A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo

Paulo Henrique Assunção Rocha
Formado em Filosofia (UFMG) e em Teatro (CEFART/Palácio das Artes)
Aluno do Curso de Formação em Psicanálise do IPSM-MG
paulohassuncao@gmail.com

Resumo: No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. 

Palavras-chave: O Cheiro do Ralo; literatura; psicanálise; neurose obsessiva.

THE OBSESSIONAL NEUROSIS SURROUNDING THE SMELL OF THE DRAIN 

Abstract: In the novel O Cheiro do Ralo (in literal translation: “The Smell of the Drain”), written by Lourenço Mutarelli, a nameless man, owner of a pawn shop, starts to become haunted by the fetid smell that escapes the bathroom’s drain at his shop, while also becoming obsessed with a lady’s ass, a lady who works in the cafeteria he attends daily. It is from this plot that we intend to approach significant aspects of the obsessional neurosis, such as its debt position towards the father, the serial objects, the relationship between the gaze and the anal object, the repetition, as well as the postponement and the metonymic slide of compulsive thoughts. 

Keywords: O Cheiro do Ralo; literature; psychoanalysis; obsessional neurosis.

 

Imagem: Renata Laguardia

É notório o campo aberto por Freud na aproximação entre literatura e psicanálise, no interior da qual uma das suas perspectivas mais importantes se dá pela possibilidade de que o texto literário possa nutrir o campo psicanalítico. Lacan também constantemente utilizou-se de obras literárias e artísticas para, segundo ele, “tomar a lição” (LACAN, 1973-74, aula de 09/04/1974, tradução nossa, s/p).

O romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, parece assim ser uma obra instigante para examinar a questão da neurose obsessiva, como a posição em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição cerimonial, o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos e o desejo postergado.

Narrado todo em primeira pessoa, o protagonista do livro de Mutarelli, que não tem seu nome invocado em nenhum momento do romance, é dono de uma pequena loja de objetos usados. As pessoas que vão até o seu empreendimento estão sempre em condições financeiras deploráveis e de extrema necessidade, oferecendo muitas vezes mercadorias singelas, que o personagem principal faz questão não apenas de comprar pelo menor preço, mas também de insultar quem as vende. É a partir do momento em que é afetado pelo cheiro que sai do seu banheiro, da aquisição de um olho de vidro vendido por um cliente e da obsessão com as nádegas da atendente da lanchonete, que ele tem seu previsível cotidiano perturbado. Esses três objetos – o ralo, o olho e a bunda – são os pontos em torno dos quais o protagonista gira por toda a trama e que buscaremos desdobrar em nossa análise.

Grande parte do romance se passa no empreendimento do protagonista, para o qual diversos clientes se dirigem para penhorar uma série de artefatos, que podem ser de um violino, livros e vinis raros a objetos valiosos, mas frequentemente são apetrechos sem nenhum valor. Mais do que ser um colecionador, o personagem central busca retirar, por meio dos “objetos”, a dignidade de seus “clientes”, incitando uma posição de dúvida e aviltamento, oferecendo mais dinheiro por coisas banais ou uma miséria por artefatos valiosos. Procura constantemente humilhá-los ao ouvir suas histórias de vida e da relação deles com esses objetos que levam para vender, e assim tentar arrancar sempre mais através dessa negociação um a um, procedimento que parece enaltecer seu narcisismo e buscar aniquilação desse outro.

Você nunca me deu nada.

Eu sempre paguei.

É. Tudo o que eu tinha eu vendi para o senhor.

Eu pedi para você me vender?

Não. Pedir não pediu.

Então por que vendeu?

Porque eu precisava.

Não. Vendeu porque quis.

Foi ou não foi?

Foi.

Então diga, eu vendi porque quis.

Eu vendi porque eu quis.

Muito bem. (MUTARELLI, 2011, p. 96)

Nessa coleção de objetos e nas injúrias do narrador, uma série se forma e vai se deslocando, como aquilo que Lacan caracterizou como uma “metonímia permanente” do sintoma obsessivo (LACAN, 1960-61/2010). Romildo do Rêgo Barros (2015, p. 46) definiu como, na neurose obsessiva, “o sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões”. Já não importa mais para o protagonista quais são as bugigangas vendidas, as histórias que as pessoas contam, as humilhações que provoca, tudo se torna apenas uma infinita e interminável lista de coisas a serem adquiridas.

