PSICOPATOLOGIA DO RACISMO COTIDIANO: DO CORPO POLÍTICO AO ACONTECIMENTO DE CORPO[1]
LUÍS COUTO
Psicanalista praticante. Psiquiatra.
Doutorando em Estudos Psicanalíticos-UFMG.
Preceptor da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares/FHEMIG.
luisfdcouto@gmail.com
Resumo: O artigo visa partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo.
Palavras-chave: Racismo; segregação; gozo.
Title: Psychopathology of everyday racism: from body politcs to body event
Abstract: This article starts from the effects of the historical politics of racial segregation in our country to arrive at psychoanalysis’s politics of the symptom, from which it will be possible to collect, for each subject, the singular effects of the nominations coming from the Other and its relation to jouissance.
Keywords: Racism; segregation; jouissance.
Neste semestre o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo do IPSM-MG tem se dedicado ao estudo do tema “O acontecimento de corpo político e a psicanálise hoje”. No entanto, tentarei propor uma disjunção do tema de nossa investigação que considerei pertinente: de um lado, o corpo político, e, de outro, o acontecimento de corpo.
Partiremos, então, dos sintomas da política para tentar avançar em direção à política do sintoma. Ou seja, partir dos efeitos da histórica política de segregação racial em nosso país para chegar à proposta da psicanálise de uma política do sintoma, a partir da qual será possível recolher, para cada sujeito, os efeitos singulares das nomeações vindas do campo do Outro e sua relação com o gozo. É nesse sentido que propus, no título deste trabalho, uma “psicopatologia do racismo cotidiano”, fazendo uma alusão ao texto de Freud, “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, na medida em que Freud extrai, das pequenas falhas do discurso (atos falhos, lembranças encobridoras, etc.), não os índices de uma patologia, mas uma lógica inconsciente que nos indica os efeitos singulares do encontro da linguagem com o animal humano. Por isso, as vinhetas clínicas que trago pretendem seguir nessa direção de tentar extrair uma lógica subjetiva do racismo cotidiano, aquele que se apresenta no que poderíamos considerar um laço social primordial, o seio da própria família, ou ainda um pouco mais íntimo/êxtimo, aquele encontrado na relação do sujeito com o próprio corpo.
Sintomas da política
A articulação entre a questão racial e o uso de drogas pode ser tomada sob várias perspectivas, mas destaco um ponto que me pareceu interessante: a ocasião de uma primeira virada na legislação relativa às drogas em nosso país. Durante o Império e início da República, o Estado pouco interferia no uso de drogas. Não havia leis específicas sobre o uso de substâncias psicoativas, exceto a embriaguez alcoólica, que era punida com a prisão. Com a Proclamação da República, a medicina e a psiquiatria são convocadas ao debate a respeito do problema das drogas, e o desvio psíquico é localizado no lado primitivo e incivilizado da sociedade brasileira, ou seja, aquilo que divergia do modo europeu. Para se ter uma ideia, uma das consequências do ideal civilizatório foi a proibição de práticas culturais da população afrodescendente, como samba, capoeira, candomblé e o uso da maconha. Foi proposta, então, a proibição da maconha diante de uma suposta preocupação com o seu consumo pela população negra e rural do Nordeste, cujos efeitos levariam à loucura e à criminalidade (TRAD, 2009). Logo após a abolição da escravidão, portanto, torna-se necessária a criação de outras leis que incidirão diretamente sobre os negros, mantendo-se um regime de exclusão.
Não pretendo estender a discussão histórica, mas, dando um salto temporal, vemos ainda, nos dias de hoje, os efeitos da segregação racial em manifestações que vão desde o racismo mais explícito àquele que se manifesta no cotidiano das relações sociais. Há, por outro lado, uma também histórica organização dos movimentos de resistência negros, que se articulam para fazer frente às políticas de segregação. Mais recentemente temos observado alguns movimentos sociais que trazem à pauta “o corpo” com a afirmação: “meu corpo é político”. Trata-se de trazer o corpo feminino, preto, trans à cena da polis, no sentido de produzir uma visibilidade do corpo excluído e tentar perturbar o social e seus modos de segregação.
