ANA MARIA COSTA DA SILVA LOPES / ANDRÉA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA
CAO GUIMARAES
As transformações nos laços sociais, associadas à queda dos ideais e da crescente desvalorização do falo que ordenava a nossa civilização, têm nos colocado questões não só quanto aos desdobramentos conceituais da psicanálise, mas sobre a condução do tratamento analítico sem a exclusividade da função do Nome-do-Pai como tratamento do gozo pelo sentido e sem uma referência clara ao Édipo.
Sabemos que a ordem simbólica introduzida por Freud, com a invenção do inconsciente, era centrada no falo como significante ordenador. Apesar das críticas feministas, Freud foi irredutível em relação à tese do falocentrismo no inconsciente, quem, por sua vez, reconhece apenas um significante – o falo – para designar a dissimetria dos sexos, no qual organizará a questão da sexualidade por meio dos complexos de Édipo e de castração.
Atualmente, à frente da civilização contemporânea, o discurso da ciência e o discurso capitalista, derivado do discurso do mestre tradicional, se potencializam, assumindo o comando das mais variadas formas de gozar. A desaparição da figura de autoridade encarnada pelo pai e a consequente desvalorização dos valores fálicos é correlata às mutações no âmbito social e individual. Os efeitos na subjetividade se fazem notar pelo rebaixamento dos sujeitos a uma posição de objetos, reduzidos ao seu valor de uso em detrimento dos poderes da palavra.
Abre-se, portanto, uma outra dimensão da psicanálise, que nos aproxima da singularidade da clínica do falasser. Se o sintoma antes dessa nova perspectiva era decifrado pela vertente do sentido, nos dias atuais, o sintoma é também signo do real, efeito da incidência da palavra sobre o corpo e que se manifesta sob a forma de acontecimentos diversos, fazendo prevalecer, muitas vezes, a pulsão de morte.
Para Miller, a queda do falocentrismo decorre principalmente do fenômeno denominado “aspiração contemporânea à feminilidade” (MILLER, 2011), que muito caracteriza a nova ordem simbólica no século XXI e que surge em oposição à “aspiração à virilidade”, termo utilizado por Freud para designar a recusa à feminilidade de homens e mulheres ao final de análise (FREUD 1937/1976, p. 261).
O falocentrismo, como função de gozo para Lacan, impõe-se para todos no lado masculino das fórmulas da sexuação – conjunto definido a partir de que “existe ao menos um que escapa à castração” –, ao passo que, do lado feminino, “não existe exceção”, ou seja, situar-se numa posição feminina é estar também submetido ao gozo fálico, porém não-todo (FUENTES, 2015).
Já a virilidade é o que protege o sujeito do enlouquecimento de um gozo feminino que, ao se desprender dos limites da castração a partir do vínculo com o pai, apresenta-se de modo mortífero.
Sendo assim, a feminização do mundo, que decorre da ausência de exceção – seja a exceção reguladora do pai e dos ideais, seja a exceção da função fálica –, e, por conseguinte, o enfraquecimento do viril, dão lugar à ferocidade do supereu feminino, que, distinto do supereu freudiano, que sinalizava o proibido, o dever e a culpa, exige a máxima de gozo para todos (LACAN, 1974). Portanto, no lugar do significante-mestre que se destacava como um elemento simbólico, mais ou menos estável, para as identificações e representações no Outro, encontra-se, atualmente, nesse lugar, o objeto a, que provoca uma fixação de gozo que não remete ao Outro, mas ao corpo, dispersando e pluralizando as identificações. Nesse sentido, a feminização do mundo contribui para a violência, já que ela caminha pela via da deslocalização da irrupção pulsional, em desacordo com o gozo fálico e paralelamente à desordem do real.
Assim, ao considerarmos o que não é mais o que era, ou seja, que essa nova dimensão da psicanálise converge para pluralização dos Nomes-do-Pai, para a ostentação do imaginário e para o real do sintoma, como ficariam, nos dias de hoje, a assunção do falo enquanto regulador de gozo e a orientação do sujeito na confrontação com o desejo do Outro e com a castração?
Ao longo de seu ensino, Lacan se refere ao falo de diferentes maneiras, sempre ressaltando sua importância como operador clínico. De significante do desejo e, depois, ao “significante do gozo”, o falo é, antes de mais nada, um semblante (LACAN, 1988, p. 838).
Se, em O Seminário 3, Lacan antecipa a consistência de semblante do falo ao fazer referência às aparições inapreensíveis e efêmeras do meteoro, ou seja, ainda que exista um esforço para ocultar algo, o que oculta é nada (LACAN, 1955-1956, p. 357). Em O Seminário 23, Lacan irá conferir ao falo uma nova posição, enquanto “o único real que verifica o que quer que seja (…)” (LACAN, 1975-1976, 2007, p. 114). Sendo assim, o falo não mais se situa como efeito da significação edípica, ele é positivado e reencontrado ao lado do signo, num deslizamento que marca um modo de gozo nomeado como sua pura repetição, isolado na dimensão do Um-sozinho e que não se liga a nada. Para Laurent, o falo enquanto “um semblante que dá testemunho de um real está fora da metáfora paterna” (LAURENT, 2013).
As elaborações sobre a função fálica, em seu caráter operatório, nos orientam tanto na clínica quanto na abordagem dos fenômenos sociais. Nesta época em que os semblantes vacilam, podemos situar o desencadeamento dos fenômenos de violência em sua dimensão real como um dos efeitos da subida ao zênite social do objeto a. Uma dimensão que não toma a relação de causalidade como sua razão e o sentido a partir do Pai, mas que se trata de um dizer inconsciente que não faz apelo à decifração, não se liga a nada e não faz laço com o semelhante.
