina na medida em que inclui as evidências científicas nos dispositivos utilizados na gestão da população, quando, segundo Foucault, o poder soberano sobre a vida e a morte dos súditos foi substituído, historicamente, pela incorporação da vida, no sentido biológico mesmo, nas considerações políticas dos estados e dos governantes. A partir do século XVIII, passa a se racionalizarem os problemas colocados à prática governamental por fenômenos característicos de um conjunto de seres vivos que formam uma população: saúde, higiene, natalidade, expectativa de vida, raça, entre outros, cuja importância cresce progressivamente desde o século XIX e suscitam importantes questões políticas e econômicas até o presente (EWALD; FONTANA; SENELLART, 2004).
A importância dessa questão não se dá apenas pela racionalidade administrativa que ela enseja, mas por sua face menos visível, a da associação a tecnologias de poder, de cunho disciplinar, que passam a regular a vida no sentido de uma adequação dos corpos aos imperativos da vida política e socioeconômica. Qual é o sentido então de se discutir a anorexia nervosa no contexto da biopolítica? Provavelmente pelo fato de que a anorexia, no seu enfrentamento aparentemente irracional dos pressupostos da saúde e da preservação do corpo biológico, desafia a racionalidade fundadora da biopolítica. Nesse sentido, o papel da medicina tem sido o de um disciplinador feroz dos corpos anoréxicos.
Nesse sentido, torna-se essencial uma breve retrospectiva histórica, em que se pode observar certo paralelismo entre a história da anorexia e a da biopolítica. De início, antes da definição da anorexia como entidade nosológica, temos o histórico da anorexia santa, com as descrições de casos tais como o de Catarina de Siena, na segunda metade do século XIV. Estudos sobre as santas anoréxicas indicam diferenças entre aquela anorexia e a anorexia moderna, destacando a ausência de questões com a imagem corporal nas primeiras, em quem a recusa alimentar encontrava-se atrelada a valores de pureza religiosa e proximidade de Deus. Não deixa de destacar, entretanto, principalmente no caso de Catarina de Siena, a condição feminina ou a afirmação feminina diante da estrutura masculina e patriarcal da igreja católica da época, que não deixa de ter algo de uma confrontação política, mas não necessariamente ligada à biopolítica. Destacam-se os casos em que anoréxicas foram submetidas a acusações e julgamentos por heresia e bruxaria, confrontadas com profundo ceticismo pela hierarquia clerical masculina (BELL, 1985).
A primeira descrição de um caso de anorexia nervosa será realizada por Robert Morton, em 1686, que destaca a recusa de alimento e tratamentos a uma jovem de 20 anos e expressa sua perplexidade com a escolha pela inanição, dando origem às considerações sobre o caráter emocional ou psíquico da condição. Destaca-se que coincide com a época da origem histórica da biopolítica. Relatos esparsos sobre anorexia ocorrem ao longo do século XVIII, mas o reconhecimento específico e a nomenclatura tiveram de aguardar os relatos independentes de William W. Gull, em 1868, e Lassegue, em 1874. Ambos destacam a possível gênese psíquica da anorexia e Lassegue faz uma descrição clínica muito rica, destacando o caráter egossintônico, a rigidez anoréxica, a perplexidade e a impotência da família. Momento que corresponde à ascensão da vida burguesa, com todo o seu aparato de costumes e com a posição da mulher, que deve ser contida, casta e virtuosa (BELL, 1985).
O emprego do diagnóstico de anorexia mental por Charcot acaba por consolidar a anorexia nervosa (ou mental, ou histérica) como categoria, e a apresentação de Pierre Janet, em 1906, em Harvard, consolida as bases para a definição de uma etiologia psíquica para a anorexia nervosa. Entretanto, pouco tempo depois da palestra de Janet, em 1914, a publicação de Simmonds acerca dos achados de necrópsias com lesões destrutivas da hipófise em grávidas gravemente desnutridas desloca completamente a avaliação etiológica para o campo da doença somática, e os achados psicológicos isolados por Gull e Lassegue passam a ser ignorados pelos próximos vinte anos. Dessa forma, a abordagem da desnutrição extrema, mesmo aquela claramente autoinflingida, foi, nesse período, abordada como uma condição endocrinológica. Mesmo após a distinção entre os achados de Simmonds e a anorexia ser finalmente alcançada no fim dos anos 1930, abordagens somáticas passaram a ser proeminentes nas tentativas de tratamento da desnutrição autoinflingida (BELL, 1985).
Os anos 60 trazem o importante marco de Hilde Bruch, que retoma os aspectos psíquicos da anoréxica mas destaca a “anorexia pura”, diferente da anorexia associada a outras condições psíquicas e considerada pouco permeável às técnicas psicanalíticas de escuta e interpretação tradicionais. Em trabalho inaugural, que se torna referência importante, destaca-se o aspecto da recusa e aponta a mudança de comportamento da jovem anoréxica que, de criança boa e cordata, transformava- se em uma criança negativista, raivosa e desconfiada, que rejeitava ajuda e cuidado de forma obstinada, alegando deles não necessitar, e insistindo no direito de ser tão magra quanto quisesse. Contudo, destaca o papel fundamental da fala como elemento da cura da anorexia (BRUCH, 1982).
