O Ordinário Do Gozo, Fundamento Da Nova Clínica Do Delírio

DOMINIQUE LAURENT

 

CAO GUIMARAES

 

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996, em seu seminário, inaugura, dizia ele: “a época lacaniana da psicanálise”, aquela “da errância, aquela dos Nomes-do-Pai (non-dupes errent), aquela daqueles que são mais ou menos tolos (dupes) do pai, mais ou menos tolos (dupes) do Outro”[1].

 

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais, enquanto tudo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever, em A Gaia Ciência, que “Deus está morto”, já não colocava essa questão? Houve, entretanto, ideais que tiveram uma vida dura e puderam consolidar, de modo decisivo, a função paterna, um dos sustentadores do título de Outro. Isso é tão verdadeiro que, na psicanálise, “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante de que o Outro existe”[2]. Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho da sua desconstrução e da sua pluralização no equívoco dos Nomes do Pai (non-dupes errent). Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de capiton. Não há mais necessidade de alguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente tornou-se louca.

 

Crença e loucura

 

Desde então a função paterna se apresenta no avesso do mestre, sob a forma rebaixada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia por todos, para assegurar a satisfação dos seus desejos, consagrando-lhes um amor igual. O verdadeiro Outro ao qual se recorre como garantia é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica àquele que encarna a função de pai como se comportar, mas autoriza e reconhece, de maneira inédita, estilos de vida antes condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai induziu os movimentos de reivindicação e luta das mulheres, dos gays e lésbicas em registros diversos, cujo último, depois do casamento para todos, diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber uma criança por PMA[3].

 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para além do pai. O bom uso da função do significante mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não esteja fora da lei. O discurso do direito, assegurando a promoção do direito à diferença pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito ao gozo? Dito de outro modo, a identificação a um significante mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não é todo absorvido na prática sexual; o sintoma é a prova mesmo de que o parceiro sexual é, eventualmente, o parceiro sintoma do sujeito.

 

A norma neurótica, construída sob a lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan fazia ouvir em “Os complexos familiares” (LACAN, 2003), a neurose é, sob vários aspectos, um efeito de perspectiva captado numa relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs num momento da história do patriarcado. Sem dúvida, Lacan falava de um momento terminado. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, são tagarelas. A lei se diz no singular. Ela pode, para Lacan, reduzir-se aos ‘mandamentos da palavra’, segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também aquelas majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo de se viver a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não está sozinha. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas concepções assistidas, o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais, casados ou não, encarregados de uma família ou não. O combate de emancipação feminista frente à ordem simbólica tradicional, substituído pela noção de gênero na tentativa de absorver a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida, inclusive os queer, que, confrontados com uma fuga de identificações, se arranjam com modos de gozar cada vez mais singulares.

 

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma; melhor dizendo, do parceiro gozo.

 

Do patriarcado ao parceiro gozo

 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal na sua composição e recomposição, da mesma forma que as da parentalidade. Mais ainda, fomos confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, o retorno pelo artifício às núpcias funestas da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um novo regime, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado de estilos de vida. O valor social atribuído a uma ou outra varia segundo o preço estabelecido pela civilização para o ideal e o objeto a. Mas não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva, que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem na sua forma de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil crer que elas ainda sejam a norma.

 

Os tipos de sintoma e as exigências de gozo

 

Lacan apreendeu o sintoma na sua dimensão singular, quer dizer, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, uma vez que reenvia sempre ao um por um. Essa perspectiva do sintoma, no entanto, é correlativa de outra, a do sintoma captado pela estrutura. Na “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (LACAN, 2003), Lacan coloca a questão dos tipos de sintoma como a clínica os havia isolado antes da psicanálise, em relação à particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade de seus tipos, como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não dependem do nominalismo da contingência, mas do realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são, então, identificáveis pela “exigência de gozo”. A Zwangsneurose deve ser generalizada para além do que a neurose obsessiva permite perceber.

 

Essa questão do gozo está no primeiro plano do caso freudiano do Homem dos lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, lhe consagrou todo um seminário de DEA[4]. Foi com esse caso que Freud introduziu, pela primeira vez, o termo Verwerfung, de rejeição a propósito da castração, que se fazia acompanhar, ao mesmo tempo, por um reconhecimento da castração. Para Lacan, como nota J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado desta forma: “como formular a coexistência da Verwerfung com o reconhecimento da realidade?” (MILLER, 2009, p. 82). J.-A. Miller situa primeiro a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele chama de foraclusão como mecanismo simbólico (LACAN, 1998, p. 394). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento de linguagem significante – e não um sentido – que está subtraído do circuito”. É um elemento “que só faz sentir seus efeitos por sua ausência e que mobiliza muitas significações ao seu redor, sem que essas significações cheguem a se juntar ao próprio significante” (MILLER, 2009, p. 86). A foraclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e encontrar um meio de se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não recoloca em causa toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar sobre a assunção […] da função paterna, mas sobre a da castração” (MILLER, 2009, p. 91). A foraclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956, com a “Questão preliminar …”. A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica uma foraclusão do Nome-do-Pai?

 

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são questionadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Desde que um menos avança em direção ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito fica desestabilizado. É isso que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se o falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (2009, p. 110).

 

A paranoia e a clínica universal do delírio

 

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a foraclusão generalizada vem pontuar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente absorvido pela mortificação significante e que, no que diz respeito a isso, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que, ali onde está o gozo, e não apenas o gozo-sentido (joui-sens) fálico, é a língua, em seu conjunto, que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se dá com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se fixam dependem do sinthome e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthome tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas a procura, em cada caso, da singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

 

O conceito de sinthome constituiu um avanço considerável para apreender uma clínica complicada, “inclassificável”, aquela do que se chama, desde a Conversação de Arcachon, de psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, o acento colocado por Lacan sobre o impacto do dizer sobre o corpo antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade (…) é a mesma coisa” (LACAN, 2007, p. 52). Lacan havia, desde o estádio do espelho, mostrado a paranoia constitutiva do sujeito no seu imaginário em relação ao outro e elaborado os diferentes tratamentos da paranoia constitutiva. Chega a concluir, com a teoria dos nós, que a psicose paranoica consiste no fato de o sujeito enodar-se em três, numa continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros contém o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “o sujeito então, ele não fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S ().

 

O impacto do dizer sobre o corpo, antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho, provém do troumatisme. Ele é apreendido a partir do furo (trou), da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como o que faz furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo a uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamou de “clínica universal do delírio, aquela que toma seu ponto de partida disto, de que todos os nossos discursos são apenas defesas contra o real” (1993, p. 7). A fórmula “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” (LACAN, 2010, p. 31) reenvia à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que diz respeito à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso perturba as diferenças feitas, até então, entre neurose e psicose.

 

Para concluir, não é excessivo dizer que, com o declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico, para se defender do real, não é mais a norma, mesmo se ainda haja pais e mães em torno dos quais o discurso se agarra mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, quanto a isso, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares

 


Referências
AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, out. 1999.
LACAN, J., “Os complexos familiares e a formação do indivíduo”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J., “Posição do inconsciente”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 849.
LACAN, J., “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”, Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, São Paulo, 2010, p. 31-32.
LACAN. J., O seminário, livro XXIII: o sinthoma, (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J-A., “L’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 72, nov. 2009.
MILLER. J-A., “Clinique ironique”, La Cause Freudienne, 23, fev. 1993, p. 7.
MILLER. J-A., “Um Real para século XXI”, O real no século XXI – Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum e Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
[1] MILLER J.A., “L’Autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique”, ensino pronunciado na cadeira do departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 20 nov. 1996, inédito.
[2] Ibidem.
[3] Em francês, PMA: Procréation Médicalement Assistée [N.T.].
[4] Cf. AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, octobre 1999, p. 85-117.

 


DOMINIQUE LAURENT
Psicanalista, AE da École de la Cause Freudienne (AMP) laurent.dominique@wanadoo.fr



EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 26

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RACISMO, CORPO E TRAUMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

NAYARA PAULINA FERNANDES ROSA
Psicanalista. Advogada atuante em conflitos agrários no Mato Grosso. Pesquisadora do núcleo PSILACS — Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo, da Universidade Federal de Minas Gerais. Integrante do cartel “Psicanálise e Segregação”, inscrito na Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais | paulinarosapsi@gmail.com 

Resumo: O presente artigo discorre brevemente sobre a incidência dos efeitos psíquicos do racismo contra negros no âmbito da identificação imaginária a partir da teoria do estádio do espelho. Fragmentos de casos clínicos ilustram a proposição de que, no momento em que o sujeito é nomeado negro pelo outro, se dá conta de que esse significante conjuga a representação de todas as imagens com as quais aquele que foi nomeado branco não deseja se identificar. Ao ser classificado como negro, o sujeito é fixado em uma espécie de “inferioridade epidermizada”. A escuta desse tipo de sofrimento — que envolve corpo, cultura e palavra — envolve a sutileza na evocação da singularidade da experiência traumática aliada à assertividade de não se recuar na luta antirracista, compreendendo-a como causa que concerne a também a nós, analistas de orientação lacaniana.

Palavras chave: Imagem; corpo; trauma; identificação.

Abstract: The author relies on the tale Bartleby, the scrivener of H. Melville, to develop the notion of stranger based on the singularity of the main character and indicates how the presence of this real opacity participates in all existence and in humanity itself. His analysis is divided into three times and perspectives — irony, ethical dimension and tragedy — highlighting Bartleby’s subjective position in relation to the social bond. Bartleby represents this real excluded from the symbolic dimension, which never ceases to be written, not without consequences, and ironically exposes the essential uselessness of existence and its condition of similarity that affects everyone Abstract: This article briefly discusses the psychic effects of racism against blacks in the context of imaginary identification, based on Jaques Lacan´s theory of the mirror stage. Some fragments of clinical cases illustrate the proposition that at the moment when the subject is named by the other as “black”, he realizes that this signifier combines the representation of all images with which the white does not wish to identify himself. When being classified as “black” the subject is fixed in a kind of epidermized inferiority. Listening to this type of suffering — which involves body, culture and words — involves subtlety in evoking the singularity of the traumatic experience coupled with the assertiveness of not retreating in the anti-racist struggle, understanding it as a cause that also concerns us, Lacanian analysts.

Keywords: Image; body; trauma; identification

Imagem: Jayme Reis

 

O objetivo do presente artigo é discorrer sobre alguns aspectos dos efeitos psíquicos da discriminação racial contra negros no Brasil abordando a dimensão traumática do processo de identificação imaginária desses sujeitos.

Para tanto, valer-me-ei de fragmentos de casos atendidos em consultório particular nos anos de 2019 e 2020 a partir da abordagem lacaniana da constituição do “eu”.

É corrente na fala de pessoas negras ouvidas em análise narrativas de sofrimento experimentado durante a infância, sobretudo em situações vividas nas escolas e demais ambientes de convivência entre crianças, professores e tutores, nas quais o sujeito foi impedido de representar determinados papéis em brincadeiras ou encenações teatrais sob o argumento de que sua imagem corporal não condizia com as características da personagem a ser representada.

Alguns desses relatos dizem respeito à impossibilidade de a criança interpretar, por exemplo, um anjo durante as celebrações cristãs, ou mesmo princesas e príncipes em peças de teatro escolar. A principal justificativa dada tanto por colegas quanto por tutores é que não existem anjos, príncipes ou princesas negros.

Essas experiências eram narradas como momentos angustiantes em que os sujeitos eram acometidos por um forte sentimento de rebaixamento e humilhação que, com frequência, eram trazidos nas sessões, como nos seguintes excertos clínicos:

A. 22 anos: “Em casa a minha avó me dizia que eu era bonita, mas na escola era diferente. Eu era feia. Riam do meu cabelo. No dia da formatura a professora pediu para eu molhar e prender meu cabelo para não atrapalhar a foto. Senti muita vergonha.”

I., 79 anos: “Quando eu era pequena não me deixavam participar da coroação de Maria. Onde já se viu anjo preto? Filho de negro é urubu, diziam.”

A classificação entre raças não tem qualquer embasamento biológico ou científico, mas funciona como um marcador social que determina quais lugares os corpos não brancos são autorizados a ocupar e a quais imagens tais corpos podem se identificar.

