EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 29

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O CORPO: DO CLÍNICO AO POLÍTICO[1] 

 

ELAINE ROCHA MACIEL
Psicanalista, mestre em Educação pela UFMG
elainermaciel@yahoo.com.br

Resumo: A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud e do ensino de Lacan. Focaremos no último ensino de Lacan, em que o corpo é afetado por lalíngua. Um encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tendo como resultado um acontecimento de corpo e produção de efeitos de gozo. Um gozo fora do sentido, que se apresenta enquanto excesso e que deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Palavras-chave: corpo; lalíngua; acontecimento de corpo; sintoma; política.

The body: from the clinician to the political

Abstract: The notion of body in psychoanalysis underwent redefinitions throughout Freud’s work and Lacan’s teaching. We will focus on Lacan’s last teaching, in which the body is affected by lalangue. A traumatic encounter, derived from the clash between language and body, resulting in a body event and producing effects of jouissance. A jouissance outside of meaning, which presents itself as an excess and which leaves marks on the body, events that are the symptoms. These symptoms manifest themselves in different ways in contemporary times. It is a matter of a clinical dimension articulated to a political dimension.

Keywords: body; lalangue; body event; symptom; policy

 

 

Desde o início da psicanálise, Freud se dedicou à difícil relação entre o sujeito e o seu corpo, quando do seu encontro com os sintomas corporais presentes na clínica da histeria. As conversões histéricas se referiam ao recalque, que, num primeiro momento, apoiava-se somente nas representações. Posteriormente, Freud percebeu que havia algo para além das representações, passando a considerar essas perturbações conversivas a partir da pulsão. Tratava-se de um corpo atravessado pelo real. Esse atravessamento indicava uma outra causalidade, referindo-se à existência de um corpo libidinal. Quer dizer, não se tratava tão somente de que as histéricas endereçassem sua fala ao Outro para ser decifrada, em busca de uma verdade que o recalque recobria, mas sim de um falar com seu corpo, advindo da marca nesse corpo (MILLER, 2004, p. 51).

Passa-se de uma lógica da representação para uma lógica da pulsão, fazendo surgir uma outra concepção de sintoma e uma nova noção de corpo. Miller (2004), em Biologia lacaniana e acontecimento de corpo, destaca em Freud uma articulação entre essas duas lógicas: “atrás das representações, há as pulsões. As pulsões se exprimem pelas representações. É a sua maneira de nos apresentar uma conexão do significante e do gozo. Em sentido próprio, o recalque recai sobre as representações, mas também sobre as pulsões” (MILLER, 2004, p. 55).

As investigações de Freud sobre a sexualidade infantil também corroboraram com a ruptura da concepção restrita de corpo biológico. Ela trouxe à tona o corpo pulsional e evidenciou que há algo que escapa ao domínio do saber, saber esse inerente ao corpo biológico. Seguindo nas suas construções, Freud se deparou com a fragmentação do corpo nas psicoses e com os fenômenos, derivados dessa fragmentação, que afetam o corpo. Essas construções fundamentaram a sua teoria do narcisismo e da constituição do eu.

A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud, bem como do ensino de Lacan, considerando a subjetividade de cada época. Em Lacan, primeiramente, tínhamos o corpo relacionado à sua forma, ou seja, encontrava-se ligado à imagem, sendo sua referência o estágio do espelho. Com isso, o gozo era da ordem imaginária, sendo governado pela articulação simbólica. Sobre esse momento, Miller diz que “O eixo do interesse de Lacan não é o acontecimento de corpo, é a irrupção do símbolo no real. Sua questão é saber como o significante vem a se desencadear no real. É uma questão que é, essencialmente, da parte do sujeito do significante” (MILLER, 2004, p. 56). A lógica em questão era a das estruturas significantes que decorrem do Outro, sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem.

 

O sintoma como acontecimento de corpo

No último ensino de Lacan, o corpo ganha um novo e significativo estatuto na sua relação com o gozo, o que acarreta uma orientação da clínica em direção ao real. Trata-se de um corpo afetado por lalíngua, ou seja, uma língua que precede à linguagem e que impacta o corpo. Segundo Miquel Bassols, lalíngua é “definida pela substância gozante veiculada pelo significante, uma substância que toca o real do corpo. O real de lalíngua dá corpo à imagem” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Esse encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tem como resultado um acontecimento de corpo. O acontecimento de corpo é o impacto do significante, que opera fora do sentido, sobre o corpo, marcando-o e produzindo efeitos de gozo. “Trata-se de um acontecimento produzido por um encontro que não responde a nenhuma lei prévia, impossível de ser abolido, um gozo silencioso e fixado de uma vez por todas, que não cessa e que também não tem por que, mas que se reitera” (MANDIL, 2014, p. 01).

Essa presença significativa da dimensão do real do corpo muda o estatuto do inconsciente e leva Lacan a propor a substituição do termo “inconsciente freudiano” por “falasser. Sobre essa substituição, Miller (2016), em O inconsciente e o corpo falante, propõe “tomá-la como índice do que muda na psicanálise no século XXI, quando ela deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 06).

Enquanto o inconsciente freudiano tem relação com a consciência e está articulado ao sentido, o falasser se refere ao acontecimento de corpo, o que leva Miller a dizer que falar com seu corpo caracteriza o falasser (MILLER, 2004, p. 51). O falasser não é o corpo que fala, pois a fala não tem relação com a função cognitiva do corpo, uma vez que a língua não está ligada ao aprendizado. Se assim o fosse, existiria, a princípio, um ser, e, posteriormente, esse ser adquiriria a capacidade de falar. De outra maneira, a estrutura de linguagem antecede ao sujeito, enquanto corpo e enquanto ser. Ela é a condição do corpo falante. Por isso, a língua não se aprende, mas se transmite, a partir de uma experiência de gozo que atravessa o corpo.

Isso tem como efeito a separação entre o corpo e o ser. É justamente por não se reduzir ao seu corpo que o humano se distingue do animal. O animal identifica o ser e o corpo, ele é um corpo, fazendo com que o seu saber esteja nesse corpo. Diferente disso, o humano não é o corpo, ele o tem. Não se trata somente de uma imagem especular do corpo, mas, como nos afirma Bassols, “principalmente uma experiência de ter um corpo como unidade na qual se localiza uma satisfação pulsional, uma experiência de gozo” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Um gozo opaco, por ser fora do sentido, e que se apresenta no corpo enquanto excesso. Ele deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Trata-se de um sintoma que se diferencia do sintoma entendido como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem. Ele não se refere à metáfora, ou seja, a um efeito de sentido passível de ser decifrável e que revela um desejo inconsciente. Diferente disso, o sintoma de um falasser é um acontecimento de corpo. Éric Laurent descreve o acontecimento de corpo como sendo “‘tudo o que chega’, com uma dimensão de surpresa ou de contingência, antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro. Apresentar assim o sintoma é acentuar sua dimensão fora do sentido” (LAURENT, 2016, p. 50). Trata-se do sintoma enquanto efeito de lalíngua diretamente sobre o corpo, produzindo efeitos de gozo. O fora de sentido do sintoma decorre da sua dimensão corporal, sendo que, mesmo separado, o corpo sofre efeitos do discurso.

Concomitantemente ao gozo do corpo, que se refere a um gozar de si mesmo, o falasser comporta também o gozo da fala. Sobre isso, Miller afirma que “O falasser tem que se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem que se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos dois outros” (MILLER, 2016, p. 09).

Assim como o ser só existe enquanto tal na medida em que fala, o ser também só tem um corpo na medida em que fala ou é falado pelo Outro. Ter um corpo, como vimos, implica em uma experiência de gozo, sendo que esse atravessamento do corpo pela linguagem produz uma operação de extração do que Lacan chamou de objeto a. Isso marca um gozo interdito, que perde seu caráter ilimitado e inaugura a cadeia de significantes (S1 – S2), possibilitando uma conexão entre o objeto e a função fálica.

Portanto, “a extração do objeto é a condição para que o sujeito tenha acesso à dimensão do Outro, para a incorporação do corpo simbólico e para sua inscrição num discurso” (BARROSO, 2014, p. 134). Essa operação de extração faz com que o objeto a torne causa de desejo. Ser causa de desejo significa que houve a incidência da falta do objeto no campo do Outro, assegurando a função de castração. Vemos então que, com a operação de castração, há uma separação, no imaginário, do gozo. Temos aí um gozo que se lança para fora do corpo, que Lacan identificou como gozo fálico. Nesse contexto, a falta se presentifica enquanto vazio central da estrutura e da amarração dos registros: real, simbólico e imaginário. Isso significa que o objeto a se localiza na interseção desses três registros, ordenando a estrutura do ser falante. A psicanálise lacaniana aborda o corpo segundo esses três registros, que corroboram para que se tenha um corpo e dele se faça uso.

Por outro lado, quando não há a extração do objeto a, este é impedido de se alojar no campo do Outro, não se configurando como causa de desejo, mas permanecendo como puro gozo que irrompe no corpo. Nesse contexto, há a junção do significante e do gozo (S1 = a) ou (S1 sozinho). O objeto permanece enquanto substância gozante, uma vez que ele não foi negativizado, o que seria obtido pela operação de castração. Sem a inscrição do objeto no discurso, não há a sua articulação à função fálica. Sem a significação fálica, faz-se presente uma instabilidade radical e constante do ser.

A irrupção do gozo no corpo acarreta a manifestação de variados fenômenos corporais, bem como de sentimentos de horror e de perplexidade. É o que vemos na clínica das psicoses, em que se encontra em destaque a questão da fragmentação, da dispersão e da inconsistência do corpo. Um corpo que está sempre sob ameaça de se desprender, de não se sustentar como uma unidade. A ele falta uma significação que o possibilite dar uma resposta sobre o seu ser, o que o impede de constituir como quem tem um corpo. Daí decorre a dificuldade desses sujeitos em construir uma certa unidade do corpo, pois muitas vezes se encontram à mercê do real do gozo do corpo. Por isso, Miller afirma que “o sintoma como acontecimento de corpo é altamente suscetível de ser posto em evidência na psicose (MILLER, 2004, p. 55).

Entretanto, a problemática decorrente de um gozo que afeta o corpo está posta não somente na clínica da psicose, ela é independente da estrutura. Cada um sofre os efeitos desse retorno do gozo no real de forma particular e nenhuma construção, seja ela qual for, dá conta do sem sentido que lhe afeta.

 

Uma dimensão política

Mais além de um sujeito fruto da articulação significante, em que o ser é efeito de sentido, há o acontecimento de corpo. Isso nos faz deparar com uma variedade de novos sintomas que decorrem desse impacto da língua sobre o corpo. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Lacan (1966-67), em seu Seminário Lógica da fantasia, afirma que o inconsciente é a política. Trata-se de uma construção de que o inconsciente não está articulado ao pai, mas que se apresenta como algo a ser definido. Essa construção provém de uma leitura da identificação, mecanismo político por excelência, a partir do acontecimento de corpo, ou seja, numa lógica do ilimitado do gozo. Um gozo sem lei, que se sobrepõe aos ideais. Por ser ilimitado, ele não se curva a nenhuma regulação, sendo soberano o imperativo ao gozo.

A partir da expressão “o inconsciente é a política”, Laurent extrai a concepção de inconsciente político, fazendo uma articulação ao acontecimento de corpo:

“A extensão da perspectiva do inconsciente político ao falasser nos leva aos limites do questionamento psicanalítico sobre a relação do sujeito com o discurso. Ao centrá-lo sobre o acontecimento de corpo e não sobre uma identificação, (…) o sujeito se mantém fora da garantia do ‘complexo de Édipo’. É preciso então confrontar o risco da identificação como delirante (…).  Com o acontecimento de corpo, retira-se a identificação ao Pai e se desnudam (…) os acontecimentos de gozo mais além da castração” (LAURENT, 2016, p. 219).

Sem a identificação paterna, não é mais pelos ideais que acontece o laço entre o corpo e o Outro, mas sim pelo acontecimento de corpo. Devido a essa conexão direta com o que afeta o corpo, Miller considera que o laço social na atualidade é o sintoma e, portanto, carrega em si o gozo. 

 


Referências 
BARROSO, S. F. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
BASSOLS, M. “Corpo da imagem e corpo falante”. In: Scilicet: o corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 12-15.
LACAN, J. (1966-67) Logica del fantasiaInédito
LACAN, J.  (1972-73) O seminário, Livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro: Jorge Zahar  Ed., 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, Livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAUREN, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
MANDIL, R. “Há um acontecimento de corpo”. Opção Lacaniana online, n.13, março 2014. Disponível em:           <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Ha_um_acontecimento_de_corpo.pd>. Acesso em 02/03/2022.
MILLER, J.-A. “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo”. In: Opção Lacaniana, n. 41. São Paulo: Eólia, 2004. Tradução: Ana Lúcia Paranhos Pessoa.
MILLER, J.-A. “Un-cuerpo”. In: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2020..
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. In: Sciliceto corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.
SANTIAGO, J. “Transferência e acontecimento de corpo: suposto-saber-ler de outra forma”. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, n. 47, 2019, p. 47-60.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito – Seção Clínica do IPSM-MG, em 18/03/2022



DO NÓ COMO SUPORTE DO SUJEITO[1] 

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: A partir do terceiro capítulo do Seminário 23, de J. Lacan, o texto se propõe a esclarecer a utilização do nó borromeano por Lacan e algumas de suas aplicações à clínica das psicoses. Nesse contexto, confere-se privilégio à noção de Sinthoma como suporte do sujeito.

Palavras-chave: Nó borromeano; Sinthoma; sujeito.

From the node as support of the subject

Abstract: Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.

Keywords: Borromean knot; Sinthome; Subject,

 

 

Imagem: Nelson de Almeida

O título desta intervenção, “Do nó como suporte do sujeito”, refere-se ao terceiro capítulo do Seminário 23, de Lacan, proferido no dia 16 de dezembro de 1975. Proponho retomar aqui essa lição acrescentando algumas reflexões sobre o tema do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais para o primeiro semestre de 2022, “O acontecimento de corpo político”, de forma a extrair consequências para nossa prática com as psicoses.

A clínica borromeana, se podemos chamar assim a clínica pensada a partir do paradigma dos nós, se conforma à psicose joyceana, assim como a clínica estrutural se conforma à psicose schereberiana. Mais do que abordar as formas ditas não desencadeadas da psicose, a clínica borromeana nos permite pensar formas de encadeamento não referidas ao discurso ou à norma social. Nesse sentido, podemos dizer que a psicose joyceana se refere à psicose funcional, ou seja, à psicose do ponto de vista de uma solução, uma invenção, uma armadura singular que suporta a existência de um sujeito. Chamamos de sinthoma essa armadura singular, a ser lida como cifra de gozo. Acredito que podemos formular assim a questão que nos ocupa este semestre: sem dúvida alguma, a política é capaz de produzir acontecimento de corpo. Isso ocorre toda vez que o sinthoma de cada um, na medida em que ele é suportado pelas marcas que uma cultura inscreve no corpo do falasser, é afetado pelo acontecimento político.

– I –

Um nó borromeano é um tipo de amarração de três anéis, traçado de forma com que cada anel mantenha sua independência com relação aos demais. Essa é a condição borromena. O nó borromeano, diz Lacan, é “o forçamento de uma nova escrita (…) e é também o forçamento de um novo tipo de ideia (…) que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário” (LACAN, 1975/76, p. 127). Há diferentes formas de se conceber a amarração borromeana, assim como diversas formas de reparar uma amarração que apresenta um erro, como em Joyce. Uma política do sinthoma seria aquela que se atém a essa diversidade e condições singulares. Isso implica, como diz Lacan logo no início dessa lição, “que tivéssemos na análise o sentimento de um risco absoluto” (LACAN, 1975/76, p. 44). Esse risco parece condizente com a clínica borromeana, assim como o cálculo interpretativo parece se adequar melhor à clínica estrutural. Trata-se do risco inerente ao manejo dos nós, na medida em que o ato analítico é capaz de amarrar, afrouxar, apertar ou desfazer uma determinada amarração sinthomática que suporta a vida de um sujeito.

Lacan deixa no ar essa advertência para se ocupar, em seguida, de uma exigência derivada do que poderíamos chamar de realismo nodal. Qual é o mínimo de elos possíveis para que ocorra a propriedade borromeana? Como vimos, a propriedade borromeana pode se dar entre três anéis, se eles estabelecem entre si um traçado específico e se eles se amarram uns aos outros, estabelecendo uma continuidade entre eles de forma que o corte de um libera os outros dois.

 

Mas como manter juntos três anéis que não se amarram entre si, que não se amarram borromeanamente, por serem descontínuos devido à heterogeneidade entre eles, como é o caso do Real, do Simbólico e do Imaginário? Aqui é preciso supor que Real, Simbólico e Imaginário não se enodam espontaneamente, que o nó borromeano não é uma formação natural ou uma criação ex-nihilo e que é necessário acrescentar um quarto anel para que a amarração borromeana aconteça. É o que distingue o sinthoma como invenção de um sujeito.

 

Vejamos o que diz Lacan no referido capítulo do Seminário 23:

“Para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito — uma vez que o sujeito é apenas suposto —, encontre-se, em suma, sustentada no nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três? Não nos parece que o mínimo em uma cadeia borromeana é sempre constituído por um nó de quatro?” (LACAN, 1975/76, p. 49).

(…) “É sempre em três suportes, que nesse caso chamaremos de subjetivos, isto é, pessoais, que um quarto vai se apoiar. Se vocês se lembrarem do modo com que introduzi esse quarto elemento em relação aos três elementos, cada um deles supostamente constituindo alguma coisa de pessoal, o quarto será o que enuncio este ano como o sinthoma” (LACAN, 1975/76, p. 50).

O quarto anel, que nomeamos sinthoma, escrito com “th”, tem a propriedade de manter junto o que, por definição, está separado (RSI). Nessa perspectiva, quando se considera que Real, Simbólico e Imaginário não estão amarrados borromeanamente, mas soltos, não tendo relação um com o outro, é o sinthoma que faz a amarração borromeana e é nesse sentido que ele é suporte do sujeito.

– II –

O que significa dizer que o nó suporta o sujeito? Significa que o sujeito não existe sem relação com seu sintoma. Ou seja: ele não existe a não ser pelo sintoma que o suporta, o que faz do sintoma a unidade clínica fundamental e irredutível de todo falasser. Mas o sujeito desconhece o seu sintoma, que para ele pode ser um estorvo, um desarranjo, um imperativo de gozo que contraria seus ideais ou uma forma clandestina de existência. No melhor dos casos, o sujeito é uma resposta ao real do sintoma. É essa resposta do sujeito ao real do sintoma que Lacan vai escrever de forma distinta, recorrendo a uma grafia antiga, como “Sinthoma”. Essa resposta se limita a um saber-fazer com o seu sintoma, ou sintomas, com isso que não se pode recusar, na medida em que o sintoma é o que suporta um sujeito.

