LAURA RUBIÃO
CAO GUIMARAES
No intuito de dissolver possíveis mal-entendidos na apreensão de seu ensino, Freud adverte:”usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben (‘amar’).” (Freud, 1910/1996, p. 234).
O domínio do sexual se expande ao campo do amor e a psicanálise não poderia se reduzir a nenhuma sexologia ou ciência do comportamento sexual estrito senso. O campo do amor se expande, por sua vez, englobando os conceitos de libido, afeto, pulsão – libertando-se, também, de uma visão romântica ou idealizada. O amor de transferência, que desde sempre esteve na base da experiência analítica, não é da ordem nem do comportamento (como pretendeu Breuer, em seu rechaço moral), nem da ordem de uma construção fantasiosa que encerra simplesmente a mentira, o engodo ou o erro. É um amor genuíno, nos diz Freud, na medida em que engloba os mais autênticos impulsos afetivos do sujeito.
Freud reitera o caráter polissêmico do amor no texto “As pulsões e seus destinos”: “assim, a palavra ‘amar’ desloca-se cada vez mais para a esfera da pura relação desprazer do Eu com o objeto e se fixa, finalmente nos objetos sexuais no sentido mais restrito e naqueles que satisfazem as necessidades das pulsões sexuais sublimadas” (Freud, 1915/2013, p. 57).
Amplia-se o leque que vai da satisfação sexual pura e simples – uma relação singular entre o eu e seus objetos de prazer e a versão sublimada do amor, no sentido de Eros, elo de união entre os homens, num plano mais universal.
A temática do amor em Freud se desdobra numa espécie de montagem que envolve a satisfação pulsional – que primariamente é autoerótica, limitada a pequenas ‘ilhas de gozo’ ou zonas erógenas -, o Eu como superfície corporal e os objetos.
O amor narcísico
No texto sobre o narcisismo, Freud demarca os fundamentos do amor próprio ou do amor de si, inseparável da constituição da imagem de si como um corpo, a partir do olhar do Outro. Ele deixa claro que esse laço primitivo que se produz na captura da imagem de si, engloba um nó que concerne também às pulsões mais primitivas e que, apenas posteriormente, leva-se em conta o mundo externo e seus objetos:
“(…) uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto necessário que algo seja acrescentado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo” (Freud, 1914/1974, p.93).
No início está o corpo fragmentado com suas pequenas ilhas de fruição autoerótica: as chamadas zonas erógenas. Freud nos apresenta um processo complexo de idas e vindas nos circuitos de investimento libidinal que se instauram a partir do encontro do sujeito com sua própria imagem projetada de fora. Desse encontro emerge, paradoxalmente, o domínio do exterior, que é também o domínio do não-eu, do que é estranho, impróprio à estabilidade de uma suposta unidade inata. Este que é visto fora sou eu. Lacan não tratou da unidade imaginária, senão como uma “emancipação jubilatória” a contrastar com essa fragmentação corporal inerradicável. Se o pequeno sujeito se rejubila com a própria imagem isso não acontece, a não ser sob o pano de fundo de uma separação ou perda. Para Lacan, algo fica sempre fora do reflexo do espelho, o que ele chamou de objeto a.
Esse espaço fora que, no entanto, me constitui, Freud o relaciona com a perspectiva da perda de libido, com a inscrição de um menos de satisfação presente nas relações amorosas, nas formações ideais que imprimem sempre um intervalo ou defasagem entre o que somos e o que gostaríamos de ser (ou ter sido), entre o que cumprem nossos filhos (herdeiros dessa marca narcísica) e o que gostaríamos que eles fossem de acordo com nossa medida ideal. Esse movimento de perda e doação instaura a falta e o desejo para além de toda demanda que vise à restauração de uma unidade imaginária perdida. Se o amor é dar o que não se tem, é porque ele se nutre de um objeto perdido.
O Um que goza sozinho e a suplência amorosa
Conhecemos a célebre definição freudiana da pulsão como conceito fronteiriço “entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal” (Freud, 1915/2013, p.25). Tudo que diz respeito ao corpo e sua exigência de satisfação para o sujeito mostra-se inseparável da linguagem que preside, para Lacan, o campo do anímico. Lidamos sempre em nossa clínica com a perspectiva do corpo falante, aquele que fala a língua singular dos afetos que subjaz a toda relação amorosa. O amor porta, portanto, a marca da contingência e do que é inexplicável pelo senso comum.
A pulsão é uma força constante rumo à satisfação, por meio do uso inaudito do objeto, sempre variável e inconveniente do ponto de vista biológico. A boca serve para comer, beijar e falar. Lacan, no Seminário 11, afirma que a pulsão é uma montagem sem pé nem cabeça, do tipo surrealista e também acéfala. (Lacan, 1964/1985, p.154) Os modos de gozo são múltiplos, cambiantes e não abandonam os preceitos da pulsão parcial, mesmo quando subsumidos à esfera da sublimação amorosa.
Freud retoma a gênese da formação do Eu em sua relação com o Outro (objetos), uma relação mediada precocemente por uma economia libidinal que em princípio, leva em consideração apenas a “marca distintiva do prazer”: Eu prazer purificado. Todas as experiências de prazer são introjetadas ao Eu e o que é experimentado como desprazer é vivido no campo da exterioridade, como estranho ao Eu. Quando o mundo externo passa a ser levado em conta, ele presentifica nos objetos essa exterioridade nociva. O que se destaca é o objeto mau, odiado. Se o objeto é fonte de prazer, novamente será internalizado ao Eu. (Freud, 1915/2013, p.55) “O amor advém da capacidade do eu de satisfazer de modo autoerótico uma parte de suas moções pulsionais pela obtenção do prazer do órgão.” (Freud, 1915/2013, p.59). O ódio concerne tudo que veio perturbar essa relação originária do eu com o prazer e que é objeto de repúdio por parte do eu. Há casos em que o amor e o ódio se mesclam e se fundem no endereçamento ao mesmo objeto. No sadismo verificamos uma mescla desse tipo – para ser amado o objeto tem que comportar um caráter odioso, ser fonte de endereçamento da pulsão destrutiva.