Como podemos observar nas narrativas acima, desde as experiências infantis, as imagens popularmente representativas de bondade, nobreza e pureza — como evocam as figuras de anjos e princesas — são retiradas do horizonte de identificações imaginárias de pessoas negras.

Para nos debruçarmos sobre o atravessamento racial na constituição subjetiva a partir da orientação lacaniana, na qual o eu é uma instância eminentemente imaginária, tomaremos como referencial teórico o estádio do espelho.

Essa proposição se baseia em experiências empreendidas no campo da ótica tomando como referência o modelo dos espelhos côncavos. O espelho representaria o olhar do outro materno, uma vez que, entre esse outro e o bebê, há uma espécie de sincronia corporal (LACAN, [1966], 1998):

O espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por um suporte humano ou artificial (o que chamamos, na França, um trotte-bébé, um andador), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio para sustentar sua postura, numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem.

De maneira bastante sintética, podemos afirmar que o estádio do espelho é constituído por três tempos. Em um primeiro momento, a criança olha para a imagem refletida no espelho e experimenta um estranhamento, pois a imagem visualizada não corresponderia à imagem de si mesmo, mas a outro bebê, dado que seu nível de maturação psíquica não permite ainda a apreensão da imagem virtual como correspondente ao corpo próprio.

Já o segundo momento é marcado pela confusão entre a imagem refletida e a própria criança. Seu corpo é contemplado através de partes dissociadas, prevalecendo certo transitivismo entre o reflexo e o eu próprio.

No terceiro tempo a criança é capaz de perceber a correspondência entre a imagem refletida no espelho e seu corpo, apreendendo o valor simbólico da imagem como representativa de si, havendo, enfim, a integração entre a imagem virtual e a imagem real (LACAN, [1966], 1998):

A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade — ou, como se costuma dizer, do Innwelt com Umwelt. Mas essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do organismo em seu seio, por uma discordância primordial que é traída pelos sinais de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação. Desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica. O rompimento do círculo do Innwelt para o Umwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do “eu”.

É relevante considerar que a integração simbólica da imagem depende do olhar do outro materno como confirmação do reflexo visto no espelho pela criança. É através do olhar do Outro que a criança se reconhece, pelo que a alteridade é uma condição fundamental de constituição do eu enquanto instância imaginária.

Os excertos das narrativas dos pacientes descritos acima dizem respeito ao valor simbólico da imagem corporal apreendido após o estádio do espelho. Esses acontecimentos são vividos pelos analisandos como momentos de intensa angústia, em que a imagem própria adquirida pelo sujeito é tida como incompatível com a representação de certos papéis que estariam reservados para indivíduos de pele branca.

Segundo os relatos, no instante em que eram confrontados com essa suposta incompatibilidade — enunciada tanto por outras crianças quanto por alguns tutores —, os sujeitos se davam conta de que portavam em seu corpo a materialização de algo tido como indesejável: a pele escura, o cabelo crespo, o formato dos lábios e do nariz passavam a ser tomados como características representativas de um suposto excedente, do resto repulsivo e inconciliável com a imagem ideal da branquitude.

Seguindo a perspectiva lacaniana, podemos considerar que o enunciado dessa suposta incompatibilidade entre o eu e o ideal imaginário representativo das personagens citadas adquire, para o sujeito, um valor traumático, na medida em que “o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua” (MILLER, 1997). Com efeito, é o choque entre o significante e o corpo do falasser que confere o valor traumático às experiências narradas.

Nos fragmentos de casos anteriormente relatados à nomeação de cada sujeito enquanto “negro”, acarretou um problema central no caminho de suas identificações, decorrente da disjunção entre a imagem especular e o real de seu corpo.

O significante “cor negra”, em tais casos, evoca uma angústia que retorna na forma de ódio sobre o corpo próprio e nas constantes tentativas de adequá-lo ao ideal branco. Com isso, podemos nos indagar se a nomeação dada pelo outro exerceria um efeito de retroação desintegradora às primeiras fases do estádio do espelho, pois os afetos experimentados pelo sujeito parecem incidir sobre seu corpo no limiar de uma ruptura. Ilustramos essa proposição com o seguinte fragmento de caso:

Não é difícil para mim, enquanto psicanalista, enumerar situações em que pacientes, em suas sessões, expressam esses fantasmas. Como M., que me dizia: “Precisava quando criança tomar vários banhos para tirar a minha sujeira”. Ou C., uma secretária negra: “Preciso estar sempre apresentável e ser eficiente, para que não me chamem de negra; não suportaria. Quando imagino essa situação, sinto meu corpo rachando e sumindo no chão, como nos desenhos animados (NOGUEIRA, 1998).

O sujeito se constitui através do olhar do outro, que lhe fornece o horizonte de identificações possíveis. Para alguns sujeitos negros, esse horizonte de identificações é reduzido na medida que, desde a infância, lhe é recusada a possibilidade de ocupar espaços e representar papéis que seriam exclusivos para pessoas de pele branca.

Não se pode negar a raríssima presença de pessoas negras em cargos de notoriedade e liderança nas instituições, nas campanhas publicitárias e nos espaços frequentados pela elite. Nesses locais, os poucos negros presentes na cena estão geralmente numa posição servil, uniformizados para se integrarem ao ambiente como parte do serviço oferecido: manobristas, babás, faxineiras, garçons.

Na conjectura econômica, política e cultural brasileira, a palavra “negro” remete não apenas a uma categoria social, mas também a uma categoria imaginária que passa a se confundir com o real na medida em que a cor da pele e o desenho de seus traços é o estigma da diferença: a epidermização da inferioridade (FANON, 1952).

É recorrente, portanto, que o sentimento de humilhação e de ódio contra o corpo próprio estejam presentes nessas narrativas do sofrimento desses analisandos.

O que está em jogo é, sobretudo, a dimensão traumática do choque entre corpo e significante. A nomeação “negro” nos casos acima citados culminou na percepção do corpo próprio como inadequado, repulsivo, objeto de ódio e recusa.

As experiências de segregação racial levam a um tipo de sofrimento bastante específico que envolve cultura, palavra e corpo e, no caso do racismo contra negros, especificamente, a marca da discriminação é visível aos olhos posto que concerne exatamente à imagem de seu corpo — no que diz respeito à dimensão traumática do choque entre o corpo e o significante.

Contudo, é importante sublinhar a dimensão da singularidade no processo de constituição de cada sujeito na medida em que o significante tocará cada um de uma forma peculiar, diversa e única. A psicanálise não se coaduna com postulações totalizantes e seria incorreto afirmar que, para todos os negros, a experiência formativa da subjetividade se inscreve da mesma maneira.

Ressaltar a dimensão da singularidade da experiência, todavia, não importa que a psicanálise desconheça que o racismo concerne a todos nós enquanto sociedade, posto que seus efeitos deletérios se inscrevem continuamente, no campo público e privado.

Embora o setting psicanalítico não seja de modo algum um espaço de militância e de reparação de identificações fragmentadas pelo trauma, não se pode negar a potência revolucionária da palavra que dá testemunho e permite desenhar novos destinos.

Finalizo este artigo com uma precisa interpelação aos analistas, publicada na obra Racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (KON et al., 2017), que nos coloca frente aos impasses e à urgência em aliar ações antirracistas e a práxis psicanalítica:

É preciso a inauguração de uma psicanálise brasileira comprometida com a construção de uma clínica que não recuse a realidade histórico-social de nosso país e que leve em consideração o impacto dessa história na construção das subjetividades.

 


Referências:
FANON, Frantz. 1952. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. 2008.
NOGUEIRA, Isildinha Baptista. “Significações do Corpo Negro”. Tese de doutorado em Psicologia. 174 p. Universidade de São Paulo. 1998.
LACAN, Jaques. 1966. “O estádio do espelho como formador da função do Eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
MILLER, Jacques-Alain. “Uno por uno”. Revista Mundial de Psicoanálisis. nº 45, 1997.
SILVA, Maria Lúcia da. “Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros”. In: KON, Noemi Moritz (org.) O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.



PSICANÁLISE ON-LINE COM CRIANÇAS

SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicóloga e psicanalista praticante. Membro da EBP-MG/AMP. Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e professora da Faculdade de Psicologia PUC-MINAS |
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: O artigo reúne pontos abordados na XXIV Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, em novembro de 2020. Discute o recurso aos dispositivos virtuais para sustentar a prática analítica com crianças durante a quarentena; articula-os aos aspectos da direção do tratamento, o manejo da transferência, o desejo e a presença do analista; aborda algumas vinhetas da clínica do unheimlich a partir dos relatos de crianças e adolescentes em análise e, por fim, verifica como o discurso analítico é aquele que pode acolher os efeitos do encontro com o estranho junto às crianças e adolescentes.

Palavras-chave: crianças em análise; discurso; Skype; desejo do analista; efeitos clínicos do unheimlich

Abstract: This article gathers some points that were raised in in the XXIV Conversation of the Clinical Section of IPSM-MG in November 2020. It discusses the use of virtual devices to sustain the analytical practice with children during quarantine; it articulates them with aspects of treatment direction, transference management, desire and presence of the analyst; addresses some vignettes of the unheimlich clinic through the reports of children and adolescents under analysis, and verifies how the analytical discourse is one that can accommodate the effects, on children and teenagers, of the encounter with the uncanny.

Keywords: children in analysis; Skype; analyst’s desire; clinical effects of the unheimlich.

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Na civilização em que o Nome-do-Pai se evapora, os objetos e as imagens pululam e saturam o cenário subjetivo, muitos dizem que o virtual chegou para ficar e acenam, com certo júbilo, para o “novo mundo” pós-pandemia, no qual a virtualidade reinará. A subserviência do falasser à imagem, descrita na conferência de 1974, “A terceira”, parece se impor como destino. A pergunta de Lacan, não tão familiar à realidade dos anos setenta, torna-se inteiramente afinada com nosso tempo. Referindo-se ao futuro da psicanálise e à ciência, Lacan indagava: “As bugigangas, por exemplo, será que realmente tomarão a dianteira? Chegaremos a nos tornar nós mesmos realmente animados pelas bugigangas”? (LACAN, [1974] 2011, p. 34). Podendo alcançar a dignidade de um sintoma, o fato é que os gadgets constituem recurso para o sujeito contemporâneo desamparado do Outro.

Após um ano de pandemia devastadora, a psicanálise se vê às voltas com sua sobrevivência no mundo em que o futuro suposto por Lacan nos anos setenta parece já ter chegado. Podemos dizer que, não fossem os recursos propiciados pelos dispositivos on-line, o discurso analítico teria cedido ao pior.

A psicanálise com crianças se interroga: quais seriam as condições preliminares para atendermos as crianças on-line? Como podemos considerar o manejo da transferência, a presença do analista?

Nosso setting é o discurso analítico

A psicanálise com crianças, enquanto prática de extensão da psicanálise aplicada, fez das mudanças no setting analítico clássico questões de técnica e de política. Os seguidores de Melanie Klein e de Anna Freud protagonizaram esse debate. Anna Freud, como se sabe, realizava sessões na casa das crianças. Ela tinha uma concepção da especificidade da transferência da criança e tinha lá suas estratégias de manejo da transferência negativa. Por exemplo, ela relata uma fantasia de transferência positiva de um menino obsessivo de seis anos como efeito de uma manobra transferencial, ou seja, visitá-lo em sua própria casa e lá permanecer durante seu banho da tarde. A criança lhe disse: “a senhora me visitou no meu banho e da próxima vez que vier vou visitá-la também no seu banho” (FREUD, A. 1971, p. 57). De fato, o que Anna Freud comemorou foi o sonho diurno que a criança teria feito antes de dormir e após sua visita.

A questão atual, sobre a qual a psicanálise com a criança propõe conversar, não é a especificidade da técnica adaptada à criança, tampouco a questão de um novo setting. Esse último foi um problema dos pós-freudianos, um ponto há muito superado, tal como mostram as palavras de J.-A. Miller em Sutilezas analíticas: “o setting é um conceito barroco, que mistura dados de estrutura e dados secundários como o espaço físico, o número de entrevistas, etc. Não se trata, pois de setting, senão de discurso analítico” (MILLER, J.-A. 2011, p. 30–31).