Lacan cunhou, em seu último ensino, o termo falasser para expressar a relação entre o inconsciente e o gozo cifrado do sintoma que se estabelece sobretudo nas neuroses. A abordagem estrutural das formações do inconsciente, que são em geral fugazes e ligadas à expressividade do desejo, é tributária da lógica do significante e comporta mal a lógica do sintoma, ou seja, aquilo que perdura, que insiste e resiste à interpretação e que parece não querer dizer nada a ninguém, sendo, antes, tributário do gozo do corpo. Nesse sentido, em uma análise, é o sintoma que nos conduz das formações do inconsciente ao real. Dito de outra forma: se o inconsciente supõe o Outro da linguagem, sendo “estruturado como uma linguagem” e, portanto, interpretável — e mesmo infinitamente interpretável —, o resíduo do sintoma, o seu núcleo duro, ex-siste ao inconsciente e é nesse sentido que ele tem a ver com o real.

A identificação ao sinthoma, como destino de uma análise, seria então uma identificação a esse resíduo do falasser e comporta um paradoxo, pois, se por um lado, o sujeito é suportado pelo sintoma, se ele é imanente e não transcendente em relação ao sintoma, por outro lado, o sintoma é sempre “estrangeiro” ao próprio sujeito. A identificação ao sinthoma não é uma condescendência ao sintoma, mas uma resposta possível ao seu núcleo real, àquilo que o ultrapassa e determina o seu modo de gozo.

Essa identificação comporta um forçamento, o advento de uma nova escrita, como a “metáfora delirante discreta” do paciente B., “Déf(ier D)ieu”, caso relatado na Conversação de Arcachon por de Jean-Pierre Deffieux (1998, p. 18) e debatido por nós no Núcleo de Psicose. Essa escrita é forçada porque ela é suportada pela letra do sintoma que podemos seguir, no relato do caso, desde a queixa inicial, “falta-me energia”, até a “centelha de vida” do laço com o analista. Mas a letra do sintoma, que fala com o corpo, permanece como tal, fora do sentido. Ela excede toda elucubração do saber. Um sintoma, isso se lê, e é só a partir dessa leitura — a ser distinguida da interpretação de uma formação do inconsciente — que temos uma ideia do que poderá ter sido esse acontecimento de corpo primordial que cifrou o sinthoma. É como um procedimento de leitura que Deffieux isola analiticamente o que faz suporte para B., tomando os elementos literais da cena traumática ocorrida aos 8 anos — o mês de março, o bordão, a madeira, a nudez — para verificar aquilo que o mantêm amarrado — o artesanato, a preocupação com o bem e o belo, o laço paterno, o exibicionismo do corpo —, mas também os pontos de ruptura que levam a novas amarrações.

Vale comparar com o caso Emma, que Freud explora no Projeto, igualmente a partir de uma cena aos 8 anos, em relação à solução encontrada (FREUD, 1895/1969, p. 463-468). Em Emma, a mediação do inconsciente resulta na construção de uma fantasia, anteparo frente ao real, que se torna possível pela extração do objeto olhar. De fato, o caminho da formação do sintoma na neurose supõe que a fantasia seja suportada pela letra do sintoma para que se possa constituir o semblante do objeto causa do desejo. Nesse fragmento freudiano, vale lembrar, a cena traumática se inscreve no inconsciente a partir de alguns significantes, como “riso”, “roupa” e “loja”, em torno dos quais a fantasia se constrói. A fantasia é uma fachada para a implicação do sujeito no sintoma, diz Freud, e o sintoma é o que resta após a travessia da fantasia, como “gozo puro de uma escrita” (MILLER apud LAURENT, 2016, p. 48). É o que leva Freud a dizer que a cena traumática ocorrida aos oito anos de idade, que podemos equivaler, nesse caso, a um acontecimento de corpo, modula a realidade sexual de Emma, levando-a a reencontrar a mesma cena aos doze anos de idade, como uma contingência da qual ela extrai o seu próprio gozo graças à reversibilidade da pulsão, que faz com ela se sinta desejada e olhada ao olhar e desejar.

Em B., de forma distinta, o exibicionismo do corpo nu, que Deffieux compara à “função da fantasia na pantomima do sujeito neurótico” (1998, p. 18), mostra que o sujeito mesmo está no lugar do objeto olhado, sem dele se separar. Essa pregnância maior do sintoma, na falta da mediação do desejo na fantasia, parece exigir então formas suplementares de amarração, como “a inscrição sobre o corpo de um fenômeno psicossomático, a psoríase, e uma metáfora delirante discreta” (DEFFIEUX, 1998, p. 18).

– III –

A concepção do nó borromeano de quatro anéis, à qual Lacan se aferra no referido capítulo do Seminário, Livro 23: O sinthoma, se refere sobretudo às neuroses. Nela encontramos uma vinculação mais estreita entre o sintoma e o inconsciente do que encontramos, em geral, na psicose. O inconsciente trabalha a partir da letra do sintoma; ele é uma elucubração de saber sobre o acontecimento de corpo político, no sentido que demos a essa expressão, ou seja, a radicalidade da incidência de um gozo que afeta o corpo do falasser, a fim de que esse acontecimento, que tem lugar na pólis — não há acontecimento de corpo autóctone, que não seja derivado da irrupção de um gozo que se apresenta como outro para um sujeito —, seja minimamente subjetivado como sintoma. Dessa forma, o real, ou melhor, o pedaço de real que cabe a um falasser, pode ser conjugado com o imaginário e o simbólico.

Não é o que acontece, por exemplo, na paranoia.

Na medida em que um sujeito enoda a três o imaginário, o simbólico e o real, ele é suportado apenas pela continuidade deles. O imaginário, o simbólico e o real são uma única e mesma consistência, e é nisso que consiste a psicose paranoica (LACAN, 1975/76, p. 52).

Lacan diz que a amarração que caracteriza a paranoia é o que define também a personalidade. “Paranoia e personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa” (LACAN, 1975/76, p. 52). Como podemos entender essa igualdade? Ela sugere que personalidade e paranoia se equivalem porque, em ambas, os três registros não se distinguem, como seria o caso da consistência, atribuída ao imaginário, do furo proveniente do simbólico e da ex-sistência própria ao real, como veremos adiante. O que nos leva a concluir que a personalidade mantém sua própria coesão a partir do artifício que podemos definir como uma exclusão do sujeito que seria suportado pelo sintoma. De fato, a estrutura paranoica se mostra, para todos os efeitos, impenetrável, como um bloco monolítico que tudo interpreta de forma rígida e especular, como reflexo da própria personalidade, sem nada querer saber do sintoma que a concerne.

Poderíamos conceber ainda, a partir de outras indicações de Lacan para além do Seminário 23 — embora jamais desenvolvidas por ele e, sim, por autores do Campo Freudiano, como Nieves Soria e Fabian Schejtman[2] —, outras formas de enodamento próprias das psicoses, como a parafrenia, a mania e a melancolia.

No caso da parafrenia, essa indicação de Lacan é extraída de uma apresentação de paciente ocorrida em 1975, portanto, contemporânea ao Seminário 23. Trata-se da paciente conhecida como Sra. B., que Lacan identifica a uma parafrenia imaginativa pelo fato de que ela se reduz a uma “pura vestimenta”, ou seja, a um puro semblante, sem a menor ideia do corpo que leva sob essa vestimenta, daquilo que poderia fornecer um lastro a esse ser de puro semblante. Certamente, essa referência ao corpo por baixo do vestido deve ser tomada em sua ex-sistência real, e não em sua dimensão de consistência imaginária, que seria, justamente, aquela de um corpo recoberto por um vestido. Essa configuração parafrênica poderia, assim, ser apresentada como uma interpenetração do simbólico e do imaginário que deixa solto o real.

Em relação à mania e à melancolia, as indicações de Lacan são aquelas que encontramos em Televisão (LACAN, 2003a), texto de 1974. Nessas estruturas clínicas, é o simbólico que permanece desligado, enquanto real e imaginário se interpenetram. Nesse texto, no capítulo em que Lacan analisa os afetos a partir da estrutura da linguagem, o desligamento do simbólico foi por ele referido ao rechaço do inconsciente. Tal rechaço equivale, no plano ético, a uma covardia moral. A diferença é que, na melancolia, o real predomina e submete o imaginário, como “pura cultura da pulsão de morte”, da qual falava Freud (1923/1969, p. 69), esmagando assim a imagem narcísica em que o Eu se sustenta, enquanto, na mania, é o imaginário que se sobrepõe ao real na forma da excitação maníaca, produzida a partir de um “retorno no real daquilo que foi rechaçado da linguagem” (LACAN, 2003a, p. 524).

 

A psicose de Joyce, por sua vez, pressupõe um lapso da amarração RSI, como indicado no desenho abaixo, à esquerda, do qual resulta a interpenetração entre o Real e o Simbólico que deixa solto o Imaginário. Essa seria a forma predominante dos enodamentos encontrados na esquizofrenia. No diagrama à direita, esse lapso se encontra corrigido por um quarto elo, que restabelece a amarração entre eles, configurando o sinthoma.

 

Mas essa correção só realiza em parte a propriedade borromeana. De fato, podemos dizer que, dessa forma, o Imaginário passa a se amarrar ao Simbólico e ao Real. Lacan identificou esse quarto elo ao Ego de Joyce, cuja consistência é dada por sua obra. Contudo, a independência entre RSI, a outra condição essencial à propriedade borromeana, não é verificada. A interpenetração entre o Simbólico e o Real persiste na forma peculiar da escrita de Joyce, que Lacan comparou a uma dissolução da linguagem, uma escrita que não diz nada a ninguém, que não fala ao inconsciente de ninguém, marcada pelo enigma e, por isso mesmo, capaz de fazer trabalharem os universitários. É por isso que Lacan vai dizer que Joyce era desabonado do inconsciente.

O paradigma Joyce abre um leque de pesquisas que torna possível pensar as psicoses sinthomatizadas, ou seja, psicoses nas quais uma amarração a partir de um quarto elo permite ao sujeito se sustentar pelo sinthoma, de forma que a psicose não se desencadeie. Resta saber em que essa forma de psicose se distingue da pré-psicose, aquela, por exemplo, que manteve Schreber estabilizado até os 50 anos de idade graças às suas identificações imaginárias.

Uma hipótese, apontada por Nieves Soria a partir de Fabian Schejtman (SORIA, 2008, p. 69), permite fazer a seguinte distinção: uma psicose sinthomatizada seria aquela em que a correção do lapso do nó, como apontou Lacan na conclusão do Seminário 23, ocorre no mesmo lugar onde ocorreu o lapso do nó. É o caso do Ego de Joyce, que se sustenta justamente da natureza de seu sinthoma. Essa solução se distinguiria de outras, supostamente mais frágeis, nas quais a correção não incide sobre o ponto do lapso ou a solução encontrada se apoiaria em identificações imaginárias que se dissolveriam frente a um apelo simbólico ao Nome-do-Pai, como ocorreu com Schreber.

– IV-

Vimos que a amarração borromeana pressupõe a independência, mas também a equivalência entre os registros Simbólico, Imaginário e Real, diferentemente da clínica estruturalista, que postulava a primazia do simbólico sobre o imaginário como condição para que o real fosse enquadrado. Essa eficácia do simbólico será relativizada pela clínica borromeana, assim como o valor da interpretação analítica, em direção a uma pragmática que busca discernir como o sujeito se arranja, como ele se vira para se sustentar com o seu próprio sintoma, ou seja, como ele se vira com o que, para ele, constitui essas três “subjetividades” denominadas Real, Simbólico e Imaginário, que, mesmo sendo equivalentes, não deixam de ser heterogêneas. Lacan caracteriza essa heterogeneidade da seguinte maneira:

“Não é por acaso, mas como resultado de uma concentração que seja no imaginário que eu coloque o suporte do que é a consistência, assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência” (LACAN, 1975/76, p. 49).

consistência atribuída ao Imaginário é o que resulta da “ideia de si mesmo como corpo”, ideia para a qual Lacan utiliza o termo “Ego”, o mesmo termo que ele utiliza para nomear o sinthoma de Joyce. Isso define uma relação de propriedade do sujeito com o seu corpo. De fato, o sujeito tem um corpo; ele não é um corpo. Mas isso é apenas uma crença. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem”, diz Lacan. “Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN, 1975/76, p. 64). Portanto, a consistência imaginária, ou seja, “aquilo que mantém junto” o falasser e seu corpo, se refere a uma ideia, como a ideia de um saco, e é sustentada por uma crença. A propriedade borromeana atribuída ao sinthoma, no sentido do que mantém junto RSI, deve ser distinguida da consistência do Imaginário que mantém junto o falasser e seu corpo. Trata-se de uma consideração importante, especialmente se referida ao campo das psicoses, na medida em que a recomposição do imaginário pode vir a ser, em alguns casos, uma orientação clínica. Se tomamos o exemplo de Joyce, vimos que essa recomposição se faz por meio do sinthoma, ou seja, a escrita e a publicação de uma obra, o que implica tomar Joyce como um artífice de seu próprio sinthoma, na medida em que isso tem efeito de suplência do lapso que deixa solto o imaginário.

furo do Simbólico, por sua vez, advém da característica fundamental do significante, a de ser aquilo que representa um sujeito para um outro significante. Se partimos dessa definição, é o sujeito mesmo que aparece como esse furo, no sentido da sua falta-a-ser. O simbólico, portanto, ao qual se deu primazia quando a clínica lacaniana se orientava por uma busca da verdade, é sem esperanças, se quisermos nos apoiar nele para nos sustentar como sujeitos. Os obsessivos que o digam. Vale relembrar, no entanto, que Lacan distingue o furo do simbólico, que o “especializa” enquanto um sistema de linguagem marcado pelas substituições metafóricas e deslizamentos metonímicos, do que Lacan chama de “o verdadeiro furo”, Ⱥ, que ele situa fora do simbólico, na confluência do real com o imaginário, como veremos adiante. Não há Outro do Outro. Isso reduz o simbólico ao sentido imaginário, mesmo quando interpretamos uma formação do inconsciente seguindo as trilhas das leis do significante que herdamos de Freud. Essa condição não nos impede de fazer ciência, isto é, de utilizar a via lógica para nos orientar na busca da verdade no campo da realidade, para além do que almejamos como a consistência do imaginário que, como sabemos, nos engana o tempo todo, por ser essa crença sustentada por uma miragem. É o furo do simbólico, portanto, o que nos permite figurar a verdade dos fatos para além de uma crença subjetiva.

ex-sistência do Real, por sua vez, deriva primeiramente do fato de que o sentido está foracluído do Real (LACAN, 1975/76, p. 117). Na medida em que o sentido é o que enquadra para nós o campo da realidade, o real não diz respeito à realidade das coisas, como ocorre em relação à ciência, tampouco se confunde com o que poderíamos chamar de uma natureza humana, que não sabemos bem a que se refere, uma vez que ela é atravessada pela linguagem. Seria o real uma pura potência negativa? Lacan vai dizer que o fato de o Real não poder ser imaginado ou pensado não quer dizer que o Real seja um limite da experiência humana. Pelo contrário, o Real incide o tempo todo, no sentido de que ele é uma experiência cotidiana, a experiência de um acontecimento de corpo. O Real também não se atém ao Ⱥ, o furo do simbólico, que é o limite da imaginação humana. O que confere certa esperança em relação ao real é ele poder ser contido pelo nó borromeano para um sujeito. Se não fosse assim, não haveria como suportá-lo. O nó borromeano é o que permite ao falasser cernir um pedaço do real, para chamar de seu, podemos dizer. É nesse sentido que Lacan (2003b) aproxima o sinthoma do acontecimento de corpo. É por ser um acontecimento de corpo que o sinthoma tem a ver com um real, com um real que Lacan chama de “orientável”, mesmo que essa orientação exclua o sentido. A ex-sistência é uma forma de existência específica do nó. Vejamos o que diz Lacan sobre isso:

“Ao sistir fora do Imaginário e do Simbólico, o real colide, movendo-se especialmente em algo da ordem da limitação. A partir do momento em que ele está borromeanamente enodado aos outros dois, estes lhe resistem. Isso quer dizer que o real só tem existência ao encontrar pelo simbólico e pelo imaginário a retenção” (LACAN, 1975/76, p. 49).

– V –

Lacan retoma, na quarta parte do capítulo III do Seminário 23, que estamos examinando, o esquema do nó borromeano já trabalhado em seu Seminário 22, RSI. A planificação do nó permite estabelecer três campos de contato, cada um sendo o resultado da articulação de dois registros, com a concomitante exclusão do terceiro. O campo central, como sabemos, é preenchido pelo objeto a, que não aparece representado nesse esquema do Seminário 23. Lacan observa, em primeiro lugar, que a notação (Ⱥ) se refere ao axioma “não há Outro do Outro”, o que quer dizer que nada se opõe ao Simbólico. Por conseguinte, não há também J(Ⱥ), o gozo do Outro do Outro (LACAN, 1975/76, p. 54), a não ser no imaginário da paranoia, na medida em que essa estrutura clínica identifica o gozo com o lugar do Outro. É nesse espaço entre Imaginário e Real, que se escreve como Ⱥ, que Lacan vai localizar, como acabamos de observar, o que ele chama, no capítulo IX, de o verdadeiro furo, a ser distinguido da falta inerente à castração, que devemos situar em um outro campo, aquele do gozo fálico. Esse furo, ao qual não corresponde nenhuma ordem de existência, remete, por outro lado, àquilo que podemos chamar da inibição própria do Imaginário em relação ao Real. É a essa inibição que Lacan recorre, na elaboração desse seminário, para justificar as dificuldades e os erros cometidos por ele mesmo ao traçar imaginariamente os seus nós borromeanos, o que, para ele, é um índice do real do . Embora as diversas configurações dos nós tenham como suporte uma imagem, como essa que está agora diante de nossos olhos, a dificuldade de imaginação é patente quando se trata de seus entrelaçamentos, da mesma forma que as dificuldades de escrita dos nós. Nesse sentido, vemos que o nó não é o matema, essa escrita lacaniana clarificadora e reduzida à qual podemos associar uma espécie de mecânica que condensa uma série de relações entre o imaginário, o simbólico e o real.

