Pais E Mães Atuais: A Ciência Como Partenaire

MARIA RITA GUIMARÃES

Seria possível pensar no “atual” dos pais e da maternidade — entendida no sentido mais amplo — sem a presença massiva da ciência? Tentaremos destacar alguns pontos passíveis de nos encaminhar na questão.

O pai que não sabe o que fazer e que recorre ao especialista é o paradigma da paternidade de nossa época, mas, mesmo hoje em dia, tem-se a resposta à pergunta: “o que é um pai?”.

Lacan interroga. “Qu’est-ce qu’un père?” (LACAN, 1957/1994 p.205), e os elementos de resposta que auxiliam sua elaboração são absolutamente atuais. É com uma ilustração “la plus saisissante” que Lacan fala do “X da paternidade”. Trata-se de uma novidade que vem da América do Norte, e seu relato é surpreendente: uma mulher, desde a morte de seu marido, com quem ela tinha um pacto de amor eterno, a cada dez meses, dava à luz um filho do falecido. O congelamento do sêmen, naquela época, era algo absolutamente novo e produzia indagações. Lacan se serve do exemplo para retomar a noção do pai simbólico como sendo o pai morto, mas acrescenta: nesse caso, o pai real é também o pai morto. Naquela data, todavia, o “pai real” se confunde com o pai da realidade, disjunção que Lacan promoverá em seu ensino anos mais tarde. Em 1957, a ilustração permitiu a Lacan realçar a distância entre o que seja a função da procriação e a noção do que é, afinal, um pai.O que Lacan está formulando e que dirá, em 1967, é que o “X da paternidade” é o lugar do pai como vazio, necessário ao cumprimento de sua finalidade; para que opere como função, que é, afinal, a nomeação do desejo. “Que o desejo não seja anônimo”, como disse, em 1969.( LACAN,1969-2003,p.369) Sem dúvida, a questão do desejo e da mediação do nome do pai inquieta Lacan, pois, como disse, “no futuro, se fabricarão filhos diretos de homens de gênio”, e, em consequência de tais fatos, o pai sofreria um golpe em sua palavra de maneira ainda mais radical.

A questão é então saber como, por que via, sob que modo, se inscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral, da qual a mãe será o único representante e o único veículo. Como é que ela vai fazer falar o ancestral enlatado (LACAN, 1956-1957/1994, p.386).

Hoje em dia, a questão é de ordem enlouquecedora, tal como se pode ler no seminário alemão Der Spiegel em setembro de 2013.(1) Segundo a publicação, o departamento para as crianças e saúde pública recebeu um informe de que “o homem deu à luz em casa.” O homem, um transexual que manteve seus órgãos sexuais femininos, deu à luz “um menino, depois da inseminação artificial”. Porém, requer ser registrado como “pai” no registro civil e não como mãe, “uma demanda que a administração respondeu favoravelmente.” A surpresa do caso não fica por aí: mais que isso, o “pai” da criança “[…] solicita que o sexo do bebê não seja declarado”, demanda que foi recusada. Esse caso recente extrapolou a administração de Berlim, mas não se trata de acontecimento único. Também sob outras modalidades de forçamento executadas através das técnicas da procriação, podem-se encontrar inúmeras ilustrações do sem limite instaurado no campo das relações e identificações dos lugares familiares: o real foi tocado. O preocupante é que, agora, não somente o real do corpo da mulher é tocado, porém, igualmente, o corpo do “novo homem”, efeito da ciência. Podem-se acompanhar as dificuldades colocadas para a justiça e a necessidade de inscrições de novas consideracões jurídicas sobre a figura do pai, e, quase sempre, na urgência. Como foi dito por Éric Laurent, “os comportamentos performativos singulares não cessam de criar perturbações nas categorias do Direito” (LAURENT, 2008, p.15)

Ao comentário da autoridade alemã responsável pelo citado caso: “Em um ou outro momento, esta criança vai descobrir que seu pai é, na realidade, sua mãe” acrescentaremos o imprevisível dos efeitos subjetivos para essa criança, ainda mais sobrecarregada pelo fantasma manifestado por seu pai/mãe de que não lhe fora concedida uma inscrição sexual: gênero neutro, o limbo da indiferenciação.

Éric Laurent nos tem mostrado, em diversos trabalhos, como vão as ficções: sejam as jurídicas, sejam as científicas, não estão feitas para dar conta do ponto real que é a origem subjetiva para cada um. Para utilizar suas palavras, trata-se “da malformação do que foi o encontro falido entre os desejos que, a cada um de nós, nos empurrou ao mundo” (LAURENT, 2008, s/p) A ciência se interessará pelo ponto obscuro da origem humana? Não é certo, já que se baseia pelo princípio da transparência: o pai por ela reconhecido é o pai do DNA, o que é validado pela ficção jurídica. Porém, cada vez mais, nesse campo da filiação, as exigências por novas ficções jurídicas não param. Existe, inclusive, a L’Association Procréation Médicalement Anonyme, que reúne os filhos nascidos de dom de gameta anônimo, mas, igualmente, os doadores. A polêmica discussão a respeito da interdição do conhecimento das origens genéticas divide a justiça, conforme as leis dos países em questão.

Através da Associação, passam, agora, a serem escutadas as primeiras vozes dos filhos do anonimato promovido pela prática de doação de esperma, tal como foi publicado no jornal francês Le Figaro em 09/02/13.

Um jovem de 23 anos, Roussial Clemente, nascido por inseminação artificial com doador anônimo, disse:

Tive problemas para encontrar as semelhanças com meu pai. Durante um passeio à beira d’água, finalmente me disse que ele não era a pessoa que me havia feito. Pulei em seus braços. Foi um choque, mas também um alívio. Antes, eu tinha imaginado uma violação, uma adoção.

Lemos, então, os testemunhos como parte do romance familiar de cada um, tal como Freud nos ensinou e, se falar de pais na atualidade é assunto multifacetado, “em todas estas variações ou criações diversas, distintos discursos vão entrar em conflito sobre o que são o pai ou a mãe nesta ocasião. Mas o que vemos é que ninguém quer ter filhos sem pais” (LAURENT, 2008, p.2)

No entanto, não se está promovendo um retorno da figura do pai, talvez menos na pele do pai edípico do que na pele do pai gozador, na tessitura do saber da medicina da procriação?

L’effet-Mére:[2] Sintoma Moderno
No caso do avanço da ciência no domínio da fertilidade humanam — seja quando nela se oferecem as possibilidades contraceptivas — para que a criança não venha quando ainda não é desejada — seja na oferta de técnicas para que a criança venha quando tudo indica que não virá — fica muito evidente a paixão do saber da ciência. O impossível, segundo se pode ler na literatura das novas tecnologias da reprodução (NTR), pode ser transgredido. Trata-se de um discurso que se opõe à castração.

Essa evidência está nos efeitos que o discurso da ciência promove no sujeito, fazendo surgir, na realidade, na cena mesma da realidade, o que pertence ao âmbito do inconsciente. A respeito da maternidade, Laurent formula a pergunta se é suficiente engravidar-se e dar à luz para se converter em mãe: ainda será necessário desejar o filho. É muito diferente a demanda que se faz a um médico e o desejo de ser mãe, o desejo de mãe. A mulher, na atualidade, encontra uma inscrição como sujeito desejante na resposta “prêt-à-porter” oferecida pela medicina da reprodução. Pode-se dizer que a solução já pronta e oferecida pelas novas tecnologias reprodutivas à problemática da feminilidade cria uma ambígua situação para a mulher contemporânea.

A partir da gestão científica da sexualidade humana, mais claramente, com a possibilidade de uma contracepção segura obtida pelo uso de pílulas e DIU, por exemplo, surge como efeito o desenlace entre a sexualidade e reprodução humana e, entre uma e outra, um tempo infecundo. Como disse Nicole Athéa, se antes a sexualidade era o objeto de interdição, esta se deslocou para a procriação. Trata-se de um discurso vigente cuja difusão ainda se processa. Os programas governamentais de saúde continuam valorizando os procedimentos pedagógicos, educativos, junto aos jovens, como prevenção à gravidez entre adolescentes. Nos tempos atuais, se acontece gravidez na adolescência, ela já é considerada como sintoma: “é num clima de esterilização que começa a vida sexual, com a consequência do medo frequente de ser estéril” (ATHÉA, 1990, p.38).[3]

Se a vida sexual se inicia pela esterilização, como se sabe da possibilidade da fecundidade? Trata-se da “programação” da concepção sustentada pelo voluntarismo e, nesse enquadramento, “ser estéril” para a mulher, para o casal, é não ter o filho no momento em que decidiram tê-lo. Somente nesse momento, portanto, é que se percebe como insustentável a ideia de que a fecundação esteja completamente dominada pelo saber da ciência em colusão com a Vontade. É que, até tal momento, o domínio científico experimentado pelo casal, no ato da contracepção garantida, confere e legitima a crença de que apenas a realidade da ciência se torna causa na procriação humana. Na verdade, a onipotência científica se encarna na palavra do médico, sujeito suposto saber do desejo do paciente. O saber oracular resulta, muitas vezes, em efeitos profundamente nefastos, mas pode ser que o médico nunca se dê conta disso, já que, em geral, não é sua preocupação interessar-se pelo sujeito. Marie-Magdeleine Chatel relata um caso que serve bem como exemplo de como os fatos acontecem.

Uma moça de vinte e três anos chega para uma consulta de rotina: o ginecologista é informado de que ela não utiliza anticoncepcionais seguros; ela sabe ‘tomar cuidado’, nunca engravidou e diz não querer filhos por ora. O médico, ainda assim, parece se surpreender com o fato de que, com uma contracepção tão incerta, ela nunca tenha engravidado: propõe-se a verificar isso. Ele preocupa a moça que, ao mesmo tempo em que não quer filhos, fica angustiada, quer saber se poderá tê-los algum dia, e começa a recear ser estéril. Ela se engaja numa série de exames exploratórios, bem como seu namorado, a quem a coisa repugna. Emitem-se hipóteses pouco significativas, como o muco e as variações do espermograma. Ela se apega a isso, pois teme jamais poder ter filhos. Hoje, está com trinta anos e engajada numa série de FIV. Diversos embriões se formaram graças ao encontro do esperma de seu namorado com um óvulo dela, mas não se implantam. Evidentemente ela se interroga, pois reconhece que nem ela nem o namorado sabem ainda, realmente, se desejam ter um filho. Para ela, é a ideia de impossibilidade de ter filhos que deve ser eliminada. Ela quer fazer a prova da sua fecundidade. E ele, por sua vez, faz tudo isso por ela. Ela se surpreende desejando, caso esteja grávida, ter um aborto espontâneo ou até mesmo fazer uma interrupção voluntária de gravidez (IVG). ‘Mas continua torturada pela angústia’ (CHATEL, 1995, p.90-91).

Nicole Athéa assinala que a sociedade moderna está instalada sob o mito do domínio perfeito da reprodução e que parece impossível voltar e a ele renunciar, renunciar a essa suposta segurança. A autora questiona se não existiria o risco para a sociedade, que, à força de prevenir os riscos da sexualidade, ficaria sujeita à própria desaparição.

Entretanto, a “contracepção segura” e seus efeitos, a maneira como tais efeitos se manifestam (a interpretação da infecundidade produzida via contracepção e, se, finalmente, resulta em uma infertilidade), se bem têm suportes no discurso social, são resultantes de sua incidência na singularidade de cada sujeito. Para a psicanálise, o sintoma tem determinações opacas que se devem à relação do saber com a pulsão. São relações particulares, peculiares ao modo como o sujeito as estabeleceu. Por singularidade de um sujeito compreende-se uma determinação de satisfação pulsional pelo inconsciente. Ao mesmo tempo, essa determinação depende da cultura, dos discursos em vigência na época como vínculos sociais. Se, para a Yerma de Lorca,[4] seu ser desejante pairava em suspenso, no tempo da espera do filho como dom de amor por parte do homem, e, para além disso, se seu desejo e a possibilidade de se identificar como mulher estavam totalmente recobertos pela “corrente maternal”, atualmente, podem-se catalogar os casos nos quais a mulher já não espera o dom do homem na forma de um filho: ao contrário, substitui o homem pela busca do sêmen armazenado pela ciência. Em última instância, em alguns casos, é a ciência o mais novo partenaire da mulher.

Se existem muitas mudanças nas relações das mulheres com os homens a partir das multiplicações das relações sexuais fora da instituição de um laço exclusivo e definitivo, também se fala de feminização mundo. Em tal expressão, não se trata de um problema numérico, de que haja mais mulheres que homens, porém se trata do que, em psicanálise, conhecemos como S de A barrado. Vemos um movimento que vai do universal do nome do pai à inconsistência do S de A barrado, ou seja, vai da consistência do Outro à inconsistência, ao não-todo.

Jacques Alain-Miller refere-se à feminização do mundo como sendo o fato de que as mulheres estão muito à vontade na atualidade porque essa época se caracteriza como “o novo reino do não-todo”, que é o modo de gozo próprio ao feminino, sem limites. O não-todo, situado nas fórmulas da sexuação elaboradas por Lacan, está à direita do universal masculino, em que se localiza a maternidade. É o acontecimento da maternidade que torna disponível para a mulher um significante possível. Não obstante, a maternidade, no enlaçamento da subjetividade contemporânea com o objeto, pode-se apresentar como o novo sintoma para a mulher. Ou, talvez, mais forte, tal como disse Miller, referindo-se à série em que um filho se inscreve para a mulher: “em certo sentido, a maternidade mesma pode ser considerada como formando parte da patologia feminina” (MILLER, 1997, p.9).

(1) Acessível no link: http://www.genethique.org/?q=content/allemagne-les-d%C3%A9rives-de-la-transsexualit%C3%A9.
[2] Conforme título do texto “Um nouveau symptôme de la femme”, de Éric Laurent, publicado na revista L’Âne, s.d.
[3] No original: “c’est dans un climat de stérilisation que commence la vie sexuelle, avec comme conséquence la peur fréquente d’être stérile”.
[4] Yerma é a tragédia da mulher estéril, criada por Federico Garcia Lorca, em 1934, na obra de mesmo nome.