Uma referência importante para esta conversa é a revista La cause du désir, intitulada Internet avec Lacan. Os artigos ali publicados orientam o psicanalista a se servir do on-line na sua prática quando as circunstâncias assim o requerem. No entanto, indicam que não há razões para nos contentarmos com esses recursos, visto que constituem uma limitação do encontro pela subtração do corpo real na virtualidade. Em uma entrevista, Éric Laurent afirma: “é preciso se servir do Skype para em seguida dispensá-lo” (2017, p. 18). Outras vozes se somam a essa.

No artigo “Lembrar a psicanálise”, Gil Caroz discute essa orientação considerando que ela faz eco com o uso do Nome-do-Pai que Lacan propõe após o desvalorizar e o tornar puro semblante: prescindir do Nome-do-pai com a condição de nos servirmos dele.

Skype e outros meios de comunicação à distância, sinthomas da cultura de nosso tempo, podem ser considerados como uma ponte construída sobre a não-relação sexual, com a condição de que se possa, em seguida, prescindir dela, ou seja, com a condição de que uma presença se torne possível em outro momento (MILLER, J.-A. 2011, p. 250).

A conversa por Skype não equivale ao encontro presencial, ela é a sua evocação. O psicanalista acrescenta que, se “admitimos que o real e o gozo são o resultado de um encontro entre o significante e o corpo falante, somos levados a constatar que a presença é indispensável para tocar o real” (CAROZ, G. 2020). Essas pontuações, que levam em conta a dimensão do falasser, traduzem a orientação de Miller em Sutilezas analíticas: “quando pensamos que são todos sujeitos do significante, resulta simples, se faz análise por telefone” (2011, p. 250).

Consonante com essa ideia, cito palavras de M.-H. Brousse:

(…) certamente, os meios oferecidos pela tecnologia permitem, por certo, e até mesmo encorajam, o recurso a uma densa rede de trocas de palavras virtuais, a um banho de imagens e mensagens proliferentes. Não são mais corpos que falam, é um falado sem corpo. É óbvio que é melhor que nada (BROUSSE, M.H. 2020, p. 26).

Servir-se do Skype para prescindir-se dele pode, portanto, ser articulado a dois operadores do discurso psicanalítico, a saber, o desejo do analista e a presença do analista.

Mesmo durante a guerra, que afetava Freud diretamente, a psicanálise não recuou. Lacan, por sua vez, nos transmitiu, particularmente, no seminário 11, como a abertura do inconsciente depende da presença do analista. Ao falar do inconsciente como pulsação sustentada pela causa do desejo, abertura e fechamento, das resistências que fecham essa hiância podendo obstaculizar a análise, diz: “Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud, é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha dessa perda” (LACAN, [1964] 1985, p. 122). É nesse seminário também que Lacan enuncia o desejo do analista como operador maior da psicanálise. Temos, então, dois operadores colocados no manejo da transferência — o desejo do analista e a presença do analista —, com os quais podemos nos orientar no acolhimento das demandas das crianças, de modo singular, em cada caso.

As demandas que vivificam a psicanálise com crianças

A pandemia afetou a vida das famílias e das crianças. Para alguns pais, tem sido causa de angústia desencadeada pela presença excessiva dos corpos confinados. Para outros, de modo surpreendente, a quarentena tem sido causa de descobertas no convívio com os filhos. Verificamos que a demanda das crianças à psicanálise acontece! Cabe ao discurso analítico reinventar seus meios para acolhê-la. Destacamos a demanda para atendimento de crianças na primeira infância, na aurora da entrada no discurso, com sintomas do corpo sem o Outro, a exemplo de agitações, dificuldade para dormir, gritos, agressão ao próprio corpo e ao corpo materno, irrupção de cólera.

Em alguns desses casos, pude verificar que o que estava em jogo era, fundamentalmente, os impasses na constituição do lugar do Outro como intérprete do que se passava com a criança. O temor maior dos pais era de que estivessem diante de uma criança autista. Estariam as crianças de hoje ficando reais demais para o Outro? Ou as funções de interpretação e de transmissão atribuídas ao Outro parental estariam sendo debilitadas pela intervenção do discurso do mestre contemporâneo? Diante disso, nada melhor do que viabilizar que a criança seja falada por seus pais e que o analista opere viabilizando o enlaçamento do infans a seu Outro.

A condição para a constituição do lugar do Outro é a operação de mutação do real em significante, o que requer a tradução do Outro. Sem a mediação do Outro, a criança permanece no estado de tensão, sem contar com a ação do “nebenmensch freudiano”, a saber, o outro da ação específica, que é ação de linguagem. Freud já nos dizia que o desamparo inicial dos seres humanos, que requer justamente o Outro, é “a fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD, 1895/1976, p. 422).

No caso de Paulinho, o jogo do fort-da sob transferência traduziu seu engajamento nas operações de constituição subjetiva. Aos quinze meses de vida, ele buscava, não sem violência, extrair algo do Outro através de repetitivos atos agressivos contra o corpo do Outro materno, além do uso de pouquíssimas palavras e constantes gritos-demanda à espera da ação específica. Após contato virtual com a criança e a família, na presença da analista, Paulinho inaugurou um movimento de ocultação, de ir e vir, que colocou em jogo o recurso ao objeto olhar. Interessando-se pelos brinquedos que lhe foram oferecidos, ele vai ensaiar um afastamento do Outro materno para se envolver com os objetos, não sem um chorinho endereçado, que claramente podia ser lido como “pode o Outro me perder?”. Em seguida, Paulinho se volta para a analista com um significante: “neném”. Assim como o neto de Freud, o menino ilustra, com seu fort-da, como a castração impõe a articulação da linguagem e faz com que uma palavra tenha que se articular a outra para produzir sentido, não sem uma perda de seu valor de gozo autoerótico.

O caso de Paulinho vivifica a psicanálise ao nos remeter ao capítulo de “Além do Princípio do Prazer” (1920) no qual Freud discutiu a observação de seu neto de um ano e meio de idade. Ao situar-se como falasser na linguagem, o infans deve consentir com um primeiro modo de exílio, a saber, a perda da sua simples natureza de um ser vivo. Para se constituir enquanto ser falante, inserido num discurso e num laço social, há que se renunciar ao gozo primitivo do ser em troca da representação pelas palavras do Outro. O exílio inerente à entrada na linguagem implica que o Outro primordial, que transmite a língua e, com ela, a interpretação das necessidades do infans, transmite também um furo, ou um mal-entendido estrutural ligado à própria operação de tradução. A própria equivocidade do significante introduz o mal-entendido no diálogo entre os seres falantes, o mal-entendido próprio da ação específica do Outro.

É bastante significativo o modo de Freud definir esse jogo infantil: “grande realização cultural da criança, a renúncia pulsional (isto é, a renúncia à satisfação pulsional) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar” (FREUD, 1920/1976, p. 27). A observação freudiana é ilustrativa do acesso do falasser ao saber através da incorporação da estrutura da linguagem, segundo a qual a oposição de dois significantes, S1 e S2, inscreve repetidamente a perda do objeto inaugural do sujeito dividido. Trata-se do momento da humanização do desejo, aquele no qual a criança nasce para a linguagem.

“O jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio — a borda do seu berço — isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN, 1964/1985, p. 63). É tomando apoio sobre os objetos da pulsão que a criança salta as fronteiras de seu domínio, seja a com a voz, seja com o olhar, seja com objetos dos quais o sujeito poderá fazer uma causa. É com essa pequena coisa que se destaca do corpo, que o carretel representa, que o ser falante opera a separação: “aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura — onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a auto-mutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva” (LACAN, 1964/1985, p. 63).

Disso decorre a importância de uma clínica do fort-da, isto é, uma clínica das relações do sujeito com o significante e com o objeto, particularmente, ali onde irrompe a angústia de separação junto às crianças na primeira infância. Para algumas crianças, o discurso psicanalítico permite inscrever o S2 a partir do enlaçamento transferencial. Para as famílias confinadas, o fort/da não seria orientador do tratamento da relação da criança ao espaço, ao Outro? Esse jogo não seria operador ali, onde, devido ao confinamento dos corpos, o objeto a pode invadir a cena fantasmática, desconfigurando-a e desencadeando a angústia? Considerando, sobretudo, a criança tomada no autismo do gozo, isto é, crianças sem o Outro, o fort/da pode constituir uma orientação.

Vinhetas da clínica do unheimlich

Falar de uma clínica do unheimlich em tempo de pandemia parece até redundante, visto que estamos cotidianamente expostos aos efeitos do estranho. Tomando como referência a leitura do artigo de Freud “O estranho” (1919), com Lacan, no seminário 10, podemos ordenar os acontecimentos clínicos em jogo no unheimlich. Tal como proposto em Os objetos a na experiência psicanalítica, trata-se de abordar “a relação objeto a-unheimlich” (FURMAN, M. 2008, p. 347).

Os efeitos de unheimlich surgem quando o objeto a, que já estava domesticado, enquadrado pelo cenário da fantasia — e que implica o que não pode ser dito pelo significante, o que carece de imagem especular — faz sua aparição. Essa presença revela o que a preferência pela imagem junto ao falasser costuma esconder. O objeto pulsional, separado do corpo e situado no campo do Outro, retorna ao campo do sujeito fazendo sua aparição ali onde deveria estar a castração. Ocorre então um prejuízo da topologia da extimidade do objeto com relação ao Outro, segundo a qual o objeto é interior e exterior ao Outro, um furo. A perda da extimidade é responsável por uma série de perturbações na relação com o corpo, com o espaço e com o outro, que produzem efeitos de estranheza.

Considerando que o objeto olhar se encontra, de maneira privilegiada, no âmago do campo virtual, recolho algumas vinhetas da clínica do unheimlich para a conversação.

A menina do “coronavista”

No princípio da quarentena, tendo sua análise interrompida, Ana se entristece. Não queria frequentar as aulas on-line. Curiosamente, essa recusa emerge no cenário o mais familiar de Ana, pois, aos 7 anos, ela já tinha seu canal no YouTube e cerca de 4.000 seguidores no Instagram. Nesse canal, ela apresenta receitas para um tipo de intolerância alimentar. Desde bebê, esse sintoma a colocou sob o olhar vigilante da mãe, devido aos riscos das iminentes crises de intoxicação. Na sessão on-line, Ana reclama de não poder sair, ir à escola, ver as amigas. Ela diz: “não aguento mais esse ‘coronavista’”. Para Ana, o olhar tratado pela fantasia e enlaçado ao Ideal do Outro foi uma construção de sua análise. Ao retomar o trabalho, ela segue projetando sua carreira futura ao dizer que se prepara para ser uma influenciadora.

O encontro unheimlich no autismo

Sem a inserção num discurso estabelecido, a realidade é, constantemente, uma inquietante estranheza para os autistas. A linguagem os inquieta e lhes é absolutamente estranha. Vou destacar, no caso de João, onze anos, os impasses de um autista com os encontros virtuais. Apesar da transferência ao lugar de suas sessões, nomeado por João “lar doce lar”, na quarentena, o trabalho sofreu impasses. No primeiro contato no Skype, ele ficou conectado por pouquíssimos minutos, aparelhando-se por meio de outra tela, a da TV, compartilhando um desenho animado. O segundo durou o tempo suficiente para uma pergunta sobre como estavam seus animais, referindo-se aos objetos-duplos que, no consultório, promovem a mediação e a animação de sua fala. Sem os recursos disponíveis antes da quarentena, o encontro virtual suscitou, de início, efeitos de unheimlich. O espelho do autista é unheimlich devido à não extração do objeto olhar e à falta da montagem do circuito da pulsão escópica, o que compromete a relação ao virtual.

Superadas as primeiras dificuldades, João consentiu com as sessões on-line. De maneira surpreendente, ele se serviu do Skype para falar dos seus “segredos”, a saber, histórias do seu “mundo escondido”. Até que, mediante seu pedido, a presença do analista foi reintroduzida.

Conclusão

Nem todo tratamento analítico é possível através dos dispositivos tecnológicos de conexões, visto que o real da psicanálise não é o real da ciência. Mas o encontro analítico é sempre uma possibilidade! O que se escreve mediante a contingência dos encontros se torna decisivo para o manejo do desejo do analista e de sua presença em cada caso. Por fim, verificamos como o discurso analítico é aquele que pode acolher os efeitos do encontro com o estranho junto às crianças e a suas famílias.


