SIMONE SOUTO
Pensei em abordar o acontecimento de corpo e a intrusão de pensamento nas psicoses a partir de uma referência que nos permita não só entendê-los e localizá-los com alguma precisão mas que também possa nos fornecer elementos para nos orientarmos, quanto a esses fenômenos, no que concerne à direção do tratamento. Portanto, situarei esses dois tipos de fenômenos encontrados na clínica das psicoses, a partir da distinção entre a foraclusão localizada e a foraclusão generalizada.
O fato de não existir na linguagem um significante que possibilitaria a inscrição da relação entre os sexos e reuniria as pulsões sexuais sob a égide de uma única e pretensa pulsão genital faz surgir um furo que afeta a vida de todo falasser, de forma generalizada. Desde que há linguagem, em parte alguma, sob signo algum, o sexo se inscreve através de uma relação. Trata-se, portanto, de uma condição universal colocada para todo aquele que é habitado pela linguagem, presente em todas as estruturas clínicas.
Essa impossibilidade de inscrever a relação sexual na linguagem e, consequentemente, fazê-la existir como uma relação que seria proporcional (ou mesmo completa) entre os sexos, é o que podemos designar, com Lacan, de uma foraclusão generalizada. Trata-se da presença de um furo, de um vazio, que afeta a vida de todo ser falante de forma generalizada e que torna evidente um real impossível de ser atingido pela palavra.
O neurótico responde a esse furo criando uma fantasia na qual ele tenta fazer a relação sexual existir, localizando no Outro o objeto de seu próprio gozo. Assim, na neurose, o sujeito consegue desprender um pedaço do gozo autoerótico, um objeto que é colocado no lugar do Outro e sustentado por uma significação que constitui a fantasia. Portanto, a fantasia possibilita uma localização do gozo no corpo, nas zonas erógenas, mas também fora do corpo: o sujeito pode se referir, por exemplo, ao olhar do pai, ou à voz da mãe, como sendo o objeto dessa fantasia, e fazer disso uma lenda, um romance.
No caso das psicoses, deparamo-nos com dois tipos de foraclusão, de furo, pois, além da foraclusão generalizada, relativa à não existência da relação sexual, com a qual o psicótico também tem que se haver, encontramos, nessa estrutura clínica, a foraclusão localizada relativa à ausência de um significante fundamental, o significante do Nome-do-Pai, que assegura todo um processo de simbolização da realidade que, na psicose, não funciona justamente por falta desse significante.
Podemos dizer que os fenômenos de intrusão de pensamento, como o delírio e as alucinações auditivas, assim como o automatismo mental, por exemplo, são uma resposta, um efeito da foraclusão localizada, pois dizem respeito ao retorno no real de um significante que foi foracluído do simbólico. É uma foraclusão que está localizada no significante do Nome-do-Pai. Assim, em determinadas situações bem precisas da vida, nas quais o psicótico precisaria fazer uso desse significante para abordar a realidade, para significá-la, como esse significante não existe no simbólico, ele retorna no real sob a forma, por exemplo, de vozes ou de pensamentos que não consegue controlar e que, de maneira geral, lhe adquirem uma função de comando ou de injúria. É, então, com relação a esse furo no simbólico que nós podemos situar os fenômenos de intrusão de pensamento. Tanto o delírio quanto o automatismo mental podem ser tomados como uma interpretação, ou seja, uma tentativa de localizar o gozo na via do sentido.
Mas a ausência da metáfora paterna terá, também, outra consequência: a não extração do objeto a como um condensador do gozo. Isso quer dizer que não encontramos, na psicose, o gozo condensado, localizado em um objeto (seio, fezes, olhar, voz), como acontece na neurose por meio da fantasia. Por isso, de acordo com Eric Laurent[1], também encontramos, nas psicoses, fenômenos que se referem a uma versão da foraclusão diferente da foraclusão localizada do significante Nome-do-Pai. Segundo Laurent, o que vemos na mania, por exemplo, não é um retorno localizado de um significante no real, mas o retorno do gozo sobre o corpo, uma espécie de suplemento de vida, “um mais de vida”, “um mais de gozo” que, por não estar circunscrito ao objeto a, como acontece na fantasia do neurótico, invade o organismo e pode destruir, inclusive, todo o equilíbrio biológico. Vários fenômenos que, na psicose, atingem o corpo de maneiras diversas, como os excessos com a alimentação, o uso abusivo de drogas e álcool, a negligência com o próprio corpo, dores e agressividade, podem ser tomados na sua intensidade como essa agitação do real que advém do retorno do gozo não localizado sobre o corpo. No que diz respeito a essa invasão de gozo, encontramos, no Seminário 20, o exemplo, descrito por Lacan, do rato que aperta uma alavanca e aciona uma engrenagem que lhe causa prazer: ele vai apertando, apertando, até morrer de gozo. Na mania, por exemplo, a relação com o gozo é dessa mesma ordem. Nesse sentido, se seguimos Laurent, podemos dizer que os transtornos de humor, assim como toda a série de acontecimentos de corpo que observamos nas psicoses, são uma resposta à foraclusão generalizada. Primeiro, porque são uma resposta à inexistência de uma inscrição simbólica da relação sexual e, consequentemente, de um gozo impossível de simbolizar, que, como já dissemos antes, se impõe, de maneira geral, para todo ser falante. Segundo, porque não é como na alucinação, na qual temos a foraclusão de um significante e seu retorno no real, com o posterior trabalho do delírio, para construir um sentido. Trata-se, como indica Lacan em Televisão, de uma perturbação geral da linguagem, que se manifesta, por exemplo, na melancolia, como mutismo e depressão, e, na excitação maníaca (e de alguns fenômenos de corpo que aparecem nas psicoses), como um excesso pulsional, um retorno da vida sobre o corpo, um retorno que se faz mortal.
Na clínica da psicose, os fenômenos de intrusão de pensamento relativos à foraclusão localizada do Nome-do-Pai e os fenômenos de acontecimento de corpo relativos a uma não localização do gozo no objeto a, ou seja, relativos à foraclusão generalizada, podem aparecer isoladamente, como em alguns casos de mania e melancolia que se apresentam na forma de uma psicose ordinária, nas quais observamos, muitas vezes, apenas os acontecimentos de corpo. Mas observamos, também, casos bastante frequentes em que precisamos levar em conta essas duas versões da foraclusão e não nos limitarmos em considerar apenas uma delas. Dessa forma, no que concerne às psicoses, a foraclusão localizada do significante Nome-do-Pai nos ajuda a fazer o diagnóstico estrutural a partir da ausência desse significante no simbólico, permitindo-nos acompanhar melhor a lógica dos fenômenos de intrusão do pensamento. Por sua vez, a foraclusão generalizada nos possibilita situar melhor o que aparece nos distúrbios de humor, em vários tipos de acontecimentos de corpo e mesmo em algumas compulsões, como uma perturbação geral da linguagem e uma ausência da localização do gozo.
[1] Ver conferências e comentários de Éric Laurent em Curinga, revista da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG), nº. 14.