 


Referências
ATEA, N. “Le magazín des enfants”, In: La stérilité: une entité mal definie. Collectif dirigé par J. Testart. Paris: Éditions François Bourin, 1990, p.38.
CHATEL, M. M. Mal-estar na procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.
DELAISI, G.; VERDIER, P. Enfant de personne. Paris: Éditions Odile Jacob, 1994.
LACAN J., Le Seminaire, livre IV, La relation d’objet, Paris,Éditions du Seuil,1994.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J.( 1969-2003). Nota sobre a criança. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369.
LAURENT, É. El niño como real del delirio familiar. Disponível em: http://www.blogelp.com/index.php/el_nino_como_real_del_delirio_familiar_e. Acesso em 15/03/2014.
LAURENT, É. “Século XXI: não relação globalizada e igualdade dos termos”, Cien Digital, Boletim on-line do Cien Brasil, n.4, Belo Horizonte, jul. 2008, p.13.
LAURENT, É. “Como criar as crianças.” Disponível em
http://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/textos/numero3/.pdf, p.2. Acessado em 15/03/2014
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes”, Revista de la Cause Freudienne, Paris: Diffusión Navarin, 1997, p.09.
PONTALIS, J. B. “Entretien avec Philippe Ariès”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.19, Paris: Gallimard, 1979, p.12-25.

Maria Rita Guimarães
Maria Rita Guimarães – Psicanalista, membro da EBP/AMP. E-mail: mariarita.guimaraes@gmail.com.



Crianças À Deriva: Reflexões Sobre A Construção, O Comentário De Casos E A Transmissão Da Psicanálise

JEANNINE NARCISO

No livro A violência: sintoma social da época, encontra-se o tema “desditas da infância”. Desventura é sinônimo da palavra desdita. Há crianças vivendo desventuras em série, que é inclusive o título de uma série de livros infanto juvenis e de um filme.[1] São crianças que vivenciam a infelicidade, a aflição e a falta de sorte. Como comentar casos que trazem esta particularidade?

Miller (2006), no texto A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan, aponta o caminho a percorrer entre o ponto de partida, que é a leitura do caso, e a busca por autores que já escreveram sobre o que é necessário saber para poder escrever um comentário. E vai dizer de duas vertentes do ensino: a investigação e a acumulação. A acumulação é a parte de procurar, nos livros, nos artigos, na internet, o que foi dito pelos que já se referiram ao assunto. E a outra parte é a investigação, a pesquisa, é o buscar, esperar o novo.

A partir do que diz Miller, torna-se importante pensar na pretensão que é comentar um caso. Tendo por certas as palavras de Lacan ao se referir à prática da psicanálise, “pretender, no profissional, ter um domínio de um real que não se presta a ser dominado” pode ser mesmo um “certo pecado” (Miller, 2006, p.19).

Na clínica psicanalítica, a construção, a apresentação e a escrita do caso clínico dão à psicanálise o estatuto de um saber transmissível. Miller vai dizer que, “na transmissão da clínica, devemos dar a primazia ou prevalência ao singular mais que ao geral e ao universal” (Miller, 2006, p.20). Ao privilegiar o caso de uma criança, interessa o detalhe, o que não pode ser generalizado. Não mais acreditar nos sistemas de classificação. O que não quer dizer que eles não existam, pelo contrário, estão presentes no dia a dia de todos nós. Frequentemente, somos convocados a avaliar ou a sermos avaliados.

Na psicanálise, as regras e as classes são o sujeito analisante quem inventa. Segundo Miller, cada analisante assume seu caso em um universal muito particular. Na época do mais, algumas crianças, por já terem passado pelo consultório de vários “psis”, já chegam dizendo que não querem que o que falam seja contado para os pais e que não querem fazer testes. E cada um, como a criança contemporânea que é, também quer dizer: “Não, sou apenas eu, não sou um número, não sou um exemplar” (Miller, 2006, p.21)

Como elaborar e transmitir a clínica no nosso tempo? A indicação que temos e que acontece no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais é que se trata de pensar o diagnóstico como uma arte. “Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida” (Miller, 2006, p.27) Uma experiência bem diferente da tendência atual estatístico-classificatória que refere o indivíduo a uma classe patológica. O discurso do mestre atual promete construir, com grande eficiência, maneiras tecnológicas de fazer diagnóstico automático.

Em psicanálise, a apresentação de ideias gerais sobre um tema cede lugar ao caso particular. A cada caso apresentado, privilegiamos a decisão que leva a encontrar os princípios que podem orientar a condução: “o tato que cada caso requer”. A experiência permite elaborar o tato. Se, inicialmente, são esperados muitos dados “para concluir sobre a hipotética orientação do tratamento, com o tempo se conclui com menos” (Miller, 2006, p.28)

No Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental, alguns casos comentados não podem ser rigorosamente qualificados de caso clínico. Os casos são discutidos por serem situações de urgência, marcadas pelo excesso, pela violência e que demandam uma atenção. Segundo Viganó (2012), para possibilitar a construção do caso clínico a partir do caso social, é preciso um grupo de trabalho, o grupo de uma prática analítica na qual vários sustentam um desejo de saber visto como o êxito de uma experiência analítica e nomeado de transferência de trabalho.

Nesses casos, Laia (2010) considera que, às vezes, por serem situações relacionadas à violência, deslocam-se para um campo diferente da “psicanálise aplicada à terapêutica”, mas tampouco são da “psicanálise pura”. São considerados “problemas sociais” e, portanto, carregam a expectativa de “readaptação social”. O que exige do analista, presente nas instituições judiciárias, assistenciais e educativas, certo tato, já que não há nesses lugares uma transferência prévia à psicanálise, e muitos dos profissionais que ali trabalham não levam em conta a existência do inconsciente. Portanto, há o risco de fixar o sujeito em um discurso determinista.

Atualmente, um significativo número de crianças é encaminhado pelos programas de referência para a violência sexual e doméstica, para serviços em que trabalham psicanalistas. Muitas vezes, é a mãe quem procura o Outro da nossa época — o hospital, o poder público, para que traduza para ela o que está acontecendo com o filho. No momento em que é escutada, o que conta é a história da sua vida, da sua família e da criança. Na história de muitas crianças, a violência da qual se tornou vítima foi cometida pelo pai.

O relato de vida feito pela mãe mostra que os acidentes na vida da criança começam cedo. São vidas marcadas pela errância, pela dificuldade econômica, pela gravidez indesejada e pelo abandono. A criança chega ao mundo sem a garantia de inscrição no Outro. Segundo Lacadée:

Para um sujeito que chega ao mundo como um corpo, como um corpo vivo que goza, grita e chora, é muito importante encontrar um desejo que se debruce sobre ele e que não seja anônimo. Esse desejo só não é anônimo, quando a maneira como a mãe se refere ao corpo de seu filho, a maneira como ela se ocupa de suas necessidades, inclui um mistério que se chama ‘desejo’ (LACADÉE, 2006, p.68).

Quando a criança destina seu discurso a alguém que a escuta, logo inventa a sua maneira de fazer uso da língua para dizer o que se passa com ela. Assim, pode falar de um pai desajustado, que demonstra aos filhos não saber o que fazer com a vida, que não se apresenta como o agente da interdição sexual. É um adulto que não coloca obstáculo para sua própria satisfação, ao seu direito ao gozo. Assim, na ausência de um adulto que o oriente em direção ao Outro, a criança não “adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida” (LACAN, 1984/2002, p.42) e não consegue conter sua busca pela satisfação pulsional.

Segundo Laurent, a psicanálise pode-se posicionar e transmitir algum saber sobre o real em jogo nessas situações. Como analistas, devemos “dispensar os semblantes propostos à civilização” e sustentar que o “discurso da parentalidade, cortado da particularidade do desejo que produziu a criança, faz parte destes semblantes que recusamos” (LAURENT, 2007, p.278).

pO que a investigação sobre a transferência vai-nos trazer com toda a força é o desejo do analista como aquele que vai contra a “criança generalizada”, vai contra tomar o ser falante como objeto e deixá-lo sem palavra e sem responsabilidade. Ocupando um lugar no discurso analítico, tornamo-nos destinatários do sofrimento da criança, oferecendo-nos como seu complemento a partir do manejo de nosso ato e interpretação.

Por se opor ao discurso da “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p.367), o analista de orientação lacaniana se oferece como destinatário do sofrimento da criança, como seu complemento, como um parceiro. Ou seja, para Castro (2006), pode o psicanalista, a partir do manejo do ato clínico e da interpretação, favorecer a invenção, a construção de um saber que possibilite à criança não mais se submeter a um imperativo de gozo.

Algumas crianças estão à deriva, o seu sofrimento não para de agitar seus corpos. Elas parecem estar sem um destino. Compreende-se, assim, que é na experiência analítica, no momento do surgimento do significante carregado de gozo, que o analista pode manejar seu ato, para que, como sujeito, a criança se reconduza e se ancore, quando necessário, em um bom porto. E, a partir deste porto, cada uma possa partir para novas aventuras, sustentada por um desejo que não seja anônimo (LACAN, 1969/2003, p.373).

 

(1) “Desventuras em série” nome dado aos 13 livros de aventura pelo autor Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler). No Brasil, a série foi publicada pela Editora Companhia das Letras. Em 2004, foi lançada uma adaptação, para o cinema, de três livros da série.

 


Referências
CASTRO, H. “Ficções e fixões: ancoragens paternas”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.113-121.
LACADÉE, P. “O uso do nome-do-pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.34-70.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.361-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369-370.
LACAN, J. (1984). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.42.
LAIA, S. “Considerações psicanalíticas sobre a violência urbana”, Latusa Digital, Rio de Janeiro, ano 7, n.40-41, mar./jun. 2010.
LAURENT, É. “A criança no avesso das famílias”, In: ALVARENGA, E.; FAVRET, E.; CÁRDENAS, M. H., A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Terceiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p.20.
MILLER, J.-A. “A arte do diagnóstico: O rouxinol de Lacan”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.15-33.
TELLES, H. “Desditas da infância”, In: MACHADO, O.; DEREZENSKY, E. (Orgs.), A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, 2013, p.272-280.
VIGANÓ, C. “Servir-se do pai além do Édipo”, In: ALKIMIM, W. (Org.), Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.175.

Jeannine Narciso
Psicanalista, responsável pelo Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental – Montes Claros e Ipatinga. Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: jannarciso31@gmail.com



Almanaque On-Line Entrevista

CARTEL CLÍNICA DO TESTEMUNHO

 

Almanaque on-line entrevista os integrantes do Cartel “Clínica do Testemunho”: Jorge Pimenta, Lucíola Macêdo, Maria Clara Pêgo, Simone Pinho Ribeiro e Guillermo Belaga(1) (mais-um).

Guillermo Belaga, em seu texto “Incidências da psicanálise nos dispositivos públicos”, publicado nesta edição do Almanaque on-line, afirma que, além do trauma inicial, metaforizado na história da psicanálise como trauma de nascimento (que configuraria a entrada no tempo, no mundo do Outro, no mundo da linguagem), se faz presente também o trauma como acontecimento, nas contingências de uma vida, irrompendo nas representações simbólicas que sustentaram o sujeito até aquele momento, provocando-lhe a angústia generalizada.

Em seguida, ao comentar a apresentação, por Daniel Riquelme, do atendimento de um caso relacionado às violações de direitos vivenciadas durante a tragédia da ditadura militar na Argentina, Belaga reflete sobre o modo como a psicanálise se situa para operar frente a um vazio subjetivo, consequência de um trauma individual e social. Ao comentar a assistência que algumas instituições oferecem ao sujeito que foi afetado pela repressão e terrorismo político na Argentina, Belaga nos alerta para o risco da lógica do asilo e da proteção, o que não possibilitaria uma mudança em sua posição subjetiva.

No Brasil, o golpe militar, trauma histórico, completa 50 anos em abril. Entre outras ações de reparação das perseguições e torturas perpetradas pelos aparelhos repressivos da ditadura, há uma proposta do Ministério da Justiça, que são as chamadas “Clínicas do testemunho”. Entrevistamos os integrantes do cartel assim nomeado, inscrito na EBP, que está trabalhando a articulação teórica entre os conceitos de acontecimento, trauma, memória e reparação e a possibilidade de oferta de atendimento psicanalítico a vítimas e familiares.

1. O Que São As Clínicas Do Testemunho? Como E Por Que Se Constituiu O Cartel? Quais Os Temas E Como Se Articulam?

Jorge Pimenta: Clínica do Testemunho é um dispositivo de atenção psicológica às vítimas da ditadura civil-militar que teve lugar no Brasil entre 1964 e 1985. Trata-se de proposta da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (MJ), constante do programa de reparação que o Estado Brasileiro definiu a partir de exigências da sociedade civil organizada. O programa está voltado a todos aqueles que foram perseguidos pelo regime ditatorial. O MJ, através da Comissão de Anistia, já mantém um programa de reparação econômica a perseguidos que perderam seus empregos em instituições públicas ou privadas, quando tiveram que sair exilados do Brasil ou se encontravam presos, já que muitos foram demitidos e mesmo expulsos do trabalho. A proposta da Clínica do Testemunho traz uma inovação, pois, além de ser um programa de atenção psicológica aos perseguidos, também aí inclui o atendimento de seus familiares. Em edital público, o MJ escolheu, primeiramente, quatro projetos (dois em São Paulo, um no Rio de Janeiro, um em Porto Alegre e outro em Recife) que estão atendendo vítimas e ainda preparando e capacitando profissionais para atuar nessa atividade. Investe-se em construção de estratégias de resposta e reparação de danos. Essa é uma iniciativa já conhecida em outros países da América Latina, como Argentina e Chile, nações que, como Brasil, Uruguai e Paraguai, passaram por terríveis experiências de ditaduras civis-militares que cometeram atos de lesa-humanidade, como extermínios, torturas, prisões, exílios e violências diversas a cidadãos que ousavam dispor de sua liberdade de opinião e expressão.

O cartel Clínica do Testemunho se constituiu ao pensarmos e propormos que o tema trauma e seu tratamento é um assunto presente desde a criação da psicanálise por Freud. Para nós, o Cartel trata de um tema que tem contornos políticos importantes, toca a clínica psicanalítica em seu âmago e dialoga com o tempo presente. A questão ética que nos mobiliza é a mesma que Lacan nos propôs: a de que o analista tem de se haver com seu lugar e sua época. Queremos trabalhar a questão do testemunho e seu tratamento clínico a partir de experiências de determinados sujeitos com o trauma que lhes adveio com prisões, torturas, assassinatos e desaparecimento de familiares, exílios políticos, perda de empregos e violências diversas.

A investigação no Cartel centra-se nas seguintes questões:

– é possível uma narrativa do inenarrável do real traumático?

– o que fazer com um resto que ainda insiste e insistirá sempre?

– o que é possível e o que não é possível esquecer?

– esquecer, elaborar, sintomatizar?

– como tratar o tema da transmissão intergeracional do trauma?