Referências: 
BROUSSE, M. H. “Solidão dos corpos”, Correio. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 84, 2020, p. 25–34.
CAROZ, G. (2020) Lembrar a psicanálise, Correio Express. Disponível em: http://www.escolabrasileiradepsicanálise. Acesso em 15 jan. 2021.
FURMAN, M. “Unheimlich” In: Scilicet: Os objetos a na experiência psicanalítica, Rio de Janeiro: Contracapa, 2008.
LACAN, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanáliseRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. “A terceira”, Opção Lacaniana. São Paulo: Eólia. nº 62. 2011, p. 11-36
LAURENT, E. “Jouir D´Internet”, La cause du désir. Paris: Navarin Editeur, nº 97, 2017, p. 11-21.
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticasBuenos Aires: Paidós, 2011.



NÃO É UMA BRINCADEIRA DE CRIANÇA[1]

PRERNA KAPUR
Psicóloga de orientação psicanalítica em Delhi, Índia.| prerna.058@gmail.com

Resumo: Neste artigo, a autora aborda os impactos do confinamento sobre seu trabalho clínico com crianças. Sem os objetos que circulam nos atendimentos presenciais, questiona-se sobre como seria possível dar continuidade aos atendimentos por plataforma de vídeo. Utiliza fragmentos de um caso clínico para pensar a presença do analista e como, para alguns sujeitos, áudio e vídeo podem servir como recurso para novas invenções e laços.

Palavras-chave: coronavírus; clínica; criança; atendimento on-line.

Abstract: In this article, the author addresses the impacts of the lockdown on her clinical work with children. Without the objects that circulate in the face-to-face sessions, she questions herself how it would be possible to continue the sessions through video plataform. She uses fragments of a clinical case to think about the analyst’s presence, and how, for some subjects, audio and video can be used as a tool for new inventions and forms of social bond.

Keywords: coronavirus, clinic, child, online sessions.

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Durante o período de confinamento, meu trabalho com crianças foi o mais afetado. As escolas tomaram medidas preventivas algum tempo antes da proibição do governo. Sem que as crianças fossem informadas adequadamente, separamo-nos fisicamente por um período incerto de tempo.

Na prática privada, os pais desempenharam um papel importante ao decidir se seus filhos poderiam ou não continuar os atendimentos por meio de uma plataforma de vídeo.

Pessoalmente, cruzei os dedos para que ninguém fizesse tal demanda, pois nunca tinha trabalhado on-line com crianças e previa que seríamos sobrecarregados sem objetos como brinquedos, jogos, trabalhos artísticos, livros etc. circulando entre nós.

No entanto, senti-me pressionada a continuar os atendimentos com uma menina cujos pais me procuraram quando seus sintomas se agravaram durante o confinamento. Sem entrar em muitos detalhes do caso, gostaria de apresentar dois pequenos exemplos de nosso trabalho em chats de vídeo que foram experiências formidáveis ​​para mim.

Ofidioglossia[2]

Harry Potter, o escolhido, sabe com certeza que é escolhido quando pode falar língua de cobra. Na primeira vez, ele nem sabe disso. Está alheio ao fato de que falava uma língua diferente.

Essa menina, uma fã recente da série de filmes do Harry Potter, tinha dificuldade com a linguagem em tempos de crise. Quando estava chateada, recorria a sons e gritos enquanto seu corpo agitava e tremia.

Ainda não havíamos enfrentado esse tipo de cenário no tratamento enquanto ela visitava minha clínica pessoalmente. Ele surgiu pela primeira vez on-line.

Ela perguntou se eu tinha feito o que ela havia me pedido e eu respondi com um leve “não”, mencionando que estive ocupada e pensei que faríamos isso juntas. Foi um “não” suficiente para aborrecê-la. Ela desligou a câmera e fungou alto. No entanto, ela não desligou a chamada.

Nas sessões anteriores, estávamos trabalhando com fantoches. Ela fez um para si mesma; eu fiz um para mim. Seu fantoche estava destinado a ser uma senhora elegante, de origem americana e estilo italiano. Isso é importante, pois sua família tem linhagem italiana. Eu me inspirei em Harry Potter e fiz Nagini, a cobra. Foi no citado momento de ruptura entre nós — a criança e a terapeuta — que Nagini veio em nosso socorro. Falei com sua marionete, a Srta. X, a escolhida pela paciente, como Nagini: em língua de cobra. Quando ela parou de chorar, sussurrei em meias palavras, meio língua de cobra, dizendo como eu era boba por não me lembrar de algo tão importante para ela.

Lentamente, ela respondeu não em palavras, mas por escrito, me mandando uma mensagem de texto para me informar que a “Senhorita X está bem”. Nagini então usou pequenas frases em italiano para impressionar a Srta. X. e iniciar uma nova conversa. A história continua, graças à língua de cobra e ao italiano, duas novas línguas entre nós, além dos objetos. 

Retratos em movimento 

Tive um estranho encontro com o lugar (posição) que ocupei durante essas sessões de vídeo. Uma vez, seu telefone caiu da cama e ficou preso em uma pequena abertura entre a cama e a parede. Ela chamou seu irmão e sua mãe para ajudá-la. Enquanto isso, eu estava fascinada com a visão que tinha, virtualmente presa nessa estreita abertura. A câmera estava apontando para cima quando seu irmão se inclinou e anunciou “Oi, estou aqui para te tirar daqui!”. Voilá! Percebi meu lugar — não havia mais distinção entre o terapeuta real (eu), sentado em uma sala aberta e minha imagem em movimento e falante em seu telefone, presa em uma fenda.

Todos os três fizeram referência a “me salvar” e “me tirar de lá”. Nenhum deles parecia muito preocupado com o instrumento, o telefone. Além disso, frequentemente, a paciente diz frases como “oops, você caiu”’, quando o telefone cai. Ela o coloca com cuidado e diz “’ok, agora você está bem”. Ou “vou colocá-la aqui por algum tempo enquanto vou buscar água”.

Objetos

Por um lado, a ruptura nos impulsionou a encontrar uma nova linguagem quando nos deparamos com a ausência de nossos corpos e objetos entre nós. Por outro lado, eu estava no lugar de ser um com o objeto. Na maioria das vezes, um objeto que ela cuida adicionalmente e, o mais importante, um objeto que ela pode controlar. Ela pode me desligar quando quiser.

Em vez disso, ela escolheu controlá-lo de forma diferente, para medir suas interações com os outros, para restringi-los. Ela se esconde desligando a câmera e tira sua voz com o botão mute.

A minha versão de retrato em movimento permite que ela me coloque exatamente onde ela quer que eu esteja. Por enquanto, estou confinada no telefone dela.

 

Tradução: Michelle Sena
Revisão: Cecília V. Gomes Batista

[1] Texto originalmente publicado em Lacanian Review Online, em maio de 2020. Disponível em: https://www.thelacanianreviews.com/its-no-childs-play.
[2] “língua de cobra”.



TECH-NO-ME, TECH-TO-ME[1]

RENATA TEIXEIRA
Psicóloga e psicanalista. Membro do Lacanian Compass, Flórida, EUA |
renatastoppini@icloud.com

Resumo: A autora aborda, neste artigo, como a irrupção da pandemia do novo coronavírus afetou sua prática clínica com crianças e adolescentes e a faz se interessar pelo mundo dos jogos digitais como uma ferramenta possível para a continuidade do tratamento via dispositivos eletrônicos. A partir de alguns extratos clínicos, localiza como o analista pode se fazer presente, mesmo que virtualmente, acompanhando as invenções e os laços de cada sujeito.

Palavras-chave: coronavírus, clínica, infantil, tecnologia, jogos virtuais.

Abstract: The author discusses, in this article, how the outbreak of the new coronavirus pandemic affected her clinical practice with children and adolescents, making her interested in the world of digital games as a possible tool for the continuity of treatment via electronic devices. From some clinical extracts, she finds how the analyst can be present, even if virtually, following the inventions and bonds of each subject.

Keywords: coronavirus, clinic, child, technology, virtual games.

 

Imagem: Jayme Reis

 

Antes da pandemia e do fechamento das escolas, estava trabalhando clinicamente com crianças de quatro a doze anos, na maior parte do tempo em seu ambiente escolar. Após a decisão do governo de fechar as instituições de educação, vi-me obrigada a iniciar atendimentos on-line utilizando dispositivos eletrônicos.

A psicanálise lacaniana implica o uso do corpo do analista como um instrumento para que o analisante construa semblantes de objeto a. Deparei-me, então, com uma pergunta: como interagir psicanaliticamente se minha presença se tornou filtrada pelas telas e microfones, especialmente com crianças e adolescentes que demandavam/exigiam o uso de jogos e engajamento físico durante suas sessões?

Observando o uso dos jogos on-line pelos jovens, incluindo a criação de avatares como novas modalidades de imagens do ego, decidi aprender sobre alguns desses recursos eletrônicos para interagir com eles enquanto temos nossas vozes conectadas durante as sessões. Aprendi a jogar Minecraft e Roblox.

Gustavo Dessal (2020), na conferência proferida ao ICLO-NLS (Irish Circle of Lacanian Orientation) no dia 23 de maio, intitulada “Nem anjos nem demônios: psicanálise e tecnologia”, comentou que, diferentemente da ciência, que postula os parâmetros do sujeito universal, as tecnologias estão interessadas nas individualidades. Elas tentam capturar algo das diferentes modalidades de gozo dos sujeitos traduzindo-as matematicamente pelo uso de algoritmos. Esses recursos, de acordo com Dessal, poderiam ter um ótimo nível de eficácia, similar à promessa de uma segunda vida, como a religião postulava no passado.

Enquanto me juntei a alguns dos meus jovens pacientes em seus jogos on-line favoritos, pude investigar como suas modalidades de gozo estavam implicadas na escolha de um determinado jogo e na maneira como o jogavam. É importante mencionar que nenhum deles apresentava uma adição aos jogos e que eram capazes de transitar entre um jogo e outro e de, eventualmente, parar de usar essa ferramenta nas sessões posteriores.

Com um paciente autista de doze anos, joguei Minecraft modo sobrevivência. Ele é um jogador habilidoso e algumas vezes me convidou para sua casa no jogo. Nós trocamos objetos simultaneamente enquanto jogávamos e ele mencionou, durante o jogo, que nunca expulsou ninguém de seu mundo e que não gostava quando jogadores avançados não conseguiam acolher os jogadores novos. Reconheci sua capacidade de aplicar as habilidades sociais criando um laço social com os jogadores. Essa habilidade não poderia ser muito explorada em sessões presenciais.

Outra paciente de onze anos, que apresentava uma relação conflituosa com sua mãe e que acabou por ir morar com o pai devido a explosões de raiva desta, escolheu jogar Adopte-me no aplicativo Roblox. Primeiramente, percebi que o título do jogo escolhido se relacionava com a relação materna conflituosa. Em seguida, percebi seu desejo de cuidar de mim e dos animais de estimação no jogo. Ela se encarregava de nos alimentar, levar os pets ao veterinário e levar todo mundo para diferentes lugares. Em uma sessão, mencionei sua posição materna no jogo e algo mudou na transferência. Ela decidiu parar de jogar esse jogo on-line e preferiu fazer slimes[2] durante as sessões me mostrando diferentes cores e texturas de suas produções utilizando a câmera.

Dessal (2020) também mencionou que os seres falantes são consumidores de metáforas. Mesmo antes da pandemia, os analistas podiam experimentar o uso massivo de jogos on-line pelas crianças e adolescentes para fazer amigos, inventar novas formas de laço ou usá-los de forma autoerótica. Minhas intervenções com esses pacientes visavam fazê-los falar enquanto jogavam. Aprendi somente o básico dos jogos, uma vez que minha intenção não era competir com eles. Por outro lado, deixava meus avatares serem guiados pelo terreno de seus jogos e, uma vez ali, deixava-os fazer uso de minha presença digital enquanto minha voz refletia os encontros nesses mundos imaginários.

Como tudo o que fazemos em psicanálise, investigamos os resultados, caso a caso, sem acreditar que estamos criando um método científico que trate da      universalização do ser. Contudo, como praticantes da psicanálise lacaniana, temos que trabalhar com demandas e recursos de nossa época e estar abertos ao desenvolvimento de novas modalidades de gozo que traduzam as impossibilidades do Real (MILLER, 2013).