No momento em que começa a ter problemas com o cheiro horrível que exala do ralo no banheiro do trabalho, algo que acontece já na primeira página do romance, o protagonista tem sua falsa normalidade abalada. Desse incômodo constante com o ralo e do receio do cheiro ser associado a ele (“Só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”), algo em sua vida passa a falhar, a sair do rumo ordinário que tentou construir e manter.

Aqui cheira a merda.

É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo.

Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro?

Eu.

Quem mais?

Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta: E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 16)

É Lacan quem magistralmente vai revelar sobre a “evacuação da merda”, afirmando que “o homem é o único animal para quem isso apresenta um problema, mas prodigioso” (LACAN, 1967-68/2006, p. 74). Isso fica evidente para a neurose obsessiva, cuja relação sádico-anal é apontada por Freud (1926/1996) em Inibições, sintomas e ansiedade como essencial para entender a escolha dessa neurose pelo sujeito. A regressão da pulsão ocorre por meio de um conflito psíquico e da ambivalência, na qual as ideias contraditórias sucedem-se e anulam-se. Além disso, se, no estágio anal, a possibilidade de dar ou não algo ao Outro é apenas uma possibilidade, para o obsessivo o imperativo de dar tudo ao Outro é levado às últimas consequências. Se sentir “um merda” ganha equivalência com a merda com a qual o obsessivo metrifica o outro. Lacan afirma que o “tudo para o outro” do obsessivo é “a perpétua vertigem da destruição do outro, ele nunca faz o bastante para que o outro se mantenha na existência” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255). Segundo Miller (1986, p. 140, tradução nossa) em H²O, há muito tempo os psicanalistas já haviam notado a afinidade do caráter obsessivo com “a vertente do erotismo anal, o espirito da economia e até mesmo da avareza”.

Esse ímpeto de destruir o Outro, ao mesmo tempo em que lhe dá enorme consistência, estabelece uma peculiar estratégia de rebaixamento dos seus pequenos outros. É justamente essa a maneira como o protagonista de O Cheiro do Ralo lida com todos que o cercam, demonstrando uma incapacidade ímpar para estabelecer vínculos afetivos. É curioso que comece a se importar com os outros, seus semelhantes, somente na medida em que concebe incomodá-lo com o próprio cheiro. Talvez não estejamos tão distantes de Lacan quando ele diz que “A civilização, lembrei lá como premissa, é o esgoto” (LACAN, 1971/2003, p. 15). É na sua não capacidade de acobertar o que tem de mais íntimo, o que faz no âmbito privado (“o banheirinho”), que nosso protagonista passa a se envergonhar com o olhar e a expectativa alheia: “Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim” (MUTARELLI, 2011, p. 9).

O que se segue são inúmeras e desesperadas tentativas de tamponar o ralo, ele chega mesmo a retirar o vaso e concretar o buraco, tentando assim aniquilar o que lhe assombra. Sua reação acaba por levar a um entupimento do cano do escritório e a um aumento ainda maior do cheiro insuportável. A tentativa obsessiva de tamponar o furo acaba por entupi-lo com a própria merda, a merda do seu ser, ou, como diz Lacan (1960-61/2010), seu ser de merda.

Refaz então o buraco e passa a se deitar para aspirar o vapor que sai dele: “Rastejo até o banheirinho. Tiro a toalha do ralo. Cheiro, cheiro, cheiro…” (MUTARELLI, 2011, p. 122). Há claramente um gozo nisso, seu corpo goza com essa ação de agachar e inalar compulsivamente o vapor do ralo, algo proibido, excessivo e que deve ser feito apenas escondido, longe dos olhares de todos. É nessa ação sem sentido, que faz envergonhado e solitariamente, que parece, enfim, se reconhecer:

Deitado de bruços, inalo. Trago. Para ele o ralo sou eu. Observo, atento, o buraco. Nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo. Só há o escuro que sou. E isso é tudo o que me resta para amar. (MUTARELLI, 2011, p. 176)

Podemos notar também nas ações do protagonista de obstruir e reabrir o ralo que, mais que agir, o que ele faz é um enorme esforço para desfazer o que foi feito, um contra-ato que mantém tudo imutável. Há nisso uma similaridade com o procedimento de anulação de um evento, denominado como “mágico” por Freud (1926/1996, p. 120):

Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas bifásicos, nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram.