– o que fazer com a questão da herança pelo esquecimento?

O meu tema específico é “O indizível do trauma”.

Lucíola Macêdo: Meu tema é “Testemunho e escrita do trauma”. A escolha desse tema se articula a uma pesquisa em curso, a partir da qual tenho investigado de que modo, no contexto da Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra, o escritor Primo Levi encontrou-se com os limites da representação e com o caráter lacunar do testemunho. De quais recursos de linguagem se serviu para enfrentar a ilegibilidade e a opacidade da experiência traumática.

Simone Pinho Ribeiro: O cartel se constituiu a partir de nosso interesse em comum sobre o tema. Cada um de nós possui pesquisas anteriores ou em andamento que tocam de perto a questão do testemunho. No meu caso, trabalhei alguns anos com o tema “Psicanálise e campo de concentração”, que veio a resultar em uma Dissertação de Mestrado. Meu tema inicial no cartel era “O testemunho e o feminino”, mas ele anda um tanto claudicante. Venho rondando um novo tema, que se articula ao tema de Jorge e Clara e que concerne ao silêncio.

Maria Clara Pêgo: As Clínicas do Testemunho são voltadas para o atendimento de pessoas que foram torturadas durante a ditadura militar.

Também o testemunho público dado por estas pessoas, fora do consultório, faz parte das ações estimuladas pelo projeto das Clínicas do Testemunho.

O cartel se faz necessário para que cada um dos participantes possa trabalhar individualmente o tema da tortura e suas consequências traumáticas para o psiquismo humano.

Meu tema é “O trauma e o Silêncio”. O de Guillermo é “o analista ‘trauma’ e o traumático: tática, estratégia, política”.

O enfoque o trauma e do testemunho serão relevantes e articularão os temas individuais.

2. O Tema De Trabalho Lançado Para A Sessão Clínica Do IPSM-MG Para Este Ano Conjuga Os Conceitos De Trauma E Real, Destacando Que O Acontecimento Traumático Introduz Um Antes E Um Depois, Uma Ruptura. A Pergunta Dirigida Aos Núcleos De Pesquisa Interroga Os Praticantes Da Psicanálise Sobre As Incidências Do Trauma, “Pedaços De Real” Que Irrompem Em Sua Prática. O Que Vocês Consideram Que Seja O Trauma Na Experiência Pessoal E Profissional De Vocês? Com Que Referências Conceituais Vocês Estão Trabalhando?

Lucíola Macêdo: Farei um recorte levando em consideração o tema geral que nos coloca a trabalho no cartel: o trauma de 64. Parece-me que o que se atualiza do trauma de 64, e daí toda a pertinência das políticas de reparação — e, na esteira dessas políticas, as Clínicas dos Testemunhos — tenha-se dado principalmente em função do silêncio que se criou em torno do desaparecimento de pessoas e das práticas de tortura perpetradas no Brasil nessa ocasião. Nada foi dito e/ou investigado pós-golpe. Uma grande sombra de silêncio instalou-se não apenas durante a ditadura militar, como também após o restabelecimento da democracia em nosso país. Estamos no horizonte de uma das formas de negacionismo: a negação do trauma. O traumático, nesse caso específico, não se encontra apenas no encontro com o horror e suas marcas indeléveis, mas, sobretudo, na construção de traços factícios e falsas pistas (veja-se o caso do deputado Rubens Paiva, recentemente investigado e esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade) a fim de dissimular os verdadeiros traços e de negar o horror, afirmando, desse modo, que o horror não existe nem nunca existiu.

Jorge Pimenta: Trabalharemos teoricamente a questão a partir de uma bibliografia que retoma a discussão da angústia no Seminário 10 de Lacan, a questão do trauma generalizado e a orientação lacaniana para sua abordagem clínica, discutindo o que chamamos de ação lacaniana a partir da orientação lacaniana proposta por Jacques-Alain Miller, com destaque para a questão da urgência subjetiva, seu manejo, a eficácia e a presença da psicanálise nos dispositivos da cidade, inclusive aqueles fora do “setting clínico” tradicional, que são nossos consultórios e o divã. Ciência e política do trauma, quando se sabe que há uma insistência no trauma que os standards clínicos não atendem: acontecimentos traumáticos, sua memória — qual reparação é possível e o que fazer com o que insiste e a violência sobre os corpos, corações e mentes? É possível haver atravessamentos? O que fazer com a singularidade de algo que é “inominável”, o que restou para esses indivíduos que passaram por essas experiências e o que fazem hoje com isso?

Entendo que esse tema do testemunho é fundamental para a formação do analista, e sua investigação enseja o que alguns colegas já puderam elaborar com seus finais de análises e o passe na Escola de Lacan. Com destaque para o que se poder fazer com os furos, lacunas, que deixam marcas e cicatrizes impossíveis de serem apagadas ou zeradas. Como inventar algo que possa funcionar como um enlaçamento possível, logrando que o sujeito possa obter um sopro vital necessário para continuar vivendo, trabalhando?

Maria Clara Pêgo: Sou ex-presa política e fui muito torturada. Considero que o trauma que sofri está assim entrelaçado:

– a tortura sofrida;

– o falecimento do meu pai, quando estava sob tortura;

– o cumprimento de parte da pena em isolamento de 1 ano, em quartel militar;

– a saída e o retorno ao Brasil, após viver 9 anos na antiga Alemanha Ocidental.

Tanto na minha experiência pessoal como profissional trabalho com os conceitos freudianos de trauma.

3. Na Experiência De Vocês, Em Que Sentido A Psicanálise Contribui Em Relação A Um Trauma Histórico, Inscrito No Coletivo? Ou, Como A Construção De Uma Narração Própria E A Consideração De Uma Singularidade, De Uma Subjetividade, Se Localiza No Campo Das Políticas Públicas, Que Visam Ao Universal E À Recomposição Do Tecido Social?

Simone Pinho Ribeiro: Tentarei enfrentar, de maneira breve, essa pergunta tão abrangente. A noção de trauma encontra-se na origem da psicanálise e é um de seus alicerces. Lidamos com os efeitos de mais de 20 anos de ditadura militar, não apenas em nossa vida cotidiana, mas também em nossa prática diária. Vale lembrar aqui um fato curioso, a psicanálise, no Brasil, começou a ser praticada nos anos 1960, sendo assim, os psicanalistas brasileiros se viram diante dessa questão desde sempre. Seria interessante explorar as possíveis implicações desse fato. Quanto à questão das políticas públicas, no ponto em que elas se ligam à saúde, penso que o universal se refere ao acesso, pois elas visam ao acesso universal aos serviços de saúde. É claro que esse objetivo nunca se concretizou de fato, até hoje. Evidentemente, a ciência, o capital e as normas institucionais e administrativas direcionam as coisas no sentido de uma homogeneização que vai de encontro à psicanálise. Mas é preciso observar que a psicanálise encontra um espaço dentro de algumas instituições muito mais amplo e ferramentas de assistência pública muito mais abrangentes no Brasil de hoje, me parece, do que em alguns países da Europa. A despeito do imensurável inerente à psicanálise e seus resultados, de sua aposta em soluções singulares e, principalmente, de sua ética, a psicanálise acaba por encontrar um lugar dentro de algumas políticas públicas. Lugar esse que, por mais improvável, é esse mesmo que a pergunta coloca, o de possibilitar a construção de uma narração própria e a consideração da singularidade.

Maria Clara Pêgo: Através da ligação da psicanálise com a sociologia e a política podemos inscrever o trauma individual no histórico do coletivo e no contexto universal, permitindo a abertura de políticas públicas de atendimento psicossocial e psicanalítico, como é o caso das Clínicas do Testemunho.

4. O Que Justifica A Presença Da Psicanálise No Campo Da Assistência Aos Traumatizados? Como Transformar O Ato De Retorno À Experiência “Traumática” Em Atravessamento? Este Poderia Ser Um Indicador Do Que Se Pode Esperar Dessa Assistência?

Lucíola Macêdo: Em relação à Clínica do Testemunho, o trabalho analítico é sensível às lacunas, mas também aos possíveis enlaces e quanto à invenção de cada um naquilo que concerne o trauma, a história e a memória. As concepções de trauma e memória em jogo, numa clínica como essa, fazem uma enorme diferença, assim como permitem uma orientação. Os “atravessamentos” não se fazem com a pura e simples rememoração ou lembrança do vivido; eles terão que “se fabricar” por meio de outra modalidade da memória; de uma memória inscrita no corpo — por meio da repetição e também no jogo fundamental da letra em sua iteração, que, fabricando-se, poderá constituir um novo acesso ao real que não estava lá, dentro das caixinhas das lembranças. Em psicanálise, a memória é inseparável do esquecimento, o que significa que seria preciso deslocar o esquecimento no texto, mas sem apagar suas conexões com o real. Assim sendo, o sintoma não seria apenas o arquivo rasurado que conteria a parte esquecida, denegada, foracluída ou censurada da experiência traumática, mas um modo de escrever uma relação inédita com a própria história.

Maria Clara Pêgo: O estudo do trauma, tal qual Freud o fez, justifica a presença da psicanálise no campo da assistência aos traumatizados e penso que o desejo de superação desse trauma (atravessamento) faz-me participar desse cartel, no intuito de colaborar com a assistência a outros traumatizados.

[1] Almanaque on-line agradece a Guillermo Belaga que contribuiu para essa entrevista com texto publicado na rubrica Encontros dessa edição. Texto que provocou a elaboração das questões propostas aos membros do cartel, a quem agradecemos igualmente a contribuição para o tema de trabalhado pelo IPSM-MG, bem como para o registro do evento histórico 50 anos do Golpe Militar, o qual consideramos não ser sem consequências para a prática da psicanálise no Brasil e para os contornos do trauma nos corpos e da violência em nossas cidades.



O Corpo E O Outro

SANDRA ESPINHA

Segundo J.-A. Miller, “uma orientação da psicanálise para o real encontra, primeiramente, não o inconsciente, mas o sintoma” (MILLER, 2008, p.74).

C onsiderar o sintoma como o real da experiência psicanalítica, que nos levaria para além do inconsciente como produtor de sentido, é tomá-lo como um modo de gozo. Para Miller, o sintoma-gozo, tal como Lacan o elabora em seu último ensino, pode ser um nome para esse mais além do inconsciente (MILLER, 2008). Como um modo de gozo, o sintoma faz com que o corpo vivo seja introduzido no ensino de Lacan com o conceito de falasser, termo que reúne o sujeito e o corpo e estabelece uma nova versão lacaniana do significante, não apenas como o que mortifica o gozo do corpo, mas como um real, um condensador de gozo, que coloca em questão uma causa. “O significante é causa do gozo” (LACAN, 1972-1973/1985, p.36) que vivifica o corpo.

De mensagem endereçada ao Outro, a mensagem cifrada, cujo destinatário é o próprio sujeito, no monólogo autístico de seu gozo, o que passa a ser a referência do sintoma é uma cifra de gozo que não inclui o Outro. Segundo Miller (2008), essa nova articulação lacaniana entre o sintoma e o gozo constitui um retorno de Lacan ao Freud que aborda o inconsciente em sua articulação com a pulsão, que “quer gozar e goza de maneira derivada”.

De acordo com Miller:

O que é real no sintoma é o que serve ao gozo. Que isso fale, que seja uma mensagem, que se decifre, não está no mesmo nível daquilo para o que ele serve. Pois bem, eu digo que é este tormento, situado neste lugar, o que define hoje o que é ser lacaniano (MILLER, 2008, p.51).

O sintoma como o que serve ao gozo “vem do real” (LACAN, 1974/2011, p.17), o que não quer dizer que ele se oponha ao significante. Ele é, antes, o que aponta para o vazio inaugurado pelo encontro material da linguagem com o corpo como suporte de um “se gozar” (MILLER, 2004, p.48).

A s primeiras teorizações sobre o corpo no ensino de Lacan apresentam um corpo pensado a partir da vertente mortificante do significante. Se há gozo, como efeito do significante, este é um gozo residual, o gozo do mais-de-gozar (a), que se articula, na fantasia, como um suplemento de vida, ao sujeito já morto do significante (S/).

S/  a

É em torno do Seminário 20 que Lacan passa a privilegiar o efeito de gozo do significante sobre seu efeito mortificante. Ele vai chamar de sinthoma a incidência de gozo que o significante tem sobre o corpo, para além da fantasia. O saber do inconsciente trabalha para produzir gozo. Ele não é simplesmente uma estrutura, mas um funcionamento.

Aqui, o gozo não conhece oposição e está por todas as partes. Lacan faz dele uma outra satisfação, a satisfação do blá-blá-blá, que liga significante e corpo. Afirma-se que “não há gozo do corpo senão pelo significante, e há gozo do significante somente porque o ser da significância está enraizado no gozo do corpo” (MILLER, 2008, p.389). É nessa perspectiva que Lacan vai dizer que: “O inconsciente é que o ser, falando, goze e […] não queira saber de mais nada.”

A colocação, em primeiro plano, do efeito de gozo do significante privilegia o significante sozinho, o S1, em seus efeitos de afeto sobre o corpo. O enfoque é a conexão direta entre o corpo e a linguagem, a partir do qual o sintoma é pensado menos como o que integra a pulsão em um esquema de comunicação e mais como o que veicula uma cifra de gozo que “se basta” (LACAN, 1962-1963/2005), que não inclui o Outro, e cujo destinatário é o próprio sujeito.

É com o conceito de lalíngua que Lacan nos apresenta um simbólico desarticulado do Outro e referido ao Um do gozo, que fala para si próprio com a pulsão. No lugar do Outro que não existe, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala. “O inconsciente não é simplesmente ser não sabido.” O inconsciente consiste em gozar de um saber sem que seja necessário “saber que se sabe para gozar de um saber” (LACAN, 1975/1998, p.9)

A substituição da verdade pelo gozo implica a substituição da linguagem pela lalíngua. A ordem simbólica é substituída por um simbólico cuja característica não é o traço diferencial do significante, mas o buraco que ele faz no seu encontro traumático com o corpo. Na vertente da verdade e da linguagem, o sintoma é uma formação do inconsciente, que se decifra e faz sentido. Na vertente do gozo e de lalíngua, o sintoma é um nome para um inconsciente real, não analisável, que não trabalha para o sentido, mas para o gozo. Na lalíngua, a “linguagem é o real” (MILLER, 2011, s/p) ela se reduz à sua matéria significante, à letra, e não se presta à decifração. Aqui, o sentido do sintoma é o real (LACAN, 1974/2011), ou seja, o sentido do sintoma é o sem sentido do gozo. O real do gozo é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá (MILLER, 2011) pelo sintoma.