As várias formas de segregação estão imiscuídas em nosso percurso histórico de maneira que não temos observado sua mitigação, mas, pelo contrário, assistimos a uma escalada do racismo, como Lacan previu após os eventos de maio de 68. Diante das proposições que surgem nesse contexto, de uma sociedade sem o poder dos pais e acompanhada de um culto ao corpo, Lacan afirma que o que aí se enraíza é o racismo. No texto “O racismo 2.0”, Éric Laurent retoma essa previsão lacaniana que se sustenta em uma lógica da rejeição ao gozo do Outro. É o que se observa no movimento do colonialismo e a vontade de normalizar o gozo daquele que é emigrado em nome de seu bem: não se trata de choque de civilizações, mas de choque dos gozos. “Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de apelo a um Deus unificador” (LAURENT, 2014 n/p.).
Ainda segundo Laurent, em “O avesso da biopolítica”, “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época (…)” (LAURENT, 2016, p. 213). É nesse sentido que trarei, em seguida, algumas vinhetas clínicas e o que foi possível recolher a partir de cada caso.
Política do sintoma
Esse primeiro caso foi publicado em uma edição da revista CliniCAPS, a propósito de uma discussão sobre a formação em saúde mental (BALTHA, 2015). Esse paciente tinha, à época, 33 anos, estava se tratando em um CAPS-AD devido ao uso abusivo de crack e era considerado pela equipe como sendo “de difícil manejo, indisciplinado, não obedece às regras da instituição”. Ele vê uma acadêmica de medicina jogando xadrez com um outro paciente e lhe demanda que o ensine a jogar. Durante as partidas de xadrez, passa a falar para a estudante a respeito da mãe que o negligenciava, deixava-o sozinho em casa sem comida, não lhe dava afeto. Percebia que o tratamento que recebia era diferente daquele dispensado aos irmãos. Ele, por exemplo, ao contrário dos outros, só fora registrado na adolescência.
Fala de uma cena em que conheceu o pai, aos 9 anos de idade. Estava na janela de sua casa e viu um carro se aproximar, conduzido por um homem. Sua mãe o recebeu e lhe disse: “seu filho está aqui”. Esse homem, ao vê-lo, respondeu: “esse menino é preto demais para ser meu filho”. Descobriu, assim, que esse era o seu pai, que, por muito tempo, ansiou por conhecer. Diz que essa cena o marcou muito e, depois disso, não mais tiveram contato.
Parou de frequentar a escola, cometia pequenos furtos para ajudar a pagar as contas em casa. Sentia-se desamparado, “sozinho no mundo”. Passou a usar drogas na adolescência e intensifica o uso após os 20 anos. Quando sob efeito das substâncias, envolve-se em brigas na rua e apresenta ideação persecutória, além de ouvir vozes. Diz que em diversas ocasiões pensou em tirar a própria vida e justifica que não conseguiu encontrar um lugar no mundo.
Com muita frequência fala do peso que a cor da pele tem para ele. Não consegue melhorar de vida ou ter empregos em razão de sua cor. As pessoas não gostam dele porque é negro e é a cor da pele que o impede de manter relações sociais. Durante a conversa com a acadêmica, pergunta-lhe: “você acha que sou muito preto?”.
Em determinado dia, diz, de maneira jocosa, que estava fazendo movimentos errados no xadrez porque estava jogando com as peças pretas; preferiria jogar com as brancas. A aluna, advertida dos elementos de uma primeira construção do caso, intervém dizendo que é importante aprender a jogar com as peças pretas.