O segundo termo evocado por Lacan nessa lição é o sentido, localizado por ele na confluência entre o imaginário e o simbólico. Esse campo mostra que o sentido atribuído ao simbólico está em continuidade com o imaginário, e não em oposição a ele. O máximo que podemos atingir pela via do sentido, como quando interpretamos, é alguma ordem de ficção, uma vez que o verdadeiro, em se tratando da análise e não da ciência, não pode ser dito com os instrumentos da linguagem. Disso, resulta o que Lacan chamou de juis-sens, o gozo do sentido, que é o gozo próprio da confluência do simbólico com o imaginário ao qual podemos relacionar o modo de satisfação do delírio, assim como o do trabalho do inconsciente. O que se opõe ao simbólico não é, portanto, o imaginário, como na clínica estrutural, mas Ⱥ. Por outro lado, o que se opõe ao sentido é o real.

Finalmente, temos o gozo dito do falo, que Lacan distingue aqui do gozo peniano:

“O gozo peniano advém a propósito do imaginário, isto é, do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. O gozo fálico, em contrapartida, situa-se na conjunção do simbólico com o real. Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser” (…) Portanto, inscrevo aqui o gozo fálico contrabalançando o que concerne ao sentido. É o lugar do que é em consciência designado pelo falasser como poder” (LACAN, 1975/76, p 55.).

Lacan não desenvolve, ao menos nesse capítulo, a aproximação entre o gozo fálico e o poder, mas podemos supor que se trata de um destino possível a ser dado ao acontecimento de corpo político pelo sintoma. De qualquer maneira, é preciso sublinhar a distinção entre o gozo do sentido e o gozo próprio ligado à função de fonação que caracteriza o gozo fálico. O gozo fálico participa do real por ser um gozo “fora-do-corpo”, na medida em que está associado à fala, e é por isso que ele não se refere ao gozo peniano, o gozo próprio do corpo que concerne ao imaginário.

Resta saber em que consiste, propriamente falando, o gozo do sinthoma. Podemos deduzir que o gozo do sinthoma refere-se a um saber-fazer a partir do qual o sujeito pode ligar um pedaço do real ao semblante, uma vez que o semblante que permite enquadrar a realidade onde pisamos depende da amarração do real, isto é, de forma que um acontecimento de corpo, aquele que é próprio a um falasser singular, possa ser concernido.

É nesse sentido que se pode dizer que o gozo do sinthoma é um gozo possível que resulta de um tratamento do impossível. A clínica borromeana pode ser então concebida a partir de uma pragmática que concerne ao sintoma. Em suas várias facetas, se considerarmos as variedades e as exigências borromeanas das quais resulta essa possibilidade, poderíamos afirmar, de acordo com essa pragmática, que “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975/76, p. 71).

Proponho, para concluir, lembrar simplesmente em que consiste essa pragmática analítica Ela diz respeito às diferentes conexões do falasser que o sinthoma busca concernir como suporte do sujeito: o corpo, o laço social, o pensamento e o sexo.  

 


Referências
DEFFIEUX, J.-P. “Um caso nem tão raro”. In: Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998, p. 13-18.
FREUD, S. (1895) “Projeto para uma Psicologia Científica”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. I, p. 381-533.
FREUD, S. (1923) “O eu e o id”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1969, vol. XIX, p. 13-85.
LACAN, J. (1975/76) O Seminário, Livro 23o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.
LACAN, J. “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003a, p. 508-542.
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003b, p. 560-565.
SORIA DAFUNCHIO, N. Confines de las psicoses. Buenos Aires: Del Bucle, 2008.
SCHEJTMAN, F. Las dos clínicas de Lacan. Buenos Aires: Tres Haches, 2000.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

[1] Texto apresentado no  Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose da Seção Clínica  do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, em 29 de abril de 2022.
[2]  Conforme destacado por nós nas referências bibliográficas para este texto.



PSICOPATOLOGIA DO RACISMO COTIDIANO: DO CORPO POLÍTICO AO ACONTECIMENTO DE CORPO[1] 

LUÍS COUTO
Psicanalista praticante. Psiquiatra.
Doutorando em Estudos Psicanalíticos-UFMG.
Preceptor da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares/FHEMIG.
luisfdcouto@gmail.com

Resumo: O artigo visa partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

Palavras-chave: Racismo; segregação; gozo.

Title: Psychopathology of everyday racism: from body politcs to body event

Abstract: This article starts from the effects of the historical politics of racial segregation in our country to arrive at psychoanalysis’s politics of the symptom, from which it will be possible to collect, for each subject, the singular effects of the nominations coming from the Other and its relation to jouissance.

Keywords: Racism; segregation; jouissance.

 

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Neste semestre o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo do IPSM-MG tem se dedicado ao estudo do tema “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”. No entanto, tentarei propor uma disjunção do tema de nossa investigação que considerei pertinente: de um lado, o corpo político, e, de outro, o acontecimento de corpo.

Partiremos, então, dos sintomas da política para tentar avançar em direção à política do sintoma. Ou seja, partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo. É nesse sentido que propus, no título deste trabalho, uma “psicopatologia do racismo cotidiano”, fazendo uma alusão ao texto de Freud, “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, na medida em que Freud extrai, das pequenas falhas do discurso (atos falhos, lembranças encobridoras, etc.), não os índices de uma patologia, mas uma lógica inconsciente que nos indica os efeitos singulares do encontro da linguagem com o animal humano. Por isso, as vinhetas clínicas que trago pretendem seguir nessa direção de tentar extrair uma lógica subjetiva do racismo cotidiano, aquele que se apresenta no que poderíamos considerar um laço social primordial, o seio da própria família, ou ainda um pouco mais íntimo/êxtimo, aquele encontrado na relação do sujeito com o próprio corpo.

 

Sintomas da política

A articulação entre a questão racial e o uso de drogas pode ser tomada sob várias perspectivas, mas destaco um ponto que me pareceu interessante: a ocasião de uma primeira virada na legislação relativa às drogas em nosso país. Durante o Império e início da República, o Estado pouco interferia no uso de drogas. Não havia leis específicas sobre o uso de substâncias psicoativas, exceto a embriaguez alcoólica, que era punida com a prisão. Com a Proclamação da República, a medicina e a psiquiatria são convocadas ao debate a respeito do problema das drogas, e o desvio psíquico é localizado no lado primitivo e incivilizado da sociedade brasileira, ou seja, aquilo que divergia do modo europeu. Para se ter uma ideia, uma das consequências do ideal civilizatório foi a proibição de práticas culturais da população afrodescendente, como samba, capoeira, candomblé e o uso da maconha. Foi proposta, então, a proibição da maconha diante de uma suposta preocupação com o seu consumo pela população negra e rural do Nordeste, cujos efeitos levariam à loucura e à criminalidade (TRAD, 2009). Logo após a abolição da escravidão, portanto, torna-se necessária a criação de outras leis que incidirão diretamente sobre os negros, mantendo-se um regime de exclusão.

Não pretendo estender a discussão histórica, mas, dando um salto temporal, vemos ainda, nos dias de hoje, os efeitos da segregação racial em manifestações que vão desde o racismo mais explícito àquele que se manifesta no cotidiano das relações sociais. Há, por outro lado, uma também histórica organização dos movimentos de resistência negros, que se articulam para fazer frente às políticas de segregação. Mais recentemente temos observado alguns movimentos sociais que trazem à pauta “o corpo” com a afirmação: “meu corpo é político”. Trata-se de trazer o corpo feminino, preto, trans à cena da polis, no sentido de produzir uma visibilidade do corpo excluído e tentar perturbar o social e seus modos de segregação.

As várias formas de segregação estão imiscuídas em nosso percurso histórico de maneira que não temos observado sua mitigação, mas, pelo contrário, assistimos a uma escalada do racismo, como Lacan previu após os eventos de maio de 68. Diante das proposições que surgem nesse contexto, de uma sociedade sem o poder dos pais e acompanhada de um culto ao corpo, Lacan afirma que o que aí se enraíza é o racismo. No texto “O racismo 2.0”, Éric Laurent retoma essa previsão lacaniana que se sustenta em uma lógica da rejeição ao gozo do Outro. É o que se observa no movimento do colonialismo e a vontade de normalizar o gozo daquele que é emigrado em nome de seu bem: não se trata de choque de civilizações, mas de choque dos gozos. “Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador” (LAURENT, 2014 n/p.).

Ainda segundo Laurent, em “O avesso da biopolítica”, “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época (…)” (LAURENT, 2016, p. 213). É nesse sentido que trarei, em seguida, algumas vinhetas clínicas e o que foi possível recolher a partir de cada caso.

 

Política do sintoma

Esse primeiro caso foi publicado em uma edição da revista CliniCAPS, a propósito de uma discussão sobre a formação em saúde mental (BALTHA, 2015). Esse paciente tinha, à época, 33 anos, estava se tratando em um CAPS-AD devido ao uso abusivo de crack e era considerado pela equipe como sendo “de difícil manejo, indisciplinado, não obedece às regras da instituição”. Ele vê uma acadêmica de medicina jogando xadrez com um outro paciente e lhe demanda que o ensine a jogar. Durante as partidas de xadrez, passa a falar para a estudante a respeito da mãe que o negligenciava, deixava-o sozinho em casa sem comida, não lhe dava afeto. Percebia que o tratamento que recebia era diferente daquele dispensado aos irmãos. Ele, por exemplo, ao contrário dos outros, só fora registrado na adolescência.

Fala de uma cena em que conheceu o pai, aos 9 anos de idade. Estava na janela de sua casa e viu um carro se aproximar, conduzido por um homem. Sua mãe o recebeu e lhe disse: “seu filho está aqui”. Esse homem, ao vê-lo, respondeu: “esse menino é preto demais para ser meu filho”. Descobriu, assim, que esse era o seu pai, que, por muito tempo, ansiou por conhecer. Diz que essa cena o marcou muito e, depois disso, não mais tiveram contato.

Parou de frequentar a escola, cometia pequenos furtos para ajudar a pagar as contas em casa. Sentia-se desamparado, “sozinho no mundo”. Passou a usar drogas na adolescência e intensifica o uso após os 20 anos. Quando sob efeito das substâncias, envolve-se em brigas na rua e apresenta ideação persecutória, além de ouvir vozes. Diz que em diversas ocasiões pensou em tirar a própria vida e justifica que não conseguiu encontrar um lugar no mundo.

Com muita frequência fala do peso que a cor da pele tem para ele. Não consegue melhorar de vida ou ter empregos em razão de sua cor. As pessoas não gostam dele porque é negro e é a cor da pele que o impede de manter relações sociais. Durante a conversa com a acadêmica, pergunta-lhe: “você acha que sou muito preto?”.

Em determinado dia, diz, de maneira jocosa, que estava fazendo movimentos errados no xadrez porque estava jogando com as peças pretas; preferiria jogar com as brancas. A aluna, advertida dos elementos de uma primeira construção do caso, intervém dizendo que é importante aprender a jogar com as peças pretas.

Como pensar a segregação nesse caso? No texto “A toxicomania não é mais o que era”, Antônio Beneti propõe um discurso da segregação como sendo derivado do discurso do mestre amputado do lugar da verdade, onde estaria o sujeito do inconsciente. Seria, então, um discurso de três termos (BENETI, 2014):

S1 → S2

//  a

Poderíamos investigar, no caso apresentado, se a segregação se daria por um S1 vindo do Outro, “preto demais”, que comandaria um S2, “não tenho lugar no mundo”. Assim, haveria uma identificação ao S1 tomado pelo sujeito do campo do Outro e uma espécie de “saber-fazer” que irá sustentar essa nomeação: “sim, sou preto demais para ter um lugar no desejo do Outro”. Há, no entanto, um problema na relação desse sujeito com o discurso e o laço social e poderíamos questionar se ele se insere no discurso e, se sim, como isso se daria. Uma hipótese que leve em conta uma entrada precária no discurso e o coloque numa posição de rejeitado pelo Outro resultaria, como consequência lógica, no sistema explicativo: “sou preto, logo, não devo existir” — efeito paradoxal desse discurso, porque tende à sua retirada. Dito de outro modo, parece tentar fabricar uma entrada à força no campo do Outro a partir das brigas, violações das regras institucionais, o que acaba por produzir sua rejeição a cada vez. É esse sistema que a acadêmica tenta discretamente perturbar ao propor que poderia jogar com o significante “preto”. Colocar-se, então, em jogo. Estamos, até aqui, no campo da linguagem e do discurso.

Como o sintoma não é produzido apenas em termos da linguagem, partimos para uma outra questão, que diz respeito ao sintoma como acontecimento de corpo. Freud desenvolve a tese de um sintoma metaforizado, que poderia ser interpretado ao nível da linguagem. No entanto, em sua teoria encontramos também as bases para a ideia de um sintoma que não se reduz a um sistema lógico decifrável tomando por base o significante. Ou seja, quando Freud se refere ao sintoma como uma satisfação substitutiva de uma pulsão, introduz aí uma outra vertente do sintoma, ligada ao gozo. É nesse sentido que Jacques-Alain Miller irá afirmar que “a definição do sintoma como acontecimento de corpo é necessária e inevitável, porquanto o sintoma constitui, como tal, um gozo” (MILLER, 2004, p.45).

É devido a uma espécie de imbricação entre linguagem e gozo que podemos afirmar que a linguagem desnaturaliza o organismo, ou seja, com a entrada no mundo da linguagem, o corpo terá um funcionamento estranho ao que seria um bom funcionamento do organismo com base nas leis da física, química ou biologia — as leis da natureza. Assim, nos seres falantes, ao contrário dos outros animais, o circuito pulsional passa pelo corpo, mas encontra seu representante na linguagem, o que produz efeitos. Entre eles, uma discordância entre o organismo e o corpo, de onde Lacan deduz sua tese de que não se é o corpo, mas se o tem.

Sendo habitado pela língua, o corpo é marcado pelas ficções de verdade. Essas ficções podem tornar-se mais ou menos fixas a partir de sua relação com o gozo. De acordo com Miller, o corpo “é a vergonha da criação porque são corpos doentes da verdade”. “Eles são doentes, porque a verdade os embaraça” (MILLER, 2004, p. 45). É assim que o corpo sai de um saber naturalista, instintual, para uma verdade que o parasita e o desnaturaliza, chegando ao ponto, como no caso, de a verdade “preto demais” modificar o que seria um bom funcionamento do corpo: erra as jogadas de xadrez, não é capaz de se inserir no laço social etc.

Podemos investigar, no caso apresentado, como a ficção “preto demais” se articula à série prazer-desprazer. Ou seja, podemos abordar o caso advertidos de que a verdade que o sujeito dispõe traz consigo, atrelado a ela, o gozo, como nos dá prova o tom jocoso que utiliza ao justificar seus erros no xadrez por estar jogando com as peças pretas: a verdade é irmã do gozo, como afirma Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Uma outra hipótese, não discordante da anterior, é que sua verdade o mantém a certa distância do Outro, e, ao contrário de nos orientarmos por um imperativo de “ressocialização”, poderíamos tentar verificar a função dessa verdade e se teria um efeito de proteção contra a invasão de um Outro que ou abusa ou negligencia, de sorte que ele sempre resta como dejeto. Nesse sentido, penso ter sido interessante a intervenção da aluna, que não tenta provocar uma desidentificação com o significante “preto demais”, tampouco tenta levá-lo a um discurso de empoderamento, mas lhe lança uma questão a respeito da possibilidade de aprender a jogar com as peças pretas, o que coloca no horizonte um outro “saber-fazer” com isso.

Passo para um segundo caso, do qual trago apenas um recorte, mas que chamou atenção em relação a essa discussão. Trata-se de uma mulher de 41 anos que foi encaminhada do CAPS para internação no Instituto Raul Soares. Ela mora com um filho adolescente e havia tentado agredi-lo, dizendo ter tido pensamentos ou vozes mandando matá-lo. Logo que é internada, tais vozes somem e dão lugar a uma espécie de pensamento intrusivo: quando vê pacientes negras, vem-lhe à mente a ideia de chamá-las de “preta”, “macaca”, e teme não conseguir controlar isso e ser agredida. Não se trata de uma paciente toxicômana, mas sua relação com as drogas vem por outras vias. Fora criada pelos pais, mas todos os cuidados da casa eram dirigidos à mãe alcoolista. A mãe nunca lhe deu carinho, vivia bebendo. Quando tinha 16 anos, a mãe sofreu um acidente grave e parou de beber de uma vez, ocasião em que descreve que houve, pela primeira vez, paz em sua casa. Logo em seguida a esse “bom acidente” da mãe, a nossa paciente engravidou, mas nunca conseguiu cuidar dos três filhos que teve: “Não aprendi a ser mãe, não sei cuidar”. Frequentemente apresentava crises de depressão, era internada e, em poucos dias, o marido a retirava para que ele pudesse cuidar dela e dos filhos. Isso se deu em uma sequência de 14 internações no hospital de sua cidade, ao longo dos anos. No entanto, há poucos meses o marido faleceu e ela não sabe o que fazer. Sente-se culpada por ele ter tido cirrose e ela ter levado cachaça para ele sempre que pedia. Em um determinado dia, conta à residente que ela era modelo, tinha dentes, cabelos loiros, era magra e cantava na noite. Muito diferente da mãe, por quem diz ter um grande amor hoje, mas que é negra. “Eu tinha vergonha da minha mãe por ela ser negra”.

A partir de algumas intervenções da residente, faz uma frouxa associação entre os pensamentos intrusivos e a vergonha que tinha da mãe. Mas logo refuta a associação dizendo do amor que sente por ela. Propomos que ela tenha um espaço para falar disso com uma psicóloga de sua cidade, com o que prontamente concorda. Nesse caso há um fenômeno do pensamento disjunto de uma agressividade, que aparece no corpo, dirigida ao Outro. Os significantes “preta” e “macaca” aparecem, aí, separados de um afeto de ódio.

Um acontecimento produz traços, é isso o que Freud chamou “trauma”. Segundo Miller,

“o acontecimento fundador do traço de afetação é um acontecimento que mantém um desequilíbrio permanente, que mantém no corpo, na psiquê, um excesso de excitação que não deixa de se reabsorver. Temos, aqui, a definição geral do acontecimento traumático, aquele que deixará traços na vida subsequente do falante” (MILLER, 2004, p. 53).

