HELENICE DE CASTRO
CAO GUIMARÃES
Em 2011, a imprensa francesa divulgará, com algum frenesi, o caso amoroso mantido por um diretor de uma penitenciária feminina com uma das detentas daquela instituição. Após ser preso e condenado, Florent Gonçalves escreve um livro autobiográfico, Defènse d´aimer. O filme Éperdument, do diretor Pierre Godeau, é baseado nesse romance e girará em torno de dois personagens principais: Jean Firmino, o diretor da prisão, e Anna Amari, a jovem detenta.
Esse longa-metragem, que no Brasil ganhou o nome de Insensata paixão, conta então a história de um amor louco que causa estragos por desconhecer os limites. Portanto, assim que terminei de assistir ao filme, a questão que me veio foi a da devastação. Sabemos que Lacan utiliza esse termo, ‘devastação’, para se referir à relação mãe-filha, e que, em francês, o termo correspondente é ravage.
Numa breve pesquisa etimológica, ficamos sabendo que ravage deriva de ravir, que quer dizer raptar, arrebatar e encantar, que, por usa vez, é derivado do latim popular rapire, que significa segurar violentamente. E que, no latim clássico, possui o significado de ser transportado ao céu. Como nos diz Jacques Alain-Miller, ao nos apresentar esses dados etimológicos da palavra ravage, “ser transportado ao céu, tendo no horizonte do arrebatamento o êxtase” (MILLER, 2008, p. 298).
Não parece bem isso o que vemos acontecer com Jean em sua relação com Anna? Desde que esse homem encontra aquela mulher, ele é, ali, arrebatado. A cena do desfile de moda organizado na cadeia pelas detentas demonstra bem esse momento de arrebatamento, pois, ali, o diretor do filme se valerá inclusive do recurso da câmera lenta para mostrar como o olhar de Jean é capturado pela presença de Anna na passarela. Dali em diante, acompanharemos, de forma acelerada, o bem-sucedido diretor de uma penitenciária feminina, que tinha, até então, uma vida organizada e bem estabelecida e, no início do enredo, é apresentado como um homem feliz no casamento e um pai cuidadoso, deixar tudo para trás para viver esse amor proibido, passando do céu ao inferno na velocidade de um meteoro.
Porém, se estou aqui me valendo da questão da devastação para ler algo do que se passa com o personagem principal, uma pergunta inicial se coloca, pois, como me referi anteriormente, Lacan vai se valer da questão da devastação para pensar o lugar da filha na relação com a mãe e também para o que dessa relação se fixa e acaba por se reproduzir na ligação de uma mulher com um homem e não o seu contrário.
No Seminário 23, Lacan dirá que, se uma mulher é, para um homem, um sintoma, em contrapartida, um homem é, para uma mulher, uma devastação (LACAN, 2005, p. 98). Como equacionar esse impasse, já que o filme, como proponho pensar aqui, coloca um homem nessa posição de devastado? Como seria possível fazer essa virada?
Parece-me então necessário introduzir, nessa nossa discussão, outros elementos que possibilitem uma leitura mais ampla da questão da devastação, permitindo, assim, também pensá-la do lado do homem. Esse outro ponto que introduzo aqui diz respeito ao fato de vivermos hoje num mundo já não mais comandado por um regime patriarcal e, portanto, num mundo onde, diante do declínio do Nome-do-pai, a partilha do sexo não se faz mais de forma tão nítida. Anteriormente, a diferenciação entre homens e mulheres estava mais vinculada à anatomia, porém, essa distinção pelo real do corpo desaparece em favor do gênero, o que torna homens e mulheres apenas significantes. Temos, assim, na atualidade, uma grande fluidez entre o lado masculino e o feminino ou mesmo a abertura para uma multiplicidade de significantes nada convencionais para nomear algo relativo à posição sexual.
Por essa via, poderíamos interrogar se Jean, ao encontrar Anna, não acaba caindo numa posição feminina, mesmo tendo anteriormente sustentado na vida uma posição fálica? Localizaria essa posição fálica de Jean, por exemplo, em sua ascensão profissional, ao se destacar como diretor de uma casa de detenção ou, ainda, na maneira como ele conduzia a instituição, conseguindo mantê-la dentro da ordem e da disciplina, mesmo quando desafiado pelas presidiárias mais insubordinadas?
Apresento aqui então uma oposição entre a posição fálica e o feminino, oposição que nos aproxima do tema do XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que acontecerá no Rio de Janeiro, em novembro deste ano de 2018.
O argumento do XXII Encontro Brasileiro, de Marcus André Vieira, apresenta a questão da queda do falocentrismo, que pareceu-me cair como uma luva na leitura do filme com o qual nos ocupamos hoje.
O texto se inicia com a pergunta “Quem mandou? Quem mandou ir atrás, trair, amar demais, dormir de menos? Quem?”. Para responder com “algo em mim, mais forte que eu”, que Marcus André conectará com o gozo. O gozo, que, segundo o autor, “é esse querer que não costuma seguir o bom senso, que insiste e leva a um sem limite e a um estado sem descanso” (VIEIRA, 2018).
Esse “Quem mandou? Quem mandou trair, amar demais, beber demais?” vem carregado de um tom de repreensão, fazendo supor que haveria alguém numa instância superior que determinasse ou mesmo orientasse melhor os atos de um sujeito, dando a esses atos uma justa medida.
Essa crença nesse Outro, que vem no lugar de bússola, é exatamente a função que o pai ocupava em uma sociedade patriarcal. Esse pai sustentado na tradição que tinha o poder de convencer que as coisas sempre funcionaram de uma determinada maneira e assim deveria continuar sendo.