Como pensar a segregação nesse caso? No texto “A toxicomania não é mais o que era”, Antônio Beneti propõe um discurso da segregação como sendo derivado do discurso do mestre amputado do lugar da verdade, onde estaria o sujeito do inconsciente. Seria, então, um discurso de três termos (BENETI, 2014):
S1 → S2
// a
Poderíamos investigar, no caso apresentado, se a segregação se daria por um S1 vindo do Outro, “preto demais”, que comandaria um S2, “não tenho lugar no mundo”. Assim, haveria uma identificação ao S1 tomado pelo sujeito do campo do Outro e uma espécie de “saber-fazer” que irá sustentar essa nomeação: “sim, sou preto demais para ter um lugar no desejo do Outro”. Há, no entanto, um problema na relação desse sujeito com o discurso e o laço social e poderíamos questionar se ele se insere no discurso e, se sim, como isso se daria. Uma hipótese que leve em conta uma entrada precária no discurso e o coloque numa posição de rejeitado pelo Outro resultaria, como consequência lógica, no sistema explicativo: “sou preto, logo, não devo existir” — efeito paradoxal desse discurso, porque tende à sua retirada. Dito de outro modo, parece tentar fabricar uma entrada à força no campo do Outro a partir das brigas, violações das regras institucionais, o que acaba por produzir sua rejeição a cada vez. É esse sistema que a acadêmica tenta discretamente perturbar ao propor que poderia jogar com o significante “preto”. Colocar-se, então, em jogo. Estamos, até aqui, no campo da linguagem e do discurso.
Como o sintoma não é produzido apenas em termos da linguagem, partimos para uma outra questão, que diz respeito ao sintoma como acontecimento de corpo. Freud desenvolve a tese de um sintoma metaforizado, que poderia ser interpretado ao nível da linguagem. No entanto, em sua teoria encontramos também as bases para a ideia de um sintoma que não se reduz a um sistema lógico decifrável tomando por base o significante. Ou seja, quando Freud se refere ao sintoma como uma satisfação substitutiva de uma pulsão, introduz aí uma outra vertente do sintoma, ligada ao gozo. É nesse sentido que Jacques-Alain Miller irá afirmar que “a definição do sintoma como acontecimento de corpo é necessária e inevitável, porquanto o sintoma constitui, como tal, um gozo” (MILLER, 2004, p.45).
É devido a uma espécie de imbricação entre linguagem e gozo que podemos afirmar que a linguagem desnaturaliza o organismo, ou seja, com a entrada no mundo da linguagem, o corpo terá um funcionamento estranho ao que seria um bom funcionamento do organismo com base nas leis da física, química ou biologia — as leis da natureza. Assim, nos seres falantes, ao contrário dos outros animais, o circuito pulsional passa pelo corpo, mas encontra seu representante na linguagem, o que produz efeitos. Entre eles, uma discordância entre o organismo e o corpo, de onde Lacan deduz sua tese de que não se é o corpo, mas se o tem.
Sendo habitado pela língua, o corpo é marcado pelas ficções de verdade. Essas ficções podem tornar-se mais ou menos fixas a partir de sua relação com o gozo. De acordo com Miller, o corpo “é a vergonha da criação porque são corpos doentes da verdade”. “Eles são doentes, porque a verdade os embaraça” (MILLER, 2004, p. 45). É assim que o corpo sai de um saber naturalista, instintual, para uma verdade que o parasita e o desnaturaliza, chegando ao ponto, como no caso, de a verdade “preto demais” modificar o que seria um bom funcionamento do corpo: erra as jogadas de xadrez, não é capaz de se inserir no laço social etc.
Podemos investigar, no caso apresentado, como a ficção “preto demais” se articula à série prazer-desprazer. Ou seja, podemos abordar o caso advertidos de que a verdade que o sujeito dispõe traz consigo, atrelado a ela, o gozo, como nos dá prova o tom jocoso que utiliza ao justificar seus erros no xadrez por estar jogando com as peças pretas: a verdade é irmã do gozo, como afirma Lacan (LACAN, 1969-70/1992). Uma outra hipótese, não discordante da anterior, é que sua verdade o mantém a certa distância do Outro, e, ao contrário de nos orientarmos por um imperativo de “ressocialização”, poderíamos tentar verificar a função dessa verdade e se teria um efeito de proteção contra a invasão de um Outro que ou abusa ou negligencia, de sorte que ele sempre resta como dejeto. Nesse sentido, penso ter sido interessante a intervenção da aluna, que não tenta provocar uma desidentificação com o significante “preto demais”, tampouco tenta levá-lo a um discurso de empoderamento, mas lhe lança uma questão a respeito da possibilidade de aprender a jogar com as peças pretas, o que coloca no horizonte um outro “saber-fazer” com isso.