Uma questão que trago é como poderíamos pensar o acontecimento traumático em cada um dos casos. No primeiro caso, a contingência do encontro com o pai e sua sentença teria sido o desencadeador para uma ruptura com o laço social? Haveria, nessa hipótese, o significante do racismo articulado ao ódio de si. No segundo caso, não observamos uma ruptura. A paciente não fica em um absoluto desamparo mesmo com os problemas da mãe com o alcoolismo. Tem um pai cuidadoso e uma irmã mais velha que “foi uma mãe”. No entanto, o significante do racismo dirigido à mãe aparece dissociado do afeto nesse momento de crise, sob a forma de um pensamento intrusivo. Ou seja, nesse caso, teríamos o significante do racismo articulado ao ódio dirigido ao Outro. Duas modalidades, portanto, da articulação significante do racismo/ódio de si ou ódio ao Outro. Uma outra questão que poderíamos discutir, a partir da consideração do sintoma em sua vertente de verdade e em sua vertente de gozo, seria como pensar a direção do tratamento em cada um dos casos.

 


Referências
BALTHA, A. C. et al. “Internato de saúde mental no curso de medicina: o xadrez da formação”. CliniCAPS, v. 9, n. 25/26, 2015.
BENETI, A. “A toxicomania não é mais o que era”. In: MEZÊNCIO, M.; ROSA, M.; FARIA, M. W. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
FREUD, S. (1920) “Além do princípio do prazer”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
LAURENT, E. “O racismo 2.0”. Lacan cotidiano n. 371 – português. AMP blog, 26 de jan. de 2014. Disponível em: <http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html> Acesso em: 05 de jun. de 2022.
LAURENT, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”. Opção Lacaniana, n. 41. dez. 2004, p.45-54.
TRAD, S. “Controle do uso de drogas e prevenção no Brasil: revisitando sua trajetória para entender os desafios atuais”. In: NERY, A. et al. (orgs). Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA: CETAD, 2009.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, da Seção Clínica- IPSM-MG, em 14 de junho de 2022.



EDITORIAL- ALMANAQUE N 29

Daniela Dinardi

Imagem: Fred Bandeira

 

Caros leitores,

Apresentamos a 29ª edição da Almanaque on-line!

Animados pelo desejo de transmissão do trabalho de pesquisa produzido no IPSM-MG e pelos demais colegas da nossa comunidade analítica, nos dedicamos a recolher textos alinhados ao tema de investigação do Instituto neste primeiro semestre de 2022: “Acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje” é a bússola que nos orienta.

Instigante, esta pesquisa trouxe para os nossos espaços de discussão a relação que liga o analista à dimensão política e à subjetividade de sua época, nos impulsionando a refletir sobre a prática da psicanálise nos nossos dias face ao discurso do mestre contemporâneo. Se para Freud a política é o inconsciente, Lacan inverte essa lógica afirmando que “o inconsciente é a política”, abrindo assim novas vias de estudo e reflexão.

Abrimos a revista com Trilhamentos, em que, em uma orientação epistêmica, vocês encontrarão textos que percorrem os caminhos traçados por Freud e Lacan relacionados à nossa pesquisa.

Frederico Feu de Carvalho propõe retomar a lição “Do nó como suporte do sujeito”, do Seminário 23 de Lacan, acrescentando a ela algumas reflexões sobre “o acontecimento de corpo político” e o que dele podemos extrair para pensar a prática com as psicoses. Ricardo Seldes, nosso colega da EOL e convidado para a aula inaugural do IPSM-MG, pergunta sobre como ser solidário com o futuro da psicanálise em meio à tendência de homogeneização de nossa época. Philippe La Sagna, em seu texto “O discurso como saída do capitalismo”, indica que, no discurso capitalista, o falasser se vê submetido à condição de consumidor e objeto consumido. O discurso analítico, tal como esse autor localiza, seria a possibilidade de desvendar essa maquinaria do mais-de-gozar e de arejar os seus efeitos. Véronique Voruz, em “Interpretar o material humano”, sublinha um efeito da interpretação que toca na vergonha face ao falasser reduzido a “material humano”, com vistas a restituir sua condição de sujeito barrado. Gustavo Stiglitz, no texto “Psicanálise e política, uma amizade estrutural”, afirma que a psicanálise sempre esteve ligada à política. Articulando inconsciente e política, ele traz elementos para pensar no papel que a psicanálise tem no enfrentamento de uma sociedade previsível, na qual desejo, risco e amor se dissolvem diante do regime do Todo.

Na rubrica Entrevistas, nosso colega Sérgio Laia conversa conosco sobre as possíveis saídas para que o discurso psicanalítico possa se manter como aquele que faz objeção à universalização, ao apagamento do desejo e ao império do mais-de-gozar presente na atualidade. Nosso entrevistado também se refere às mudanças provocadas pelo movimento de globalização do mundo sobre o que chamamos de raça, fraternidade e racismo e nos esclarece sobre como a psicanálise pode intervir na política.

Em Encontros, reservamos para vocês os artigos de Tânia Abreu, Silvia Baudini, Anaëlle Lebovits-Quenehen, Fabián Naparstek e Rodrigo Almeida. As duas primeiras nos brindam com uma leitura aguda do que está em jogo no documentário Pequena garota, trazendo à discussão um tema que tem mobilizado o debate no campo freudiano, refletindo sobre as repercussões das questões trans sobre as crianças. No texto “Psicanálise e Política: quatro modalidades de uma relação”, Anaëlle Lebovits-Quenehen expõe seus pontos de vista sobre a posição do analista em relação ao político e diante da política a partir de diferentes aspectos. Fabián Naparstek discorre sobre “Psicanálise e política” e destaca que a política da psicanálise implica em abrir a via da palavra e da interpretação para que cada sujeito possa produzir sintomas singulares que não caminhe em direção à consistência ideal imaginária das identificações.  Em “Discursos de gênero e psicanálise: possíveis interlocutores”, Rodrigo Almeida privilegia alguns pontos dos “discursos de gênero” e de suas teorias, especialmente naquilo que os contrapõem à psicanálise, interrogando sobre de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para a leitura dos psicanalistas sobre a subjetividade de sua época.

Em Incursões, apresentamos textos dos colegas que estão presentes nos espaços de investigação do Instituto. Suzana Faleiro e Sandra Espinha, em seus respectivos textos, discorrem sobre como um analista pode permitir à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família em um tempo marcado por uma desordem simbólica e na vigência de discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta o real. Ainda nesse contexto, Maria Rita Guimarães recorta alguns elementos das reflexões de Ian Hacking para subsidiar o debate sobre a biopolítica reinante fundada em protocolos e classificações, para deles extrair as consequências para a clínica psicanalítica, sobretudo, a clínica com crianças e com autistas. Maria Wilma S. de Faria, em “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”, indaga sobre o que pode a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Ana Maria Lopes e Henrique Torres, em “Corpos anoréxicos e o avesso da biopolítica”, partem de seus estudos sobre a clínica da anorexia para ressaltar a importância de uma aposta nas invenções sintomáticas singulares que cada sujeito inscreve nas marcas de seu corpo, destacando a importância da escuta clínica, hoje tão fragilizada na prática médica. Elaine Maciel, em “O corpo: do clínico ao político”, aborda a noção de corpo em psicanálise articulada à sua dimensão clínica e à dimensão política. No artigo “Psicopatologia do racismo cotidiano: do corpo político ao acontecimento de corpo”, Luís Couto investiga os efeitos sobre os corpos oriundos da história política de segregação racial em nosso país, particularmente, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.

No que ressoa como efeito de transmissão para os alunos do Instituto, De uma nova geração, temos os trabalhos de Giulia Campos Lage, com “A neurose na urgência subjetiva”, e de Paulo de Souza Novaes, com “Momentos de virada no ensino de Jacques Lacan: do inconsciente transferencial ao inconsciente real”. Tais trabalhos evidenciam o estatuto ético da psicanálise na relação do sujeito com seu inconsciente e com a sua época.

Por fim, agradecemos aos autores que, generosamente, contribuíram para esta edição; à equipe de publicação, pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos; à colega e fotógrafa Cecília Velloso Batista, assim como aos fotógrafos Fred Bandeira e Nelson Martins de Almeida, o nosso muito obrigado pela cessão de tão lindas e impactantes imagens! Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos desta edição, na expectativa de que eles possam contribuir em um debate tão atual e caro a nós psicanalistas e, dessa forma, como conclamou o nosso colega Ricardo Seldes, “solidarizar com o futuro da psicanálise”.

Boa leitura!




O ACONTECIMENTO DE CORPO POLÍTICO E A PSICANÁLISE HOJE[1] 

MARIA WILMA S. DE FARIA
Psicanalista, membro da EBP/AMP
Coordenadora da Rede TyA Brasil
mwilma62@gmail.com

RESUMO: O corpo falante testemunha o discurso como laço social e traz em si suas marcas enquanto corpo socializado. Tendo como referência o segundo ensino de Lacan, no que toca ao falasser político, o texto indaga o que pode hoje a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Interroga os sintomas contemporâneos que têm a toxicomania como paradigma, bem como as adições generalizadas, o uso excessivo de remédios, as instituições segregativas e a violência discriminatória exercida sobre usuários e dependentes de drogas e/ou em uso prejudicial de álcool.

PALAVRAS-CHAVE: Toxicomania; Clínica; Psicanálise; Política; Falasser.

The event of body political and psychoanalysis today 

ABSTRACT: The speaking body witnesses the discourse as a social bond and bears in itself its marks as a socialized body. Taking Lacan’s second teaching as a reference regarding the political parlêtre, this essay questions what psychoanalysis can do today in face of the drug addiction that our time promotes. It interrogates contemporary symptoms that have drug addiction as a paradigm, as well as generalized additions, excessive use of medication, segregative institutions, and  discriminatory violence against drug users and addicts and/or those in harmful use of alcohol.

KEY WORDS: Drug addiction; Clinic; Psychoanalysis; Politics; Parlêtre.

 

Imagem: Nelson de Almeida

 

O tema de trabalho deste semestre, proposto por Lilany Pacheco (diretora-geral do IPSM-MG) e Cristiana Pittella (diretora da Seção Clínica), nos convida para começar uma investigação de conceitos preciosos do último ensino de Lacan, à luz da transmissão de Miller, tais como falasser, sintoma como acontecimento de corpo, laço social, gozo e corpo político, articulando-os e tentando fazer uma leitura do mundo atual globalizado, com sua lógica capitalista.

Em tempos marcados pelo desvanecimento do Ideal do Eu, assistimos à queda do pai como moderador de gozo, o que, por sua vez, leva a um empuxo à primazia de modalidades de gozo que não incluem o Outro. Cabem aqui todas as manifestações sintomáticas nas quais o excesso faz presença: bulimias, toxicomanias, obesidades, anorexias, comunidades de gozo. Enfim, sintomas, no limite do dizível, que chamam à cena o corpo em suas inúmeras dimensões. No discurso da ciência, tudo pode ser nomeado, quantificado, diagnosticado: para cada mal-estar, um tratamento, um protocolo, classificações e prescrições. Na lógica biomédica, é apropriado lidar com a questão das toxicomanias como elemento de controle, apresentando-a como doença a ser tratada e curada com pílulas de felicidade. Já no discurso capitalista, temos a lógica de que tudo pode ser comprado e adquirido sob a promessa da plenitude. O toxicômano faz-se um consumidor ideal, sempre fiel ao mesmo artefato, o que desemboca em ser consumido pelo próprio objeto de gozo. No entrecruzamento desses dois discursos, podemos tomar a toxicomania como paradigma dos novos sintomas, sintoma fruto de nossa época.

Para entender um pouco a toxicomania, tomemos uma referência de Miller, que parece ser preciosa:

“A repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível. Desde então, o sujeito se encontra ligado a um ciclo de repetições cujas instâncias não se adicionam e cujas experiências não lhe ensinam nada. Hoje, chamamos isso de adição a fim de qualificar essa repetição de gozo. Chamamos assim precisamente porque isso não é uma adição, já que as experiências não se adicionam. Essa repetição de gozo se faz fora do sentido” (MILLER, 2011a, p. 109).

Esse gozo que se itera e reitera presente nas toxicomanias só tem relação com o significante Um, S1. Ele não se direciona ao S2 como saber, e é um “autogozo do corpo. E o que faz função de S2, no caso, o que faz função de Outro desse S1 é o próprio corpo” (MILLER, 2011a, p. 109). Assim, temos o corpo como Outro, e desde sempre operamos na clínica das toxicomanias com esse desafio.

Uma importante pergunta que Miller faz em “Ler um sintoma” (MILLER, 2011b) é se o gozo presente no sintoma seria primário. Ele responde que, em um certo sentido, sim. “Pode-se dizer que o gozo é o próprio corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, um corpo é o que goza, reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, o que Freud chamava de autoerotismo” (MILLER, 2011b). Mas isso é verdade para todo corpo vivo, não só para os toxicômanos. Será que poderíamos pensar que os toxicômanos ficam fixados aí no gozo autoerótico?

“Assim, pode-se dizer que gozar de si mesmo é o estatuto do corpo vivo. O que distingue o corpo do ser falante é que seu gozo sofre a incidência da fala. E precisamente um sintoma demonstra que houve um acontecimento que marcou seu gozo no sentido freudiano de Anzeichen (sinal) e que introduz um Ersatz (substituição/ estepe/ peça sobressalente), um gozo que não deveria, um gozo que perturba o gozo que deveria, isto é, o gozo de sua natureza de corpo. Portanto, nesse sentido, não, o gozo em questão no sintoma não é primário. Ele é produzido pelo significante. E é precisamente essa incidência significante que faz do gozo do sintoma um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma demonstra que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo após o qual o gozo natural entre aspas, que se pode imaginar como sendo o gozo natural do corpo vivo, encontrou-se perturbado e desviado. Esse gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá, e o faz por meio de seu sintoma como interpretável” (MILLER, 2011b, n/p.).

Assim, podemos diferenciar o conceito de sintoma freudiano como aquele passível de ser decifrado, compreendido, interpretado, e o conceito lacaniano tendo o sintoma como aquele que não fala, mas que se inscreve sobre o corpo, silencioso, pura presença de gozo, próximo assim às apresentações sintomáticas dos toxicômanos. Esses se apresentam de forma bruta, com seus corpos depauperados, alquebrados, pura presença.

É na conferência em que anunciou o X Congresso da AMP em 2014 (MILLER, 2016) que Miller aponta a substituição do “inconsciente” feita por Lacan, em seu ensino, para o termo “corpo falante ou falasser”. Tal proposição assinala como a fala impacta o corpo, em um ponto de real, unindo os dois, linguagem e corpo (S1a). Isso porque o falasser não é o seu corpo, mas tem um corpo. Essa abordagem do falasser vai nos permitir aproximar da expressão usada por Lacan em “Intuições Milanesas”: “o inconsciente é a política”.

“A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan. ‘O inconsciente é a política’ é um desenvolvimento de ‘O inconsciente é o discurso do Outro’. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. ‘O inconsciente é a política’ radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir. A análise freudiana do Witz justifica o fato de Lacan articular o sujeito do inconsciente a um Outro, e qualificar o inconsciente como transindividual. É possível passar de ‘o inconsciente é transindividual’ para ‘o inconsciente é político’, desde que fique claro que esse Outro é dividido, que ele não existe como Um” (MILLER, 2011c, p. 6-7).

Assim, a formulação “a política é o inconsciente” repousa na referência freudiana de uma política articulada ao pai, à identificação, à censura. Já o dito de Lacan “o inconsciente é a política” parte não mais da política articulada ao pai, e sim do inconsciente separado da identificação, estruturado como linguagem, que nos leva a considerar o acontecimento de corpo no inconsciente político (LAURENT, 2016). Como poderíamos entender isso, então? O acontecimento de corpo afeta não só o corpo entendido como o organismo individual, mas também o corpo do sujeito da linguagem, logo, transindividual.

“O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época” (LAURENT, 2016, p. 213).

Esse ponto muito nos interessa. Tomemos assim como a subjetividade de nossa época vê os toxicômanos e os alcoolistas e seus corpos: bandidos, fracos, insubordinados, sem força de vontade. Cabe aqui toda uma concepção moral com seus adjetivos e déficits que, desconhecendo o campo pulsional, praticam toda sorte de violência discriminatória sobre usuários e dependentes de drogas e álcool. Assim, esses falasseres passam a ser vistos cotidianamente como não sujeitos, desprovidos de dignidade ou de direitos. De tal sorte que, assujeitados, são alvo de toda uma política higienista (presente também no discurso do atual governo) que preconiza a disciplina dos corpos com uma pretensa roupagem de “salvação” ou tentativa de erradicar as substâncias psicoativas, fazendo crer ser possível um mundo sem drogas e evitar um mal pior, que seria o consumo de substâncias.

Essa política visa a abstinência total via segregação pela internação e impera como tentativa de controlar o gozo e domar os corpos. Na clínica das toxicomanias, interessam-nos as relações mantidas pelo sujeito e seu corpo, ambos, objeto de discursos invasivos de um “programa político” que almeja colocar à margem a malfadada infelicidade. Na toxicomania observamos um certo apagamento do corpo via intoxicação, ou mesmo uma tentativa de anestesiar o corpo. Em sujeitos psicóticos, o recurso às drogas poderia ser uma forma de fazer um corpo ali onde o sujeito não tem um corpo, uma maneira de moldar, de esculpir o corpo que escapa a todo momento. De qualquer forma, para nós psicanalistas, a função que a droga tem é sempre construída, sujeito a sujeito, em sua singularidade.

Interessa-nos também pensar o toxicômano na cidade e tudo o que vem reforçar a identificação imaginária: “Você é toxicômano, você é drogado!”. Essa nomeação vinda do campo do Outro muitas vezes reafirma para o sujeito o que ele é, reduzindo o ser falante à substância que usa. Essa pode ser também uma forma de o sujeito se apresentar, totalmente submetido. Deparamos cada vez mais com microculturas movidas por identificações grupais que também não singularizam o sujeito, mas, antes, os determinam em subgrupos movidos pelo consumo: cachaceiros de um lado, noiados de outro, emos tristes que fazem apologia aos antidepressivos, medicalizados agitados que querem aumentar a performance no trabalho, grupos de ajuda mútua, dependentes de ritalina. Essa pretensa identidade grupal traz uma miragem de todos iguais, de pertencimento, em uma colagem imaginária que provoca uma pseudossegurança, expressão de um desvario de gozo, mas que acaba evidenciando toda a fragilidade dessas identificações subjetivas, uma vez que nada aplaca a solidão de cada um.