O segundo ponto de inflexão no romance se dá quando um homem chega ao escritório e oferece ao protagonista um olho de vidro. Ele fica fascinado e chega mesmo a estabelecer uma equivalência entre o olho e as nádegas tão desejadas da funcionária da lanchonete: “Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.” (MUTARELLI, 2011, p. 36). Por isso, já não é capaz mais de negociar, pagando um alto preço pelo objeto desejado. O olho passa a ser um objeto que traz sempre no bolso, levando-o para ver a bunda da atendente, deixando-o em cima de sua mesa de trabalho, assistindo TV, conversando com ele. Passa a mostrar para os clientes e outras pessoas, dizendo: “Era do meu pai” (MUTARELLI, 2011, p. 37). O olho começa a ver pelo narrador, a ser seu companheiro, sendo levado a todos os lugares em que ele vai e, cada vez que fala sobre ele, inventa e aumenta a história do olho paterno, dando enorme densidade a esse Outro. É exatamente como na neurose obsessiva, cuja questão é a relação com o objeto olhar, e não o pai. Miller (apud SIRIOT, 2020, s/p), em seu ensino inédito O Ser e o Um, afirma: “O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”. E, ainda sobre a função escópica, Cristiane Barreto (2017, s/p) ressalta que:

O neurótico obsessivo, em dívida, sem o ‘bolso’ do psicótico para carregar seus objetos seriados, faliciza-os e os carrega na fantasia, fixa-se onde a fantasia encontra satisfação, ou, ao invés de fixar, poder-se-ia dizer, com Schejtman, que o sujeito adormece onde encontra satisfação na fantasia. Esse mecanismo pode ser relacionado com o lugar que o escópico ocupa para o sujeito obsessivo, a potência (ilusória) atribuída ao lugar do Outro, dessa forma, o olhar ganha uma dimensão de gozo proporcional à consistência atribuída ao Outro, que, permanece em sua censura perene.

Adiante no romance, quando ao protagonista é oferecida a prótese de uma perna, compra-a sem hesitar. Decide, então, montar um pai:

Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que, com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse. Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez. Eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou. Ele nunca me viu. Eu só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto. Não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites. Ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara. Nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança. Não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez, ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein. (MUTARELLI, 2011, p. 141)

Desde Freud e o caso do Homem dos Ratos é destacada a centralidade da questão paterna na neurose obsessiva. Gazzola (2002, p. 42), em seu comentário sobre o pai de Ernst Lanze, enfatiza que, nesse caso, “é um pai que não termina nunca de morrer”, e que “esse pai volta sempre, como um fantasma, para assombrar o sujeito, quando se trata de gozar”. Em O Cheiro do Ralo acompanhamos, através do olho de vidro e da perna protética, não a tentativa de criar um novo pai para se servir dele, mas um pai que “imaginou” e que, como o personagem, nem nome tem, nada sabe, nada transmitiu, é apenas um esboço de pai advindo de objetos comprados.

A bunda é outro objeto em torno do qual o romance e o protagonista giram. O personagem se vê perdidamente apaixonado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta todos os dias. Com a desculpa de ir ver a bunda, passa a consumir todos os dias um hambúrguer (X-Tudo), o que piora ainda mais seus problemas intestinais e consequentemente o cheiro ruim do ralo.