 

Tradução: Cecilia V. Gomes Batista
Revisão: Michelle Sena

Referências:
DESSAL, Gustavo. Neither Angels nor Demons: Psychoanalysis and Technology. Webinar organised by ICLO-NLS, Ireland. May 20, 2020.
MILLER, J.A.; JAANUS, M. (Orgs.) “We’re all mad here”. Culture/Clinic, Issue 1. University of Minnesota Press. 2013.
[1] Texto originalmente publicado em Lacanian Review Online, em maio de 2020. Disponível em: https://www.thelacanianreviews.com/tech-no-me-tech-to-me. No título, a autora faz uso de um jogo de palavras que, em tradução livre, “tech-no-me” pode ser entendido como “tecnologia-não-eu”; e “tech-to-me” como “tecnologia-para-mim”.
[2] Nova massa de modelar que vem dominando a internet com receitas e texturas diferentes.



ENTREVISTA COM GUSTAVO DESSAL

Psicanalista. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise- ELP/AMP |
g.dess.esp@cop.es

Imagem: Jayme Reis


 

Almanaque: Em sua entrevista a Luis Salamone, no mês de abril, você disse que seria precipitado tirar conclusões sobre os atendimentos on-line e suas consequências. Agora, após oito meses, o que você pode dizer de suas percepções?

Gustavo Dessal: Em termos gerais, o resultado de minha própria experiência tem sido bastante satisfatório. Tenho descoberto que se pode manter uma análise empregando os meios telemáticos. Tenho a impressão de que os sujeitos que esperam da análise um benefício terapêutico, que não estão comprometidos com a formação analítica e só procuram um alívio de seus sintomas, se adaptaram muito melhor ao atendimento virtual. Talvez porque eles tenham menos preconceitos que os próprios psicanalistas e não se preocupem em estabelecer comparações. Para eles, é suficiente que esse método alternativo lhes sirva, lhes ajude a resolver seu sofrimento e lhes dê uma saída aos seus sintomas. Isso, sem dúvida, é algo que pode ser feito. Foi muito surpreendente para mim, e aconteceu a muitos colegas com quem conversei, que os analisantes que também são analistas (e que, como todos, têm atendido a seus pacientes on-line ou pelo telefone) sejam os que mais recusaram a possibilidade de continuar as suas análises desse modo. Ou seja, não para eles, mas para seus pacientes, sim! Ainda não tenho uma explicação para isso.

Dito isso, é evidente que uma análise por meios telemáticos não seja algo que possa substituir o encontro real. Não me parece que possam ser consideradas opções equivalentes, mas não acho que as sessões on-line tenham sido apenas um recurso alternativo, um substituto ante a impossibilidade de fazê-lo de outra forma. Foi assim que começamos, sem dúvida, forçados pelas circunstâncias. Mas agora devemos nos perguntar se o que podemos extrair dessa experiência é somente isso, que tem sido “melhor algo que nada”.

Penso que não é assim. Até agora, a psicanálise era uma prática que não havia sido afetada em quase nada pela tecnologia. Era uma espécie de “reserva natural”, em que se realizava uma tarefa que, em seus elementos fundamentais, não havia mudado em um século. O que aconteceu foi um questionamento de nosso dispositivo clássico. Não pudemos encontrar os pacientes pessoalmente. Tivemos que receber nossos honorários por meio de plataformas bancárias. De repente, toda uma série de questões que acreditávamos imutáveis, inquestionáveis e que faziam parte da “essência” da psicanálise, por assim dizer, sofreram modificações, e aconteceu de termos de colocá-las em suspenso e revê-las. Toda a vida, em seu conjunto, não voltará a recompor-se como era antes da pandemia. Foram introduzidas mudanças que, inicialmente, se implementaram como medidas emergenciais, mas, agora, vemos que modificarão de forma duradoura o panorama geral de como se trabalha, se estabelecem relações, se compra, se aprende, se ensina, se oferece atenção médica, etc. Do mesmo modo, a experiência que tivemos como analistas vai produzir mudanças permanentes. Quando o vírus for derrotado, um psicanalista poderá — e estará em todo seu direito — voltar a sua prática tradicional e não aceitar nenhum tipo de solicitação de atendimento on-line. Mas muitos outros o farão, e isso é algo que gradualmente mudará o padrão clássico. Se isso for acompanhado de uma discussão permanente sobre as consequências teóricas e clínicas, parece-me que estaremos perante a possibilidade de nossa prática manter uma conexão mais próxima com o mundo atual. Uma conexão crítica, é claro, uma conexão que não consista simplesmente em aderir à tendência geral que celebra o “tudo on-line”. Claro que não se trata disso. Mas insisto que não podemos reivindicar para nós uma prática que se mantenha fechada na bolha de uma pureza excepcional.
A.: Em relação a essas variáveis, a impossibilidade de escolha de uma outra forma de atendimento e os efeitos subjetivos da pandemia, que se impunham como temas prevalentes nas sessões on-line, como você tem percebido/avaliado a continuidade dos processos de análise após esse período?

G.D: Suponho que cada analista tenha uma visão diferente do que aconteceu na sua prática. A maioria dos meus pacientes, após um período inicial, em que a pandemia e o confinamento foram o tema principal, retomaram suas preocupações habituais. Para muitos, o assunto covid não foi motivo para distraí-los dos sintomas e fantasias que constituem o fundamental de seu trabalho analítico. Em certos casos, o confinamento ou o medo de adoecer desencadearam mal-estares latentes que, sob a nova situação, vieram à tona. Relacionamentos que foram afetados porque a convivência permanente revelou questões que já estavam em jogo. Algo semelhante ao que aconteceu no mundo. A pandemia mostrou a face oculta de cada sociedade, e o que vimos não foi muito agradável, podemos dizer…

Na Espanha, em particular, pude voltar ao meu consultório em junho do ano passado. A maioria das pessoas retomaram as suas sessões presenciais, mas mantêm-se on-line ou por telefone os que não moram em Madrid ou estão fora da Espanha. Esses analisantes costumavam vir mensalmente e tinham várias sessões em um ou dois dias. Agora, com as restrições dos voos e meios de transportes, somado à insegurança de viajar, continuam on-line. Mas mesmo nas análises que voltaram presencialmente, o recurso do telefone ou videochamada não desapareceu completamente. Durante a semana, sempre tem alguém que me solicita fazer a sessão virtualmente porque surgiu um imprevisto. Antes, isso significava que a sessão era cancelada e você tinha que procurar outro horário. Agora, essa possibilidade tem feito com que as ausências diminuam de forma notável. Esse é um ponto delicado, que deve ser avaliado um a um. O problema é que a opção telemática pode se tornar uma resistência para vir ao consultório, e que, como toda resistência, sempre pode haver um motivo aparente para passar do presencial ao virtual.

 

A.: Como tem sido o desafio de fazer existir a presença e o ato do analista nos atendimentos virtuais? Como o imprevisto, a contingência se presentifica nas sessões on-line? Há que se apostar mais na voz? Que lugar a tela passa a ocupar no setting analítico?

G.D: A presença do analista. Tenho insistido muito nisso, que não se confunda com a ideia ingênua da presença física no consultório. Um analista pode estar fisicamente presente, mas isso não garante que sua função esteja. A presença do analista tem uma relação direta com o conceito de “desejo do analista”. Não acredito que o desejo do analista vá desaparecer porque a sessão é feita por telefone, por exemplo. Freud fazia supervisões por correspondência. A contingência tampouco desaparece. Por que haveria de desaparecer? Acontecem coisas curiosas. Desde o paciente que não encontra seu telefone, ou a conexão da internet que cai, até a entrada de uma pessoa que mora com o paciente e interrompe a sessão, sem querer. Os efeitos de surpresa na fala do sujeito também ocorrem na tela. Há aqueles que preferem usar o telefone, sem a imagem, e outros que se sentem melhor ao ver o analista na tela. Da mesma forma que nas sessões clássicas, ofereço a alguns pacientes o uso do divã, mas não o imponho de forma alguma, deixo que cada um escolha o método de comunicação que deseja.
A.: A onipresença da tecnologia digital provocou, especialmente entre os mais jovens, uma adesão incondicional às relações sociais virtuais como uma nova forma de adição. Para tais sujeitos, viver no mundo virtual se tornou uma forma de suportar “as inclemências da vida”. Como um novo sintoma que vemos se estabelecer, você vê a possibilidade de que, para alguns desses sujeitos, uma psicanálise só seja viável virtualmente? Quais são as implicações dessa mudança em nossa práxis?


G.D: Não estou tão seguro de que a adição às redes sociais tenha aumentado tanto. Durante os meses de confinamento, foi um recurso indubitavelmente muito mais utilizado que o habitual, mas as adições aos videogames, chats, etc. já existiam. É possível que alguns jovens tenham se tornado adictos nessa época, mas não tenho dados que demonstrem que o número de “cyber-adictos” tenha aumentado acentuadamente. Percebi, pelo contrário, que o isolamento foi mais mal tolerado pelos jovens e que, assim que se pôde sair, organizaram encontros, muitas vezes violando as normas e restrições sanitárias. Acredito que os adolescentes e os jovens continuem preferindo as experiências “reais”, encontros, contato físico, à vida on-line. É verdade que há quem se refugie no mundo virtual para evitar ou, pelo menos, atenuar as contingências do mundo real. Nesse sentido, a internet é um instrumento indispensável para não se abandonar à solidão e, ao mesmo tempo, se proteger dos riscos que, para alguns, supõe o encontro com o Outro que pode existir em qualquer outro. Como em qualquer adição, a aderência ao uso dos dispositivos cumpre uma determinada função, que costuma ser necessária, vital, um ponto de capitón, ou um modo de tentar uma reparação no ajuste do Real, Simbólico e Imaginário. No meu livro Inconsciente 3.0 abordei esse tema e acredito que, entre os psicanalistas, exista um certo preconceito a respeito dos instrumentos tecnológicos que foram incorporados ao nosso cotidiano. Uma tendência a considerar que há algo como um perigo iminente. Por que nos parece a coisa mais normal do mundo mergulhar um dia inteiro na leitura dos seminários de Lacan e consideramos um sinal patológico que um adolescente fique horas diante de um computador? Durante o confinamento, as telas serviram para que muitas crianças pudessem suportar o isolamento e elaborar a angústia. Isso provocou um aumento muito grande no uso, mas quando as restrições foram suspensas, a maioria deles estava feliz de voltar à escola e encontrar outras crianças. Em todo caso, a adição às telas não é uma causa, mas antes um efeito de algo que é preciso analisar.

Existem alguns casos, particularmente certas formas de psicose, nos quais a virtualidade torna mais tolerável o encontro analítico, suaviza o sentimento persecutório e alivia o peso superegoico da transferência. Introduz uma distância, uma regulação das oscilações do gozo favorável à transferência. Ao contrário, em outros sujeitos, as sessões virtuais intensificam a dimensão da voz e do olhar, até o limite do insuportável. Mais uma vez, devemos dar uma resposta singular e implementar o modo que melhor se adapte às características do sujeito em questão.
A.: É possível vislumbrarmos uma mudança na concepção do corpo a partir do uso das tecnologias?

G.D: Acredito que, mais que uma mudança na concepção do corpo em psicanálise, as novas tecnologias nos permitem entender melhor os conceitos que já temos, fazer uma nova leitura do que Freud e Lacan pensaram sobre o corpo, especialmente o segundo, que, a partir da introdução dos quatro discursos, colocou uma ênfase especial no tema do corpo. Lacan não foi contemporâneo da revolução da internet, mas mesmo assim teve uma verdadeira clarividência do que estava por vir. Sua ideia sobre a aletosfera é um sinal de que tinha compreendido até que ponto a vida humana e o próprio conceito de sujeito estavam entrando em uma segunda desnaturalização. Se a primeira é a que a linguagem introduz, a segunda é a que resulta do fato de que o ser falante participa da mesma realidade em que se aloja o objeto técnico. O parlêtre é uma lathouse entre as outras, ele o é cada vez mais, de uma forma imparável. O delírio que nos últimos tempos tem circulado, o de que, com a vacinação contra a covid, vão nos inocular um chip 5G, tem o mesmo núcleo de verdade que qualquer outro delírio. Nosso corpo está atravessado por um discurso que exerce diversos efeitos sobre ele. Por sua vez, a presença do corpo nas tecnologias de comunicação, por exemplo, é absolutamente indiscutível. É incompreensível para mim que alguns analistas sustentem que o corpo está ausente nas telas. Suponho que não estão cientes das coisas que os sujeitos fazem com seus corpos através da internet e das modalidades de gozo que podem extrair nesse uso. O sexo virtual tornou-se uma possibilidade a mais no polimorfismo perverso do desejo.