Nesse ponto seria interessante recorrer e diferenciar o que passou a ser chamado de “toxicomania generalizada”, ou “adição”, do conceito “toxicomanias”, propriamente dito, e dar um passo a mais, ao que o colega Ernesto Sinatra, de Buenos Aires, propõe chamar de “adixão”. A toxicomania generalizada, ou adições contemporâneas, se refere à lógica do mercado que oferece toda sorte de produtos cujo consumo pode tornar as pessoas “dependentes” em uma relação excessiva, passando a ter, assim, o estatuto de drogas. Tais objetos de consumo não são uma substância: internet, compras, celular, pornografia, jogos. Ou seja, há uma lista sem fim de produtos fazendo série e que obedecem ao imperativo “consuma!” bem na lógica de “todos gozam dos mesmos objetos”. Lembremos aqui o uso atual da palavra “tóxica” para se referir às pessoas que estão sempre se queixando, tornando o ambiente e as relações da vida impossíveis.

Já o termo toxicomanias, no plural, marca bem a questão de que a singular relação de um sujeito com uma substância a ser introduzida no corpo se dá de forma única para cada um. Considera assim que podemos ter pessoas usando a mesma substância, com frequência e quantidade iguais, mas em que a relação maníaca, bem como sua função na economia libidinal, será diferente. E isso tem sua pertinência e importância para todos nós do Campo Freudiano, que nos dedicamos a essa investigação.

Com o pequeno detalhe de mudança de uma letra, x, Sinatra batiza como adixão o nome sintomático do atual estado da civilização:

“uma versão pós-moderna da toxicomania generalizada. […] o x de adixão mostra a fixação do gozo singular e inalterado que não pode ser apagado e traz a marca do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado e que descompleta a pretensa generalização do consumo que vale para todos” (SINATRA, 2020, p. 97-98).

Ressalto ainda a multiplicação de instituições totais aos moldes de comunidades ditas terapêuticas em nosso país, o que aponta um retrocesso nos avanços até então conquistados. Assinalo aqui a importância e a responsabilidade de serviços de saúde do SUS, ou não, presentes na cidade fazerem valer a singularidade e trabalhar os preconceitos presentes dentro de cada um em relação a esses falasseres.

O que pode hoje a psicanálise? Penso que somente com a presença do discurso analítico podemos vir a abalar e furar as bolhas de certeza do discurso do Outro social que tenta promover o bem geral, causando uma fratura da verdade, instaurando assim um campo aberto à interrogação e considerando que a política está no campo do discurso do Outro, no campo da divisão.

Lidar com a tirania do supereu com a qual o sujeito toxicômano está submetido implica favorecer a desidentificação dos S1 provenientes do campo do Outro e apostar na construção do nome próprio.

Miller nos ensina que tratar o sintoma é visar a fixidez do gozo, a opacidade do real, de modo que, a partir do último Lacan, em uma análise, trata de reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo; ao choque puro da linguagem sobre ele (MILLER, 2011b).

O que pode o psicanalista hoje frente a tudo isso? Despindo de qualquer concepção ideal de cura, a aposta do analista é sempre que o sujeito toxicômano possa interrogar-se sobre o estreito laço que o liga ao objeto e que possa fazer deslocamentos mínimos que o reconectem a seu desejo. O discurso analítico pode ser uma importante ferramenta para questionarmos os corpos, os falasseres, seus gozos e também o discurso de nossa época, de tal sorte que este possa a vir a ser “partilhado pelo maior número possível de sujeitos do corpo político” (LAURENT, 2016, p. 219). 

 


REFERÊNCIAS
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MILLER, J-A. Intuições milanesas. Opção lacaniana online. Nova série. ano 2, n. 5, jul. 2011c. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf> Acesso em:  01 mar. 2022.
MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante.  Apresentação do tema do X Congresso da AMP. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9>Acesso em: 01 mar. 2022.
MILLER, J-A. Seminário de orientação lacaniana. O ser e o um. Orientação lacaniana III, 13, VIII lição do curso (23 de março de 2011.) Inédito. 2011a.
MILLER. J-A. Ler um sintoma. AMPBlog. 01 ago. 2011b. Disponível em: <http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html>. Acesso em: 20 fev. 2022.
SINATRA, E. Adixiones. Olivos: Grama Ediciones, 2020.
[1]Texto apresentado na abertura do Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo – Seção Clínica do IPSM-MG, em 08 de março de 2022.



UM CAMINHO POLÍTICO-IDEOLÓGICO PARA A HEGEMONIA DAS CLASSIFICAÇÕES E SEUS PROTOCOLOS RUMO ÀS NEUROCIÊNCIAS[1]

MARIA RITA GUIMARÃES
Psicanalista, membro da EBP/AMP
mariarita.guimaraes@gmail.com

Resumo: A partir da clínica psicanalítica, sobretudo a clínica com crianças e a clínica com autistas nela incluída, o que nos interessa acerca de protocolos e classificações? Debater a atualidade: há uma perda da bússola de orientação clínica porque se passou das decisões clínicas ao organismo das neurociências, ignorando ou tornando muda a palavra do sujeito. O texto tenta examinar as condições político-ideológicas desse percurso.

Palavras-chave: diagnóstico; neurociências; autismo; redução clínica.

A political-ideological path to the hegemony of classifications and their protocols towards neurosciences

Abstract: In psychoanalytic clinic, especially the clinic with children and the clinic with autistic people included in that, what interests us in protocols and classifications? Debating the current situation: there is a loss of clinical orientation because it has gone from clinical decisions to the organism of neuroscience, ignoring or muting the subject’s word. This text tries to examine the political-ideological conditions of this path.

Keywords: diagnosis; neurosciences; autism; clinical reduction.

 

Um argumento possível para uma reflexão sobre a atualidade do estatuto das neurociências leva-nos ao fato de que os protocolos contêm categorias e prescrições de medidas que não estão dissociadas do caráter biopolítico, ou seja, o que podemos chamar de campo político-ideológico das condições nas quais são cimentados os protocolos, começa via classificações.

A partir da clínica psicanalítica, sobretudo a clínica com crianças e a clínica com autistas nela incluída, o que nos interessa acerca de protocolos e classificações? Debater a atualidade: há uma perda da bússola de orientação clínica porque se passou das decisões clínicas ao organismo das neurociências, ignorando ou tornando muda a palavra do sujeito. E isso é muito preocupante.

Poderia partir dos trabalhos do epistemólogo e professor canadense Ian Hacking, dos quais já nos ocupamos há uns 15 anos. Porém, tomo desse autor poucos elementos de um texto publicado em 2013, chamado “Sobre a taxonomia dos transtornos mentais”.

Vamos lembrar que, embora o DSM seja um manual norte-americano, ele é prevalentemente utilizado no mundo inteiro, no Brasil inclusive, mesmo que a Classificação Internacional de Doenças (ICD – Genebra), CID, como conhecemos, seja normalmente considerada o manual oficial.

Dois pontos para a finalidade que nos ocupa: a pergunta do autor “Quem precisa das 947 páginas do DSM-5?”. Do que a maioria dos consumidores necessita é o aplicativo para celular DSM-5 Diagnostic Criteria, para diagnóstico do DSM-5. E desse app, quem precisa? Resposta: as burocracias.

“Todas as pessoas nos EUA e no Canadá, esperando que seu seguro de saúde cubra ou pelo menos custeie parte do valor do tratamento de suas doenças mentais, precisam, primeiramente, receber um diagnóstico que se enquadre no esquema e tenha um código numérico” (HACKING, 2013, p. 302).

Outro aspecto das burocracias diz respeito à estatística — o estabelecimento de predominância de doenças.

“O diagnóstico exerce efeitos sutis na maneira como o paciente entende a si mesmo, e, hoje em dia, os pacientes tendem a buscar informações on-line. As principais revistas de psiquiatria da língua inglesa exigem que os artigos científicos que tratam da saúde mental as caracterizem usando o DSM” (HACKING, 2013, p. 302).

O importante é que Hacking (2013), ao final, vai considerar que o DSM-5 serve para outras coisas — as citadas acima, porém, trata-se de um “livro” — assim o chama — equivocado. Para pontuar essa afirmação tão forte, faço-o de modo reducionista, desprezando aqui sua esclarecedora argumentação referindo-se ao modelo botânico, no qual o DSM se inspirou, com classificações em gênero, espécie e subespécie; um modo de organização — leis da reprodução, que permitem a descrição da árvore. Cito Hacking: “Talvez, ao fim e ao cabo, o DSM seja visto um dia como uma reductio ad absurdum do projeto botânico no campo da insanidade” (2013, p. 313).

Não assinalarei, do texto, os fatos que se desenvolveram uma semana antes do lançamento do DSM-5, que mereceram ser qualificados como “índices da crise epistemológica das classificações”, porque, antes mesmo desse artigo a que me reporto e do lançamento do DSM-5, em “Fim de uma época” (2012a), Éric Laurent já trabalhava esses fatos e seguiu trabalhando em várias conferências. Foi imprescindível revisitar seus textos e encontrar as referências ao texto de Hacking.

Vale lembrar que, no ápice da crise da “zona DSM”, Thomas Insel, chefe do Instituto Nacional da Saúde Mental — EUA, principal financiador de pesquisa na área —, anunciou que o órgão abandonaria o DSM porque a publicação tratava apenas de sintomas. Ele queria ciência, queria pesquisa genética e neurológica e acreditava que, como em qualquer outro campo da medicina, tais recursos deveriam ser usados para definir a identidade de uma doença.

Trata-se do mesmo senhor citado em um texto extraordinário de Éric Laurent, “Autismo: epidemia ou estado ordinário do sujeito?” (2012b, tradução livre do título), no qual analisa o contexto do aumento impressionante dos diagnósticos de autismo. Vemos, na atualidade, a correlação entre vacina como um dos fatores daquele “aumento” diagnóstico, dentro do chamado “fator ambiental”, e o que se passou com a questão da vacina contra a covid-19 para as crianças no Brasil. Laurent faz importante desenvolvimento das interpretações surgidas, de origens ideológicas distintas, como tentativas explicativas das causas da chamada “pandemia” do autismo. Deixo o último parágrafo do texto:

“O debate estatístico não revela um status quase ordinário de autismo? Se definirmos o ser falante como um ser de comunicação, descobrimos uma falha radical nisso. O início do século 20 viu a descoberta da extensão da neurose e do conflito psíquico. O final do século passado foi marcado pelo estatuto ordinário da psicose e depressão. O século 21 não será o século da evidência de um status comum de autismo?” (LAURENT, 2012b, n.p., tradução nossa).

Laurent dedicou longo tempo a esse debate. Recordo a conferência dada em Buenos Aires, na qual examina “os efeitos de massificação segregativos” produzidos pela ideologia classificatória, lembrando, justamente, a porcentagem do número de autistas (em torno de uma criança em 1980 seria autista ou considerando a diferença de sexos, meninos, algo assim como um em cada grupo de 60) e que tal fato se tornou um problema de saúde pública.

“Aparece o perigo do silenciamento da voz dos autistas, especialmente de alto nível. Cabe ao psicanalista dar-lhes a voz e, inclusive, levar em conta a angústia dos órgãos controladores que enfrentam a sua impotência: ajudá-los a recusar o fetichismo das cifras para considerar o despertar do desejo. À medida que Lacan chamou os impasses da civilização, especialmente no controle da infância, as armas que a psicanálise oferece como pensamento crítico permitem restaurar as margens da singularidade não conformada à época” (LAURENT, 2012c, n.p., tradução nossa).

Lembro a frase de Miller (2021): “Diante da intolerância, nos cabe fazer a diferença”.

 

Os filhotes do DSM-5

No período que assinalamos anteriormente — das discussões entre os grupos de construção do DSM-5 —, em torno de 2013, surgiu o tal “transtorno do neurodesenvolvimento (TND), hoje dominante na psiquiatria norte-americana, o que nos chega como psiquiatria biológica. De qualquer forma, o tema é bastante sensível e há muitas filigranas biopolíticas, que foram trabalhadas por Maleval no texto “Transtornos do neurodesenvolvimento: um forçamento epistêmico-político” (2021), que recomendamos à falta de condições de trazê-las aqui. Para mostrar o tom de desconforto emanado por essa falsa ciência, cito Maleval:

“[…] os TND seriam uma coleção que tem em comum ‘crianças anormais’. Como os identificamos? Essencialmente por cifras – números – que mostram um desvio de um desenvolvimento ‘normal’ definido por meios estatísticos. Trata-se essencialmente de testes que avaliam o cognitivo e a linguagem que proporcionam um marco para as TND” (MALEVAL, 2021, n/p., tradução nossa).

 

Movimento “Basta”!

Faço aqui brevíssima referência ao recente engajamento da Escola da Causa Freudiana (ECF) na luta de apoio aos psicólogos da França. Esse importante movimento junto aos psicólogos franceses levou à realização de um fórum em 27/5/21. A luta, certamente, estava no momento mesmo da preparação do fórum. Deixo a referência de um texto de Miller na LQ n. 930, em que associa esse movimento ao de 2003, ocasião em que se pretendeu regulamentar as psicoterapias. Em favor da luta da ECF, vários nomes da inteligência francesa se manifestaram igualmente. A emenda foi retirada.

Da apresentação desse fórum realizado pela Escola da Causa Freudiana, escrita por Laurent Dupont e Éric Ziliani, tomo o essencial para configurar a dimensão do que se tratava político-ideologicamente, a partir de um decreto de 10/3/21, advindo da Alta Autoridade da Saúde, da França.

  1. O decreto não visa apenas a regulamentar a profissão dos psicólogos em subordinação ao campo médico, mas também a reduzir a diversidade das suas práticas ao único referente comportamental, práticas que visam a silenciar o sujeito, reduzindo-o ao seu cérebro.
  2. Há tentativas de deputados republicanos que apresentaram um projeto de lei visando à criação de uma “autoridade ordinal” para a profissão. Desconfia tanto da formação quanto da prática do psicólogo e também sustenta a ideia de que essa ordem de psicólogos será filiada às profissões da saúde.
  3. A Escola da Causa Freudiana organizou esse fórum para combater essa ameaça às práticas da fala. Porque, não se engane, essa ofensiva não é outra senão a de uma redução neurocientífica do ser humano, que teria como consequência silenciar toda a prática da fala e, ao mesmo tempo, apagar toda a contribuição da psicanálise.

 

Situação do autismo, atualmente, no Brasil: há como esvaziar as boas intenções?

Existe uma Fundação no Brasil, precisamente em São Paulo, a Fundação José Luiz Egydio Setúbal, que, por seu nome, nos indica o peso financeiro que a sustenta: trata-se de um dos donos do Banco Itaú — o único, entre os sete filhos de Olavo Setúbal, que não seguiu os destinos da família, mas a medicina. A Fundação reúne três vieses de trabalho, todos no campo infantil. Autismo e Realidade é um deles. Formada como associação de pais e profissionais de saúde, passou a fazer parte da estrutura do Instituto Pensi (outro braço da Fundação), responsável por desenvolver programas de ensino e pesquisa em saúde infantil. O terceiro campo de interesse da Fundação se centra na área hospitalar infantil.

Autismo e Realidade tem um site próprio, bonito e funcional, com o objetivo de difusão do conhecimento sobre autismo por meio de conteúdos voltados para pais e o público geral. Podemos, nesse site, baixar as cartilhas (uma delas com parceria de Ziraldo). Além delas, conjuntamente com o Pensi, são realizadas pesquisas científicas e cursos EaD de capacitação para profissionais, cuidadores e familiares. De outra cartilha, à p. 112, no capítulo “Terapias”, destaco, como primeira opção, as Terapias Cognitivo-comportamentais (TCCs) e o método ABA (Análise Aplicada do Comportamento), que ressaltam, dessa terapia, os princípios que a constituem, entre outros, reforço positivo e punição; aplicação de estímulo indesejável para inibir problemas comportamentais etc. Tudo muito coerente, como estas palavras: “Para garantir uma padronização no processo do diagnóstico, foram criados protocolos médicos, que são testes e entrevistas […]” (Guia para leigos sobre o TEA, 2021, p. 71–2).

No caso de crianças, por exemplo, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que o primeiro protocolo a ser usado seja a escala Michat. Em seguida, vem o nível de risco ADI_R (Entrevista de Diagnóstico Revisada), que é um teste, na verdade, com 93 questõesTem também o ADOS (Programação Diagnóstica para Autismo). Não irei seguir nisso, mas, lendo a cartilha, terão ideia do poder e infiltração da neurociência.

Cito, para encerrar, uma frase escolhida aleatoriamente: “Na neurologia, os médicos aprendem a avaliar o funcionamento típico do cérebro, movimentos anormais e sinais de epilepsia, e aplicar testes da capacidade motora, reflexos e força muscular” (Guia para leigos sobre o TEA, 2021, p. 80).

Uma frase de Josef Schovanec, autor do livro Yo pienso diferenteel extraordinario testimonio de um genio autista, versão e-book, encontrável em Amazon e Google Livros:

“Suponha que você seja um psicólogo. Você traz em seu escritório uma criança autista que começa a falar com as palavras ‘Alnitak, Alnilam, Mintaka’. Você deduz que ele tem uma forma de psicose infantil? Um autismo que limita toda a comunicação humana? Ou você vai reconhecer os nomes de três estrelas no cinto de Orion e iniciar uma conversa apaixonada sobre astronomia?” (SCHOVANEC, 2015, p. 25. Tradução nossa). 

 


Referências 
Guia para leigos sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). PDF. Instituto Pensi – Pesquisa e ensino em Saúde Mental. Autismo e Realidade. Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Disponível em: https://autismoerealidade.org.br/convivendo-com-o-tea/cartilhas. Acesso em: 5 maio 2022.
HACKING, I. “Sobre a taxonomia dos transtornos mentais”. Discurso. ago. 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/discurso/issue/view/6478. Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT, É. “Fim de uma época”. Diretoria EBP na Rede2012a. Disponível em: https://www.ebp.org.br/dr/ebp_deb/ebP_deb001/laurent.html>.  Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT É. “Autisme: Épidémie ou état ordianaire du sujet?”. Lacan Quotidien. n. 194., abr. 2012b. Disponível em: http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2012/04/LQ-1941.pdf. Acesso em: 1 maio 2022.
LAURENT, É. “El psicoanálisis y la crisis del control de la infancia”. Intersecciones Psi. Revista Eletrónica de la Facultad de Psicología. n. 43. 2012c. Disponível em: <http://intersecciones.psi.uba.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=157:el-psicoanalisis-y-la-crisis-del-control-de-la-infancia&catid=15:actualidad&Itemid=1. Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT, Éric. “La época del Sinthome”. Transmitido ao vivo em nov. 2019 pelo canal UBApsicologia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wuDkFM9ZrWo. Acesso em: 5 maio 2022.
MALEVAL, J.-C. “Transtorno del neuro-desarrollo: un forzamiento epistémico-politico”. Lacan Quotidien. n. 932. jun. 2021, p. 15-24. Disponível em https://www.wapol.org/es/global/Lacan-Quotidien/LQ-932-BAT.pdf Acesso em: 5 maio 2022.
MILLER, J.-A. “La escuela de la tolerancia”. Lacan Quotidien. n. 930, jun. 2021. Disponível em: http://www.eol.org.ar/biblioteca/lacancotidiano/LC-cero-930.pdf. Acesso em: 5 maio 2022.
SCHOVANEC, J. Yo pienso diferente: el extraordinario testimonio de um genio autista. Madri: Ediciones Palabra, 2015.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da  Seção Clínica –  IPSM-MG, no dia 11 de maio de 2022.