O inconsciente real é “o inconsciente como o impossível de suportar. […] o que é buraco (trou), o que é excesso (trop), o que é tropmatisme ou troumatisme” (MILLER, 2013, p.9). O falasser é diretamente confrontado com o real, sem a interposição do significante. No real de lalíngua, o Outro não é o Outro com o qual o sujeito tem uma relação significante, mas o Outro representado por um corpo vivo e sexuado. Nesse nível, não há relação significante (MILLER, 2008). No nível sexual, a relação passa pelo gozo do corpo, e o Outro é um sintoma do falasser, seu meio de gozo. No sintoma, goza-se do corpo do Outro, entendendo-se por corpo do Outro o corpo próprio, em sua dimensão de alteridade, e o corpo do próximo como um meio de gozo do corpo próprio (MILLER, 2008).

É a esse real de lalíngua e do gozo sexual que a criança é, primeiramente e de maneira bruta, confrontada. Mesmo que ela nasça em um banho de linguagem, a criança recém-nascida ainda não a tem à sua disposição, ela ainda não pode fazer uso do significante. A linguagem intervém sempre sob a forma desse real que é lalíngua (LACAN, 1975/1998). E é no confronto com esse conjunto dos equívocos da língua, nesse “motérialisme, que reside a tomada do inconsciente” (LACAN, 1975/1998, p.10). A criança apreende os significantes em sua materialidade, a fim de gozar ao nível do som ou de escutar um sentido diferente da intenção de significação emitida pelo Outro. O gozo do balbucio é um primeiro tratamento do real pela lalíngua, em que não se está no querer dizer, mas no querer gozar (MILLER, 1996/1998, p. 74).

Progressivamente, esse gozo autístico de lalíngua vai sendo substituído pelo gozo do significante, e a criança se curva à autoridade superior da linguagem. O Outro da linguagem substitui o Um sozinho de lalíngua, e, nessa passagem, dá-se o encontro da criança com a castração do Outro, com o desejo da mãe, que a confronta com o real do sexo como um impossível concernente ao gozo. A passagem de lalíngua para a linguagem implica que a criança se deixe dividir pelos significantes e sofra uma perda de gozo. Com a entrada na linguagem, o inconsciente se forma para cifrar o gozo de lalíngua, que resta com um real que escapa à articulação significante. O inconsciente se forma como “um saber-fazer com lalíngua” e torna-se “o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante” (LACAN, 1972-1973/1985, p.190). É a partir desse gozo interdito de lalíngua — gozo sexual — que, tendo-se entrado na linguagem, os sintomas necessariamente se formam.

Na “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Lacan afirma que a infância é uma época decisiva, na medida em que é nela “que se cristaliza, para a criança, o que se deve chamar por seu nome, a saber, os sintomas” (LACAN, 1975/1998, p.9). Lacan esclarece que, se os sintomas têm um sentido, como formulou Freud, este só pode ser interpretado corretamente em função das primeiras experiências do sujeito, isto é, a partir do encontro da criança com o que ele vai chamar, “na falta de poder dizer nem mais, nem melhor”, de “realidade sexual” (LACAN, 1975/1998, p.10), no que esta se especifica, no homem, “pelo fato de que não há, entre macho e fêmea, nenhuma relação instintiva” (LACAN, 1975/1998, p.11). Para a criança, o encontro com o real do sexo se dá pela incidência de um “primeiro gozar”, que lhe é desconhecido e que se apresenta como exterior a ela.

Lacan retoma o caso Hans para assinalar que é o encontro com sua própria ereção, experimentada como “o que há de mais hetero”, que está “no princípio de sua fobia” (LACAN, 1975/1998, p.10). O sintoma fóbico de Hans é a expressão do medo que suas próprias ereções lhe inspiram, no que esse gozo real separa seu pênis da unidade semântica de seu corpo e o confronta com uma hiância no saber. Sua significação é a recusa da questão que ele tem que enfrentar encarnada nesse objeto externo, elevado à dignidade de significante, que é “o cavalo que relincha, que dá coices, que salta, que cai no chão” (LACAN, 1975/1998, p.10), e que exprime o que acontece em seu corpo. É do gozo estrangeiro do seu órgão, encarnado nesse significante, que Hans tem medo. Seu sintoma é uma invenção, que amarra um gozo extraído do corpo a um elemento de sua lalíngua. Ele vem no lugar da causa do medo, como Hans afirma, ao dizer que pegou a sua besteira “por causa do cavalo”. A causa da hiância encontrada por Hans é atribuída à mordida do cavalo, signo da mordida da mãe (MILLER, 1997). É como o seu saber inconsciente interpreta a castração e veicula, pelo viés do sintoma fóbico, o gozo cifrado de lalíngua. Com sua fobia, Hans encontra uma solução simbólica para separar-se desse gozo, não sem conservar, na “mancha negra” do focinho do cavalo, os vestígios de sua angústia. O significante se introduz como um “aparelho de gozo” que traduz o gozo de lalíngua com uma significação que reestrutura, para Hans, o campo da realidade. Ao transformar a angústia em medo localizado, essa nomeação faz a “coalescência da realidade sexual e da linguagem” (LACAN, 1975/1998, p.11)

O sintoma é essa resposta ao encontro sempre traumático do sujeito com a sexualidade, no que esta faz valer, para cada um, desde as primeiras experiências, uma antinomia entre o sentido e o real. O sintoma se constitui a partir de um núcleo de gozo que remete a um real excluído do sentido, impossível de ser capturado ou dominado pelo saber. Aquém do sentido, ele está condicionado pelo sem sentido do gozo de lalíngua. O sintoma inclui essa relação ao real do buraco no saber e a invenção de saber que tenta preencher esse buraco.

O inconsciente feito de lalíngua é o inconsciente sujeito, que aparece e desaparece, cuja estrutura é a do “um da fenda, do traço, da ruptura” (LACAN, 1964/1985, p.30). É o inconsciente definido como algo de não realizado, “que quer se realizar” e que se apresenta como uma invenção, um achado, uma solução (LACAN, 1964/1985, p.30). É a partir desse sujeito suposto ao saber inconsciente que Lacan situa a transferência como o que faz ex-sistir o inconsciente como uma invenção de saber.

Inventar o inconsciente, que é a invenção mesma da psicanálise, é fazer com que, desse não realizado, dessa suposição, um saber se realize. Inventar o inconsciente implica supor um sentido ao sintoma sob a forma de um saber alojado no analista, isto é, é fazer com que nem tudo se passe no inconsciente real, sem o Outro (HOLVOET, 2010). O recurso ao sentido, como resposta ao gozo enigmático do sintoma, implica supor que o gozo é saber cifrado que se decifra.

O encontro com o analista oferece à criança a possibilidade de aceder ao saber inconsciente e reduzir a dimensão traumática de sua existência. O encontro de Hans com Freud, que lhe comunica o que seu inconsciente já havia interpretado, traduzindo “medo de cavalo” por “medo do pai”, abre-lhe um espaço de palavra que permite que ele invente uma ficção excepcional, por meio da qual ele constrói um objeto destacável do corpo, que o dispensa de sua fobia. Hans se separa do gozo veiculado pelo significante cavalo, que se repetia sem conseguir representá-lo e que o aprisionava nos limites estreitos que seu sintoma lhe impunha. A extração desse objeto é feita com os elementos de sua lalíngua. Em torno do significante cavalo, Hans desenvolve “todas as permutações possíveis de um número limitado de significantes”, por meio das quais a conversão da mordida do cavalo em desmontagem da banheira representa o declínio da mãe como uma potência opaca, ameaçadora e sem lei. A ficção da banheira dá um lugar a Hans e constitui uma solução que o separa do gozo mortífero de sua fobia.

As elaborações do último ensino de Lacan sobre o sintoma como um modo de gozo constituem um esforço para instalar o sentido no real (MILLER, 2008). O gozo do sintoma, no que ele supõe o silêncio da pulsão, coloca a questão do papel da interpretação. Para além do inconsciente como produtor de sentido, o modo de interpretação é, antes, um desarranjo do bom ordenamento do sentido. Nesse nível, o fundamento da interpretação está na materialidade do significante, no equívoco, no não senso, no corte que reconduz o sujeito à opacidade de seu gozo, ou seja, que intervém no nível do inconsciente como colocação em jogo da pulsão (LACADÉE, 2003).

 


 

Referências
HOLVOET, D. “Conditions actuelles du traumatisme”, Scripta documents: traumatisme et symptôme dans l’enfance, Publicação da Escola da Causa Freudiana, ACF – Envers de Paris, p.7-16.
LACADÉE, P. “La realité de l’inconscient e l’act analitique”, In: La malentendu de l’enfant. France: Payot Lausanne, 2003, p.283–295.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1974). “A terceira”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.62, 2011, p.11–36.
LACAN, J. (1975). “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.23, 1998, p.6-16.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.41, 2004, p.7-67.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. (1996)”Monólogo da Apparola”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia. N.23, 1998, p. 68-76.
MILLER, J.-A. (2011) “Ler um sintoma”: Blog amp. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html. Acesso em: 15/03/2014.
MILLER, J.-A. “O falo barrado”, In: Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.457-475.
MILLER, J.-A. “Préface”, In: L’inconsciente de l’enfant. Paris: Navarin, 2013, p.9-12.

Sandra Espinha
Psicóloga, Analista praticante, Membro da EBP. E-mail: sandra_espinha@uol.com.br



A Linguagem Como Distúrbio Do Real

MIQUEL BASSOLS

 

Conhecemos, na orientação lacaniana, a fecundidade dos estudos sobre os distúrbios da linguagem no que concerne à clínica das psicoses. Fomos formados no estudo preciso desses distúrbios, considerando-os como um critério diagnóstico e mesmo como o critério diagnóstico por excelência, segundo a máxima que Jacques Lacan deduziu em seu seminário As psicoses, de 1955-1956. É nesse seminário, a propósito de um caso submetido à sua consideração, que ele assinalou:

“Eu me recusei a dar o diagnóstico de psicose por uma razão decisiva, é que não havia nenhuma dessas perturbações que constituem o objeto de nosso estudo este ano, e que são os distúrbios na ordem da linguagem. Devemos exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios. […] é essa, em todo caso, a convenção que lhes proponho adotar provisoriamente” (LACAN, 1955-1956/1985, p.109-110).

Era, com efeito, uma convenção, que devia ser provisória, mas que teve uma função de bússola para nossa orientação quanto à clínica e ao tratamento das psicoses.

Podemos fazer a lista desses distúrbios de linguagem nas psicoses, a partir da análise atenta e detalhada dos fenômenos surgidos na função da palavra e do campo da linguagem. São os distúrbios concernentes ao eixo da significação, por efeito da elisão do significante que faria escansão — a elisão do significante fálico. São os distúrbios induzidos por um deslizamento infinito da significação, sobre o eixo da metonímia: a fuga do pensamento, o discurso tangencial, com os fenômenos de conversação interior já isolados por Jules Seglas (1985). São também as frases interrompidas, as rupturas da cadeia significante, com os neologismos, os ritornelos ou a erotização do significante. Lacan ordenou esses diferentes fenômenos em torno de dois eixos (LACAN, 1958/1998). A partir da retomada da análise da metáfora e da metonímia do linguista Roman Jakobson, ele distinguiu os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem e isolou seu ponto comum como sendo a irrupção, “a presença do significante no real”, com todas as novas viragens da significação da realidade, engendrada por esse surgimento, para o sujeito. Ele já via aí uma condição da “situação do homem moderno”, uma espécie de distúrbio generalizado da linguagem que a ciência induz com seus novos objetos.

Na época Geek,(1) marcada pelos efeitos da técnica sobre o sujeito da ciência, pode-se dizer que se passa dos “distúrbios de linguagem” à linguagem considerada ela mesma como um distúrbio do qual seria necessário curar a dita humanidade.

O Entrave Da Linguagem

Tomemos um exemplo, talvez limite, dessa nova perspectiva na interface das técnicas cibernéticas com as neurociências, um campo que se tornou uma referência fundamental para o cognitivismo atual e mesmo uma orientação que se pode designar por este neologismo surpreendente: neuropsicanálise. Nessa interface, Kevin Warwick, professor na Universidade de Reading, nos Estados Unidos, impulsionou o chamado Projeto Cyborg. Uma questão serve de bússola para sua pesquisa: What happens when a man is merged with a computer? — “O que acontece quando um homem é fusionado com um computador?” Deixaremos de lado os aspectos mais ou menos frankensteinianos dessa pesquisa e de seus resultados e as novas técnicas de implantação de chip e outros dispositivos eletrônicos no corpo do sujeito. Deixaremos de lado, igualmente, as finalidades consideradas benéficas no tratamento, por esse tipo de meios, de uma série de lesões do sistema nervoso. Nós nos interessamos antes pelo testemunho do sujeito mesmo dessa pesquisa. Esse testemunho visa, com efeito, nos parece, ao horizonte que é aquele do sujeito das tecnociências de nosso tempo.

Quando de sua recente passagem por Barcelona, Kevin Warwick testemunhou suas experiências. Ele conseguiu, dizia, conectar seu cérebro a um computador, situado em New York, e enviar impulsos, através da internet, a um braço robótico situado em seu laboratório na Inglaterra. Ele conseguiu mover esse braço, e mesmo “senti-lo”, como se fosse seu próprio braço. Mais ainda, no curso dessa experiência — que implica já um certo grau de despersonalização e de corpo despedaçado — ele conseguiu conectar, sempre pela internet, seu próprio sistema nervoso, sua própria rede neuronal, à de sua mulher. Ele tinha a ideia de poder comunicar-se com ela sem ter necessidade de falar. “Nosso corpo é apenas um entrave para nosso cérebro” (WARWICK, 2012), dizia. O paradoxo lógico, suposto por essa afirmação — tomar o cérebro como uma parte separada e mesmo diferente do próprio corpo — não constitui então, aqui, uma barreira à tentativa de escrever a relação sexual no real. O corpo despedaçado do sujeito da ciência poderá sempre pensar em se recompor no espaço virtual com o Outro, na medida em que ele, ou ela, poderá encarnar ou fazer semblante de um Outro gozo sempre possível.