Ao se deparar com a garçonete, é incapaz de compreender seu nome e reter seu rosto, não se interessa por nada mais além de sua bunda. Chega a nomeá-la de Rosebud, em alusão ao trenó, grande mistério de Cidadão Kane de Orson Welles, e que guarda curiosa homofonia com o objeto desejado pelo protagonista. Suas investidas na garçonete levam a uma obsessão: sonha com a bunda, alucina, ensaia diversas maneiras de enfim possuir esse objeto. A garçonete também está interessada, mas a inabilidade social do protagonista o leva sempre a adiar o encontro e, mais do que isso, sua obsessão com a bunda destrói a própria possibilidade de que o encontro aconteça, tornando-o impossível. No seu constante cálculo dos objetos e das relações, há o receio de que, fora das suas fantasias previsíveis, essa satisfação irá ser corrompida: “Mas, se eu for, estrago tudo. Depois vem as cobranças. Eu sei. Mulher é tudo igual. Não adianta você ser sincero. Elas sempre querem mais. E aí logo mandam o convite pra gráfica” (MUTARELLI, 2011, p. 36). O personagem só é capaz de imaginar a possibilidade de uma relação mediada pela relação mercantil: “Se começar dessa forma, ela virá com as cobranças. E eu prefiro pagar para ver”. Como Lacan afirma no Seminário 6 (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), para o neurótico obsessivo trata-se de manter o desejo como instituído na sua impossibilidade: “É sempre para amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo”.

Após uma série de desencontros, a garota da lanchonete consente em agir conforme a fantasia do narrador, aceita fazer como ele quer, ser paga para mostrar sua bunda. Ela vai ao seu trabalho e, diante dele, abaixa as calças e exibe a bunda. Ele caminha até ela e chora copiosamente agarrado às nádegas.

A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível. Essa bunda era, enquanto impossível, enquanto alheia, o contraponto do ralo. Mas o que eu realmente buscava não estava ali. Tampouco em outro lugar. O que eu buscava era só a busca. Era só o buscar. E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço. Só o vazio. Só a certeza do incerto. Agora é preciso encontrar algo novo, de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais. Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não. O mentiroso sou eu. (MUTARELLI, 2011, p. 171)

O objeto antes tão precioso, ao ser confrontado degrada-se rapidamente e vira nada: “E, assim, mais uma coisa a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na sala ao lado” (MUTARELLI, 2011, p. 173).

É também aqui que se articula a questão entre os objetos olhar e anal, ou entre o ideal e a merda. O obsessivo reveste o objeto anal falicamente e também o encobre com o olhar. O “olhar envelopa a merda” (BARRETO, 2017, s/p), fazendo do objeto malcheiroso uma preciosidade, como o personagem faz com o ralo, o olho e a bunda. Mesmo assim, mesmo quando ele parecia ter tudo o que queria, não havia mais nada ali para ele desejar: “Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu” (MUTARELLI, 2011, p. 179).

O verdadeiro estatuto do desejo na neurose obsessiva, diz Lacan (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), é que “o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente aí, no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado: ‘seu desejo’. Onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí que ele está”. 


Referências
BARRETO, C. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. 2017. (Inédito).
BARROS, R. do R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926).
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 6: Le désir et son interprétation. (Trabalho original proferido em 1958-59). (Inédito).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Trabalho original proferido em 1973-74). (Inédito).
LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Trabalho original publicado em 1971).
LACAN, J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. (Trabalho original publicado em 1967-68).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. (Trabalho original publicado em 1960-61).
MILLER, J.-A. H²O. In: Matemas II. Buenos Aires: Manantial, 1986.
MUTARELLI, L. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SIRIOT, M. O gozo feminino: uma orientação em direção ao real. In: XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Boletim Infamiliar. 2020. Disponível em: www.encontrobrasileiro2020.com.br/ o-gozo-feminino-uma-orientacao-em-direcao-ao-real. Acesso em: 30 set. 2022.



Entrevista com Sérgio de Campos

Sérgio de Campos
A.M. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/A.M.P.
sergiodecampos@uol.com.br

Imagem: Sofia Nabuco

Almanaque On-Line: No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização. Considerando a tendência atual que aponta para a ausência de patologias e, em seu lugar, apenas estilos de vida e, ainda, a exigência de uma fraternidade que põe em marcha a reivindicação democrática de igualdade, somada à eficácia medicamentosa que irrealiza a patologia, podemos concluir, como você diz, sobre a presença de um novo empuxo higienista da sociedade contemporânea. O que você pode nos dizer sobre esse futuro da psicanálise? Uma vez que o discurso analítico não tem nada de universal, como é possível salvar a clínica do singular, do para o “Um-sozinho”, nesse mar aberto de discursos que insistem em vender e disseminar o “para-todos”?