 




COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO  “TÁ TUDO AO CONTRÁRIO”: A CRIANÇA, SEUS PAIS E A VIA DO EQUÍVOCO[1] 

SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA
Analista praticante, membro da EBP/AMP
sandra_espinha@uol.com.br
Resumo: O texto é um comentário do trabalho apresentado por Suzana Faleiro Barroso no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG. Ele faz parte da pesquisa desenvolvida em torno do tema “O falasser político: a criança e seus pais” e discorre sobre o que se revela nas novas configurações familiares como sendo a parte que retorna a cada falasser para fazer existir a função significante da família no lugar onde se impõe sua função de gozo. Trata-se de abordar a família a partir do real — a partir do Um do gozo no qual a civilização atual está imersa — e demonstrar com fragmentos clínicos como a psicanálise permite à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família frente à desordem simbólica que caracteriza a época atual e em oposição aos discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta esse real.
Palavras-chave: famílias contemporâneas; o real da família; criança-objeto liberado; equívoco.
“It’s all backwards”: the child, his parents and the way of misunderstanding – commentary
Abstracts: This text is a commentary on the work presented by Suzana Faleiro Barroso at the Center for Research in Psychoanalysis with Children at IPSM-MG and it is part of the research developed on the theme “The political parlêtre: the child and its parents”. It discusses that what is revealed in the new family configurations is what returns to each parlêtre in an attempt to make the signifier function of the family exist where the function of jouissance is imposed. It is about approaching the family from the real — from the One of jouissance in which current civilization is immersed — and demonstrating with clinical fragments how psychoanalysis allows the child to separate from the place of object to reinvent their family in face of the symbolic disorder that characterizes the current era and in opposition to cognitive and behavioral remediation discourses that do not take this real into account.
Keywords: contemporary families; the real of the family; child-liberated object a; misunderstanding.

 

 

Imagem: Nelson de Almeida

O inconsciente provém do laço social

Sobre a proposição lacaniana “o inconsciente é a política”, Miller esclarece que o inconsciente provém do laço social porque a relação sexual não existe (MILLER, 2011, p. 5). Segundo ele, o que se antecipa nessa proposição é a noção de discurso como laço social, como o que ordena a impossível simbolização do gozo humano. E é porque a psicanálise é um laço social, um tratamento do gozo, que ela se encontra necessariamente implicada na dimensão do político. Nela, a separação entre o individual e o coletivo deixa de existir como oposição, tratando-se não de sair do campo do privado para o público, mas de “localizar o político no campo do privado” (BARROS, 2018, p. 36).

A cada época, “a máquina original que coloca em cena o sujeito da civilização no momento atual (…) também condiciona a experiência analítica” (MILLER, 2011, p. 3). Aqui, nosso interesse é examinar, a partir dos fundamentos da psicanálise, o lugar da criança nas novas configurações familiares para buscar responder à pergunta que fizemos: o que pode a psicanálise?

 

O real da família

Para Éric Laurent, a parentalidade, neologismo introduzido no final do século XX para se referir a todas as classes de família, e não falar de pai e de mãe, designa algo que concerne ao lado real da família. “A família atual — diz ele — é muito mais real do que simbólica” (LAURENT, 2018, p. 9, tradução nossa). Esse caráter real da família, “extremamente opaco e misterioso”, que hoje não deixa evidente quem é o pai e quem é a mãe, é também o que nos impede de reduzi-la a pai e mãe (BROWN, 2021).

Em sua intervenção nas Jornadas da École de la Cause Freudienne, de 2005, Miller destaca a lucidez de Lacan que, em “Nota sobre a criança”, constata “o fracasso das utopias comunitárias” (LACAN, 1969/2003, p. 369), em sua pretensão de prescindir da família, e a função de resíduo que esta tem na evolução das sociedades. Lacan diz que é precisamente por se encontrar no estado de resíduo, no estado de pequeno a, que a família conjugal vai se manter, devendo-se sua resistência ao caráter irredutível da transmissão de um desejo não anônimo, que é constituinte para o sujeito.

As utopias da época não impediram a existência de algo de irredutível, de real, nas posições de pai e de mãe (LAURENT, 2007, p. 41). Lacan distingue o realismo da estrutura da família como resíduo irredutível dos semblantes que o revestem, ou seja, “da incrível diversidade sociológica das famílias atuais” (ROY, 2021, p. 2). Os marcos estruturais que Lacan identificou desde os “Complexos familiares” guardam seu valor no sentido do Desejo da mãe e da função do pai, dois princípios que não se superpõem à diferença dos sexos.

Nenhuma nostalgia em Lacan, que diz não se afligir com o afrouxamento dos laços de família (LACAN, 1938/2003, p. 66) nem ter fascinação pelo múltiplo dos costumes, mas “a consideração da família como matriz do laço social” (ALBERTI, 2021, p. 17, tradução nossa). Miller afirma que o laço familiar é uma forma particular de laço social, podendo-se dizer que é o único laço que se inscreve em uma relação sonhada como natural, embora seja completamente desnaturalizada (MILLER, 2005, n.p.). A família é um modo de tratamento do gozo.

 

Unidos pelo mal-entendido do gozo

O declínio do Pai e a ascensão do objeto ao Zênite social caracteriza a nossa época pela generalização do não-todo cujo corolário é a inexistência do Outro, visto que esse regime implica a impossibilidade da construção de um universal. O reino do gozo não favorece a relação com o Outro, mas a sua ruptura. Ele não favorece a dimensão da filiação e da transmissão, mas o exercício do gozo pulsional do Um.

A família atual entrou em uma lógica do não-todo.

“Mais do que nunca, as famílias se reorganizam hoje seguindo as derivas do real da não relação sexual e de uma economia do gozo que não se subordina a um significante em particular, seja ao do Nome do Pai ou a qualquer outro que quisesse substituí-lo” (BASSOLS, 2016, n.p.).

Elas seguem a lógica da equivalência entre significantes mestres que variam de acordo com as condições de gozo e que, como afirma Roy, “fundam uma relação direta e sem mediação da criança com os pais, na medida em que (…) realizam um aglomerado de corpos em presença e concentram a atenção e a libido de todos” (ROY, 2021, p. 1). Os vínculos familiares, em suas múltiplas formas atuais de união, são baseados na liberdade do gozo, liberados da diferença sexual e constituídos segundo formas singulares de gozo sintomático que não respondem ao modelo edipiano. Aqui, é o além do Édipo que dá uma forma lógica a essas novas configurações familiares.

Lacan colocou no coração do casal não uma diferença, mas o mal-entendido entre os sexos e a solidão do gozo de cada um. O que se revela na variedade das formas da família atual e se encontrava velado nas sociedades patriarcais, permanecendo irredutível, é o traumatismo do gozo que está no cerne de toda formação humana (LAURENT, 2007, p. 37). O segredo de toda família reside no campo do gozo, seja ela organizada ou não pelas leis clássicas do parentesco. Para Lacan, a família tem sua origem no mal-entendido e está essencialmente unida por um segredo sobre o gozo (MILLER, 2007, n.p.). A família é uma resposta à inexistência da relação sexual e constitui-se como um sistema de semblantes que tentam ordenar o gozo, refreá-lo, velá-lo.

É no segredo do gozo familiar que se encontra o fundamento da família e se revela o que há de indissociável entre família e crise, no que Daniel Roy nos convida para mergulhar ao fazer da crise “o novo princípio da família pós-moderna” (ROY, 2021, p. 1). Trata-se de um convite para abordar a família a partir do real, a partir do Um do gozo no qual a civilização atual está imersa e na qual, provindos da tecnologia, “os objetos mais-de-gozar assumiram a autoridade e fundam a lei para todas as formas de ideal” (ROY, 2001, p. 2).

 

“Tá tudo ao contrário” — a criança como objeto a liberado

Miller diz que, na contemporaneidade, “a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada” (MILLER, 2016, p. 31). O mesmo se revela na família atual, que se apresenta como “um artifício subordinado ao real da inexistência da relação entre os sexos. (…) Os termos se inverteram: se antes a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo reordena hoje a família” (BASSOLS, 2016, n.p.).

O que se revela nas novas configurações familiares é que a inscrição da família no simbólico “é a parte que retorna a cada um dos falasseres, na medida em que eles fazem — ou não — existir a função significante da família, ali onde se impõe sua função de gozo” (ROY, 2021, p. 3). Hoje, o que prevalece não são os significantes pai e mãe, mas o objeto criança.

Segundo Éric Laurent, a partir da “Nota sobre a criança”, quando Lacan formula que a criança realiza a presença do objeto na fantasia materna, o ponto de partida para ler a clínica da criança nos laços familiares não é mais a relação da criança com a mãe ou com o casal parental, organizada em torno da falta e do desejo, mas aquela da criança “capturada não em um Ideal, mas no gozo, no seu e no de seus pais” (LAURENT, 2007, p. 44). Laurent esclarece que a presença da criança satura a falta da mãe e há realização não do objeto que responde à angústia de castração como operação simbólica, mas do objeto que responde à angústia ligada à privação como operação real, objeto que aparece no real e que designa o ser do sujeito no ponto em que ele é ausência de representação (LAURENT, 2018, p. 55).

É a partir desse ponto que, em RSI, as funções do pai e da mãe no laço com o objeto a passarão a ser referidas por Lacan ao gozo em jogo no encontro sexual. O drama familiar será retomado a partir do lugar de tampão do objeto “liberado” pelo significante do Ⱥ, isto é, liberado pela estrutura. A criança ocupa por excelência esse lugar. “A criança é o objeto a, vem no lugar do objeto a, e é a partir disso que a família se estrutura” (LAURENT, 2007, p. 44). A família passa a ser pensada não mais a partir das estruturas edípicas da metáfora paterna, não mais a partir do Outro, mas do Um. O que passa a importar é a criança diante desse furo no real e a relação da criança com o corpo. Que o Outro não exista, isso não impede que ele tenha um corpo, corpo falante e substância gozante. Nos sintomas atuais das crianças, trata-se de ler sua dificuldade “para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou do gozo que a produziu” (DRUMMOND, 2007, p. 4).

 

Os fragmentos clínicos

Os fragmentos de caso apresentados por Suzana Barroso evidenciam a insistência do real do qual Lacan diz que depende o analista, que tem por missão contrariá-lo (LACAN, 1974/2011, p.19). O real do qual as novas utopias da família tentam dar conta através da ciência e do direito retorna, como nos lembra Roy, na “criança terrível”, cujo corpo se recusa a ser mortificado por esses saberes. Observou-se, na maioria dos casos, a colocação em jogo do corpo da criança: na agitação de Antônio, na agressividade incontida de Fernando, no sintoma somático do caso citado por Maleval.

A agitação de Antônio e sua “resistência à autoridade” respondem ao sintomático da estrutura familiar revelando a verdade do casal, da qual seus pais nada querem saber. Ao aludir a essa verdade, a partir da fala da criança, a analista recebe dela a sua revelação: “Tá tudo ao contrário”. A chance de tomar a palavra e ser escutada, de separar-se do lugar de objeto do gozo, seu e de seus pais, e de surgir como sujeito foi-lhe, no entanto, retirada. Sua mãe preferiu trocar a fenda aberta pelo real do sintoma da criança pela crença na suposta “autoridade da ciência”, que, ao contrário da psicanálise, foraclui o sujeito, fazendo-o se calar.

A sigla TOD (transtorno opositor do desenvolvimento), recebida do psiquiatra, é um entre os nomes que se proliferam neste mundo do Outro que não existe e transforma o sintoma em um transtorno para cujo tratamento é indicada a prática da fala autoritária e protocolar das TCCs. Para a psicanálise, os sintomas não são transtornos, não são distúrbios ou desordens, eles são signos da não-relação sexual, são signos de um real sem lei e, pois, de um impossível que faz objeção à onipotência do discurso da ciência (MILLER, 2005, p. 16), para a qual a escrita do real pela letra é possível. Se a psicanálise, como a ciência, trabalha com a materialidade da letra, excluindo o sentido, a escrita do real está nela presente sob a forma do impossível (BROUSSE, 2018, p. 86). A prática lacaniana tem como princípio o “isso falha”, que manifesta a relação com um impossível que a contingência demonstra. O objeto comanda o “isso falha” na ordem sexual, e é nesse lugar de objeto real das ficções atuais da família que a criança faz obstáculo a elas (LAURENT, 2018, p. 76).

“Tá tudo ao contrário” revela o que é de estrutura para todos, ou seja, que é o sujeito que tem o ônus de construir sua família, verdade recalcada pela estrutura tradicional da experiência humana. O segredo do gozo dos pais sempre fez enigma para o sujeito e é desse real que provêm as ficções que a criança tecerá para fazer borda a esse buraco da estrutura. “A família é (…) uma criação que se edifica do recalque” (VINCIGUERRA, 2016, p. 3).

É ainda com sua “resistência às autoridades” que Antônio faz objeção a esse afã contemporâneo de tomar a criança como objeto de cuidados, desconsiderando suas particularidades. Ao tentar igualar-se ao seu filho para lhe explicar o que não se deve fazer, a atitude de seu pai reflete uma tendência atual de ignorar as particularidades do mundo da infância e apagar as diferenças entre adultos e crianças. Essa falsa igualdade substitui a hierarquia implicada no desejo. Ao definir o pai como vetor da encarnação da Lei no desejo, o pai é concebido por Lacan como uma função que põe um freio ao gozo, não apenas estabelecendo uma proibição, mas autorizando uma via alternativa ao empuxo ao gozo mortífero, uma relação confiável com o gozo distinta da permissividade e do hedonismo contemporâneos (COCCOZ, 2015, n.p.).  A autoridade se funda inicialmente sobre o que é autorizado, e não sobre o proibido (LAURENT, 2007, p. 43).

Esse caso revela ainda as consequências do novo estatuto da psicanálise no campo cultural atual que implica o manejo de uma transferência que não está mais estabelecida de entrada, como antes, e onde a destituição do saber e o mal-entendido do gozo encontram-se imediatamente em jogo. A transferência passa a ser o pivô da suposição de saber, uma vez que é o amor que pode fazer mediação entre os Uns-sozinhos e fazer existir o inconsciente como saber (MILLER, 2005, p. 18).

Fernando, por sua vez, também nos remete a uma clínica da criança da era pós-patriarcal. A “agressividade incontida” da criança, em casa e na escola, também revela a verdade do drama familiar: a insuficiência da função paterna para separá-la do gozo opaco de sua mãe, “que se esmera em protegê-la da agressividade paterna”. A mãe chora junto com o filho quando se trata de se separar dele. O que a exaspera nessa “criança terrível” é o ato ao qual seu filho recorre para aí introduzir uma falta e denunciar o quanto ela se protege ao protegê-lo.

Miller, ao abordar a violência na criança como uma satisfação da própria pulsão de morte, como um gozo em si mesma, esclarece que é apenas em um segundo momento que se buscará a causa ou o mais-de-gozar que é o fundamento do desejo de destruir e que “se encontra, de um modo geral, numa falha do processo de recalcamento ou, em termos edípicos, num defeito da metáfora paterna” (MILLER, 2017, p. 28).

Já em seu primeiro encontro, a analista abre para Fernando a possibilidade de essa criança “decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais (…) com os significantes que ela recolhe [e] que assumem o valor singular de gozo pulsional que os lastreia” (ROY, 2021, p. 3). Sem atacá-la de frente, como nas TCCs, a violência da criança é acolhida pela analista “por meio da suavidade — como aconselha Miller — sem renunciar a manejar (…) uma contra violência simbólica” (MILLER, 2017, p. 30). Atenta ao acontecimento de corpo na criança e levando em conta o corpo do Outro, seu regime de gozo, a analista sustenta a palavra como operadora essencial do recalque e propõe, à “poção de loucura” feita pelo pai, que a criança diz ter ingerido, uma “poção contra-loucura”, um S2 que faz surgir o efeito-sujeito e mostra que a violência dessa criança é uma violência simbolizável.

A entrada da criança no discurso analítico faz da analista uma presença que não é da família, mas que possibilita à criança a construção de uma, uma vez que partimos do ponto de vista de que “não existe ser falante que não seja de uma família” (ROY, 2021, p. 4). O efeito da entrada nesse novo discurso é a organização do campo da metáfora, que localiza o gozo fora do corpo com os recursos de que a criança dispõe. A aposta da analista no inconsciente mostra o efeito surpreendente da significação fálica que surge de uma construção espontânea da criança: a substituição da “poção de loucura” pela “poção de bravura” do pai, com cujo semblante ela busca se identificar para escapar da voracidade do Outro materno. “Não há família tão bizarra, constelação familiar tão desregulada, tão distante do paradigma pequeno burguês, que o gênio do inconsciente não possa retificar pelo símbolo, pela imagem, pelo escrito. (…) O pai da palavra suplanta o pai de família” (COTTET, 2006, n.p., tradução nossa).

Para colocar um pouco de ordem na desordem familiar que invade seu corpo e contra a qual ele se revolta, Fernando voltará a recorrer à “poção-contra” oferecida pela analista para tomar distância do significante “agressivo” que, em suas encenações, ele mostra à analista como lhe é injetado goela abaixo pelo Outro.

O sintoma fóbico, presente nos fragmentos dos casos conduzidos por Maleval e Mariage, é também um sintoma relacionado à carência paterna frente ao encontro com a castração do Outro materno. Lacan o analisa como uma suplência significante à carência paterna, mas também na vertente do objeto e dos seus efeitos de intrusão no campo do imaginário.

Se o caso apresentado por Maleval demonstra a intrusão do gozo no imaginário do corpo pelo sintoma somático como resposta à rejeição do simbólico promovida pelas TCCs, no caso analisado por Véronique Mariage, o efeito retorna no nível significante da “fala TCC” da criança. Na perspectiva das TCCs, a escuta protocolar e de puro semblante implica uma recusa do sintoma, seja como sentido, seja como gozo. Do lado do sentido, há uma acolhida, mas também sua homogeneização; do lado do real do gozo, o sintoma é suprimido por sua redução ao “distúrbio”. Como diz Suzana Barroso, os diagnósticos catalogados pelas TCCs resultam no congelamento da lógica binária do significante e no incentivo ao império do Um (BARROSO, 22/06/2022).