Ainda assim, essas conexões não parecem ter resolvido um certo número de problemas entre o Sr. Warwick e sua mulher, problemas de identidade sexual e de comunicação, os quais ele não hesita em testemunhar. Irena, sua mulher, queixava-se de não ser suficientemente escutada por ele. Ele então conectou seu próprio sistema nervoso à mão de sua mulher. E, assim, quando ela mexia seu braço, ele recebia os impulsos em seu próprio cérebro. Ele sonhava realizar o sonho de Samuel Morse, o inventor do famoso código Morse: “enviar sinais de um cérebro a outro” de maneira direta, prescindindo de outros meios hardware. Mas o Sr. Warwick encontrou um obstáculo em sua empreitada, que parece ser a causa última de seu fracasso. Segundo seus próprios termos, ele encontrou “a barreira” da “arcaica linguagem humana” porque, se “os neurônios são conectados on-line por impulsos eletroquímicos, para chegar de um sujeito a outro, eles devem ainda necessariamente passar pela arcaica linguagem humana”. A linguagem, instrumento que deveria ser um meio de comunicação, se torna assim a última barreira ao estabelecimento possível de uma comunicação direta, e a causa principal de não comunicação, de não relação. A experiência do Sr. Warwick se choca então com a linguagem, como a um distúrbio do real, e que dá conta de um gozo inútil aos fins da comunicação. “Se se compara a linguagem com a transmissão instantânea e precisa da rede neuronal, ela se apresenta como um código muito ambíguo e impreciso.” Falar é apenas uma maneira “lenta e primitiva de emissão e de recepção de ondas sonoras!”

A linguagem, segundo K. Warwick, é, então, finalmente, um entrave, uma espécie de doença, uma doença mesmo um pouco arcaica, um vírus que faz intrusão no corpo, um entrave no real.

Um Novo Real

O Sr. Warwick tem razão. Lacan, na última parte de seu ensino, notadamente em seu Seminário XXIII, O sinthoma — 20 anos após seu seminário As psicoses, ao qual nos referimos antes — era da mesma opinião: “A questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-1976/2007, p.92). E o sujeito psicótico é sem dúvida o mais indicado para apreendê-lo, tal como James Joyce pôde testemunhar. Foi justamente a experiência de escrita de James Joyce que mostrou a Lacan que não existem distúrbios de linguagem propriamente ditos, mas que a linguagem ela mesma é o distúrbio, um distúrbio do qual se pode, no melhor dos casos, fazer um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.

É porque a linguagem, ela mesma, é um distúrbio do real, que podemos, aliás, sustentar que todo mundo delira. A linguagem, e o equívoco significante, introduzindo um abismo no real, uma dimensão do ser falante que o faz também sujeito de gozo, um gozo tão irredutível quanto a linguagem mesma. Se uma certa tecnociência anseia ainda por um real que seria curado do distúrbio da linguagem, a psicanálise mostra o incurável desse distúrbio no ser falante.

Na época Geek da tecnociência, há, então, ao menos, uma objeção ao ideal de um apagamento possível do distúrbio da linguagem da superfície da Terra. É a objeção do sujeito psicótico, que tenta fazer com a linguagem um sinthoma para acreditar nela de modo radical, como o indicava Éric Laurent (2013) na intervenção que inaugurou a preparação deste Congresso.

Em seguimento ao ensino de Lacan, nossa pesquisa concerne precisamente ao abismo introduzido no real pelo fato da linguagem, pelo fato do ser falante. Considerado com os instrumentos da psicanálise, à luz do sinthoma, o abismo implica a existência de um novo real, que nós não podemos conceber de maneira objetiva na medida mesma em que nós habitamos esse abismo. Há uma impossibilidade inerente a esse novo real, o qual a ciência não pode levar em conta, na medida em que ela se funda na foraclusão, no esquecimento mais absoluto desse abismo.

É a esse novo real que somos confrontados na perspectiva do próximo Congresso da AMP, que tem o título, tão promissor para a psicanálise, “Um real para o século XXI”.

 


 

Tradução: Márcia Mezêncio
Revisão da tradução: Jorge Pimenta
(1) Diz-se de pessoas “fissuradas” pelas tecnologias modernas dos aparelhos eletrônicos. Segundo a Wikipédia, os Geeks, ou Nerds, em geral, sofrem de neofilia (atração por tudo aquilo que é novidade). (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Geek. Acesso em: março de 2014).
Referências
LACAN, J. (1955-1956). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de janeiro: Zahar, 2007.
LAURENT, É. La psychose ou la croyance radicale au symptôme. Mental, Bruxelles, n.29, février 2013, p.65-74.
SEGLAS, J. “Première leçon, des hallucinations”, In: Leçons cliniques sur les maladies mentales et nerveuses. Paris: Asselin et Houzeau, 1985.
WARWICK, K. Entrevista ao jornal La Vanguardia de Barcelona, 19 de novembro de 2012. Project Cyborg. Disponível em: http://www.kevinwarwick.com. Acesso em: março de 2014.

Miquel Bassols
Psicanalista, Membro da ELP – Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, da ECF, NLS e AMP E-mail: m.bassols@ilimit.es



Almanaque V. 7 – Nº 12 1º semestre de 2013

TRILHAMENTO

A educação e os corpos de hoje – Hebe Tizio

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Sérgio Laia – Diretor executivo do VI Enapol pela EBP

INCURSÕES

O corpo da criança e os discursos – Andrea Eulálio de Paula Ferreira, Margaret Pires do Couto e Tereza Cristina Côrtes Facury

A exceção que depõe a regra – Bernardo Micherif Carneiro

ENCONTROS

Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos – Cristiana Miranda Ramos Ferreira

O objeto autístico e sua função no tratamento psicanalítico do autismo – Paula Ramos Pimenta

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Elaborações psicanalíticas sobre a melancolia e a mania – Adauto Clemente

Que lugar para o analista na experiência com a psicose? – Fernando Ferreira Linhares




Apresentação De Pacientes: Dispositivo E Discursos

CRISTIANA MIRANDA RAMOS FERREIRA

 

Na tese Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos, investiga-se a prática de eminentes mestres da apresentação: Charcot, Clérambault e Lacan. A partir da análise das diferenças e particularidades de cada perspectiva, a autora encontra elementos para responder à questão que se lhe apresentava como um paradoxo: “Como um dispositivo que é considerado pela psicanálise um importante instrumento de intervenção clínica, capaz de produzir importantes efeitos terapêuticos em um sujeito psicótico, pode ser, ao mesmo tempo, concebido como um instrumento de poder, no qual o paciente é publicamente exposto, sem dele retirar qualquer benefício?”

Sob a influência das concepções teóricas de Foucault, localiza-se a origem de uma posição fortemente contrária à prática da apresentação, considerada por ele como instrumento máximo de abuso do poder médico. Para sustentar esse ponto de vista, Foucault edificou um mito: elegeu Charcot, um neurologista, como a figura mais emblemática da prática psiquiátrica.

Por meio da análise das apresentações de Charcot, pode-se destacar a diferença entre a apresentação de pacientes realizada sob a perspectiva da tradição médica, centrada no corpo, e a desenvolvida conforme a tradição psiquiátrica, com foco na fala do paciente. Essa diferenciação permitiu destacar dois aspectos fundamentais para se construir uma posição crítica sobre o tema: 1. entender as consequências que essa distorção no status quo de Charcot acarretou sobre o imaginário negativo construído em torno da apresentação; 2. discernir que o termo “apresentação de pacientes” designa, de forma genérica, uma multiplicidade de práticas que se distinguem tanto em seu objeto quanto em seu objetivo, o que faz variarem tanto suas estratégias de intervenção, como os seus efeitos e resultados.

Considerar a diversidade de práticas conduziu a uma disjunção entre o que seria o “dispositivo” da apresentação e o “discurso” que o anima. Tomar os quatro discursos como instrumento para essa análise permitiu definir como dispositivo o seu aspecto estruturante, estático, que congrega três elementos distintos: paciente, público e entrevistador; e o discurso, seu aspecto dinâmico, que orienta a articulação entre os três elementos. Investigar a apresentação de pacientes, sob essa perspectiva, permitiu diferenciar o que é efeito do dispositivo propriamente dito, ponto comum em todas as apresentações, e o que é próprio a cada discurso, cujo efeito irá variar em função daquilo que, em cada um deles, opera como verdade.

Dessa forma, a pesquisa sobre a prática da apresentação de pacientes na psiquiatria, desde seu surgimento até a atualidade, possibilitou perceber como esse dispositivo foi sendo animado pelos diferentes discursos ao longo da história, tendo como pano de fundo a variação na articulação entre suas dimensões clínica e de ensino, assim como sua apropriação e uso pela psicanálise. Para proceder a essa análise, a prática da apresentação foi agrupada sob três dimensões diferentes, estabelecidas em função da importância dada à fala do paciente: 1) psiquiatria clássica, cujo caráter investigativo encontrava na fala do paciente o seu principal meio de investigação diagnóstica, assim como de constituição do saber psiquiátrico; 2) psiquiatria que se convencionou chamar de “biologicista”, caracterizada pelo abandono do método clínico de observação, em favor do pragmatismo terapêutico, cujo interesse, focalizado nos efeitos das intervenções no corpo, levou a um crescente desinteresse pela fala do paciente e pela precisão diagnóstica; 3) psicanálise, mais precisamente a abordagem lacaniana, caracterizada pela aposta radical na palavra como via para aceder ao sujeito do inconsciente.

Cada uma dessas perspectivas seria orientada prioritariamente por um dos discursos, o que, consequentemente, incide sobre sua prática de apresentação. Embora, em uma apresentação, o apresentador possa recorrer a mais de um dos discursos, toma-se como prevalente aquele sob a luz do qual os impasses se decidem.

Assim, na psiquiatria clássica, orientada pelo Discurso do Mestre, a apresentação de pacientes alcançou lugar de destaque enquanto dispositivo clínico, considerando tanto seus efeitos terapêuticos, quanto de esclarecimento diagnóstico, assim como uma função de ensino e pesquisa da psiquiatria. Já a psiquiatria biologicista, sustentada no Discurso Universitário, opera a partir de um saber prévio, o qual se aplica ao paciente. Nessa perspectiva, há um empobrecimento da clínica, que vai resultar em um empobrecimento da prática de apresentação, pois o desinteresse pela investigação e pela particularidade do caso implica fazer calar o paciente, uma vez que tudo que é subjetivo é visto como perturbador ao modelo da universalização. Essa é a forma de apresentação que faz jus às críticas de Foucault, na medida em que ela perde seu caráter clínico investigativo, para reduzir-se a um aparelho de exibição de fenômenos e sintomas. Quanto à psicanálise, orientada pelo Discurso do Analista, ao tomar o sujeito no lugar do Outro, possibilita-lhe bordejar, circunscrever o que lhe sucede, de forma a afastar o impossível de suportar a partir de um tratamento pela palavra (LEGUIL, 2004). Consideraram-se, ainda, os movimentos da reforma psiquiátrica, que, orientados pelo Discurso Histérico, condenaram a apresentação de pacientes, classificando-a como um desrespeito aos direitos do cidadão/paciente.

Analisar a apresentação de pacientes sob esse ponto de vista levou a um redimensionamento da questão em torno dessa prática. Afinal, não se trata de discutir se este é um dispositivo clínico ou didático, pois essas duas dimensões podem-se conjugar de diferentes maneiras. O que essa pesquisa permitiu ressaltar é que se trata essencialmente de um dispositivo de transmissão, na medida em que, para além de qualquer intenção, seja ela clínica, seja de ensino, o que o público pode testemunhar é uma operação discursiva que implica um certo fazer do entrevistador com o real colocado em cena pelo psicótico. E, ainda mais, como o dispositivo da apresentação favorece a presentificação do real de gozo, gozo que receberá de cada discurso um tratamento diferente, visto que cada discurso implica precisamente uma forma própria de operar com o real, a apresentação de pacientes, em última instância, revela os recursos e limites de cada discurso para lidar com o real em jogo na loucura.

 


 

Referências
LEGUIL, F. “La experiencia enigmática de la psicosis en las presentaciones clínicas”, L-ment@l – Principios para una formación posible en la presentación de enfermos, Bogotá: Edición, 2004, p. 44-47.

Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG), correspondente da EBP – Seção Minas, professora na Faculdade de Psicologia – FEAD. E-mail: cris.ramos.bhz@gmail.com



A Exceção Que Depõe A Regra

BERNARDO MICHERIF CARNEIRO

 

Atualmente, nas instituições públicas, os analistas têm assumido não só funções clínicas ou técnicas, mas, em escala ascendente, a formulação e implantação de políticas. Se a psicanálise estabelece sua prática pelo modo como aborda o caso excepcional, esse movimento, contudo, leva a um questionamento inevitável: como pensar a exceção na abordagem da lógica de funcionamento de uma instituição? Isso exige não só um empenho na formação clínica, mas uma dedicação aos assuntos institucionais. É a isso que este texto se propõe.

Para investigar esse assunto, Giorgio Agamben é aqui eleito como um autor que reflete sobre as questões políticas da época atual, lançando luz sobre o pensamento de outros autores como Carl Schmitt e Michel Foucault.

Carl Schmitt introduz o que ele entende ser o cerne da ordem política: “A exceção é mais interessante do que o caso normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo… quando se quer estudar corretamente o caso geral, somente se precisa observar uma real exceção” (SCHMITT, 1922/2006, p. 15). Agamben faz dessa concepção de Schmitt um princípio que norteia seu pensamento.

Para justificar sua investigação, Agamben parte de uma constatação de Schmitt sobre a ausência de uma teoria do estado de exceção no direito público. Mais do que uma ausência, Agamben aponta para uma recusa do direito em reconhecer uma esfera da ação humana em si extrajurídica, o que confirma a premissa de que, se a lei tem lacunas, o direito não as admite.

Mas, se, por um lado, o vazio jurídico do estado de exceção se mostra impensável pelo direito, por outro lado, esclarecer a relação do direito com o estado de exceção se reveste de uma relevância estratégica decisiva.

Visando a ultrapassar essa barreira, Agamben eleva uma frase de Schmitt à dignidade de matema: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Matema que articula três elementos indissociáveis: soberania, decisão e estado de exceção.

Agamben formula o paradoxo da soberania na mesma linha em que Lacan formaliza o pai primevo de “Totem e tabu”, em sua lógica da sexuação, ou seja: “Eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

O soberano é aquele que fixa os limites de uma ordem jurídica e territorial desde que não se inclua nela. Essa topologia introduz, na interseção entre política e direito, no nexo entre localização e ordenamento, uma zona ilocalizável de exceção. O ordenamento do espaço não se dá pela fixação de seus limites e a expulsão da exceção, mas pela captura do fora, da exceção, incluída no ordenamento sem pertencer a ele.

Agamben enfatiza o fato de que o estado de exceção atual não é um legado da tradição absolutista ou dos regimes ditatoriais, mas uma consequência da democracia-revolucionária.