A lei paterna, ancorada na tradição, enunciava o que se podia ou não fazer, instalando ideais e censuras que definiam diretrizes para as vidas humanas, como também organizando os usos dos corpos e repartindo esse uso de forma nítida e em dois modos: “de um lado o masculino, tido como localizado e vigoroso e de outro, o feminino, dito abrangente e sensível” (VIEIRA, 2018).
O falo entraria, nesse roteiro patriarcal, como o signo de uma possível complementaridade entre esses dois lados, ou seja, esse complemento que falta à mulher e que pode ser encontrado no homem.
Mas o que vemos ocorrer é que esse Outro paterno que se constituía como estrada principal se vê agora vertido em uma infinidade de trilhas, fazendo explodir a multiplicidade das formas de laço social e de modos de gozo. Não mais governado pelos ideais universais do pai, o mestre contemporâneo propõe, em seu estilo capitalista, que cada um encontre seus objetos de consumo que possam recobrir o que do gozo surge sempre furado.
O falo, assim, já não se sustenta como esse ícone que orienta a partilha dos sexos, e, com sua queda, que acompanha o declínio da tradição paterna, o que vemos ocorrer é o que Miller propôs chamar de uma feminização do mundo.
Então, mais além da anatomia, vamos entender um pouco melhor o que estou chamando aqui de masculino e de feminino. Pois, no filme, chama a atenção como a vida de Jean era rodeada de mulheres – esposa, filha, secretária, agente penitenciária e as várias detentas – e como, no decorrer da trama, o sujeito não sustenta esse lugar de exceção e de autoridade diante desse universo feminino.
Lacan, no Seminário 20, articulará o gozo do lado masculino com o gozo fálico, chamando-o de “gozo do idiota” (LACAN, 1982, p. 109). Idiota pelo fato de que o homem goza sozinho, já que ele goza de seu órgão e é esse órgão fálico que acaba obstaculizando a relação com o Outro. O gozo fálico enquanto Um, enquanto pulsão que consiste “em se fazer Um”, é separado do Outro e se constitui, assim, como autoerótico. Esse termo idiotia, nos diz Pierre Naveau, denuncia o fato de que o sujeito masculino se satisfaz em ser complementado pelo gozo de uma parte do próprio corpo (NAVEAU, 2017, p. 142-143). Segundo Naveau, temos, nessa posição masculina, o “valor de uso” do falo, em que se constata uma recusa do homem em transferir o gozo do corpo próprio ao corpo do Outro (NAVEAU apud MILLER, 2017, p. 123). Desse lado, por meio do falo, há uma localização do gozo e uma tentativa de se fazer um conjunto todo fechado, ou seja, um todo fálico.
Quando sugiro pensarmos Jean imerso no gozo feminino, sugiro pensá-lo entregue a um gozo oposto ao gozo do Um fálico, e, portanto, mergulhado num gozo sem borda. A devastação apareceria aqui como efeito rebote desse mergulho, mergulho que visa acessar um gozo absoluto e ilimitado. Desse lado, estamos diante da tentativa de fazer existir um todo fora do falo.
Antes de concluir esse meu breve comentário e passarmos à conversa, gostaria de retomar a citação do Seminário 23, em que Lacan dirá que um homem é, para uma mulher, uma devastação. Para Pierre Naveau, com esse enunciado, Lacan identifica o homem como aquele que profere “a fala que fere”. Daí o fato de a mulher, enquanto devastada, vir a ocupar o lugar de “uma mulher ferida”. (LACAN, 1992, p. 69).
Então, se a devastação se equivale aqui à ferida causada pela palavra que fura o corpo, não poderíamos pensar na devastação como algo estrutural, mais além de algo próprio da mulher? Se, como nos diz Lacan, o corpo do falasser foi feito para ser marcado pelo significante, essa ferida causada pelo traumatismo que a língua imprime no corpo, e gera daí um gozo que escapa a localização fálica, não vale para todos? Ou mesmo todos os seres falantes não terão de se haver com o gozo suplementar, que Lacan chamou de feminino?
Em Éperdument, Jean parece querer tratar essa ferida do gozo que irrompe da incidência da palavra sobre o corpo, não querendo se deparar com o furo que esse gozo comporta. Jean tenta abolir o furo tamponando-o com um amor louco.
Interessante notar que, se alguém tenta introduzir a dimensão do não-todo nesse amor, esse alguém é Anna. Ela segue o conselho de uma detenta mais velha e aparece diante de Jean com outro rapaz, tentando, assim, colocar um ponto de basta ao desmedido daquele encontro. Ela também não leva a gravidez, fruto da relação com Jean, adiante. E, na cena em que, pela primeira vez, o casal de amantes se encontra fora da prisão, depois do sexo, Anna se vê incomodada, pede a Jean que se cubra, fazendo alusão à necessidade do véu do pudor diante desse homem imerso no empuxo ao infinito.
Poderíamos indagar se a verdadeira prisão, nesse caso, não está em passar a vida, por um lado, tentando circunscrever o gozo a um regime todo fálico, como o gozo do idiota, ou por outro lado, acreditando que pela via do todo fora do falo se alcançará o gozo absoluto?
Entre esses dois polos, a psicanálise propõe que cada sujeito possa se responsabilizar pela ferida que o significante instala em seu corpo e pelo gozo daí advindo. Tal responsabilização permite que a ferida se transmute de dor e impasse à causa do desejo, fazendo do furo a condição de acesso ao gozo.