Uma análise, ao contrário, se inaugura pela instalação do inconsciente transferencial, pelo laço associativo de dois significantes S1 → S2 a fim de percorrer os labirintos do gozo no qual o sintoma está enlaçado e chegar às relações do sujeito com os objetos de seu gozo. O caso de Florette, conduzido por Mariage, mostra como a oferta da palavra se faz passar do gozo ao desejo. O medo da mordida do cachorro acaba por revelar a marca do desejo do sujeito. Como em Hans, o encontro com a analista ofereceu-lhe a possibilidade de aceder ao saber inconsciente. O encontro com Freud, que comunica a Hans o que seu inconsciente já havia interpretado, traduzindo “medo de cavalo” por “medo do pai”, permite a invenção de uma ficção excepcional por meio da qual ele constrói um objeto destacável do corpo que o dispensa de sua fobia. Hans se separa do gozo veiculado pelo significante cavalo, que iterava sem o representar e o aprisionava nos limites estreitos impostos pelo sintoma. Em torno desse significante, Hans desenvolve “todas as permutações possíveis de um número limitado de significantes”, pelas quais a conversão da mordida do cavalo em desmontagem da banheira representa o declínio da mãe como uma potência opaca, ameaçante e sem lei. Essa ficção dá um lugar a Hans e constitui uma solução que o separa do gozo mortífero de sua fobia.

Supor um sentido ao sintoma sob a forma de um saber alojado no analista não é uma escuta de puro semblante, mas leva em conta que o sintoma é uma resposta ao encontro traumático do sujeito com um real excluído do sentido: o real do sexo. O sintoma inclui a relação a um furo no saber e a invenção de saber que tenta preenchê-lo.

Esses fragmentos clínicos nos remetem ao “infamiliar” no interior da família, isto é, a um além do Édipo, além do falo, além do recalque: ao não-todo do gozo feminino, que não é fora do corpo, mas que se produz no corpo sem fazer Todo e faz do corpo o Outro para o falasser, testemunho da inquietante estranheza de um gozo que habita o corpo (MILLER, 1998, p. 108). Daniel Roy nos esclarece a respeito do poder de angústia do objeto quando ele se encarna na “criança-terrível”, cujas manifestações sintomáticas questionam cada um dos pais sobre “a verdade do par parental” e exasperam o lugar que um filho pode ocupar como objeto a na fantasia de cada um. Ele diz que a família como um tratamento do gozo dos corpos falantes não responde a nenhum ideal, mas é da ordem de uma “religião-privada” que ignoramos e da qual “temos tudo a aprender sobre as regras que ali se aplicam, os ritos que ali se celebram, os pequenos deuses que ali reinam” (ROY, 2021, p.4).

 

Para concluir

A desvalorização do pai, mais do que na crise da sociedade atual que a revela, está inscrita na própria estrutura do simbólico. No final de seu ensino, Lacan “dirá que o pai é um sinthoma e que o Édipo não poderia dar conta da sexualidade feminina” (MILLER, 2013, p. 9). A partir do Seminário 10, a angústia não é mais vinculada por Lacan ao falo ameaçado, mas à maneira como os objetos se separam do corpo. Laurent diz que essa separação é que o permite que se estabeleça uma significação fálica sem passar pela metáfora paterna e indica uma mudança no horizonte clínico do que se faz com uma criança que tem que elaborar a significação fálica quando ela é instável, inexistente ou pouco existente. O que determina o valor fálico, esclarece Laurent, é o estabelecimento das versões do objeto que a criança tem, as separações que ela pôde fazer de seus objetos e o valor de objeto que ela tem para a mãe (LAURENT, 2018, p. 11).

Os fragmentos de caso mostram a dificuldade da criança — frente aos delírios familiares da hipermodernidade, que sonham com a universalização do gozo — para se separar do lugar de resto do gozo que a produziu. Eles são também testemunhos do trabalho do analista para desalojar a criança desse lugar de condensador do gozo da família e fazer surgir o sujeito.

A psicanálise permite à criança reinventar sua família. Sua aposta no saber inconsciente demonstra que ele se mostra capaz de reparar as disfunções presentes nas novas formas de fazer família. O inconsciente retifica, inventa famílias fictícias, simboliza um real sem lei. Sua eficácia simbólica, porém, só se evidencia com a condição de que o analista intervenha a partir do que se desnuda na desordem simbólica que caracteriza nossa época: o real de lalíngua, a partir do qual uma ordem simbólica pode se restabelecer. A entrada da criança no discurso analítico organiza o campo da metáfora para restabelecer, a partir do que lalíngua recolhe da parte elaborável do gozo dos pais, as funções simbólicas que permitem localizar o gozo fora do corpo e se “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (LACAN, 1967/2003, p. 366). A metaforização do gozo na língua permite uma variedade de soluções que prescindem da função paterna e se fazem com os recursos do sintoma em uma articulação direta entre significante e gozo.

Frente à hipermodernidade e seus efeitos, Laurent nos orienta a navegar com a bússola do objeto a, que leva em conta a reconfiguração da família e separa todas as tentativas de restabelecer as crenças no pai. A posição do analista, diz Laurent, é a de proteger a criança dos delírios familiares, das paixões que habitam os novos laços familiares (LAURENT, 2018, p. 79).

 


 

Referências
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[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças – Seção Clínica – em 22/06/2022



“TÁ TUDO AO CONTRÁRIO”: A CRIANÇA, SEUS PAIS E A VIA DO EQUÍVOCO[1] 

SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: Através de aspectos teóricos e clínicos, o artigo discute as duas abordagens da família hoje, isto é, a via do disfuncionamento familiar protagonizado pelo discurso da ciência em contraponto com a via do equívoco orientada pelo discurso psicanalítico.

Palavras-chave: Linguagem da ciência; família-holófrase; equívoco; discurso psicanalítico.

“Everything is backward”: the child, their parents and the route of misconception 

Abstract: Through theoretical and clinical aspects, the article discusses the two approaches to the family today, that is, the pathway of family dysfunction carried out by the science discourse in contrast to the pathway of misunderstanding guided by the psychoanalytic discourse.

Keywords: Language of science; family-holophase; misunderstanding; psychoanalytic discourse.

        

 

Imagem: Cecilia Vellos Batista


O que está acontecendo?

O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?
Eu estava em paz quando você chegou

(“Relicário”, Nando Reis, 2000)

Introdução

Inicio minha exposição dando um testemunho da dimensão política que está em jogo com a presença da psicanálise na sociedade hoje, mais precisamente na universidade. No dia 8 de abril deste ano, Paula Pimenta e eu fizemos a terceira de uma série de lives sobre autismo em um canal da PUC-Minas, aberto em 2020, que tem acolhido nossa participação. O tema proposto para esse evento foi “Como o autista aprende na perspectiva da psicanálise”.

Na véspera dessa live, fomos surpreendidos por uma mensagem que circulou no grupo de associação de pais de autistas. Transcrevo: “olha que maravilha a PUC com pseudociência para abordar o autismo. Convido a todos a entrarem e explicarem para esse povo que autismo não se trata com psicanálise”.

Compartilho esse acontecido com o NPPcri, pois demonstra a batalha da psicanálise neste tempo em que a soberania do saber do discurso da ciência segue se infiltrando nas instituições sociais, particularmente junto à família, às crianças e a seus sintomas.

A meu ver, cabe à psicanálise com crianças um papel decisivo na transmissão de nossa prática, uma transmissão que renove a política do inconsciente no campo ético aberto por Freud.


A linguagem da ciência, o catálogo das disfunções da criança e uma hipótese a ser desenvolvida sobre a noção de “família-holófrase”

Com frequência, a inconsistência da família pós-moderna quanto ao simbólico e sua incidência junto à criança assume o formato da disfuncionalidade a ser rastreada e consertada pela intervenção da neurociência, da medicalização e das técnicas cognitivas-comportamentais (TCCs) e/ou pelo coaching parental.

Verificamos como os significantes da transmissão familiar vêm sendo totalmente rebaixados em prol das certezas provenientes das medidas neuropsicológicas. Apostilas cheias de gráficos, números, medidas resultantes de testes neuropsicológicos são carregadas pelos pais quase como um álibi, visto que seu dizer se apaga sob o poder ilusório da certeza científica. Trata-se do saber unívoco que constrange o discurso familiar e obtura a via do inconsciente.

Contudo, essa parafernália não engana o real que retorna no corpo e no gozo da criança terrível, descrita por Daniel Roy no artigo “Pais exasperados – Crianças terríveis”. Essa criança, que se torna real demais para seus pais, encarna o objeto estranho e angustiante, com relação ao qual eles não sabem mais o que fazer.

Os diagnósticos catalogados congelam os sujeitos em suas supostas disfunções e os afastam dos significantes particulares da sua inserção no discurso familiar. Mais ainda, ao funcionar, sobretudo, com pequenas letras, com cifras mais do que com significantes, a linguagem da ciência consegue “neutralizar todas as outras funções do discurso e, em particular, o S1 e o S2, como produtores de sentido” (AFLALO, 2013, p. 44). Disso pode resultar o congelamento da lógica binária do significante e o incentivo ao império do Um. Esse congelamento evoca a noção de “família-holófrase”, presente no texto de Roy.

Promovida pela supressão do intervalo entre os significantes, a holófrase é a solidificação do par de significantes com a consequente suspensão da representabilidade do sujeito, das leis da linguagem, comprometendo as operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação.

O sujeito se constitui a partir da relação entre S1, significante-mestre que o representa para outro significante, S2, significante do saber do Outro. Essa operação, chamada alienação, requer a perda do objeto, concomitante à formulação da demanda do sujeito ao campo do Outro. O objeto perdido causa o intervalo entre os dois significantes e dá lugar à metáfora. Quando ocorre a holófrase do primeiro par de significantes, não há perda, não há intervalo.

A holófrase é uma figura retórica por princípio oposta à metáfora e que se presta bem para indicar o efeito de petrificação, de solidificação, de congelamento do sujeito devido a uma alienação sem separação.

“A holófrase é o nome que Lacan dá à ausência da dimensão da metáfora. Na verdade, que dois significantes sejam assim solidificados, holofraseados, que não haja intervalo entre eles, é equivalente a dizer que um não pode vir no lugar do outro, não podem se substituir — substituição e condensação estando no princípio da metáfora — uma vez que eles já ocupam o mesmo lugar” (STEVENS, 1987, p. 66).

O sujeito não é mais representado pelo significante a outro significante, rejeitando todo o intercâmbio simbólico, cristalizando-se em uma identificação monolítica, que exclui qualquer divisão. Essa situação, segundo Lacan no Seminário 11, serve de modelo para uma série de casos.

Ao que parece, falar de “família-holófrase” privilegia a dimensão do gozo mais do que a dimensão significante em jogo nessa estrutura. “O conceito de holófrase é um modo de assinalar que não se trata de significantes que pertencem às leis do simbólico somente, mas ‘que é um significante que porta gozo’” (BAYON, 2020, p. 182).

Sobre a abordagem do sofrimento da criança e da família hoje, a partir da noção de disfuncionamento, cito Roy:

“O disfuncionamento não é o que se acredita, ele não se relaciona com um mau arranjo dos papéis parentais ou das relações pais-crianças, nem com o mau funcionamento de uma função psíquica ou cognitiva. O disfuncionamento consiste em não querer saber que a família já é um modo de tratamento do gozo dos corpos falantes” (ROY, D. 2021, n/p. tradução nossa).

O que o autor propõe é descompactar a família holófrase, o que entendo como dar-lhe voz, liberar suas articulações significantes, dar lugar ao equívoco, condição para colocar o inconsciente a trabalho e para desalojar a criança do lugar de objeto condensador de gozo.

 

As ditas “disfunções cognitivas” e os efeitos da rejeição do inconsciente

De artigos de J. C. Maleval e Véronique Mariage, publicados no livrinho L’anti livre noir de la psychanalyse (2006), recolhi algumas vinhetas clínicas sobre as consequências da abordagem das disfunções cognitivas das crianças e das famílias, sem que se leve em conta a via do equívoco.

Comentando uma crítica feita às TCCs, que promoveriam apenas uma substituição de sintomas, Maleval relata um caso de uma criança para a qual esse método teria promovido o retorno no real suscitado pela rejeição do simbólico. Trata-se de uma criança com fobia de um coelho branco que acaba tocando o objeto de seu medo após uma dessensibilização sistemática. Logo em seguida, essa criança, já sem o medo, foi hospitalizada com escarlatina, voltando somente dois meses depois.

Véronique Mariage, por sua vez, comenta como tem sido frequente que as crianças cheguem ao analista falando TCC, se “terapiando” TCC. Relata o caso Florette, de seis anos. Criança que habitava no campo, onde os animais ocupavam lugar importante em sua vida. A menina tinha medo de que seu cachorro a mordesse ou a fizesse cair, que seu gato a arranhasse ou que as galinhas a bicassem quando lhes desse comida. Submetida a um programa TCC, seu sintoma desapareceu após aproximações sucessivas dos animais. Junto à analista, Florette disse outra coisa, a saber, que seu pior medo, que, segundo Mariage, porta a marca de seu desejo, era de sua pequena irmã dar comida ao cachorro. Ela disse: “minha irmã poderia pisar no rabo dele e ser comida pelo cachorro”.

Nos dias atuais, diante das respostas da ciência aos medos infantis, é oportuno lembrar um dos conselhos freudianos que discute a importância de não se desprezar o sujeito e seus métodos particulares de proteção contra a angústia até que ele venha a elaborar, por meio da palavra, os motivos de sua incompreensível covardia.

“A experiência demonstrou que é impossível efetuar-se a cura de uma fobia (e até mesmo, em certas circunstâncias, perigoso tentar fazê-lo) por meios violentos, isto é, primeiro privando-se o paciente de suas defesas, e depois o colocando numa situação da qual ele não possa escapar da liberação da sua angustia” (FREUD, 1909/1976: 124).

O discurso psicanalítico e a via do equívoco

Segundo J.-A. Miller, a orientação do real não nos permite mais exaltar o simbólico, nem refugiar no imaginário, tampouco alienar no real da ciência. Somente nos resta, portanto, a via do equívoco.

No artigo “O engano do sujeito suposto saber”, Lacan (1967) nos adverte que o inconsciente é pouquíssimo tranquilizador, visto que o equívoco em questão diz respeito ao que não pode ser encontrado no saber articulado. Trata-se do inconsciente captado em uma equivocação, “aquilo que se pode designar o tema de cada um, aquilo que anima cada um” (MILLER, 2011, n/p.), advindo do encontro do corpo e do significante como acontecimento de gozo. É a forma como o sujeito foi impregnado por lalíngua, marca de uma singularidade absoluta que imprime um modo de gozo próprio.

Encontrar a via do equívoco implica o percurso lacaniano que vai da noção de Outro à noção do Um, do inconsciente como saber ao inconsciente real. Onde estava o Outro como lugar dos significantes, aparece como ponto de partida o Um sozinho, que destaca a ressonância corporal da palavra, eco do dizer no corpo.

 

O que dizem as crianças sobre suas famílias

Nas vinhetas que se seguem, poderemos verificar o que o psicanalista Daniel Roy chamou de abordagem do disfuncionamento familiar em contraponto com a abordagem da via do equívoco, esta sim, pertencente ao discurso psicanalítico.

 

Antônio e o avesso da família

É da fala de Antônio que extraímos o título da temática de hoje no NPPcri, “tá tudo ao contrário”. Ele estava com 4 anos quando veio à consulta, trazido por seus pais, que se queixavam de sua agitação: “ele põe a casa abaixo”, “até quadros da parede ele joga ao chão”. Não tem horário para dormir, desarvora seus familiares, impede o trabalho dos pais em casa, impede-os de dormir. Diziam que não conseguiam ter autoridade sobre o filho. Já tentaram de tudo, vários métodos, sem resultado. Tomados pela discórdia, os pais do menino discutem o tempo todo. Desorientados, brigam. Segundo a escola que frequenta, Antônio tem “resistência às autoridades”, agride as autoridades. O pai descreve que, ao falar com o filho qualquer coisa, ajoelha-se para ficar da altura dele, explicando, em vão, o que não pode fazer. O “para ficar da altura dele” ilustra bem o lugar de onde o pai se dirige ao filho, isto é, de igual para igual.

Na primeira entrevista, Antônio relatou as brigas de seus pais. Insistia em dizer que já falou para eles pararem de brigar, mas não adiantou. Quando lhe digo, em tom de surpresa e exclamação, “então é você quem cuida disso na família!”, ele responde: “tá tudo ao contrário!”.

A hipótese da inexistência do Outro implica a época da permissividade, do ocaso do significante mestre típico do império capitalista, destinado, segundo Lacan, a promover o sujeito barrado ao lugar do agente.

Na família de Antônio ficou evidente a destruição sistemática dos significantes mestres e do lugar da autoridade, o que acabou por inviabilizar a análise dessa criança. Logo depois de iniciadas as sessões do menino, sua mãe recebeu de um neuropsicólogo o diagnóstico que lhe pareceu tudo explicar, isto é, TOD (transtorno opositor do desenvolvimento). Acatando o protocolo receitado, a mãe de Antônio propõe um caminho paralelo à análise, isto é, a medicação do TOD e a TCC. Diante dessa atuação, assumo a posição de não ceder do discurso analítico, não avalizando a multiplicidade de intervenções propostas, bem ao estilo da época do mais, embora isso tenha acarretado a interrupção das sessões de Antônio.

 

Fernando e seu pharmakon: as poções contra-loucura

Diferentemente de Antônio, Fernando teve a chance de uma análise. Ele fazia uma terapia cognitiva-comportamental para resolver sua agressividade incontida em casa e na escola. Seus pais decidiram interromper essa terapia quando a psicóloga disse que não poderia fazer mais nada pelo menino. Sugerindo aos pais a existência de uma patologia grave da criança, os encaminhou ao psiquiatra.

Com quatro anos de idade, Fernando desafiava os pais, desacatava-os. Filho de um homem bastante agressivo, sua mãe se esmerava em protegê-lo desse pai. Alguns episódios exasperavam a mãe de Fernando, motivando sua demanda de falar ao telefone com a analista e pedir orientação. Fazendo jus à noção lacaniana de criança generalizada, filho e mãe choravam juntos em momentos de separação na porta do colégio, por exemplo.