Portanto, considero que o futuro do mundo nos exige uma mudança de posição, como a que tivemos que tomar, por exemplo, frente à transexualidade. Nós mudamos sobre isso. Compreendemos que, em muitos casos, trata-se de acompanhar o sujeito nesse trânsito, e não de lhe sugerir que reconsidere seu projeto. Algo semelhante tem que acontecer no que diz respeito ao uso das novas tecnologias e ao que pode ser válido para a experiência analítica.

 

Entrevista por: Daniela Dinardi, Michelle Sena, Patrícia Ribeiro e Tereza Facury.
Tradução: Ernesto Anzalone
Revisão: Michelle Sena



O ANALISTA ESSENCIAL[1]

IRENE ACCARINI
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana-EOL/AMP | iairenela8@gmail.com

 

Resumo: Neste artigo, a partir de uma reflexão sobre as sessões analíticas a distância, a autora relaciona as noções da presença do analista e do objeto voz considerando que a experiência do inconsciente, desde Freud, é marcada pela forma com que a palavra afeta o corpo. Tendo em conta as mudanças impostas na rotina de todos pela pandemia do coronavírus, a autora relata efeitos subjetivos no que diz respeito à forma com que atos anódinos tornam-se atos de consciência constante e reflete sobre a prática da psicanálise enquanto restituidora da dimensão do inconsciente neste contexto de consciência exacerbada.

Palavras-chave: presença do analista; palavra; objeto voz; corpo falante; inconsciente.

Abstract: In this article, through a reflection about remote analytical sessions, the author relates the notions of presence of the analyst and the object voice, considering that the experience of the unconscious, since Freud, is marked by the way in which the word affects the body. Taking into account the changes imposed on everyone’s routine by the coronavirus pandemic, the author reports subjective effects in regard to the way in which anodyne acts become acts of constant consciousness and reflects on the practice of psychoanalysis as a way to restore the dimension of the unconscious, in this context of heightened consciousness.

Keywords: presence of the analyst; word; voice object; speaking body; unconscious.

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Oh, matemáticos, esclareçam seu erro!
O espírito não tem voz, porque onde
há voz, há corpo
Leonardo da Vinci

 

Tomando o fio condutor de algumas questões propostas nos números anteriores do boletim Discontinuidad, que colocam em jogo a voz do analista e a sua presença, é a experiência analítica e seu vínculo particular com o inconsciente o que me detém em minha reflexão — não há outra experiência como tal. Como faz Carmen González Táboas (2020) no Boletim XV, em que indaga: “a comunicação telefônica se sustenta na voz do analista; se, esvaziado do fantasma, ela opera palavra e silêncio, não seria este um lugar onde pode acontecer a presença real do analista?”.

Freud inicia sua experiência analítica desvendando cenas e histórias da vida cotidiana; é a vida cotidiana e seus acontecimentos de palavra que revelam a natureza do inconsciente e fundam a experiência analítica possibilitando, ali, um encontro inédito. É com o trabalho da palavra, como é falada e situada na escuta analítica, que a experiência do inconsciente se realiza. Poderá o psicanalista, como matemático, em seu cálculo transferencial, esclarecer o erro apontado pelo grande Leonardo? O parlêtre, o corpo falante, lhe dá razão, sem dúvidas. E faz do inconsciente uma voz não espiritual, mas substancial, carregada de substância gozante que, até mesmo nas sessões a distância, encontra seu lugar. Porque falar e pensar também são efeitos de corpo e afetam o corpo. “O pensamento, inclusive aquele tipo de pensamento que Freud chamou de inconsciente, sempre tem a ver com o corpo e, portanto, com sua sexuação”[2], reflete Miller (2013, p. 44) em Piezas Sueltas.

Claudia Pollak (2020), em seu texto publicado no boletim Discontinuidad XI, propõe pensar a sessão analítica na modalidade telefônica como um “campo sonoro” e nos lembra que a voz é como uma impressão digital, única para cada pessoa, e um reservatório libidinal.

Portanto, nestes tempos de análise a distância, as diversas tecnologias trazem-nos as vozes dos corpos falantes e levam nossa voz e nossa escuta discricionária ao encontro daquele que continua sintomatizando e sinthomatizante.

Além disso, na minha prática, posso encontrar angústias, fobias, insônias e ansiedades que os analisandos trazem como “nunca vividos”, algo singular que se instala após o confinamento pela perda dos hábitos cotidianos de cada um, e, para além dos modos singulares, pela fuga do sentido e impedimento de acesso às camadas exteriores do âmbito social, uma consciência rigorosa é instalada em seu lugar. Assim, as crianças que acompanham suas aulas pelo Zoom não têm um colega ao seu lado para distrair a sua atenção ou conseguir escapar imaginariamente para outro cenário fora do discurso escolar; os teletrabalhadores não têm um olhar oblíquo para fazer sua piada ou fugir do cotidiano, e tudo mais o que não estava investido de pensamento e era vazio de forma, hoje adquire o formato e a formulação de um estrito procedimento de assepsia tipo operatório — lavar escrupulosamente as mãos, não tocar no rosto, usar máscaras, limpar sapatos, tomar banho toda vez que volta da rua, etc. — tornando os atos anódinos um ato de consciência permanente. Essa consciência que, como bem disse Lacan, é algo que “se produz toda vez que é dada (…) uma superfície tal que possa produzir o que se denomina uma imagem” (LACAN, 1995, p. 68), ou seja, não é um lugar privilegiado na experiência humana nem mesmo é um fenômeno constante, mas contingente, reflexivo e ambíguo. E, pelo contrário, aqui e agora, adquire um relevo denso enchendo a vida de detalhes e causando um intenso apagamento subjetivo, difícil de suportar.

Tomando o belo conceito de “hospitalidade”, que Ramiro Trejo (2020) aponta em seu texto, hospedar o inconsciente é uma tarefa que não pode cessar nem ceder a nenhum vírus oportunista, mas sim encontrar a forma mais viva de presença, como também discorre Angélica Marchesini (2020) distinguindo o lugar do analista de sua presença enigmática. Entendo que é o próprio inconsciente, transferencial e real, que tece essa presença do analista, se este se serve de sua voz no novo campo sonoro da sessão… Tal como testemunha o sonho atual de uma analisante, que sonha que sua analista aparece no jardim de sua casa, a quem ela avista pela janela do quarto onde está dormindo. Despertar do Inconsciente para o inquietante da estranha familiaridade transferencial.

O “inconsciente depositado” mostra-se como saber indelével, do qual nos falou Éric Laurent (2019) nos comentários dos testemunhos de passe nas Jornadas “El Inconsciente aún” do ano passado. É escandaloso, afirmou Laurent, que o inconsciente não seja fugaz, mas tenha esse caráter de depositado” na Lalangue. E lá deve encontrar seu analista hospedeiro para fazer furo na Lalangue. O inconsciente é furado no ato analítico e não se esvazia, o que não é a mesma coisa.

Nós, analistas, e o discurso do qual nos valemos, portamos os meios essenciais para restituir o inconsciente ao mundo atual, atormentado por esses fenômenos de proliferação de atos de consciência para fazer ressoar a voz que resguarde os corpos falantes.
 

Tradução: Maria Amélia Tostes
Revisão: Ernesto Anzalone

Referências
TÁBOAS, C, G. (2020). Una elección forzada. Discontinuidad Nueva serie Nro. XV. Agosto 2020. Disponível em: https://es-la.facebook.com/EOLSeccionLaPlata/posts/compartimos-discontinuidad-nueva-serie-nxv/1398477443688683/ Acesso em: 09 jan. 2020.
LACAN, J. (1954-55). O seminário, livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LAURENT, E. Notas sobre su intervención al testimonio de Irene Kuperwajcs em Jornadas anuales de la Eol “El inconsciente aún”. Inédito. 2019.
MARCHESINI, A. (2020) Presencias. Discontinuidad Nueva serie Nro. IV. jul. 2020. Disponível em: https://es-la.facebook.com/EscuelaDeLaOrientacionLacanianaEol/posts/discontinuidad-nueva-serie-n-ivhttpwwweolorgarpublicacioneson_linediscontinuidad/3597576986938676/.  Acesso em: jan. 2020.
MILLER, J-A. (2004-2005). Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013.
POLLAK, C. (2020) Entonces… ¡A inventar! Discontinuidad Nueva serie, nº XI. Julio 2020.  Disponível em:  https://www.facebook.com/EOLSeccionLaPlata/posts/compartimos-discontinuidad-nueva-serie-n-xihttpwwweolorgarpublicacioneson_linedi/1387954574740970/ Acesso em: jan. 2020.
TREJO, R. (2020) Hacer con lo irremediable. Discontinuidad Nueva serie nº. XVI. Agosto 2020.  Disponível em: https://www.facebook.com/EscuelaDeLaOrientacionLacanianaEol/posts/3693626534000387  Acesso em: jan. 2020.
[1] Artigo originalmente publicado no Boletim Discontinuidad-Nueva Serie No. XXI, setembro de 2020. Disponível em: http://www.eol.org.ar/publicaciones/on_line/discontinuidad/images/ns_021.jpg?fbclid=IwAR3pqx5miheS4M_b1qu3dHBTZUSs0ZjJmT2VBCuFYQc5478uh8zkzLio6nQ Acesso em: 09 de jan. de 2020.
[2] Tradução nossa.



TRANSFERÊNCIA E PRESENÇA DO ANALISTA[1]

FRANK ROLLIER
Psicanalista. Membro da ECF/AMP
frollier@wanadoo.fr

 

Resumo: Neste texto, Frank Rollier traz a discussão sobre a importância da  presença dos corpos (analista-analisante) e seus efeitos relativos ao trabalho na transferência e de abertura ao inconsciente. As terapias a distância produzem uma exacerbação dos semblantes, uma profusão de sentidos, conectadas ao projeto político do discurso cientificista sob o qual a relação sexual possa se escrever. A “presença real” do analista é a aposta ética da psicanálise de poder tocar pedaços do real pulsional e do resto, o objeto a.

Palavras-chave: terapias a distância; psicanálise; transferência; “presença real”; objeto a.

Abstract: In this article, Frank Rollier raises an important discussion about the presence of the bodys (analyst-analysand) and its effects on the work in transference and on the opening to the unconscious. Remote therapies produce and exacerbation of the countenance and a profusion of meaning that are conected to the political project of the cientific discourse under which the sexual relation can be written. The “real presence” of the analyst is the ethical bet of psychoanalysis on being able to approach something of the remainder, of object a.

Keywords: remote therapy; psychoanalysis; transference; “real presence”; object a

 

Imagem: Jayme Reis

A internet oferece uma profusão de terapias a distância, através de vários dispositivos produzidos pelo discurso cientificista: chat on-line, webcam, fone 3D de realidade virtual, psi-robô… que esvaziam a presença real do corpo para reduzi-lo a uma voz, frequentemente associada a uma imagem. Elas se assentam sobre a sugestão e vão, portanto, na direção contrária da abordagem analítica que pressupõe, por um lado, que o analisante desloque seu corpo até o consultório do analista e, por outro lado, que o saber esteja do lado do analisante, como o ilustra a decifração da mensagem da tossezinha pela paciente de Ella Sharpe no Seminário de Lacan sobre o desejo (LACAN, 2016, p. 151–169).

Na China, foi dado um passo adiante com a oferta de sessões ditas psicanalíticas por Skype (GUYONNET, 2017, p. 26), que fazem cada vez mais sucesso.

Se as psicoterapias, mesmo em suas formas mais grotescas, permanecem presas ao sentido e podem se contentar com uma escuta que coloca à distância a presença dos corpos, não se excluem, contudo, possíveis efeitos de transferência. E isso com relação à psicanálise, que, por sua vez, visa a abertura do inconsciente?

A selvageria da ideologia “cientificista” 

Desde 1949, Heidegger identificou a invasão da ciência pela técnica. Denunciou o apresamento da natureza e a opôs à technè, que, em grego, designa “um desvelamento que produz a verdade”.