Quais as incidências para a psicanálise em relação ao que se passa ao lado da inscrição, da não inscrição ou das falhas na inscrição do falo, sobretudo no que concerne à violencia na infância e na adolescência? O que as crianças e os adolescentes violentos que recebemos nos ensinam em relação à articulação inconsciente – recalque, sintoma? De quais maneiras a violência se presentifica nos dias de hoje? Quando o recalque está omisso, ou seja, quando a metáfora paterna e o Édipo rateiam, o que pode operar como regulador do desejo na clínica do falasser?
Jacques-Alain Miller (2017), em sua intervenção de encerramento da IV Jornada do Instituto da Criança, introduz a seguinte pergunta: “A violência na criança é um sintoma?”. Para tanto, resgata a definição do sintoma em “Inibição, sintoma e angústia”, feita por Freud como “signo e substituto (…) de uma satisfação da pulsão”. Ou seja, “o sintoma seria o signo e o substituto de uma satisfação pulsional que não aconteceu” (FREUD, 1951). Então, como entender os atos violentos? Segundo Miller, é preciso dar lugar a uma violência infantil como modo de gozar. Nesse sentido, ele propõe dez pontos concernentes à violência na criança (MILLER, 2017).
- A violência na criança não é um sintoma.
- Ela é, na verdade, o contrário de um sintoma.
- Ela não é o resultado do recalque, mas, antes, a marca de que o recalque não operou.
- A violência não é um substituto da pulsão; ela é a pulsão. A violência é a satisfação da pulsão de morte. O adversário de Eros, o adversário do amor, não é o ódio, é a morte, Thânatos.
- O ódio está do lado de Eros. É, efetivamente, uma ligação ao outro muito forte, é um laço social eminente.
- A violência está do lado de Thânatos. Eros fabrica o Um, introduz o sociável. Thânatos desfaz os Uns, solta, fragmenta. A criança violenta encontra satisfação no simples fato de quebrar, de destruir.
- Pode ser que a violência na criança anuncie, exprima uma psicose em formação.
- É preciso distinguir quando a violência resulta de um erro no processo de recalcamento ou de uma falha no estabelecimento da defesa.
- Deve-se distinguir o ato violento como aquilo que emerge de uma potência no real da violência simbólica inerente ao significante, que se mantém na imposição de um significante mestre. Se essa imposição de um significante mestre falta, o sujeito marca a si mesmo – escarificação, tatuagem, diferentes maneiras de se cortar, de se torturar, de causar violência contra o próprio corpo.
- No que concerne à violência no imaginário, ela surge tal como o fenômeno do transitivismo (quando o outro é você e você é o outro).
Em relação ao sétimo item, Miller salienta que é preciso questionar quatro pontos:
- A violência nessa criança é uma violência sem fala? É pura irrupção da pulsão de morte, um gozo no real?
- O sujeito pode traduzi-la em palavras? É um puro gozo no real ou bem ela é simbolizada ou simbolizável?
- O puro gozo no real não assinala, necessariamente, a psicose. Mas traduz uma ruptura na trama simbólica: trata-se de saber se é puntiforme ou ampla.
- E se é uma violência de que se pode falar, resta saber o que ela diz. É importante buscar traços discretos de uma paranoia precoce (MILLER, 2017).
Considerando os pontos destacados por Miller sobre as crianças violentas, a prática clínica tem nos colocado diante da questão “psicose ou não?”. Encontramos, em alguns adolescentes, a posição de isolamento social, nos quais eles se colocam à margem da família ou dos grupos sociais. Nesses casos, é preciso acolher os signos de estranheza e solidão, as situações marcadas pelos atos violentos na superfície do corpo e possibilitar que cada sujeito, a sua maneira, construa novas soluções. Muitos adolescentes nos dizem que se cortam para aliviar a “dor psicológica”, mas é preciso ir além dessa resposta universal, é preciso capturar o que há de particular em cada caso. Qual seria o lugar que esse adolescente ocupa no Romance familiar?
Muitos atendimentos também são marcados pela perpetuação do silêncio. É preciso que o analista acolha as mais distintas formas de invenções, como a passagem de um adolescente que desloca os cortes feitos com a lâmina de barbear na superfície do corpo para o desenho da linha guiada pelo lápis ou pela agulha na superfície de um papel ou uma toalha, com a inscrição “não chore pelos pulsos”. Os adolescentes também buscam os espaços virtuais na tentativa de nomear a sua “dor de existir”, e será no tratamento analítico que se poderá acolher esses restos e possibilitar outras soluções.
Miller salienta que, na falta de um significante que nomeie seu sofrimento, o adolescente marca a si mesmo por meio das escarificações e da violência contra o próprio corpo. Ponto demonstrativo nomeado por Miller de “psicose civilizacional normal”, uma perturbação que traduz a ordem simbólica herdeira da tradição e que se destaca como típica da civilização. Miller propõe, como perspectiva de tratamento, que não se deve atacar de frente os atos violentos – tais como as escarificações –, mas visar reparar uma falha do simbólico ou reordenar a defesa.
Os adolescentes nos ensinam como é possível inventar um bom encontro, construir laços, redes fundamentadas na escuta clínica, em parceria com os espaços que se constroem para além de suas fronteiras. Se, por um lado, as novas tecnologias e as redes sociais dão consistência ao cutting – esses sintomas que se inscrevem como pura repetição metonímica –, será possível a construção de soluções via tratamento analítico. E, tal como nos orienta Miller, é preciso colher a revolta da criança e do adolescente. Revolta que se distingue da violência errática (MILLER, 2010).