Sérgio de Campos: Em primeiro lugar, quero agradecer à equipe da Almanaque On-line pelo gentil convite para participar desta entrevista, pelas perguntas instigantes formuladas que me colocaram a trabalho e pela oportunidade de conversar com vocês sobre a clínica das psicoses.

Em O triunfo da religião, Lacan (1974/2005) afirma que a religião triunfará, a psicanálise sobrevirá ou não. Desde seu início, Freud enfrentou inúmeros obstáculos no caminho da psicanálise, a começar pelos seus discípulos. Verificamos que, através dos tempos, a lista continuou a crescer: a religião, as mais diversas formas de psicoterapias, a psiquiatria biológica, as neurociências, o cognitivismo, a regulamentação da psicanálise, a ortodoxia e o dogmatismo, os psicanalistas – imbuídos pelo espírito da sociedade de ajuda mútua contra o discurso analítico (SAMCDA) –, entre outros, e, agora, no contexto de nossa época, a despatologização. Pode-se dizer que a despatologização equivale a pronunciar que não haverá mais patologias alusivas à psiquiatria clássica. A despatologização forclui a psicopatologia na promessa de sanar o desequilibro neuroquímico com novos medicamentos.

A reinvindicação igualitária e o empuxo higienista do “para-todos” impõem o desaparecimento da clínica, na qual, antes, um sujeito era acometido por uma enfermidade expressa de maneira singular, e, agora, ele passa a integralizar um grupo constituído de sujeitos de direitos, alinhados a um estilo de vida, cuja finalidade comum é a de alcançar o bem-estar e a felicidade. Lacan (1969-70/1992) já nos advertira no Seminário 17, O avesso da psicanálise, que existe um preço a se pagar, visto que não há fraternidade sem exclusão que se manifesta sob as diversas formas de segregação. Lacan assinala que a fraternidade é uma ideia ridícula e não tem fundamento científico, de modo que estamos isolados no campo do um. Com efeito, a fraternidade serve para recobrir a experiência da segregação, pois, no fundo, tudo que existe na sociedade se baseia na segregação.

A despatologização é concebida a partir do contemporâneo calcado em uma fraternidade utópica, inscrita na reivindicação democrática de uma igualdade universal, a qual apregoa o apagamento das diferenças e nas exigências de um bem comum “para-todos” (MILLER, 2022). Então, o resultado da despatologização é a substituição do princípio clínico pelo princípio jurídico que vem prometer a utopia da inclusão de todos (MILLER, 2022). Logo, sob essa ótica, espera-se que todo mundo é ou possa se tornar normal. Nesse ponto, reside um paradoxo, pois quanto mais todo mundo é normal, mais medicamentos são comercializados. Então, sob o prisma do Manual Diagnóstico e Estatísticos dos Transtornos Mentais (DSM), numa espécie de nominalismo sem lastro, onde os transtornos mentais aumentam consideravelmente a cada edição, constata-se que quanto mais desaparece a clínica, mais estreita se torna a faixa entre a normalidade e a enfermidade, de sorte que ao mesmo tempo, todos se tornam normais e passíveis de serem medicados.

Enfim, o discurso analítico, apanágio do singular e do “um-sozinho” sem o Outro, se inscreve nas fissuras do discurso dominante e promove a deflação do gozo. A psicanálise não é “para-todos” e não visa a normalidade. Mas, não nos aflijamos com isso, pois ela visa a satisfação para com o sinthoma e não tem a presunção de salvar o mundo. A psicanálise se inscreve como um discurso que não seria o do semblante, no qual o real é sem lei, visto que ele é o resultado da conjunção entre o significante e o gozo, que advém da ruptura da ordem simbólica.

Se, na primeira clínica de Lacan, o que escutamos são as significações que evocam a compreensão sob o nexo causal de uma estrutura clínica, cujo gozo está implicado, na segunda clínica, a condução de uma análise, sob o paradigma do Il y a de l’Un – no que concerne ao postulado de que não há relação sexual – não é concebida como ontologia do ser, mas como existência do um que se apreende a partir das homofonias, das inanidades sonoras, dos equívocos e das jaculações nas fendas da compreensão. Em suma, o ultimíssimo Lacan propõe que, no inconsciente, temos uma escrita passível de ser lida pelo analista e pelo analisante, de maneira que a leitura vem substituir a escuta. Assim, a interpretação apenas incide sob a condição de ser uma leitura a um parlêtre que sabe se ler (MILLER, 2011).