A Revolução Francesa conduziu a um modelo de Estado que vê sua soberania reduzida ao poder do carimbo. O Estado de Direito, anônimo e impessoal, declara-se o guardião da Constituição. O sonho de uma burocracia previsível e formada juridicamente realiza-se: um estado que administra, mas não governa. Miller ratifica: “Na maior parte do tempo, o que se decide num governo? O preço do bilhete do metrô. Administra-se. Não é preciso política para isso” (MILLER, 1997/2005, p. 213).

Tudo que não é legalmente reconhecido é suprimido, como um elemento impuro. Com a eliminação do problema da exceção, a unidade do Estado democrático se sustenta sob o desconhecimento do que o funda como potência política. Diante de uma real exceção, ergue-se o lema: “Aqui termina o Estado de Direito”.

Contudo, Miller extrai desse modelo político sua lição: “Estabeleçam um regime administrativo puro e vocês verão o retorno do Mestre, de um verdadeiro Mestre. É de fato perigoso procurar apagar a soberania pela administração” (MILLER, 1997/2005, p. 211). Quanto mais a ordem jurídica pretende homogeneizar-se, forcluindo a exceção, mais ela propicia que a decisão soberana ressurja de fora, como um elemento autônomo e sem legitimidade.

A partir do momento em que a regra se pretende sem exceção, o tempo não tarda em fazer surgir justamente a exceção, esmagando a ordem vigente entre os dedos. A decisão ressurge sem nenhuma roupagem jurídica, e o soberano se eleva como uma lei viva. Baseado nesse cenário, Agamben confere valor axiomático à frase de Walter Benjamin: “O estado de exceção tornou-se a regra”.

Todavia, tornar o estado de exceção um paradigma de governo marca uma ruptura entre política e direito. O soberano confirma que, por estrutura lógica, não precisa do direito para fundar o direito. Por isso, Agamben se esforça em estabelecer uma nova topologia da exceção no universo jurídico. Em uma época em que o estado de exceção se configura como técnica de governo, trata-se de constatar a inevitabilidade estrutural da exceção.

O estado de exceção, na medida em que suspende a ordem vigente, ergue-se como a figura que preserva o poder do Estado em detrimento do direito, fazendo subsistir uma ordem pública sem validade jurídica. Na atualidade, a ação de Estado é trazida para fora do direito, e os conceitos jurídicos se indeterminam, sendo substituídos por termos como “bom costume”, “iniciativa imperiosa”, “motivo importante”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, “caso de necessidade”, os quais não se referem a uma lei, mas a um acontecimento. Na contemporaneidade, a segurança predomina como técnica de governo. Toda medida de Estado se justifica em nome de uma situação de perigo à ordem pública.

É impossível definir, com certeza, quando se está diante de um verdadeiro estado de emergência, mas é justamente essa incerteza que se torna o fundamento para o exercício da soberania estatal. O Estado subtrai um caso particular da aplicação da lei e decide sobre algo que se apresenta como indecidível de fato e de direito.

O Poder Executivo se incumbe de remediar uma lacuna do direito com uma ação da qual não há garantia de que promova a salvaguarda da Constituição. O estado de exceção se desenha como a tentativa de suturar a fratura existente entre o estabelecimento da lei e a possibilidade de sua aplicação prática. Ele é o instituto que distingue lei e decisão, no qual “o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa” (AGAMBEN, 2004, p. 58).

Diante da indecidibilidade dos problemas jurídicos, a decisão soberana se revela a matriz anômica sobre a qual a ordem jurídica repousa. Para Agamben, o estado de exceção se expõe como o fundamento secreto de toda lei.

Para esclarecer esse fato, o autor retorna à noção de Estado moderno. Agamben formaliza a estrutura do Estado a partir da articulação entre três elementos: uma localização delimitada, em que funciona um ordenamento estabelecido, a partir do qual se define o modo de inscrição da vida no território. Ou seja, o nascimento de uma pessoa em uma determinada nação o constitui como cidadão perante a Constituição nacional.

Contudo, a dinâmica do poder, atualmente, implica um pressuposto: o corpo biológico e a saúde da nação se revelam o fator politicamente decisivo. O Estado territorial é transposto para um Estado população, no qual a vida humana se tornou a aposta em jogo nas estratégias políticas do exercício do poder.

Miller confirma: “O gozo se tornou um fator da política” (MILLER, 2004, p. 19). Vive-se uma época de nacionalização dos corpos, em que organismos são propriedade estatal. O Estado não mais se ancora no laço social, na exterioridade das representações coletivas em relação aos indivíduos, mas na rotina produzida pela organização dos corpos.

Assim, como o poder público assume para si os cuidados com o corpo biológico dos cidadãos, a política se torna, então, biopolítica. Mas o que determina a biopolítica contemporânea não é o fato de a vida ter-se tornado objeto dos cálculos do poder do Estado, algo que já prevalecia, mas a constatação de que o corpo biológico, até então um elemento exterior ao ordenamento estatal, torna-se o espaço político por excelência.

Nesse sentido, a ruptura com o Estado territorial não se efetivou na interseção entre política e direito, mas no modo de inscrição da vida na ordem estatal. O nexo entre nascimento e nação, com que se pretendia definir a noção de cidadania no modelo tradicional de Estado, perde seu automatismo. A cidadania converte-se em algo do qual era preciso provar-se digno, produzindo como resto uma vida humana que cessa de ter valor jurídico. A essa manifestação da vida, que não se inscreve no direito dos homens, Agamben denomina “vida nua”, uma espécie de dejeto social.

Desnuda-se uma vida humana que se tornou politizada por meio de seu abandono a um poder incondicionado. Por isso, ele aponta a implicação da vida nua na cena política como o núcleo originário do poder soberano. A contribuição da decisão soberana à cena política é a produção do corpo biopolítico como a figura humana a ser capturada fora de qualquer jurisdição.

Seguindo essa trilha, Agamben traz à luz um modo de captura coletiva do poder soberano, ao qual denomina “bando”. Para ele, o que está em bando é abandonado ao poder de quem o baniu. Essa junção entre a insígnia da soberania e o banimento da comunidade é o suporte da configuração do espaço público em que hoje se vive.

Nesse sentido, Agamben evidencia o campo de concentração como a matriz oculta da inscrição da vida no espaço público, o paradigma biopolítico do exercício de um poder indeterminado e, portanto, fora dos limites da lei. O campo de concentração surge como o protótipo da estratégia estatal para traçar um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico. Com isso, Agamben reatualiza o matema da soberania, de Schmitt, propondo: “Na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p. 149)

O Estado instaura uma espécie de epidemiologia social, na qual autoriza a eliminação da vida indigna de ser vivida, o que corresponde ao aniquilamento de categorias de indivíduos julgados como não integráveis ao corpo da nação. A tarefa política de nosso tempo consiste em suturar a fratura biopolítica fundamental que divide o povo. De um lado, o corpo político integral, uma inclusão que se espera sem restos. Do outro, um amontoado de corpos carentes, uma exclusão que se pretende sem retorno.

A esperança que anima o sentimento nacional é que a separação da vida nua possa garantir a unidade do povo. Mas a sobrevivência dos excluídos constitui um elemento embaraçoso para a comunidade. A sociedade reclama ao Estado por controle, para que este elimine os indivíduos que ameaçam a integridade da nação. Por isso, o paradigma da política estatal se restringe à polícia, que se torna o mecanismo efetivo de tutela da vida dos cidadãos e luta contra os inimigos da nação.

Apesar do tom apocalíptico, Agamben mantém sua expectativa por “uma renovação categorial atualmente inaudível, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal” (AGAMBEN, 2004, p. 141).

Agamben adverte que ainda há um lugar viável para o direito após a deposição de sua articulação com a soberania. Segundo ele, a política viveu um longo período de atrofia na sua relação com o direito, restringindo-se ao seu papel de validação formal da previsão legal. Porém, ele conclui que a ação verdadeiramente política é aquela que corta o laço que une o direito à soberania.

Não se trata da anulação do direito, mas da desativação do dispositivo jurídico, que, por meio do estado de exceção, não cessa de tentar capturar a vida humana em seus confins. Milner enfatiza: “O silêncio da lei é o que a faz funcionar” (MILLER; MILNER, 2006, p. 7). Trata-se de expor o direito em separação absoluta da vida, como mera vigência formal, e a vida em sua condição originária de abandono fora dos limites da lei. Abrir esse espaço entre o direito e a vida é o que torna possível o surgimento de uma ação política.

Por isso, Agamben se remete à figura de um direito não praticado, apenas estudado. Trata-se não de negá-lo, mas de introduzi-lo em uma existência indeterminada. O direito reduzido à sua dimensão de semblante e que, somente a partir da ação política, poderia encontrar um valor de uso que não o precede, mas, ao contrário, surge a posteriori, como modo de afirmação de sua existência. Um direito que assume a vida como um elemento impossível de ser inscrito na ordem jurídica.

 

 


Referências
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
MILLER, J.-A. “Lacan e a política”, Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.40, ago. 2004, p. 7-20.
MILLER, J.-A. (1997) “O ditador dos cegos”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 207-217.
MILLER, J.-A. (1991). “Sobre Carl Schmitt”, In: ______. O sobrinho de Lacan: sátira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 235-241.
MILLER, J.-A; MILNER, J.-C. Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura. Barueri, SP: Manole, 2006.
SCHMITT, C. (1922). “Teologia política I: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, In: ______. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 1-60.
(1) Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 17 de abril de 2013.

Bernardo Micherif Carneiro
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: bernardomcarneiro@yahoo.com.br.



O Corpo Da Criança E Os Discursos

ANDREA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA, MARGARET PIRES DO COUTO E TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 

1 Introdução

Na contemporaneidade, a criança e seu corpo tornaram-se objetos privilegiados nos mais diversos saberes. Vários são os discursos que buscam regular, orientar e disciplinar o corpo da criança, esquecendo-se, frequentemente, de que ela é um sujeito capaz de interpretar e expressar seu próprio saber.

Hiperativos, deprimidos, fóbicos, autistas, agressivos, etc., são alguns dos nomes distribuídos a partir das avaliações escolares e científicas, configurando o momento atual em que grande parte das crianças encontra-se categorizada, apagando o traço da singularidade que concerne a cada sujeito.

Ao abordar esse tema, pretendemos investigar como, na atualidade, os discursos — enquanto modos de aparelhar e/ou produzir o gozo — buscam regular as relações dos sujeitos crianças e seus corpos. Para isso, trabalharemos com a hipótese, formulada pelo ensino de Lacan, de que o discurso da ciência, e não a ciência, pode funcionar segundo a lógica do discurso universitário e do discurso do capitalista. A obra científica genuína não exclui a causa, e, por isso, afirma Lacan (1973/1993, p. 40), “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”. Assim, nessa estrutura discursiva, a verdade, como encontro com o real, não é eliminada, mas confrontada.

Por outro lado, a psicanálise, destinada sempre a ser uma ciência do particular, permite demonstrar que o discurso analítico, ao acolher a criança e seu saber, produz efeitos de histericização sobre seu corpo, demonstrando que esse corpo pode recusar a ditadura dos significantes-mestres produzidos pelo discurso da ciência.

2 O Corpo Da Criança No Discurso Científico

Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003) afirma que o corpo é mantido na ignorância pelo sujeito da ciência e indaga se chegaríamos a ter direito de desmembrá-lo em nome dessa ignorância. Qual é a verdade sobre o corpo que a ciência tende a ignorar?

Submetida ao imperativo da harmonia, a ciência desconhece aquilo que Lacan demonstrou ser a diferença entre ter um corpo e ser um corpo. “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 97). De acordo com Miller (2004), por mais corporal que seja, o ser falante, ao ser feito pelo significante, divide seu ser e seu corpo, produzindo uma falha de identificação. É por isso que, nesse corpo, se passam coisas imprevistas, coisas que escapam, acontecimentos que deixam traços desnaturais e disfuncionais.

Ao longo da história, o corpo se constituiu, gradativamente, como objeto da ciência, sendo concebido ora como natureza, ora como máquina, até tornar-se objeto de intervenções que vão além da finalidade terapêutica. Na tentativa de aprisioná-lo no discurso da ciência, o corpo padece, atualmente, cada vez mais, de transtornos inespecíficos, que fazem proliferar os diagnósticos médicos. Ele faz sintoma, é assolado pela angústia, escapando à estratégia de domá-lo. O grande número de sintomas no corpo que chega às nossas clínicas constitui-se em evidências daquilo que fora excluído, ignorado pelo discurso da ciência, e que retorna na cena do mundo.

No campo da história, Foucault já demonstrou que, desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, de manipulação e treinamento, na tentativa de torná-lo obediente e dócil. Para o autor, o século XVII inaugurou novos métodos de controle minuciosos do corpo, que ele nomeou como “métodos disciplinares”. Esses métodos foram-se tornando fórmulas de dominação cada vez mais aprimoradas. Em Vigiar e punir, publicado originalmente em 1975, Foucault define a disciplina como o “poder da norma” (Foucault, 1975/1993, p. 164), que, ao conduzir à homogeneidade, permite medir os desvios, tendo como função maior o adestramento. Demonstrou a difusão da sociedade disciplinar e de seus mecanismos por meio da vigilância permanente, exaustiva e onipresente. Para ele, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação em um procedimento que lhe é específico, o exame.

De acordo com Foucault (1975/1993), a técnica do exame permite que cada indivíduo seja descrito, mensurado, medido e comparado a outros. Essa técnica faz com que a individualidade de cada corpo entre para uma documentação administrativa em que tudo é anotado, as atitudes e comportamentos são registrados em detalhes. Os corpos tornam-se legíveis, dóceis e objetivados. Não seria esse esquadrinhamento do corpo o que encontramos nas técnicas de avaliação e de seus protocolos, que visam a descrever e mensurar o comportamento dos sujeitos?

Isso se esclarece, por exemplo, quando observamos a criação do protocolo de “Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil” (IRDI), utilizado tanto em creches como nos consultórios pediátricos, que tem o objetivo de diagnosticar e tratar o autismo.i Fundamentado em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica de crianças de 0 a 36 meses, ele foi elaborado e validado com 31 indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. O IRDI aparece como um instrumento de promoção de saúde mental nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança, pois se entende que os cuidados psíquicos na infância reduzem a incidência de distúrbios mentais tanto nessa fase quanto na vida adulta (BERNARDINO; MARIOTTO, 2009).

Será possível observar e registrar o inconsciente? Não será essa proposta mais uma a alimentar a série: avaliação, classificação e medicalização?