A ciência não foi estabelecida por Lacan como um dos quatro discursos, em que cada um representa uma modalidade diferente de laço social. Entretanto, estando hoje intimamente ligada ao discurso do mestre capitalista e ao discurso universitário, a ciência se converte em um cientificismo que passou a ser uma modalidade de laço social com a finalidade manter o sujeito em continuidade com o objeto mais-de-gozar. Ao mesmo tempo, o cientificismo contemporâneo enuncia que se pode saber sempre mais e que nada é impossível. Judith Miller (2013, p. 311) falava da “selvageria desta ideologia” cientificista que, pretendendo ao universal, ao Um, tem como efeito a abolição dos sujeitos.

biopolítica, descrita por Michel Foucault desde os anos setenta, hoje faz parte de nosso cenário. Fora da presença de qualquer terapeuta, o discurso capitalista visa ajustar os comportamentos às ofertas do mercado para que o consumidor esteja sempre zen ou positivo. Nessa mesma veia, o self care (LACAZE-PAULE, 2014) garante seu médico particular ao alcance do smartphone, e os robôs eróticos possibilitam um encontro sexual sem passar pela presença do corpo do outro. A exacerbação narcísica que acompanha esse impulso para a adicção se reforça frequentemente em um eu não quero saber nada disso que reduz o inconsciente e a transferência à classificação de conceitos obsoletos. A crença no Outro é abalada, a palavra é desvalorizada e considerada supérflua se ela não se refere a uma técnica suposta imediatamente eficaz e ao menor custo. Ora, a manipulação dos corpos a partir da linguagem permite oferecer uma grande variedade de técnicas supostamente terapêuticas que prometem harmonia evitando, cuidadosamente, tudo o que poderia confrontar o sujeito com a castração. Assim, o site “Psicoterapia On-Line” destaca que “quem consulta não perde tempo no transporte (…). Quando há uma necessidade urgente de comunicar alguma coisa, ele pode fazê-lo a partir do lugar onde se estiver (…) A liberdade e a flexibilidade assim produzidas (…) lhe permitem descontrair sem se sentir observado”.

A “presença real” do analista 

Freud, em 1912, falando das “emoções amorosas secretas e esquecidas” (FREUD, 1980), às quais a transferência confere um caráter de atualidade, conclui que “é impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie” (Ibid.).

Essa questão da presença é abordada por Lacan desde seu primeiro seminário. Para ilustrar o fato de que a transferência se produz “justamente porque ela satisfaz a resistência” (1986, p. 51-52), Lacan testemunha que, em alguns casos, “no momento em que ele parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntica (…) do que jamais pôde atingir até então, o sujeito (…) se interrompe (para dizer) — eu realizo de repente o fato da sua presença” (Ibid., p. 52 ).  A transferência se manifesta aqui pela “atualização da pessoa do analista” (Ibid., p. 54), a percepção de sua presença, que Lacan nota como um sentimento que comporta uma parte de mistério e que nós “tendemos incessantemente a apagá-lo da vida” (Ibid.).

No seminário sobre a transferência, ele indica que, paradoxalmente, é o “próprio lugar em que somos supostos saber que somos convocados a ser, e a ser, nada mais, nada menos, que a presença real, justamente na medida em que ela é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Lacan insiste sobre essa “presença real” silenciosa do analista que, in fine, só está aqui como “isso — isso, justamente, que se cala, e que cala no sentido em que falta a ser” (Ibid.). Se a transferência repousa sobre o saber suposto atribuído ao analista, não é, no entanto, com seu ser que ele opera, mas a partir de sua falta-a-ser; trata-se, para ele, de sustentar um “lugar vazio” (Ibid.) de tal forma que “o sujeito possa recuperar o significante faltoso” (Ibid., p. 337). Através de sua presença, o analista é seu “próprio sujeito no ponto onde ele se desvanece, em que é barrado” (Ibid., p. 334).

Essa noção da “presença real” será retomada no Seminário XI, em que a invenção de Lacan do conceito do objeto pequeno a dará a ele uma nova coloração. Ele dedica uma sessão à “A presença do analista” (LACAN, 1988, p. 119–120) e começa evocando o lançamento de um livro epônimo de Sacha Nacht (1963), cacique da SPP, que sustenta que o médico deve manifestar uma “presença gratificante” (Ibid., p. 201), consistindo em “uma disponibilidade constante, um acolhimento incondicional, uma paciência ilimitada” (Ibid., p. 3) e ainda “uma atitude profunda de dom autêntico” (Ibid., p. 85 ) e uma “bondade incondicional” (Ibid., p. 188). A essa avalanche de boas intenções, Lacan retruca qualificando esse livro como “pregação lacrimejante” e de “intumescência cerosa” (LACAN, 1988, p. 121).

A internet não era então imaginável; portanto, não é a ausência do encontro de corpos que Lacan repudia, mas os analistas que se representam na transferência mais como um afeto do que como um amor autêntico — eine echte Liebe (Ibid., p. 119) —, que invoca o inconsciente como instinto ou mesmo reduz a transferência a trocas de inconsciente a inconsciente.

Para Lacan, uma recusa do inconsciente, essa “tendência” que se manifesta ocasionalmente deve logicamente “ser integrada no conceito de inconsciente”, pois ela somente traduz “um movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal” (Ibid., p. 121.). E — este é o ponto crucial — a presença do analista “é ela própria uma manifestação do inconsciente” (Ibid.), inseparável de seu próprio conceito. Lacan acrescenta que “a presença do analista é irredutível, como testemunha” (Ibid., p. 122) de uma perda total. É, de fato, através dessa presença real de corpos que a função de um objeto perdido pode se revelar: esse objeto é o objeto pequeno a que “causa radicalmente o fechamento que comporta a transferência” (Ibid., p. 128). O objeto pequeno a está, portanto, no cerne dessa questão da presença, que, para Lacan, não está ligada ao ser nem a uma virtude particular do analista, mas à irrupção do objeto de gozo na transferência, essa irrupção sendo o “meio (…) pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (Ibid., p. 125).

Lacan fala também da “presentificação dessa esquize do sujeito, realizada aqui, efetivamente, na presença” (Ibid., p. 126. ), o que ele opõe à “parte sã do eu do sujeito” sobre a qual a psicanálise americana está focada apelando “ao bom-senso” do paciente para fazê-lo “notar o caráter ilusório de tais condutas no interior da relação com o analista” (Ibid. p. 125–126). Ora, é exatamente essa parte sã “que fecha a porta (…) ou as janelas” enquanto “a bela com quem queremos falar está lá detrás, que só pede para reabri-los” (Ibid. p. 126).

Ele considera, em seguida, o paradoxo freudiano segundo o qual o analista deve esperar a transferência, ou seja, o fechamento do inconsciente para começar a interpretar. Ignorando as críticas da ortodoxia que o reprovam por querer “intervir na transferência” (Ibid., p. 123.), Lacan adianta que é precisamente “neste momento que a interpretação se torna decisiva” (Ibid., p. 126.) e que, assim, o analista “apela a reabertura do postigo” (Ibid.) tratando a transferência como um “nó górdio” (Ibid., p. 129).

Nas lições seguintes, Lacan precisa como o objeto a faz o “papel de obturador” (Ibid., p. 138) no fechamento do inconsciente. Jacques-Alain Miller comentará sobre esse enfoque no fechamento mais que sobre a abertura, notando que esse momento testemunha “da interferência da sexualidade no inconsciente sob a espécie do objeto a” e que é justamente nesse fechamento que “o mais real do inconsciente surge” (MILLER, 2012). O que Lacan indica nesse mesmo Seminário XI, aí avançando, é que “a transferência (é) a atualização da realidade do inconsciente” (LACAN, 1988, p. 142), realidade que é sexual (Ibid., p. 144), pulsional. É a essa dimensão sexual do ser vivo que a presença do analista dá corpo e é ela que a ausência dos corpos permite ignorar.

Podemos, então, reler o seminário A transferência a partir do Seminário XI e medir o caminho percorrido por Lacan: ele anunciou ali que “somos convocados a (…) ser nada mais (…) que a presença real (…) na medida em que esta é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Podemos ouvir essa presença real agora como aquela do objeto pequeno a, que o analista visa encarnar para seu analisante.

“Fazer surgir a não relação sexual”

No Seminário O sinthoma, doze anos após o Seminário XI, Lacan diferencia com precisão o inconsciente do real, que é desprovido de sentido. A função do real se distingue daquele pelo fato de que “o inconsciente não deixa de se referir ao corpo” (LACAN, 2006, p. 131), esse corpo que o falasser “adora” e que assinala basicamente a dimensão imaginária que é sua “única consistência” (Ibid., p. 64).

Isso nos permite lembrar o óbvio e dar um passo a mais: a presença real do analista não é certamente aquela de sua imagem, mas aquela que, segundo a expressão de J-A. Miller, relendo o último Lacan, permite à “palavra considerada como pulsão” (MILLER, 2014) se desdobrar. O dispositivo do divã está ali exatamente para eliminar, tanto quanto possível, essa presença imaginária dos corpos. A pulsão está localizada fora do corpo imaginário. O analista, entretanto, poderá ocasionalmente utilizar seu corpo para interpretar a partir de sua posição de objeto a. Éric Laurent propõe que, jogando “com o acontecimento de corpo, com semblante de trauma” (2016, p. 16), ele poderá, assim, tocar o gozo.

J-A Miller nos especifica que “levar seu corpo à sessão”, “deitar-se no divã, é se tornar puro falante, experimentando a si mesmo como corpo parasitado pela palavra” (FAVEREAU, 1999), mas que “ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica (…) É necessária a co-presença em carne e osso apenas para fazer surgir a não-relação sexual” (Ibid.), esse real ao qual o falasser não cessa de se confrontar e de responder através da formação de sintomas.

A propósito do “bom uso do sinthoma” na prática da psicanálise, ele assinala que, do ponto de vista da singularidade de cada um, “a sessão analítica tende a se reduzir ao instante” (MILLER, 2009), a um evento que deve ser encarnado, especificando que, com alguns pacientes psicóticos, o encontro com o terapeuta “pode, no limite, precisar somente de um aperto de mão e de um ‘Tudo bem?’ — ‘Tudo bem’ (…). Necessita simplesmente de um coração batendo, da encarnação da presença” (Ibid.).

J-A. Miller acrescenta que “todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão nisso” (Ibid.) quer dizer sobre o “fora-de-sentido da relação sexual” (LACAN, 1953), esse furo no simbólico que causa o fracasso ao qual o falasser está fadado. E ele conclui que “quanto mais a presença virtual se torna comum, mais preciosa será a presença real” (FAVEREAU, 1999).

Nas terapias a distância e, consequentemente, com a Skype-análise, a ausência de corpos faz sintoma do nada querer saber disso que falha e disso que se perde, da dimensão pulsional como fundamento da relação com o Outro (MILLER, 2000). Essas terapias que colocam em cena uma presença virtual são, elas próprias, um sintoma (GUYONNET, 2017) da recusa do impossível.

Lacan assinalou a importância das entrevistas preliminares, da “confrontação de corpos” (LACAN, 2012). A ausência de corpos, de seus deslocamentos na sessão, abre mais para o mundo dos semblantes do que para o encontro do real pulsional e do resto, o objeto a. Mas é precisamente o projeto político do discurso cientificista que não haja resto e que a relação sexual possa se escrever. Então, como se situa hoje a psicanálise nesse contexto de arrebatamento pelas tecnociências? Isso que Lacan denunciou em 1964 como um obscurantismo, “muito característico da condição do homem de nosso tempo de pretensa informação” (LACAN, 1985. P. 122–123), não perdeu nada de sua atualidade.

A psicanálise “permite se desintoxicar da overdose de saberes e da conexão”, escreve Éric Laurent (2020). Ela também é o lugar onde o sujeito tropeçará sobre o impossível e, assim, encontrará os pedaços de real com os quais ele não cessa de se “confundir” (MILLER, 2000). 

Vinheta clínica

Após anos de tratamento, um paciente vem por causa de uma impotência sexual antiga que, diante do horror da castração feminina, o faz fugir de suas parceiras. Contudo, ele se apega mais firmemente à negação dessa castração, o que evita que se confronte com a sua.

Um dia, a sessão se torna o lugar de um pequeno drama na transferência. Ele anuncia que não suporta mais que o analista se cale, que não responda às suas súplicas para salvá-lo de seu mal-estar. “Isso não é humano!”, diz ele. Ele faz a experiência dolorosa da solidão radical do sujeito e, ao longo dessa sessão, põe-se a gritar, a bater na parede ao lado do divã, depois se levanta e sai do consultório com uma grande cólera. Com esse acting out, ele repete na transferência aquilo que acontece com ele a cada tentativa de penetrar uma mulher, o que me permite, em seguida, interpretá-lo: diante do furo, ou seja, da ausência de significante para representar o Outro sexo, surge a angústia e ele se esquiva.