No primeiro encontro com Fernando, ele me disse: “meu pai fez uma poção de loucura e eu tomei. Lá no colégio todos ficaram loucos, subiram na mesa, bateram, gritaram…”. Digo a ele que poderíamos fazer uma poção contra-loucura. Ele prontamente aceitou e me perguntou que ingredientes eu tinha para fazê-la.

Fernando passa a desenhar, fazer recortes, rasgar papel para fazer misturas com água e várias cores de tinta. Da poção de loucura passou à poção de bravura, fazendo semblante de bravo e, como ele dizia, “fortaço”, expressando-o de modo caricaturesco com seus gestos e tom de voz.

Cito Lacan: “os pais modelam o sujeito nessa função que intitulei de simbolismo. O que quer dizer, estritamente, […] que a forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais o aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9).

Atualmente, mais apaziguado, Fernando vem trazendo outros relatos sobre o que faz na escola, já não tão afetado pelas poções de gozo. Por exemplo, relata um lanche coletivo no qual ele e todos seus colegas foram para a cozinha preparar as guloseimas. Fizeram muitos sucos diferentes, de laranja, de uva, de morango, e biscoitos. Ele disse: “Não tinha só pão de queijo. Não gosto de pão de queijo. Meu pai quer que eu coma só pão de queijo”. Na última sessão, uma vez mais, me disse, ao chegar: “Você não acredita o que meu pai fez, uma poção doidaça!”. Em seguida, me pediu material para fazer poção-contra. Acredito que Fernando esteja se tratando por meio de poções de “ajuda contra”, o que o situa noutro lugar, diferente do da criança terrível.

 

Considerações finais

Para concluir, cito Lacan no artigo “Os complexos familiares”: “não estamos entre os que se afligem com um pretenso afrouxamento dos laços de família” (1938/2003, p. 66). Parece-me surpreendente que Lacan já tenha dito isso em 1938!

Se, por um lado, não nos afligimos com a desfamiliarização contemporânea, pois estamos advertidos quanto à noção de “família-resíduo” (LACAN, 1969/2003), por outro lado, inventar uma família é preciso. Como bem o diz Lacan: “mesmo que as repressões familiares não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, 1973/2003, p. 531). A psicanálise com crianças o demonstra. Para um sujeito em constituição, a família pode ser um modo de enlaçar o Um ao lugar do Outro. São as ficções infantis, e não os supostos concertos dos disfuncionamentos, tampouco os programas TCCs, que viabilizam esse enlaçamento.

“A neurose e não é tanto um fenômeno do Um, mas o resultado do mergulho do Um na esfera do Outro. Por isso, ela se articula de modo privilegiado ao contexto das relações familiares, cuja estrutura recobre o Um de gozo. Ao contrário, ‘o automatismo mental, a psicose, é um mergulho do Outro no Um” (MILLER, 2010, p. 166).

Os casos de Antônio e Fernando demonstram os acontecimentos de gozo que irrompem na estrutura das relações familiares. A operação do discurso psicanalítico pode viabilizar a articulação do acontecimento ao lugar do Outro.

 


 

Referências
AFLALO, A. O assassinato frustrado da psicanálise. Rio de Janeiro, Ed. Contracapa, 2012.
BAYÓN, P. A. El autismo entre lalengua y la letra. Buenos Aires: grama ediciones, 2020.
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ROY, D. “Parents exaspérés – enfants terribles”. Pronunciado em 13 de março de 2021, na 6ª Jornada do Institut de l’Enfant. Editado por Frédérique Bouvet e Isabelle Magne. 2021.
LACAN, J. (1975) “Conferência sobre o sintoma”. In: Opção Lacaniana, v. 23, 1998, p. 6-16.
LACAN, J. (1969) “Nota sobre a criança”. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 369-370.
LACAN, J. (1973) “Televisão”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
MILLER, J. A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan — O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010.
________. (2011) O Ser e o Um. Seminário inédito, 2011
STEVENS, A. “Aux limites du lien social, les autismes”. In : Les Feuiliets du Courtil, v. 29, Leers-Nord, jan. 2008, p. 9-28.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças – Seção Clínica, em 22/06/22.



DISCURSOS DE GÊNERO E PSICANÁLISE: POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES

RODRIGO ALMEIDA
Psicanalista, psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG
romabh2003@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.

Palavras-chave: Gênero; queer; discurso; sexuação; falasser.

Gender discourses and psychoanalysis: possible interlocutions

Abstract: This paper discusses some aspects of “gender discourses” and their theories in what they counterpose to psychoanalysis by briefly reviewing the discourse of psychoanalysis, its practice and place in the social sphere. With that said, we interrogate how the debate with gender theories can contribute to psychoanalysts in reading the subjectivity of their time.

Keywords: Gender; queer; discourse; sexuation; parlêtre.

Imagem: Cecília Velloso Batista

 

Em nossa condição de seres falantes e sexuados, chegamos ao mundo onde diversos discursos nos precedem antes mesmo de nosso nascimento. Somos atravessados pelo real e pelo encontro sempre traumático com o sexual. Lacan (1977, inédito, tradução nossa), mais ao final de seu ensino, afirma que “o sexo é um dizer”. Para além do falo, o ser sexuado pode ser lido em termos de sexuação, portanto, o que vamos levar em conta é a posição de gozo do sujeito.

O discurso psicanalítico demonstra seu alcance como “um instrumento poderoso” (LAURENT, 2016, p. 219) para questionar tanto outros discursos quanto os corpos e seus modos de gozo. O conceito de falasser, ao incluir o corpo e, por extensão, a noção de inconsciente político, possibilita interrogar a relação do sujeito com o discurso. Seguindo com Laurent (2016, p. 213), “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado”. Há assim uma dimensão coletiva, que surge em suas nomeações e desencontros, em que a subjetividade individual é marcada pela época em que se inscreve. Nas palavras de Brousse (2018, p. 137), “Trata-se de considerar os falasseres como solidões numerosas e irremediáveis, que fazem série e não grupo. A experiência analítica nos cura do Nós, ao preço de uma perda do sentido, frequentemente gozoso”. Podemos afirmar que a psicanálise, ao levar em conta o real e o gozo, ao ler a subjetividade de sua época, vai mais além dos discursos vigentes. Com relação aos discursos de gênero, o que ela teria a dizer?

Diante dessa questão, vale ressaltar que qualquer ideia de normatização da sexualidade não está presente na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela opera para além dos gêneros com os quais o falasser possa se identificar. Constatamos, hoje, a propagação dos discursos de gênero abarcada pelas chamadas teorias queer, que se propõem a reorganizar o discurso sexual, interrogando outros saberes e a sociedade, que aparecem como reguladores de corpos e de sua vivência da sexualidade e identidades. Importante salientar que o que chamamos aqui de discurso de gênero tem relação com os enunciados que governam e norteiam momentos históricos específicos, e a noção de discurso fundamenta-se em conceitos foucaultianos. Conforme Salih (2009, p. 69), “Foucault está interessado particularmente na posição de sujeitos pressupostas pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente constituídos”.

Com a disseminação de tais discursos, a psicanálise se viu convocada a revisitar as elaborações lacanianas sobre a diferença sexual, colocando em relevo a tábua da sexuação, o não-todo e a conjugação do corpo com o gozo, confrontando-se, assim, com o lugar privilegiado de saber sobre a sexualidade. Nos últimos anos, foi possível observar que a psicanálise foi alvo de diversos posicionamentos contrários ao seu discurso teórico, e até mesmo à sua ética. Desse modo, julgamos relevante abordar alguns pontos sobre o “discurso de gênero” e suas teorias, tentando localizar pontos de diálogo para o debate e que podem nos interessar enquanto praticantes da psicanálise.

Nessa interlocução de saberes proposta pelas teorias de gênero, a psicanálise está presente como instrumento de leitura e diálogo com seus teóricos. A partir da insurgência de um debate, a psicanálise se vê convocada não só a responder, como também a marcar seu posicionamento diante do contemporâneo, norteado por sua ética e sua política. Cada vez mais a prática clínica se vê interrogada por aqueles que buscam uma análise, seja, inicialmente, para um acompanhamento em um processo de transição — no caso de sujeitos trans —, seja para aqueles que se interrogam sobre as mudanças advindas pela diversidade sexual diante de suas escolhas e do outro do laço social.

Na obra Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, vista por muitos como referência para os estudos queer, Judith Butler afirma, num primeiro momento de suas formulações, que a teoria feminista presume a existência de uma identidade definida e que a “(…) concepção dominante da relação entre teoria feminista e política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2020, p. 18). A filósofa — que hoje se identifica como gênero não binário e que atualmente propõe pensar as questões de gênero a partir da ideia de decolonização e racismo —, em seus primeiros estudos, demonstrava a complexidade de presumir certa identidade fixa e a impossibilidade de conjecturar um feminino universal. Butler afirma que várias pessoas não se identificam ou não se veem representadas pelo feminismo. Esse movimento pode ser notado também em outros grupos minoritários, como o de gays e de lésbicas. Há dissidências dentro dos próprios grupos; a vivência da sexualidade é diferente para cada sujeito e as ideias se movimentam, o que leva a distintas noções de identidade. Poderíamos dizer que, para Butler, o queer origina-se de uma ruptura com o que se estabelece enquanto norma na construção de uma identidade. A autora vai propor que as identidades se constroem a partir de um corpo social e se conecta à ideia de performance e performatividade na elaboração de sua teoria sobre o gênero. Butler faz uma interface com a psicanálise, o estruturalismo e a genealogia foucaultiana em suas formulações.

Em relação à psicanálise, ela vai interrogar, a princípio, se não seria a psicanálise mais um saber, entre outros, que propõe uma leitura das identidades com base em uma matriz heterossexual e que funciona a favor de uma hierarquia já estabelecida em relação ao gênero. Vale ressaltar que o conceito de gênero ordena um conjunto interdisciplinar de saberes, devido à sua complexidade. Para Butler (2020, p. 27), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscriçãocultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Tanto o queer quanto as teorias de gênero trazem em sua origem a semente da recusa a um enquadramento, levando-se em consideração resistir à possibilidade de domesticação acadêmica.

Rafael Leopoldo (2020), em seu livro Cartografia do pensamento queer, esclarece sobre a palavra inglesa queer: inicialmente, sua acepção era de insulto e nomeava o estranho e bizarro, estando fora do que se nomeava como normal. Um fora de lugar, nem lá nem cá, nem isso nem aquilo, simplesmente queer. Esses corpos excluídos e marcados, muitas vezes, de forma violenta, rechaçados do social e do espaço público, apropriam-se do termo e fazem dele outro uso, um uso como ferramenta de ruptura frente à normalizaçãoda sociedade. De acordo com Leopoldo:

“O queer, ante isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e normalização. (…) O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).

A questão do gênero não é formulada pela psicanálise da mesma forma que para os estudos de gênero, visto que aquilo que a psicanálise entende por homem e mulher em relação ao gênero se difere do que propõem os estudos de gênero. Tomamos aqui uma definição oferecida por Leguil:

“Para a psicanálise, o gênero é da ordem de uma posição subjetiva dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro. (…) Para a psicanálise, o gênero é, antes, aquilo atrás do qual o sujeito corre, tentando, assim, ir ao encontro de alguma coisa de seu ser, sem nunca sê-lo totalmente” (LEGUIL, 2016, p. 40).

Marie-Hélène Brousse (2019) nos diz que o gênero se torna um significante mestre no lugar do sexo; o termo “gênero” vai evitar o equívoco que se apresenta no significante “sexo” em relação ao binário masculino/feminino, introduzindo assim um terceiro termo, o neutro. Parece ser importante a possibilidade de adentrar no debate das questões de gênero e identidade, apoiando-se na ética da psicanálise e para além da noção do discurso do mestre, levantando as modificações que surgem no social e o que dela é possível recolher no discurso dos analisantes.

Se, antes, a diferença sexual e o binarismo homem/mulher serviam de bússola para o sujeito, as questões de identidade e de gênero vêm, de certa maneira, reorganizar o conjunto dos discursos. Brousse (2019, p. 73) ressalta ainda que Lacan, ao final de seu ensino, “mudou a distribuição dos mecanismos de identificação”; há uma destituição do Outro e o sujeito é pensado a partir dos três registros.

Em relação ao falasser, Miller observa: “(…) não se trata mais do sujeito, do sujeito do significante, do sujeito da identificação” (MILLER, 2009, p. 110). Com a ideia do falasser, o Outro não é mais o lugar das identificações; em seu lugar está o corpo, o corpo próprio. Corpo e gozo se conjugam na identidade daquele que fala. Assim, o processo de identificação vai surgir não mais do Outro, mas de Um-corpo, esse corpo que o falasser adora por acreditar que o tem, esse corpo que se conjuga com o gozo.

Recebemos cada vez mais sujeitos que interrogam sobre o gênero e suas identificações, recolhendo assim os efeitos do discurso de gênero na clínica. Se, enquanto analistas, nos orientamos pelo sintoma e o gozo, indo além da ideia de identidade, cabe a nós acolher a forma como o falasser se apresenta, assim, “tomamos a identidade sexual como qualquer outra portada pelo falasser” (FAJNWAKS, 2017, p. 38).

Para Lacan, a existência do inconsciente é inseparável da noção de sexualidade; o inconsciente é o índice do fracasso do biológico e do cultural. Importante salientar que Lacan, ao teorizar sobre a sexualidade, não a coloca em termos de gênero, mas de gozo. Alguns estudiosos do gênero que mantêm uma interlocução com a psicanálise afirmam que Lacan (2008), ao propor as fórmulas da sexuação e ao estabelecer o lado homem e o lado mulher em seu quadro, acaba criando uma padronização das identificações reduzida ao binarismo homem/mulher. De acordo com a leitura de Butler, “(…) a versão lacaniana do sexo e da diferença sexual coloca suas descrições de anatomia e desenvolvimento em um quadro não examinado de heterossexualidade normativa” (BUTLER, 2019, p. 195). Para ela, o que Lacan chama de posições sexuadas se estabelece “relegando as identificações não heterossexuais ao domínio do culturalmente impossível (…)” (BUTLER, 2019, p. 195).

Posto isso, interrogamos se, para os teóricos do gênero, os importantes desdobramentos das formulações lacanianas sobre a sexuação não são levados em conta no embate, visto que o que vai interessar à psicanálise é a posição de gozo do ser falante e o feminino que se localiza em cada falasser. De acordo com Ambra, Silva Jr. e Laufer:

“(…) a aposta lacaniana em localizar a sexuação numa diferença radical que aponta para o real subverteria os apegos imaginários identitários presentes em diversos usos das teorias de gênero. Mais ainda ficariam desarmadas as críticas feministas à centralidade do falo como significante privilegiado da subjetividade, na medida em que tais fórmulas de Lacan apontariam outro domínio da experiência, não todo marcado pela castração” (AMBRA; SILVA JR; LAUFER; 2019, p. 3).

Lacan, em “Les non-dupes errent”, propõe o aforismo: “O ser sexuado se autoriza de si mesmo e de alguns outros” (tradução nossa). Essa sentença que reverbera entre os psicanalistas não reduz a ideia da escolha para o ser sexuado. A questão simbólica imposta pelo binarismo homem/mulher permite também avançar teoricamente a partir das fórmulas da sexuação. Nas palavras de Lacan:

“(…) o ser sexual se autoriza de si mesmo. É nesse sentido que… que ele tem a ‘escolha’. Quero dizer que isto a que a gente ‘se limita’ enfim para classificar como ‘masculino’ ou ‘feminino’ no registro civil… enfim, isso… Isso não impede que haja escolha. (…) Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros.” (LACAN 1973, aula de 9/2/1974).

Fajnwaks (2020) nos diz ser importante interrogar quem são esses alguns outros, pois não se trata mais do grande Outro, mas do outro do imaginário. É importante ressaltar que, mesmo que Lacan proponha suas fórmulas da sexuação a partir do binarismo e evocando a ordem simbólica, ele inclui a dimensão do imaginário. Alguns outros fazem parte da escolha e da ideia de reconhecimento que o sujeito busca em suas identificações. Nesse percurso de leitura, aventamos a hipótese de que o discurso de gênero objetiva o Um da identidade ofertado pelo discurso do mestre contemporâneo. Nas palavras de Musachi  “(…) nessa tentativa se opera um certo ‘empuxo’ ao Um da identidade, o que produz uma suspensão em relação às identidades” (MUSACHI, 2020, n/p, tradução nossa). Ao tomarmos como referência a orientação lacaniana, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, temos uma leitura da sexualidade em que não se trata de universalizar, mas de singularizar o gozo, considerando o encontro de um real com lalíngua, que habita o falasser e determina suas identificações.

Se, para alguns teóricos, a questão do gênero concerne apenas à performatividade, a psicanálise não se limita a apenas uma questão de semblantes, mas busca interrogar as mutações no sexual, a partir do desacordo entre os lados feminino e masculino da sexuação. A psicanálise, ao se apropriar do aforismo lacaniano de “que não há relação sexual” (LACAN, 2008, p. 19), não trata as questões contemporâneas concernentes ao gênero como uma simples aparelhagem dos semblantes sem relação com o gozo. Em nossa clínica, recebemos sujeitos que se dizem trans e que colocam em xeque a construção de uma identidade. Para a psicanálise, diferentemente do que propõem algumas teorias de gênero, não há um unarismo do gozo no acolhimento da diversidade sexual. Para ela, a sexualidade é diversa em relação às soluções únicas que o próprio sujeito encontra para lidar com o gozo.

Enquanto praticantes, sabemos que a diferença sexual não se inscreve no inconsciente, mas é na relação com o inconsciente que o sujeito situa sua vida sexual numa outra cena, não se limitando, assim, à questão da anatomia e das normas sociais. Em tempo, parece importante não cairmos na idealização da psicanálise como absoluta, que tudo pode enunciar — vale lembrar que tanto Freud quanto Lacan se valeram de outros saberes diante daquilo que a prática clínica de sua época lhes interrogava. Assim, não devemos nos eximir de nossa responsabilidade ética e política diante da alteridade nem dos fenômenos contemporâneos.

 


 

Referências
AMBRA, Pedro; SILVA JR., Nelson; LAUFER, Laurie. O ser sexual só se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Psicologia em Estudo, [s. l.], v. 24, p. 1-14, 2019. Acesso em: 1 mar. 2022.
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BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo:
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FAJNWAKS, Fabián. Lacan e as teorias queer: mal-entendidos e desconhecimentos. In: SANTIAGO, Ana Lydia et al. (org.). Mais além do gênero: corpo adolescente e seus sintomas. Belo Horizonte: Scriptum, 2017, p. 22-40.
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LEGUIL, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do pensamento queer. Salvador: Editora Devires, 2020.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de
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SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.