A.O.: Em seu texto “A presença do analista na psicose ordinária” (CAMPOS, 2023), publicado na última edição da Almanaque On-line, você localiza que uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher, ou seja, uma ajuda contra o delírio edificado ali onde o sujeito se depara com o real. Nos parece uma forma de orientação em que o analista está avisado de que um delírio, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como uma tentativa de cura, traz também desordem e sofrimento e pode surgir incitando passagens ao ato que colocam o sujeito em risco. Furar a consistência e a onipotência do Outro é uma aposta numa leitura menos invasiva que pode advir, mas, por outro lado, poderia também favorecer sintomas depressivos e novos desligamentos? E como você diferenciaria a ajuda-contra do analista da posição da psiquiatria contemporânea que visa erradicar o delírio?

S.C.: É recomendável a prudência na prática de intervenções ousadas na condução de casos de psicoses ordinárias, visto que elas podem ocasionar desencadeamentos. A prática da ajuda-contra aquilo que impele o sujeito em direção de A mulher tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio e furar a onipotência do Outro. Em contrapartida, a ajuda-contra nos casos de desligamentos e sintomas depressivos pode agir a favor de um secretariado por parte do analista que contribua para um novo enlaçamento ou religamentos, como uma identificação por parte do sujeito em uma ancoragem que desempenhe um papel social positivo. Ainda no que concerne ao campo das externalidades social, corporal e subjetiva, uma leitura atenta do caso pode fornecer o instante preciso de incluir a ajuda-contra que deve incidir como uma bricolagem, uma pequena invenção que possa permitir uma extração de gozo, impedir ou adiar as errâncias, os desligamentos, as passagens ao ato e os desencadeamentos, assim como propiciar suplências.

A.O: Miller (1996) nos diz, em seu texto “Clínica irônica”, que todos os nossos discursos não passam de defesa contra o real. A isso ele nomeia como clínica universal do delírio, uma perspectiva que você trabalha no volume 1 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses, volume intitulado “As psicoses extraordinárias” (CAMPOS, 2022b). É interessante observar que essa clínica se constitui a partir da ironia, mas da “ironia infernal da esquizofrenia”, pois é só a partir do ponto de vista do esquizofrênico e de sua ironia que podemos aferir tal clínica. Se a ironia esquizofrênica, diferentemente do humor neurótico, nos diz que o Outro não existe e que não há discurso que não seja do semblante, colocamos as seguintes questões: como a ironia pode ser conveniente ao psicanalista para o seu fazer clínico? Ele pode tomá-la como um direcionamento clínico frente ao delírio generalizado? E, por fim, ainda no que se refere à esquizofrenia, Miller (2010), em seu texto “Efeito do retorno às psicoses ordinárias”, afirma que a noção de psicose ordinária estreita o campo da neurose e amplia o campo da psicose. Através de sua pesquisa que culminou na publicação de seu livro, como você pensa o estatuto contemporâneo da esquizofrenia?

S.C.: Miller, em “Clínica irônica” – texto que, embora de 1996, está atualíssimo –, define a clínica universal do delírio como sendo aquela na qual todos os discursos não passam de defesas contra o real. A clínica universal do delírio pode ser examinada do ponto de vista do esquizofrênico, na medida em que ele não é capturado por nenhum discurso e que ele está fora do laço social. É interessante ressaltar que, se por um lado, na paranoia, o Outro existe – uma vez que ele é consistente, invasivo e real, pois ele contém o objeto a –, por outro, na esquizofrenia, o Outro não existe, já que ele não foi constituído. Pode-se acrescentar que o esquizofrênico não se defende do real pelo simbólico, pois ambos os registros se equivalem, uma vez que se interpenetram em razão de uma falha na cadeia borromeana.