Mais recentemente, o pêndulo pende novamente para uma etiologia biológica da anorexia nervosa. Essa disposição pode ser observada na mudança ocorrida no DSM-IV para o DSM-5, em que a palavra recusa (recusa em manter o peso corporal igual ou acima do peso minimamente normal para a idade e estatura, critério letra A), presente no DSM-IV, foi retirada de forma deliberada do DSM-5. O argumento principal foi de que a recusa implica um processo psicológico ativo e consciente, frequentemente não observável nesses pacientes, e que o modelo psicológico inicial é aquele de pacientes que se engajam em dietas com o objetivo de perder peso, sem necessariamente buscar uma perda que levaria à condição anoréxica. A manutenção ativa da perda de peso promovida pelo jejum ocorreria naqueles casos em que se dispara o mecanismo biológico hipotético presente nos predispostos, ligado à deficiência genética de uma enzima do metabolismo lipídico. Os propositores da retirada da palavra “recusa” afirmam que a interpretação da forma usual de perder peso como um processo intencional e deliberado tem influenciado excessivamente a forma de pensar sobre o paciente portador de anorexia (DSM-5, 2014).
Chegamos então à atualidade, em que a abordagem médico-psiquiátrica da anorexia se radicaliza no sentido da afirmação de sua origem geneticamente determinada a partir dos estudos GWAS (Genome-wide association studies). Paralelamente, as jovens anoréxicas e bulímicas vão se organizando em comunidades virtuais, autodenominadas como “Anas” e “Mias”, respectivamente. As comunidades virtuais procuram preservar a identidade anoréxica, ainda que à custa de dispositivos medicamente justificados.
Composto por uma série de referências cruzadas e sites em constante mudança, o movimento é entendido como de defesa da anorexia e outras práticas semelhantes relacionadas à alimentação e como um estilo de vida e escolha de identidade legítimos. Indivíduos — principalmente mulheres — participam do movimento, em grande parte de forma anônima e por pseudônimos, compartilhando dicas e truques para perda de peso, dietas, exercícios e materiais de “thinspiration” (destinados a promover ou sustentar a perda de peso) on-line, com blogs pessoais, poesia, salas de bate-papo e, mais recentemente, postagens no YouTube e Facebook expandindo sua troca virtual. Trata-se de vozes inaceitáveis nos discursos mainstream sobre anorexia, e essa troca virtual é censurada não só pelo seu conteúdo perigoso, mas também pelo seu potencial de contaminação. Se há uma grande discussão na literatura sobre tratamentos coercitivos e compulsórios da anorexia, a formação dessas comunidades constitui uma resistência ao discurso médico normativo sobre o corpo e sobre a anorexia (BELL, 2009).
Aqui, um desafio se coloca na condução do tratamento psicanalítico, que é a aposta em saídas que não sejam pela identificação, tal como as comunidades de gozo e os novos e crescentes modos de segregação. Será o desejo decidido do analista, acolhendo esses sujeitos, suportando a repetição monótona do tema em torno do alimento, do peso, das práticas purgativas que, via transferência, possibilita o tratamento, que visará dar lugar a uma nova subjetivação do sofrimento.
Se a posição médica normativa e a reação das comunidades anoréxicas autorizam pensar em biopolítica em relação à anorexia, faz-se essencial que se discuta o que foi abordado no texto “O avesso da biopolítica”, de Éric Laurent. O psicanalista alerta continuamente que é necessário diferenciar sobre qual corpo estamos falando e sobre que discurso se procura consumar na modernidade científica e tecnológica, a identificação entre o corpo-máquina e o ser falante (LAURENT, 2016).
Se a medicina constrói sua prática (seu saber-poder) no registro do corpo-máquina, a essa abstração cartesiana parece que, apesar do caráter de resistência que se encontra na base da formação das comunidades anoréxicas, estas também parecem estar submetidas a esse mesmo paradigma quando se utilizam de versões do saber médico para disseminar suas práticas e moldar seus corpos. O movimento pró-anorexia está inextricavelmente ligado à lógica médica e não escapa da sua autoridade ao tentar ressignificar sua força disciplinar.
O discurso médico dominante é central para a identidade “Ana” — comunidades de gozo. Os sites diagnosticam anorexias, prescrevem métodos para perda de peso ou manutenção do baixo peso, conforme uma lógica do corpo-máquina, manipulável conforme o efeito que se deseja. Essa manipulação toma proporções às vezes dramáticas no uso de vomitivos, laxantes, diuréticos ou de restrição alimentar, isolados ou em combinação, levando pacientes aos limites da tolerância fisiológica, ao fio da navalha entre a vida e a morte. Observa-se uma crença nas tecnologias medicamentosas para a purgação e a perda de peso e um regozijo com a capacidade de se controlar e manipular a fome e a silhueta, como se a natureza que demanda nutrição adequada pudesse ser colocada sob controle sem qualquer prejuízo.
Em suma, a aposta de tratar o corpo anoréxico via o avesso da biopolítica é pela via que nos ensina a psicanálise, pois o corpo escapa às identificações prontas, o gozo transborda, o sintoma que faz sofrer, que “traumatiza” quando acolhido em seu falasser pelo analista, pode permitir que o sujeito escreva, de outro modo, o que se inscreve desse encontro traumático.