Quanto ao fenômeno contemporâneo da medicalização das crianças, pensamos que essa seria uma nova técnica disciplinar com o objetivo de controle dos corpos. Porém, como operaria essa nova forma de “disciplinarização”?

A teoria dos discursos, desenvolvida por Lacan (1969-1970/1992), em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, pode ajudar a responder a essa questão. Lacan apresenta os discursos como laço social, uma estrutura que ultrapassa a palavra, antecede a fala dos sujeitos, organiza-as, permitindo dar um tratamento ao que escapa à articulação significante, quer dizer, um tratamento ao gozo que se encontra presente em todo laço social.

Os quatro discursos que Lacan matemiza — o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso analítico — correspondem a quatro tramas discursivas, quatro lugares de enunciação e quatro configurações significantes diferentes. Eles se diferenciam pela sua posição espacial e pela rotação que os quatro significantes (sujeito, significante-mestre, saber e o objeto a) fazem nos quatro lugares do discurso que, por sua vez, são fixos.

Os quatro lugares, lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade e lugar da produção, estão assim dispostos:

 

Nossa hipótese, como dito anteriormente, é que a ciência possa desenvolver-se a partir da lógica do discurso universitário e também do capitalista, como veremos adiante. A estrutura do discurso universitário ajuda a pensar como o saber científico, sustentado na lógica do poder disciplinar descrita por Foucault, ocupa-se dos corpos das crianças:

Trata-se, então, da lógica do discurso universitário, matemizado por Lacan da seguinte forma:

 

Nesse mesmo seminário, Lacan analisa as consequências ou os efeitos produzidos quando o saber (S2) está no lugar de agente ou na posição dominante do discurso. Para Lacan, no discurso universitário, o S2, o saber, ocupa o lugar da ordem, do mandamento, de forma anônima, pois se encontra separado de seu autor. No lugar da verdade (S1), está o significante-mestre operando para portar a ordem do mestre. O mestre não está mais aí na posição de domínio, o que permanece é seu mandamento, seu imperativo categórico, por meio do saber científico universal e generalizante. O efeito dessa configuração é o desconhecimento da verdade inconsciente e a tirania do saber que se apresenta como “verdade científica”. A verdade do sujeito, verdade, essa, sempre particularizada, é rejeitada em prol de uma verdade universal, aquela produzida pela ciência.

Assim, quando o agente do discurso é o saber, ele sempre se dirige ao Outro como objeto, “objetalizando-o”. É o mestre que ocupa o lugar da verdade, e o que se produz, nesse discurso, e, ao mesmo tempo, se perde, se exclui, é o próprio sujeito do inconsciente, com sua divisão.

Na contemporaneidade, verificamos uma perigosa aliança entre o saber científico e o capital, potencializando aquilo que Foucault descreveu como objetivação dos corpos e que, com o ensino de Lacan, extraímos como “objetalização” do sujeito.

Lacan matemizou um quinto discurso, o do capitalista, como uma nova modalidade do discurso do mestre, definindo-o como o laço social dominante em nossa sociedade:

Diferentemente da lógica dos outros discursos, o discurso do capitalista tenta eliminar a dimensão do impossível ao prometer o acesso direto do sujeito aos objetos e do mestre ao saber. Efetivamente, ele não promove o laço entre os sujeitos, mas a relação do sujeito com o objeto, supostamente capaz de recuperar o gozo perdido, que a entrada do ser falante na linguagem instaura.

Nesse sentido, o saber científico tem como objetivo produzir os objetos de consumo e colocá-los à disposição do sujeito. A divisão é transformada em déficit, fazendo com que o sujeito transforme seu mal-estar estrutural, a falta da estrutura, em um menos, na ilusão de que poderá ser preenchido com um objeto produzido e elevado pelo mercado à categoria do objeto a. Esse circuito faz funcionar a máquina da produção incessante de novos objetos a serem consumidos, transformando o próprio sujeito em um desses objetos. O efeito de toda essa maquinaria é o rechaço da divisão e sua consequente anulação do desejo, ao fazer crer que seria possível, e não mais impossível, o encontro com o objeto de satisfação. Os medicamentos entrariam na série desses produtos a serem produzidos, ofertados e consumidos. Então, como pensar a relação entre o corpo da criança e o saber científico, partindo da lógica do discurso capitalista?

Temos, no lugar da verdade, o significante-mestre representado pelos interesses do capital e a lógica do mercado. Esse significante-mestre comanda o saber científico e impõe a produção cada vez maior de novos objetos a serem consumidos: por exemplo, o medicamento. No lugar do agente, temos o sujeito criança com seu corpo não mais tomado como um corpo marcado pela falta, pela dimensão traumática que todo corpo apresenta para o ser falante. Ao contrário, temos um corpo marcado pelo signo do déficit, mesmo que pela vertente do excesso, ao escapar ao padrão considerado normal. Por isso mesmo, é um corpo a ser docilizado, domado, domesticado, silenciado, ao se endereçar, sem intermediários, ao saber científico e ao seu produto: o medicamento. Eliminada a dimensão do impossível (sem barras), nesse discurso demonstrado pelas setas que indicam a conexão direta, o corpo da criança se torna o objeto da ação do saber científico, sem as mediações necessárias que poderiam manter a disjunção entre a verdade e a produção presente nos outros discursos.

3 O Corpo Da Criança No Discurso Analítico

Qual o lugar que o corpo da criança assume no discurso analítico?

Para Cristina Drummond (2012), o conceito de objeto a construído por Lacan fornece importantes elementos para tratar a relação da criança com o corpo.

No texto “Nota sobre a criança”, de Lacan (1969/2003), podemos isolar as duas posições da criança na estrutura familiar: como sintoma do par parental e como objeto do fantasma da mãe. Nessa segunda vertente, o autor afirma que a criança se torna o objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto (Lacan, 1969/2003, p. 369). Trata-se, afirma Lacadée (1996), de uma situação em que a criança é tomada no fantasma da mãe de tal maneira que vem realizar a presença desse objeto a em seu fantasma. A criança satura esse modo de falta, dando-lhe corpo ou oferecendo seu corpo como objeto condensador de gozo da mãe. Ela vem saturar a falta da mãe, condensando sobre seu ser a verdade desse objeto.

Ao comentar o texto “Alocução sobre as psicoses da criança”, de Lacan (1967/2003), Drummond (2012) isola duas consequências dessa teorização da criança como objeto a para sua mãe. A primeira delas diz respeito ao questionamento do mito de completude presente na teorização dos pós-freudianos sobre a relação da criança com a mãe. Extrai, daí, uma orientação ética ao tratamento analítico de crianças: “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (Lacan, 1967/2003, p. 366). Trata-se, portanto, de impedir que a criança seja fixada na fantasia materna. A segunda consequência situa o achado clínico de Winnicott, afirmando que o ponto central dessa formulação “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe” (Lacan, 1967/2003, p. 366).

Ainda de acordo com Drummond (2012), há, em muitos dos sintomas das crianças, na atualidade, a impossibilidade de fazer a operação de separação desse lugar de objeto que ela é para o outro, e essa impossibilidade retorna sobre o corpo da criança. Há, nelas, uma enorme dificuldade de interrogar sobre o desejo materno e fazer dessa interrogação um enigma. Além disso, encontramos nesses sintomas a dificuldade da criança para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a produziu.

A problemática que se coloca quando o sintoma se aloja no corpo é se o analista poderá constituir-se como um destinatário da fala do sujeito, dividindo-o, fazendo surgir sua demanda de saber, enfim, pondo em funcionamento o discurso do inconsciente.

Nesse sentido, a estrutura do discurso analítico ajuda a pensar a operação possível e esperada pelo analista:

Trata-se do lugar do analista que, ao se fazer de objeto, endereça-se à criança como um sujeito dividido e, ao manter seu saber abaixo da barra, permite a ela produzir seu próprio saber e se separar dos significantes-mestres que a capturavam. Nesse sentido, o efeito dessa operação seria a histericização do sujeito — demonstrada por Lacan por meio da lógica do discurso histérico — que pode encontrar nesse dispositivo um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Ao poder endereçar-se ao campo do Outro, a partir de sua divisão, o sujeito pode supor o inconsciente e produzir um saber sobre esse real que toma seu corpo.

Em outro texto, “A criança objetalizada” (2007), Cristina Drummond ressalta que o discurso científico fez do corpo da criança uma mercadoria que pode ser usada e descartada pela ciência. Desalojá-la desse lugar e se opor que a ciência faça do corpo da criança um objeto comercializado, disciplinarizado e medicalizado é, portanto, uma orientação ética da psicanálise.

 


 

Referências
BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. “Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba”, In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 9. E ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., Curitiba, PUCPR, 26 a 29 de outubro de 2009.
DRUMMOND, C. “A criança objetalizada”, Almanaque on-line, Revista Eletrônica do IPSM-MG, n. 1, jul./dez., 2007.
DRUMMOND, C. Como se opor a que se seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a. Belo Horizonte: Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas de Gerais, 2012.
FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1993.
LACADÉE, P. “Duas referências essenciais de J. Lacan sobre o sintoma da criança”, Opção Lacaniana, São Paulo, n. 17, p. 74-82, nov. 1996.
LACAN, J. (1954-1955). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.359-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”, Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 41, p.7-67, dez. 2004.
1 O protocolo IRDI foi desenvolvido pelo Grupo Nacional de Pesquisa sob a Chancela do Ministério da Saúde e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no período entre 2001 e 2008.

Andrea Eulálio De Paula Ferreira, Margaret Pires Do Couto E Tereza Cristina Côrtes Facury
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com. Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br. Tereza Cristina Côrtes Facury – Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. E-mail: terezafacury@gmail.com



Almanaque On-Line Entrevista

 SÉRGIO LAIA – DIRETOR EXECUTIVO DO VI ENAPOL PELA EBP

 

1) O Corpo Está Em Discussão. O IPSM-MG Tem-Se Ocupado Da Exploração Do Tema Do VI ENAPOL E Propõe, Para Esta Entrevista, A Articulação “O Corpo Sob Transferência”, O Corpo Tomado Pela Incidência Do Discurso Analítico No Século XXI. O Título Do VI ENAPOL, Falar Com O Corpo, E Seu Subtítulo, “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real”, Apresentam, Segundo Seu Texto Publicado No Site Do Encontro (LAIA, 2013), Um Programa Da Psicanálise De Orientação Lacaniana, Frente Ao Desencanto Contemporâneo Com Os “Poderes Da Palavra”, Em Sua Decisão De “Falar Com O Corpo” E Persistir Na “Trama Corpo-Linguagem” Para Ler Os Sintomas E Abordar A Generalização Das Normas Como Uma Crise Das Normas, Uma Resposta Ao Seu Fracasso Através De Um Recrudescimento.

Que Tratamento A Psicanálise Pode Oferecer Ao Corpo, Considerando Os Novos Usos Que Se Apresentam Na Clínica De Hoje?
Mesmo com todas as críticas e até perseguições que a psicanálise vem sofrendo nestes tempos, estimo que estamos em um momento oportuno, ainda que isso não implique qualquer conforto. Primeiro, porque essas críticas e essas perseguições podem e devem ser enfrentadas por nós, analistas (e aqui já introduzo o tema que vocês elegeram para esta entrevista), como uma transferência apresentada na faceta que Freud já chamava de “transferência negativa”. Além disso, vivemos em um mundo onde é intenso o apelo que se faz ao corpo:

No que concerne mais especificamente às terapêuticas, uma boa parte das propostas atuais reduz os sintomas a “transtornos” que, embora qualificados de “mentais”, encontram nos corpos um lugar em que eles ganham consistência e no qual devem ser feitas as intervenções terapêuticas. Afinal, “localizações cerebrais” e “marcadores biológicos” são buscados como formas de se conferir maior objetividade ao diagnóstico e ao tratamento, que, muitas vezes, é necessariamente associado ou mesmo restrito a medicamentos.

Quanto ao que caracteriza, de modo geral, nossa civilização, senão tudo, certamente, uma grande parte do que se propõe e se experimenta, hoje, como “modos” ou “estilos” de vida implica o corpo em sua exigência de satisfação constante.

Ora, a psicanálise é uma experiência que se faz com o corpo e no corpo. Portanto, ela tem toda condição para responder às incitações que nossa civilização faz aos corpos como campo privilegiado de satisfação, bem como às reduções pelas quais muitas terapêuticas atuais tomam os sintomas, identificando-os apenas como o que é somático. Nossa diferença (e também nosso desafio em termos de implantação e reiteração neste mundo) é que, para nós, os corpos são o que eu chamaria de caixas de ressonância e também de dissonância, ressaltando que esses “sons” corporais não são captáveis nem pelos tradicionais e também cada vez mais sofisticados aparelhos de “ultrassonografia”, nem pela tecnologia de ponta instrumentalizada como “ressonância magnética”. Afinal, esses sons manifestam-se, segundo nos ensina Lacan, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18), ou seja, eles são pulsionais. Embora sejam às pulsões que a civilização procura responder (silenciando-as, nos tempos mais repressivos, ou, como acontece mais em nossa atualidade, mais permissiva, incitando-as), embora seja também algo das pulsões que muitas terapêuticas contemporâneas — mesmo sem usarem tal nome — propõem controlar (como no caso dos “hiperativos”), ou incitar (como no caso dos “deprimidos”), é a psicanálise que consolidou modos efetivos para que possamos abordá-las e vivê-las. É na experiência analítica que se pode constatar o quanto as palavras afetam os corpos e o quanto ansiamos para falar com os corpos e também para fazê-los falar. Por conseguinte, embora se tente muito isso hoje em dia, não há como livrar os corpos vivos desse tipo de afecção. Por isso, conforme eu lhes dizia inicialmente, temos de nos haver hoje com uma enorme transferência negativa quanto à psicanálise e nos encontramos, concomitantemente, em um momento oportuno.

2) Segundo Éric Laurent (2013), “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real” Remetem-Nos A Uma Dupla Série Causal: De Um Lado, “Os Corpos São Muito Mais Deixados Por Sua Própria Conta, Marcando-Se Febrilmente Com Signos Que Não Chegam A Lhes Dar Consistência E, Por Outro Lado, A Agitação Do Real Pode Ser Lida Como Uma Das Consequências Da ‘Ascensão Ao Zênite Do Objeto A’.”
Quais As Consequências Dessa Constatação Na Direção De Um Tratamento Em Nossos Dias, Que Pretende Fundamentar-Se Na Teoria E Ética Lacanianas?