Passo para um segundo caso, do qual trago apenas um recorte, mas que chamou atenção em relação a essa discussão. Trata-se de uma mulher de 41 anos que foi encaminhada do CAPS para internação no Instituto Raul Soares. Ela mora com um filho adolescente e havia tentado agredi-lo, dizendo ter tido pensamentos ou vozes mandando matá-lo. Logo que é internada, tais vozes somem e dão lugar a uma espécie de pensamento intrusivo: quando vê pacientes negras, vem-lhe à mente a ideia de chamá-las de “preta”, “macaca”, e teme não conseguir controlar isso e ser agredida. Não se trata de uma paciente toxicômana, mas sua relação com as drogas vem por outras vias. Fora criada pelos pais, mas todos os cuidados da casa eram dirigidos à mãe alcoolista. A mãe nunca lhe deu carinho, vivia bebendo. Quando tinha 16 anos, a mãe sofreu um acidente grave e parou de beber de uma vez, ocasião em que descreve que houve, pela primeira vez, paz em sua casa. Logo em seguida a esse “bom acidente” da mãe, a nossa paciente engravidou, mas nunca conseguiu cuidar dos três filhos que teve: “Não aprendi a ser mãe, não sei cuidar”. Frequentemente apresentava crises de depressão, era internada e, em poucos dias, o marido a retirava para que ele pudesse cuidar dela e dos filhos. Isso se deu em uma sequência de 14 internações no hospital de sua cidade, ao longo dos anos. No entanto, há poucos meses o marido faleceu e ela não sabe o que fazer. Sente-se culpada por ele ter tido cirrose e ela ter levado cachaça para ele sempre que pedia. Em um determinado dia, conta à residente que ela era modelo, tinha dentes, cabelos loiros, era magra e cantava na noite. Muito diferente da mãe, por quem diz ter um grande amor hoje, mas que é negra. “Eu tinha vergonha da minha mãe por ela ser negra”.
A partir de algumas intervenções da residente, faz uma frouxa associação entre os pensamentos intrusivos e a vergonha que tinha da mãe. Mas logo refuta a associação dizendo do amor que sente por ela. Propomos que ela tenha um espaço para falar disso com uma psicóloga de sua cidade, com o que prontamente concorda. Nesse caso há um fenômeno do pensamento disjunto de uma agressividade, que aparece no corpo, dirigida ao Outro. Os significantes “preta” e “macaca” aparecem, aí, separados de um afeto de ódio.
Um acontecimento produz traços, é isso o que Freud chamou “trauma”. Segundo Miller,
“o acontecimento fundador do traço de afetação é um acontecimento que mantém um desequilíbrio permanente, que mantém no corpo, na psiquê, um excesso de excitação que não deixa de se reabsorver. Temos, aqui, a definição geral do acontecimento traumático, aquele que deixará traços na vida subsequente do falante” (MILLER, 2004, p. 53).
Uma questão que trago é como poderíamos pensar o acontecimento traumático em cada um dos casos. No primeiro caso, a contingência do encontro com o pai e sua sentença teria sido o desencadeador para uma ruptura com o laço social? Haveria, nessa hipótese, o significante do racismo articulado ao ódio de si. No segundo caso, não observamos uma ruptura. A paciente não fica em um absoluto desamparo mesmo com os problemas da mãe com o alcoolismo. Tem um pai cuidadoso e uma irmã mais velha que “foi uma mãe”. No entanto, o significante do racismo dirigido à mãe aparece dissociado do afeto nesse momento de crise, sob a forma de um pensamento intrusivo. Ou seja, nesse caso, teríamos o significante do racismo articulado ao ódio dirigido ao Outro. Duas modalidades, portanto, da articulação significante do racismo/ódio de si ou ódio ao Outro. Uma outra questão que poderíamos discutir, a partir da consideração do sintoma em sua vertente de verdade e em sua vertente de gozo, seria como pensar a direção do tratamento em cada um dos casos.