Lacan é enfático ao mostrar que, para a Psicanálise, ao contrário da perspectiva cristã, não existe amor sem ódio (amódio) (Lacan, 1972-73/1985, p.122) e isso não é apenas da ordem da ambivalência como sugere Freud. O ódio está no cerne da experiência do amor, sendo esse amálgama o que atesta, segundo formulou mais recentemente Laurent, “ a consequência da separação do gozo dos outros uns” (Laurent, 2018, p.8) Tudo o que se impõe, atestando a inexistência da relação sexual e a presença do objeto a em sua vertente de mais de gozar, ata e desata ao mesmo tempo o nó do laço amoroso. No cerne da experiência amorosa há o muro da não relação sexual que, quando tratado em análise sob transferência, pode ser enunciado como o sinthoma que faz a parceria no âmbito da suplência.
Miller observa que Freud nunca teria sido tão lacaniano quanto em suas contribuições sobre a psicologia do amor, pois, ao longo desse trabalho, tratou de articular o amor e o gozo. (2010, p.7) Para que falemos de amor é preciso incluir a imagem de um Outro que possa servir como uma espécie de revestimento ao mais de gozar (Miller,2010, p.7), mas às vezes o que se visa é um fetiche, um traço contingente de prazer e dor, um elemento insaciável e devastador que insiste como eterna expressão do amuro.
A questão é como o gozo parcial, autoerótico, pode vestir-se de Outro (Miller, 2010, p.15). Se, do lado do amor, Freud isola um mecanismo de substituição (os objetos eleitos sempre são substitutos dos objetos infantis), do lado do gozo há algo de insubstituível (Miller,2010, p.9), algo que só quer se satisfazer solitária e parcialmente. Como saber se, quando estamos na dimensão do amor, não recaímos na vertente da compulsão?
Esses textos de Freud falam dos impasses, dificuldades e entraves da escolha amorosa. Só há o universo da escolha num mundo orientado pela linguagem e pelas regras sociais da escolha, orientado pelas estruturas elementares de parentesco. Há sempre ao menos um parceiro que está proscrito, vetado à escolha. A esse veto originário, segue-se uma metáfora fundadora: P/M à A/J (barrado) (Miller, 2010, p.11-13). Sobre um gozo perdido, barrado, se instala a metonímia do desejo revelada no amor. D/J, eis a escrita proposta por Miller para a máxima lacaniana: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. A questão é que no nível do gozo (J) não existe o Outro, apenas o Um, uma compulsão à satisfação, que se vale da variação e do ineditismo do objeto. “A metáfora paterna como relação entre pai e mãe nunca permite cifrar a relação sexual”(Miller, 2010, p.21), Se o objeto escolhido é sempre o que é interdito ao sujeito, isso não se resolve com o Édipo: saber que a mulher infiel é o protótipo da mãe, que o menino desejou primariamente e que fez dos outros homens seus rivais como o pai etc. Isso não resolve o problema do gozo, do mais de gozo, do objeto parcial. Essa historinha plena de sentido não resolve o problema: o essencial é que, no sentido lógico, “para poder reconhecer uma mulher como desejável é preciso introduzir aí um efeito de não-todo” (Miller, 2010, p.22).
Freud, ao final do texto “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, localiza no âmbito mesmo da pulsão um ponto de basta: “Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza do próprio instinto sexual é desfavorável à realização da satisfação completa” (Freud,1912/1996, p.171). Isso nos leva ao âmago do problema: a questão de que o gozo é interdito ao ser falante como tal. O encontro traumático da língua sobre o corpo já atua como um corte originário que opera sem o agente paterno da interdição.
Na clínica de nossos dias, constatamos cada vez mais o fracasso da metáfora do amor que se daria pela vertente do amor ao pai. O laço amoroso está interceptado pelo gozo do Um sozinho que pode assumir o formato de experiências de devastação muitas vezes degradantes e violentas, de encontros marcados pela suspensão da palavra ou pela convocação de uma palavra vazia que se prolifera no eterno monólogo das redes sociais e aplicativos de celular ou, ainda, de parcerias marcadas por atuações sucessivas, nas quais o gozo reluta em condescender com o desejo.
O fenômeno da ‘relação aberta’- decorrente do estremecimento das referências tradicionais na esfera do amor – que, supostamente, daria acesso ao gozo absoluto da liberdade sexual lança os jovens, ao contrário, num universo de constrangedora desorientação. As parcerias não se sustentam mais no voto de permanência ancorado na fidelidade monogâmica, cuja contrapartida costumava ser a traição velada e certo direito legítimo ao ciúme. A angústia incide justamente nesse ponto deixado em aberto: como encontrar um parâmetro mínimo de regulação das novas parcerias amorosas, sem o ponto de basta referido à lei? É o que escuto de uma adolescente que se confessa totalmente perdida ao se ver confrontada com a reação agressiva do namorado ao constatar que ela, seguindo à risca o contrato aberto, decide envolver-se com um amigo dele. Ele argumenta: a relação é aberta, mas não vale uma traição com amigos. Se o universal da lei paterna não opera enquanto tal, será preciso lidar com seu efeito de pluralização e, a cada vez, encontrar um limite contingente ao gozo. Sobretudo, cada analisante poderá extrair da experiência analítica a dimensão íntima do ‘aberto’ que insiste em descompletar o laço com o Outro e suscita o trabalho de invenção nas coisas do amor.