MARGARET PIRES DO COUTO
CAO GUIMARÃES
Definições e indefinições
A noção de bullying tem ganhado cada vez mais destaque no discurso educacional e na mídia como referência para interpretar diversos acontecimentos, sendo empregada de forma cada vez mais abrangente e imprecisa. Classificado como intimidação sistemática, quando há violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação, no bullying incluem ataques físicos, insultos, ameaças, comentários, apelidos pejorativos, entre outros. Compreende, portanto, todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro, deixando a vítima sem defesa. Representa uma forma de violência reiterada entre crianças e jovens em ambiente escolar, uma forma de violência entre pares, entre semelhantes, que vem crescendo assustadoramente nos últimos anos.
Ao longo das três últimas décadas, ao mesmo tempo em que se observa o crescimento dos estudos e pesquisas em torno da questão, assiste-se também à ocorrência de uma série de situações trágicas no ambiente escolar, que são rapidamente assimiladas à prática do bullying.
O significante bullying faz série com outros já ofertados pelo discurso da ciência em sua interface com a Educação, como DCM, distúrbios de comportamento, déficit de atenção e TDAH, que serviram para marcar o corpo das crianças e silenciar sua subjetividade, apagando essa dimensão dos fenômenos que buscam explicar. Trata-se de um termo muito amplo e vago que, ao servir para nomear situações muito diferentes no espaço escolar, mantém os atores envolvidos (agressor e agredido) no anonimato.
Qual real fica encoberto com esse novo significante? O que tem a psicanálise a dizer sobre essa nova forma de nomear o mal-estar entre crianças e jovens no espaço escolar?
Bullying: a violência do escolar[1]
A violência não tem um estatuto de conceito na psicanálise, apesar de Freud ter produzido elaborações importantes sobre ela em alguns de seus textos, principalmente em O mal-estar na civilização (1929), abordando-a via os conceitos de pulsão de morte e tendência à destruição.
Freud situa a violência no coração da civilização, fazendo de um crime o próprio princípio da cultura. A pulsão de morte foi a forma encontrada por Freud para dizer que o sujeito se edifica sobre um fundo que supõe destruição, uma vez que não visa o seu próprio bem. Lacan, por sua vez, demonstra que o encontro com a linguagem não é sem consequências para o homem. É sempre traumático, violento, porque o próprio significante é gozo, como fica evidente no caso do insulto.
A violência se relaciona, assim, com um excesso pulsional que produz ruptura dos laços sociais, ruptura do tecido simbólico e com o Outro. Por isso, o ato de agredir pode surgir diante do impossível de dizer. O ponto de partida psicanalítico de que há, nos atos violentos, a existência de um gozo, uma satisfação pulsional, rompe com qualquer tentativa de vitimização e polarização presente na noção de bullying.
No texto “Crianças violentas”, Miller (2017) parte da ideia de que a violência na criança não é um sintoma, porque não responde à operação do recalque. Propõe a distinção da violência como resultado de um erro no processo de recalcamento ou de uma falha no estabelecimento da defesa. A violência poderá se apresentar, assim, como pura irrupção da pulsão de morte, um puro gozo no real, ou poderá ser simbolizada ou simbolizável se constituindo, por exemplo, como demanda de amor. Além disso, podemos pensar a violência a partir dos três registros: real (como pura irrupção da pulsão de morte); simbólico (como violência simbólica inerente ao significante que se mantém na imposição de um significante-mestre) e imaginário (como agressividade).
Utilizando o texto de Miller como uma bússola, Lacadée (s/d), ao se indagar se seria a violência no jovem um sintoma ou não, retoma a discussão sobre a agressividade e a diferenciação entre intenção agressiva e tendência à agressão, presente no texto lacaniano “Agressividade em psicanálise” (1948). Para Lacan, a intenção agressiva é decifrável, pode ser lida como sintoma e, portanto, tem a possiblidade de ser interpretada. Seu mecanismo evidencia uma negação, indicando, assim, a incidência do recalque. Nesse caso, não é a foraclusão que está em jogo. Ao contrário, na tendência à agressão, encontra-se algo objetivado, algo que se apresenta de maneira bruta, sem qualquer dialética de sentido, e algo sobre o que a interpretação permanece sem efeito. De acordo com Lacadée, a tendência à agressão esclarece não só a clínica da psicose, mas também os acessos de violência dos jovens.
Se a violência não é um conceito, a agressividade é um conceito tanto para Lacan quanto para Freud. Para ambos, ela é constitutiva da subjetividade humana e fundamental no processo de constituição do próprio eu.
Éric Guillot (2014), recorrendo também a “Agressividade em psicanálise”, diferencia aquelas ações agressivas, que testemunham uma passagem ao ato destruidora, colocando em jogo a pulsão de morte, daquelas que estariam no registro da intenção agressiva e ficam presas na comunicação.
Para o autor, Lacan esclarece que a agressividade é um fenômeno que se desenvolve estritamente no registro imaginário. Por outro lado, a pulsão de morte deve ser pensada em seu laço com o gozo, ou seja, no registro do real.