No que concerne à ironia, ela se distingue do humor, visto que se, por um lado, o humor se inscreve no Outro e vai ao encontro do sujeito, por outro, a ironia surge no campo do sujeito e vai de encontro ao Outro. Portanto, a ironia é uma defesa contra a invasão do Outro e ela denuncia que o Outro não existe. A ironia pode ser conveniente ao analista, mas se a neurose fosse curada por ela, não haveria necessidade da psicanálise. Miller (1996) advoga que a psicanálise tem uma ética irônica, já que ela se fundamenta na inexistência do Outro. Assim, o esquizofrênico, como aquele que se situa em uma exclusão interna, nos serve de orientação para conceber a clínica universal do delírio, na medida em que o simbólico não funciona para se defender do real.

Com isso, o paradigma da esquizofrenia se torna a direção para o ultimíssimo Lacan, onde o Outro não existe. De certo modo, Lacan considera que há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo, e foi por essa razão que ele dedicou parte de seu ultimíssimo ensino ao que ele pôde aprender com James Joyce. O ego de Joyce se constitui sem a imagem do corpo, mas a partir de um enquadramento traçado pela escritura (MALEVAL, 2019). Com efeito, a obra de Joyce e o sinthoma são homólogos e a escrita de Joyce prende o imaginário ao enodar o real e o simbólico, impedindo o deslizamento de um sobre o outro (LACAN, 1975-76/2007).

À guisa de conclusão, em “Clínica irônica”, Miller (1996) afirma que a tese universal do delírio é uma tese freudiana. Para Freud, nada deixa de ser sonho. Portanto, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é delirante”. Freud apresenta uma passagem equivalente ao aforisma lacaniano na qual afirma que, em certa medida, somos todos paranoicos, e louco seria aquele que não conseguiu alguém para ajudá-lo a incluir o seu delírio na realidade (FREUD, 1930/1980). Então, se o ultimíssimo ensino de Lacan se encontra com Freud, pelo avesso, como numa banda de Moebius, podemos cotejar um postulado com outro e concluir que, tanto para Freud, quanto para Lacan, o delírio é comum a todos. Por fim, de acordo com Miller (2013), o delírio é universal porque os homens falam e porque habitam a linguagem. Assim, o delírio linguístico lacaniano ocorre porque existe uma inconformidade das palavras às coisas, o que significa uma inadequação do simbólico ao real.

Entrevista realizada por: Giselle Moreira, Kátia Mariás, Lilany Pacheco e Rodrigo Almeida.

Referências
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022a.
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses extraordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022b.
CAMPOS, S. de. A presença do analista na psicose ordinária. Almanaque On-line, n. 30, mar. 2023. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/a-presenca-do-analista-na-psicose-ordinaria. Acesso em: 22 jun. 2023.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1980. p. 74-171. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LACAN, J. A escrita do ego. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MALEVAL, J.-C. Appréhension de la psychose ordinaire. In: Repères pour la psychose ordinaire. Paris: Navarin, 2019,  p. 41.
MILLER, J.-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 190-199.
MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana online – Nova série, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/ efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 23 de março de 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Momento de concluir. In: El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER J.-A. Todo mundo é louco. AMP 2024. Opção Lacaniana, n. 85, p. 8-17, dez. 2022.



Supereu solúvel no álcool?[1]

Miguel Antunes
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
miguelfigueiredoantunes@gmail.com

Resumo: A partir da proposta de “retorno aos clássicos”, feita pelo Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo, o texto propõe comentar a famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool”. Para tal, será trabalhado o conceito de supereu tanto em Freud como em Lacan, indo além do “herdeiro de complexo de Édipo” em direção ao seu imperativo de gozo.

Palavras-chave: imperativo categórico; imperativo de gozo; supereu.

SUPEREU SOLUBLE IN ALCOHOL?

Abstract: From the proposal “return to the classics”, made by the Center for Investigation and Research in Drug Abuse and Alcoholism, the text proposes to comment on the famous phrase “the alcoholic superego is soluble in alcohol”. For this, the concept of superego will be worked on both in Freud and in Lacan, going beyond the “heir of the Oedipus complex” towards his imperative of jouissance.

Keywords: categorical imperative; imperative of jouissance; superego.

Imagem: Renata LaguardiaA famosa frase “o supereu alcóolico é solúvel no álcool” (LECOUER, 1992) é de autoria de Ernest Simmel, psicanalista que criou e fundou uma clínica em Berlim, em 1926, para tratar principalmente de alcoolistas. Vale ressaltar que ele contou com amplo apoio de Freud. Por motivos de guerra, foi preciso mudar duas vezes de país, indo para a Suíça e depois Estados Unidos. Dessa experiência inovadora temos poucas informações.