Parece-me que minha resposta à questão anterior já antecipa elementos que respondem a esta segunda. Quais são os “signos” (para tomar aqui a passagem de Éric Laurent citada por vocês) que não chegam a “dar consistência” aos corpos, mas que os marcam “febrilmente”? Há uma multiplicidade deles: “tatuagens”, “drogas”, “baladas”, “silicones”, “energéticos”, “celulares”, “roupas”, “TPM”, “ponto G”, “Viagra”, “sexo”… etc…. Essa variedade, que cada vez se multiplica mais, mostra, concomitantemente, como o “objeto a”, por ser efetivamente um “condensador” de gozo, ou seja, de satisfação, encontra-se em ascensão no mundo contemporâneo, mas ela também evidencia, especialmente para quem é sensível à escuta analítica, o fracasso desses signos em dar aos corpos alguma consistência. Em outros termos, há uma produção de múltiplos objetos e uma busca incessante por eles porque não há efetivamente objeto capaz de suturar o vazio que faz os dizeres ecoarem nos corpos. Por sua vez, a experiência analítica tem como cingir e responder a tal vazio sem ser pela proliferação dos objetos. Nossos consultórios de psicanálise, bem como os atendimentos e intervenções que muitos de nós fazem nas instituições de saúde, de defesa social e de ensino comportam muitos exemplos de como os corpos são objetos de intensos investimentos, de incisivas intervenções, mas sem que isso resulte em alguma consistência para aqueles que se apresentam com eles, visando a um tratamento, um acolhimento, uma resposta. Entre esses exemplos, eu citaria: a busca incessante pelo “over” nas toxicomanias, que ganha, com o crack, um viés ainda mais tenebroso, o “menor abandonado”, cuja trajetória de infrações o faz sempre ser abandonado, o entediado, que vaga pelas noites ou pelos shoppings, sem encontrar o que ele não sabe que está procurando, a anoréxica, que recusa o alimento para, insistentemente, comer nada, aquele que não encontra mais lugar no corpo para mais uma tatuagem…

Sobre como a psicanálise pode tratar essas inconsistências, essas experiências de esvaimento dos corpos manifestada na própria apresentação dos corpos como objetos, eu já destaquei, na primeira resposta, e também no meu texto (LAIA, 2013), que se encontra no site do VI ENAPOL (evocado também, a princípio, por vocês): nossas intervenções se valem da “trama corpo-linguagem”, da escuta do que ecoa, inclusive nessas inconsistências corporais, como dizer. A transferência, nesse contexto, é decisiva, pois os corpos inconsistentes de hoje não param de buscar os corpos, e, nessa trajetória, o corpo do analista pode fazer diferença entre os múltiplos corpos que servem como anteparo, âncora, bússola, mas também como diluição, errância, perdição aos corpos agitados de hoje. Por fim, se a ética da psicanálise se vale da orientação de não ceder quanto ao desejo, de agir em conformidade com o desejo (segundo os termos de Lacan, no Seminário 7, 1959-1960/1988, p. 373-390), encontro, em uma passagem do primeiro testemunho de Marcus André Vieira como A.E. (Analista da Escola), uma indicação preciosa para articularmos tal orientação com a definição lacaniana da pulsão, no Seminário 23, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18). Tematizando exatamente como a transferência permitiu-lhe abrir “um espaço corporal sem lugar e forma claros” e também marcado por “nada do Outro”, ou seja, alheio a qualquer referência, no qual “ecoavam as intervenções sonoras do analista e que sentia sua presença, reagindo à sua voz de outra forma”, Marcus André Vieira nos mostra como a experiência analítica deu-lhe alguma consistência para o “tanto de gozo fora do corpo, de vida que não cabe na vida e se manifestava como vontade” de ele, Marcus, se “lançar para dentro e não para fora, para o encontro com um desejo a descobrir e não a antecipar” (VIEIRA, 2013, p. 31, grifos do entrevistado). Considero preciosa tal passagem, no que concerne à ética da psicanálise e à experiência analítica hoje, porque, em nosso mundo, tomado pelo imperativo da satisfação, os corpos estão sempre às voltas com o desejo a antecipar, e à experiência analítica cabe suscitar o que poderá apresentar-se como um desejo a descobrir. É desse desejo a descobrir que não se deve ceder, e é esse desafio que sustentamos na experiência analítica, particularmente hoje em dia, quando o mundo é assolado pela urgência de se antecipar o desejo para que se possa garantir a onipresença da satisfação.

3) Ainda Hoje, Poderíamos Constatar, Como Freud, Que “Sempre Resta O Sintoma, Na Medida Em Que Ele Interroga Cada Um Sobre O Que Vem Incomodar-Lhe O Corpo”. Entretanto, Éric Laurent (2013) Nos Alerta De Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica”.
O Que Significa, Para A Apresentação E O Manejo Da Transferência, Ir Para “Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe, No Horizonte, O Amor Ao Pai”?

O amor ao analista, isto é, o investimento que liga o analisando ao analista, pode ter o amor ao pai como uma das formas pelas quais a transferência se processa. Freud mesmo fala do analista como um “substituto” dos primeiros objetos de investimento libidinal, e o pai se encontra entre esses objetos. Mas a transferência e seu manejo não se reduzem a isso. Mesmo quando tomamos a transferência, tal qual Freud, como uma forma de “neurose” forjada na própria experiência analítica, ela não é mera repetição do que se passou e não foi elaborado. A parte em que o sintoma se trama com o amor ao pai é, a meu ver, mesmo sob a forma de “neurose de transferência”, aquela que é decifrável, inclusive porque o Nome-do-Pai tem, segundo podemos ler na “metáfora paterna”, a função de traduzir, decifrar o enigma do “Desejo da Mãe” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 563). Entretanto, como nos vai ensinar um Lacan mais tardio em relação àquele dessa operação de metaforização, “uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Assim, quanto ao sintoma, ele comporta, como tem insistido Jacques-Alain Miller, uma opacidade ao sentido e à decifração, e, nesse viés, o analista como parceiro-sintoma, na transferência, não é pura e simplesmente um substituto do pai.

4) Em TEXTOaCORPO #18, Lemos: “O Novo Status Do Sintoma Significa Muito Mais Que Constatar Que Não Há Sintoma Sem Corpo. Ao Ser Acontecimento De Corpo, O Sintoma É Um Real Contingente E Singular, Pois Nenhum Acontecimento É Necessário E Universal. O Corpo, Como Sede Deste Acontecimento, Ademais De Ser Gozável, Deve Poder Receber, Como Letra, A Marca Escrita Pelo Sintoma, E Por Isso É Literável” (ARENAS, 2013). Miller (2012) Refere-Se Ao Ultimíssimo Lacan Apontando Que: “No Lugar De Função Da Fala, Campo Da Linguagem E Instância Da Letra, Temos Lalíngua, Apalavra E Lituraterra, Que Esboçam Certamente Um Outro Lacan”.

Já Que O Sintoma Se Inscreve No Corpo, Como Escutá-Lo E Interpretá-Lo, Se Há, Nos Tempos De Hoje, Uma Dificuldade No Relato Pelo Falasser? Como Articular Escuta E Leitura (Do Sintoma Que Se Escreve), Uma Vez Que O Corpo É Tomado Como Aquilo Do Qual Goza O Sujeito? Como Fica A Transferência?
O que vocês estão chamando de “dificuldade no relato” se manifesta, muitas vezes, como uma dificuldade de dizer, de contar o que se passou, de falar do que está acontecendo, de decifrar o sintoma, ou, pelo menos, de ser sensível à sua decifração. Entretanto, se a psicanálise faz diferença, em um mundo onde, o tempo inteiro, se insiste que “falar faz bem”, é porque, para nós, a dificuldade para relatar não é menos um dizer. Por isso, a experiência analítica não se reduz a uma trama biográfica: os analisantes se surpreendem com o que escapa à suas biografias e que, ainda assim, os determinam, mobilizam seus sintomas, constituem seus desejos. Nesse viés, quando pretendemos discutir, no VI ENAPOL, as diferentes nuances de “Falar com o corpo”, essa fala se processa mesmo quando não há muita disposição do falante ao relato, porque o corpo é uma espécie de “estranho” com o qual, contrariando o que dizem, primordialmente, nossos pais, insistimos em falar, porque ele, com sua presença inusitada, enigmática, nos faz falar. A transferência é decisiva nesse contexto porque, como constatamos na orientação lacaniana, um analista é talhado, por sua análise pessoal e pelas supervisões, a tomar a forma desse “estranho” que é o corpo com que falamos, muitas vezes, sem escutar qualquer palavra, e, como esse “corpo estranho”, na transferência, um analista poderá fazer ecoar (ou mesmo amplificar) o inaudível não para que este seja propriamente escutado ou relatado, mas para que possamos cingir e nos virar com tal opacidade.

5) Acompanhamos, No Momento Atual, A Agitação Dos Corpos Dos Jovens, Em Uma Série De Manifestações, Nas Quais Os Analistas Políticos Identificam Uma “Crise Da Representação”.
Que Articulação Se Pode Fazer Entre O Lugar Ocupado Pelo Corpo Na Atualidade E As Novas Formas De Identidade?

As manifestações recentes parecem evidenciar que a crise das normas atinge inclusive o campo mesmo dos protestos. Afinal, no início, o que surpreendeu a todos foi o fato de não se saber de onde surgiu tanta gente que, até então, supunha-se que estava mais conectada à internet do que à suposta “realidade do país”. Uma faixa dos manifestantes proclamava: “Somos a rede social”, e encontro nela um excelente exemplo do que Lacan chamava de interpretação pelo equívoco. Afinal, nesses tempos de Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter, o sintagma “rede social” refere-se a corpos imersos no chamado “mundo virtual”, mas, nas manifestações, eis que esses corpos, que ninguém sabia muito bem onde estavam, aparecem nas ruas sob a forma das “manifestações”. Em outros termos, os corpos dos manifestantes “pularam” do “mundo virtual” para as “manifestações” em várias cidades brasileiras, da mesma forma como a anamorfose pintada por Holbein, no quadro Os embaixadores (comentado por Lacan, no Seminário 11), “pula”, enigmática, do que esse quadro representava em termos dos objetos da ciência, das artes e dos representantes da diplomacia, ou seja, da “realidade” do então século XVI (LACAN, 1964/1988, p. 84-115).

À medida que os protestos foram-se multiplicando, tudo parecia ter-se tornado motivo de protesto, e, nesse sentido, a própria concepção do que seria “protestar” se mostrou, senão diluída, certamente ainda mais opaca. Dessa surpresa frente a essa diluição e à opacidade, algo me pareceu manter-se e que tem a ver com o que, na pergunta, vocês chamaram de “agitação dos corpos”. Fazendo aproximação entre o subtítulo do VI ENAPOL e essas manifestações recentes no Brasil, parece possível sustentar que a “agitação do real” é uma “agitação dos corpos”, e que, quando há “crise das normas”, os corpos se agitam. Pergunto-me, nesse aspecto, se o sintoma “social” corporificado por essas manifestações não pode ser lido na vertente do que, graças a Jacques-Alain Miller, temos podido encontrar em Lacan como “acontecimento de corpo”. Assim, se uma das faixas ostentadas nessas ocasiões dizia: “Não são só 20 centavos”, eu não a leio apenas como ressaltando que há mais motivo para protestos do que o aumento das passagens de ônibus ou o direito à gratuidade do transporte público para estudantes. Prefiro lê-la assim: os “20 centavos” de aumento nas tarifas de ônibus não foram apenas o “significante” que causou a agitação dos corpos sob a forma de protestos, eles são o significante que acionou o gosto, ou, se quisermos usar um termo mais lacaniano, o gozo dos corpos de se manifestarem, especialmente porque as manifestações se tornaram mais frequentes depois que alguns corpos que se batiam por transporte público mais barato ou gratuito foram alvos de inusitada violência policial na cidade de São Paulo. Com base no que alguns analisantes me contaram sobre suas participações nas manifestações e acompanhando-as direta ou indiretamente, eu diria que não eram apenas os “20 centavos”, porque o que se descobria ali, a cada manifestação, era a satisfação dos corpos que, como também se pôde logo notar, não era apenas a dos corpos se encontrarem, mas também de se deixarem tomar por colisões e ímpetos mortíferos. Assim, retomando minha referência ao quadro de Holbein, é importante lembrar que a anamorfose que “pula” da representação é um crânio de caveira, e, se ela me permitiu fazer essa relação com os corpos cuja agitação surpreendeu a todos nessas recentes manifestações, parece-me igualmente importante que, como analistas, nós certamente não temos que desprezá-las (afinal, o que agita os corpos nos concerne desde os sintomas histéricos os mais clássicos), tampouco temos que tomá-las como uma crise da representação manifestando, como pretenderia um Badiou, o irrepresentável na política como uma solução inequívoca.

Duas frases de Lacan, que faz do equívoco um bem-dizer, surgem-me, aqui, como uma posição interessante frente às manifestações: “Eu aguardo, mas não espero nada” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 133). Essa passagem é instigante porque, comportando um enigma ao lidar com os verbos “aguardar” e “esperar”, atribui-lhes uma diferença que não é tão clara ao senso comum, nem para os dicionários, mas que é real para a psicanálise de orientação lacaniana. Afinal, “esperar” ressoa em “esperança” e, portanto, em uma expectativa de que há um sentido, um ideal, mesmo que (mortiferamente ou não) inalcançáveis e que comportem uma convocação do Outro, de um lugar ao qual se pode chegar, aspirar, fazer consistir. Bem diferente, “aguardar” implica a presença viva de um corpo, sem lugar para uma expectativa ou uma convocação quanto ao sentido, ao ideal ou ao Outro. Assim, um analista é aquele que, frente à agitação dos corpos, aguarda sem esperar, transmitindo-lhes, assim, inclusive, alguma serenidade. Novamente, posso verificar aqui com vocês o quanto vivemos um momento oportuno para a psicanálise de orientação lacaniana, mesmo que essa oportunidade não nos reserve qualquer conforto.

 


 

Referências
ARENAS, G. O corpo, gozável e literável. TEXTOaCORPO #18. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/Boletines/018.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 537-590.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1973). “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 550-556.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAIA, S. Falar com o corpo, um solilóquio e a experiência analítica. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-el-cuerpo-un-soliloquio-y-la-experiencia-analitica_Sergio-Laia.html. Acesso em: 21/07/2013.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 21/07/2013.
MILLER, J.-A. “O escrito na fala”. Opção Lacaniana online, nova série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
VIEIRA, M. A. “Mordidavida”, Opção Lacaniana, n. 65, abr. 2013, p. 31.