A consciência repentina do silêncio do analista levou ao surgimento do objeto, seguido do fechamento do inconsciente quando ele deixa a sessão. O analista encarna, desse modo, esse resto que o sujeito não controla, esse “resíduo não imaginado do corpo” (LACAN, 2005), como diz Lacan, este a/- φ cujo encontro tem um efeito de divisão sobre ele.

Na sessão seguinte, ele pode dizer do desejo de que a parceira tenha algo para lhe dar. O que ele espera é castrá-la desse ter imaginário e privá-la de seu gozo para que ele não perca nada na relação sexual.

É somente na transferência, corpos presentes, que ele pode tocar esse real que é um ponto impossível.

A presença real do analista, que é sustentada pela colocação em ato de seu desejo, permanece, mais do que nunca, uma aposta ética e política.

Tradução: Letícia Mello
Revisão da tradução: Letícia Soares

Referências
FAVEREAU, É. Le divan. XXIe siècle. Demain la mondialisation des divans? Vers le corps portable. Par Jacques-Alain Miller, Libération, 3 julho 1999 in https://www.liberation.fr/cahier-special/1999/07/03/le- divan-xx1-e-siecle-demain-la-mondialisation-des-divans-vers-le-corps-portable- par-jacques-alain-m_278498. Nossa tradução.
FREUD, S. (1912b). A dinâmica da transferência. Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XII, Rio de Janeiro: Imago, 1980.
GUYONNET, D. “La Skype analyse en Chine. Quand le divan fait symotôme”, La Cause du désir, n. 97, novembro 2017, p. 26. Nossa tradução
LACAN, J. (1953 – 54) O seminário livro I, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1986, p.51 – 52.
LACAN, J. (1959 – 59) O Seminário, Livro VI, O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016, p. 151 –  169.
LACAN, J. (1960 – 61) O seminário, livro VIII: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992, p. 333
LACAN, J. (1960 – 61) O seminário, livro VIII: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992, p. 333.
LACAN, J. (1962-1963) O seminário livro X A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,. 2005, p. 71
LACAN, J. (1964) O Seminário, Livro XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 119 – 120.
LACAN, J. (1971-1972) O seminário livro XIX …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 220.
LACAN, J. (1973) Televisão In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 512.
LACAN, J. (1975 – 76) O Seminário, livro XXIII – O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006, p. 131.
LACAZE-PAULE, C., “Self-made-care”, Lacan quotidien, n. 412, 28 de junho 2014, http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2014/06/LQ-412.pdf
LAURENT, É. Gozar da internet. In  http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet Consultado em 07/12/2020.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 16
MILLER, J. “Scientisme, ruine de la Science”, Scilicet “Um réel pour le XXIème siècle, 2013, Paris, p. 311. Nossa tradução
MILLER, J. Coisas de fineza em psicanálise. Orientação Lacaniana III. Seminário inédito, aula de 17/12/2009.
MILLER, J-A. La fuga del sentido. Buenos Aires: Paidós, 2012.
MILLER, J-A. El ultimíssimo Lacan – os cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2014.
MILLER, J-A., A teoria do parceiro. In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
NACHT, S. La présence do psychanalyste, Paris, PF, 1963.
[1] Retomada de uma conferência em Tel-Aviv em 11 de maio de 2018, no seminário Nouage du GIEP-NLS.



A PRESENÇA REAL E A FUGACIDADE DO CORPO[1] 

CATHERINE LACAZE-PAULE
Psicanalista. Membro da ECF/AMP | lacazepaule@gmail.com

Resumo:  Catherine Lacaze-Paule aborda a atual experiência de confinamento para refletir sobre suas repercussões na clínica psicanalítica praticada virtualmente. Nesse contexto, ela indaga quais seriam “as condições para que um encontro seja real, para que uma presença se faça sentir, para que ela se experimente”. A autora se serve da expressão lacaniana “presença real” enodada ao desejo do analista e, dessa forma, dá um passo além dos termos — presencial, a distância — que o discurso corrente faz uso.

Palavras-chave: confinamento, presença real, objeto a

Abstract: Catherine Lacaze-Paule addresses the current experience of confinement to reflect on its repercussions in the psychoanalytic clinic practiced virtually. In this context, she asks what would be “the conditions for a meeting to be real, for a presence to be felt, for it to be experienced”. The author makes use of the Lacanian expression “real presence” that is rooted in the analyst’s desire and, in this way, takes a step beyond the neologisms — in person, at a distance — that current discourse makes use of.

Keywords: confinement, real presence, object a

Imagem: Jayme Reis

 

 

Durante o confinamento, experimentamos os corpos ausentes, a distância. Percebemos que as noções de proximidade, de distância, de fronteira entre si mesmo e do outro eram insuficientes para dar conta da presença. O próximo, o distante, a distância social, o blurring — neologismo inglês para designar a ausência de fronteira entre o privado e o profissional — , o FOMO (fear of missing out[2]) — medo de perder algo nas redes sociais — ou o FOGO (fear of going out) — medo de sair de casa, que parece ser uma nuance da agorafobia — são os novos sintagmas que testemunham novas doenças ligadas à presença e aos efeitos das relações com o outro, com o exterior, com o vizinho próximo, com o íntimo e com o êxtimo.

Para atenuar a ausência, o digital se impôs nas vidas inserindo-se profundamente. Dois termos passaram para a linguagem comum para circunscrever esse efeito, o “presencial”[3] e o “a distância”. Com a tecnologia digital, tivemos acesso à possibilidade de “nos ver” sem estar de forma presencial, “nos ouvindo” ao nos conectarmos, nos aproximarmos, mas a distância. Toda vez que o objeto a é tocado, o ver se impõe em detrimento do olhar, e a imagem especular torna-se o reflexo de si mesmo. A ausência do corpo que não se enlaça, sem lastro, sem fazer mais uso da palavra, perde-se, esvazia-se de sentido e gozo. Consequentemente, efeitos de “fadiga”, de “corpo cansado” e mesmo de “lassitude”, por vezes se fazem sentir. Nossos encontros se digitalizam. Nossos encontros se virtualizam. Nós tocamos a presença?

Sem a presença dos corpos, sem a confrontação dos corpos, a presença se faz mais enigmática, mas necessária. Será sempre assim? Quais são as condições para que um encontro seja real, que uma presença se faça sentir, que ela se experimente? Como se produz o sentimento da presença?

As sessões analíticas não escaparam desse problema e atestam em que a análise é indissociável de uma certa relação aos corpos presentes. O que a ausência dos corpos revelou é que o corpo escapa. Lacan evoca a fugacidade (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 229) do corpo em O seminário 8: a transferência. Introduzamos o equívoco da fuga, dos corpos ausentes e dos corpos que escapam para interrogar o que é a presença real. Esta é aquela que se faz “em carne e osso”?

A expressão presença real (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 240) aparece pela primeira vez no seminário sobre a transferência, em diversas ocasiões e, também, como título de capítulo. É através de sua negatividade, sua negação, que frequentemente essa noção é apreendida. Nesse seminário, é sob a forma do insulto. O insulto à presença real que Lacan localiza na clínica de uma neurose obsessiva feminina. Seu sintoma consiste em ver, sem que se trate de uma alucinação, no lugar da hóstia, os órgãos genitais masculinos. Esse insulto à dimensão sagrada do dogma religioso católico é como um insulto feito à Eucaristia. Lacan se baseia nele para evocar a noção de presença real. Segundo São Tomás de Aquino, a presença real é substância. Ela não serve para designar uma coisa visível pelo “olho corporal”, mas sim a realidade inteligível de um ser. A presença real nomeia o corpo de Cristo. Ela não é perceptível através de nenhum dos sentidos nem pela imaginação, mesmo quando o vinho e o pão (a hóstia) dão forma imaginária para recobrir essa substância. Lacan se serve desse termo para dar conta da função do grande Phi, a função do falo, o que simboliza a ausência e a presença que ele designa como presença real. O grande Phi simboliza, ao mesmo tempo, a significação e seu além, o intervalo entre dois significantes, como presença vazia, como não relação entre dois significantes (S1//S2). “Pois ao signo que há para dar [pelo psicanalista], falta significante” (LACAN, 1960 – 1961 / 1999, p. 232).

Em cada intervalo se abre para o sujeito a questão do desejo do Outro, e algo do desejo se manifesta, mas nada que seja significável. É por isso que o obsessivo se dedica a conjurar o intervalo entre dois significantes toda vez que este se apresenta diante de si. Assim, no tratamento, a função que o falo simbólico ocupa em seu lugar “é que não é simplesmente signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960 – 1961/ 1992, p. 244).

O falo, além de sua representação de órgão, além de toda representação ou possível significação, tem um status de signo. Mas esse signo é presença real que o analista, em seu desejo e seu corpo, pode encarnar em carne e osso.

Os objetos a são alojados no analista, ele os encarna. Distingamos com o ensino de Jacques-Alain Miller: o começo do tratamento, momento em que a idealização é apenas a máscara do objeto a, é a etapa da revelação. Esta é seguida pela repetição: a análise que perdura. Enfim, o terceiro tempo, aquele da estagnação, o da gaiola do sintoma, sua inércia. Aquele do gozo bem real. De acordo com os momentos, os objetos da demanda e do desejo são sublinhados, acentuados, marcados ou, ao contrário, reduzidos a zero, subtraídos pelo analista. O manuseio do objeto é o que funda o buraco real na linguagem e, ao mesmo tempo, o que o simboliza e o que cobre a falta sob seus vários disfarces. Quer o olhar seja firme, quer seja fugidio, aqui, o corpo do sujeito é, acima de tudo, o do narcisismo, reduzido à imagem. Seja na idealização da verdade, seja do discurso e do significado, o analista encarna o Outro como lugar dos significantes e da verdade. Por outro lado, através de seu silêncio, ele indica a presença do gozo. O seu silêncio, ou sonoridade, é o que convoca o objeto voz. A voz que não é sonora, que não é aquela da vocalização, mas a que surge cada vez que o significante cai sobre o que não pode ser dito, sobre o que é indizível. É a voz que se assemelha ao que despenca, ao que cai do corpo quando o significado se perde e foge. A palavra, sem o eco produzido pelo silêncio do analista, esvazia-se de significado e de gozo.

Da mesma forma, o corpo do sujeito, como sustentação do brilho fálico ou depositado no divã como uma casca, se confronta com o corpo vivo do analista, para além do que é, com o que existe. A presença real do corpo do analista como suporte é também aquela que convoca o presente do dizer. “Trata-se da oposição do que chamarei de dizer do presente ao presente do dizer” (LACAN, 1957 – 1958/ 1999, p. 65), distingue Lacan em O seminário 5as formações do inconsciente. Ele especifica que não é simplesmente um jogo de palavras, mas que a atualidade do presente permite localizar a atualidade do falante no nível da mensagem, enquanto o presente do dizer abre o espaço à metonímia ou ao que se ouve. Acrescentamos: o que é lido a partir do que é dito, o que se goza de dizer. Quando o psicanalista é presença, ele é, ao mesmo tempo, apoio velado de um desejo — Che vuoi? — e suporte, através do objeto a em presença, do gozo.

Pois, quando o desejo do analista se faz suporte de uma presença real como impossível, ele pode também encarnar, fazer interpretação de um evento de gozo singular. Se o significante não é tudo, a presença real enodada ao desejo do analista é o index do real do gozo do corpo. Com a presença real, Lacan nos coloca na via da sessão analítica como objeto topológico, um real que não é produzido pelo impossível, mas pelo nó, pelo manuseio do nó.

Tradução: Luciana Silviano Brandão
Revisão: Giselle Moreira

Referências:
LACAN, J. (1957–1958) O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1960–1961) O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

[1]
 Publicado originalmente em: lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2020/09/ironik-42-Habeas-corpus.pdf
[2] Cf. “Le confinement et le fomo, fear of missing out sur les réseaux sociaux”, disponível em www.nova.fr.
[3] Esse adjetivo qualifica uma maneira de funcionar em situação real, no tempo presente, sem intermediário nem mídia interposta. Se opõe ao “virtual” ao “a distância”. Geralmente utilizado no contexto profissional. Disponível em www.linternaute.fr.