Para Lacan, não se pode dar conta da agressividade sem uma teoria da identificação. A agressividade está ligada à estrutura narcísica do eu, que, para se constituir, deverá aceder a uma representação unitária de si mesmo ao se identificar a uma imagem. A construção dessa imagem, como bem nos esclarece Lacan pelo estágio do espelho, passará necessariamente pelo campo do Outro. Resultará disso uma ambivalência estrutural, uma tensão conflitiva interna ao sujeito, ou seja, a relação do sujeito a seu semelhante vai se desdobrar em um duplo registro, do erotismo e da agressividade. Existe um componente agressivo erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe também um componente agressivo porque, se “eu é o outro”, então esse outro pode tomar meu lugar. A relação com o outro se desdobra então em termos de “ou você ou eu”. Nesse sentido, ao tentar atingir o outro, é a si mesmo que o eu se atinge/bate. É um terceiro elemento, simbólico, que pode operar uma mediação entre o eu e seu semelhante, estabelecendo um limite, uma distância, uma alteridade nessas relações conflituosas e destrutivas que se instauram no eixo imaginário.
Além disso, o estágio do espelho esclarece como o ser falante, inicialmente, não experimenta seu corpo como uma unidade. Isso só será possível por meio da fabricação de uma imagem que constitui o eu, operação que enoda o I e o R. O espelho é, portanto, um aparelho para o gozo que vela o real do despedaçamento do corpo. Entretanto, para que esse enodamento ocorra e estabilize essa imagem, será necessário que haja uma ordem simbólica em funcionamento. É preciso que o Outro, o olhar do Outro, confirme ao sujeito que essa imagem que ele vê lhe corresponde. A agressividade pode ser efeito de um modo de perturbação no enlace desses três registros, dessa ausência de enquadramento do gozo operado pela imagem (DAFUNCHIO, 2013).
Assim, trabalhamos com a hipótese que nos é oferecida por alguns casos em que o aumento das ações agressivas e violentas no espaço escolar responde a perturbações no campo imaginário, fruto dos impasses na constituição da imagem, do eu e da deslocalização do gozo.
O mundo contemporâneo é marcado por um imperativo de gozo, condensado na fórmula a > I, proposta por Miller (1996). Esse imperativo promove o enfraquecimento dos laços simbólicos, a prevalência das imagens e os funcionamentos imaginários favorecidos pela tecnologia. Os novos modos de subjetividade se relacionam com o declínio do pai, com o declínio social dos semblantes e dos ideais paternos, afetando diretamente a ação educativa. A educação encontra seu obstáculo ao se deparar com sujeitos que não podem renunciar tão facilmente ao gozo do corpo. Ao contrário, o mandato de nossa época é que se pode gozar ilimitadamente (GOLDENBERG, 2011).
Nessa perspectiva, Ubieto (2011) apresenta três causas para o aumento considerável dos casos de bullying na atualidade. O primeiro corresponde à transformação no conceito de autoridade. A violência se situa como resposta ao declínio da imagem social do mestre, que dá lugar a uma lógica de rede e vitimização horizontal. O segundo corresponde à transformação da função do olhar como fonte de gozo, multiplicado pelos objetos tecnológicos ofertados pelo mercado. Finalmente, encontramos as crises de identidades sexuais.
Outra hipótese para o aumento do número de casos de bullying diz respeito, por um lado, ao fracasso da ação do supereu como civilizador (supereu freudiano), que pode fazer com que a pulsão agressiva ceda e não destrua tudo por medo da perda do amor do Outro. É o amor que inibe a agressividade, o que leva a renunciar ao gozo. Assim, na ausência do amor não há renuncia ao gozo, e a agressividade pode deslocar-se livremente ao exterior, sem culpa (GARMENDIA, 2011). Por outro lado, diante de uma sociedade marcada pelo empuxo ao gozo, encontramos sujeitos muito mais submetidos à injunção superegoica do “goze!”. Os corpos são reiteradamente colocados na cena para serem tiranizados e castigados. Assim, torna-se impossível defender-se não do outro semelhante, mas do Outro superegoico. Seria o supereu o grande agente do bullying no mundo contemporâneo?
De acordo com Ubieto, o bullying coloca sempre em cena o ternário formado pelo agressor, a vítima e o grupo de espectadores que se calam ou aplaudem para não se converterem em vítimas também. A violência é exercida contra aqueles designados como deficitários ou extravagantes, que portam algum signo da falta, da diferença, da estranheza, e por isso provocam o ódio, a zombaria e o assédio do grupo. O bullying pode representar, então, uma estratégia defensiva, ao colocar em ato o rechaço que imputam ao outro e que lhe confirmaria sua posição de escória e resto. Trata-se, em última instância, de um ódio a si mesmo que o sujeito coloca em ato para defender-se do real. As condutas violentas são um modo de expor sua dor ao mundo, sem palavras.
O psicanalista não deve se furtar a enfrentar os significantes mestres de sua época, uma vez que são as crianças e os jovens os mais sensíveis a eles. Para isso, será preciso destrinchá-los, para esvaziar as paixões que suscitam.