A palavra “solúvel”, nos dicionários on-line, remete à dissolução, a algo ou questão para a qual há resolução, algo que é solucionável, o que nos leva a perguntar se esse é o estatuto do supereu para a psicanálise.

Neste texto, trataremos de comentar as elaborações de Bernard Lecouer (1992) em “Porque o supereu não é solúvel no álcool”, que se encontra no livro O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo, organizado pelo Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), em 1992, reunindo os textos de uma jornada de trabalhos acerca da toxicomania orientados pela psicanálise. Destacaremos alguns pontos do texto de Lecouer para fazermos um breve percurso no tema do supereu, e, assim, discutirmos sobre a dissolução, ou não, do supereu tanto nas toxicomanias, quanto nas mais diversas apresentações clínicas.

Em um primeiro momento, essa frase não deve ser totalmente descartada: há algo no álcool que pode atenuar o mal-estar e lançar um sujeito ao agir, possibilitando-lhe atravessar a inibição que tanto o paralisa. Em “O mal-estar na civilização”, Freud (1930/1996) já havia mencionado tanto a eficácia, quanto também os danos, ao se lançar mão do recurso da intoxicação para tratar o mal-estar. E é considerando essa vertente danosa do supereu que Lacan (1953-54/1986, p. 123) o chamou de “figura feroz”, versão que interessa a este trabalho.

Começarei com uma brevíssima vinheta clínica. Após sua mãe lhe proibir de beber durante uma festa, o sujeito resolveu experimentar alguma droga industrializada e acabou perdendo o controle, tendo uma “bad trip”. Ao tentar enganar a censura materna, ele se depara com a culpa que, segundo afirma, é a origem de sua “ansiedade”. Com isto, ele começa a se dar conta de que repete a mesma cena sempre: bebe para tratar a ansiedade, mas, ao invés de aproveitar a festa, muitas vezes acaba por perdê-la. Tal ato nos faz lembrar Lacan (1969-70/1992, p. 68) quando ele diz que o gozo “começa com uma cócega e termina em labareda de gasolina”.

Parece ser essa versão superegóica que interessa em nosso cotidiano clínico, pois acarreta muito sofrimento ao sujeito e pode, ocasionalmente, levá-lo a buscar uma análise. Freud (1920/1996), em “Além do princípio do prazer”, menciona essa linha imaginária entre o prazer e o desprazer. Para o autor, após o sujeito ultrapassar o princípio do prazer, ele se depara com o desprazer marcado pelo excesso. Podemos dizer que o desprazer é exatamente o gozo que vai contra o bem-estar.

Voltando à frase de Simmel, e indo além, é possível estabelecer que ela se aproxima muito mais da possibilidade de um drible ao supereu do que sua diluição. Os casos que nos chegam aos consultórios e, principalmente, nas instituições, não se referem ao chamado uso recreativo, mas, sim, a um uso muito mais devastador, acarretando no apagamento não do supereu, mas do sujeito.

Miller (2009), em “Clinica del superyó”, afirma que o supereu instala a divisão do sujeito e insere uma lógica que não estaria de acordo com o bem, ainda mais se o confundirmos com o bem-estar. Segundo ele, o paradoxo do supereu está ligado ao apego do sujeito em relação a algo que não lhe faz bem, indo de encontro com seu bem-estar. O supereu está muito mais ligado à pulsão, ao mais de gozar. Todavia, esse gozo constitui um bem para o sujeito, na direção de um bem absoluto. Vale ressaltar a passagem de Lacan (1973/2003, p. 525) em “Televisão”, em que ele define o sujeito como “feliz”, sobretudo porque na repetição o que está em jogo é satisfação da pulsão.

O gozo é antinômico ao desejo e ao bem-estar. O desejo conduz rumo à civilização, enquanto o primeiro não conhece limites, não proporciona prazer, está evacuado do saber, sendo necessário o Nome-do-Pai para que algo desse gozo desmedido tenha chance de se coordenar. É o falo que pode temperar o gozo, porque o gozo enquanto tal, não tem medida. Para se dar conta do quão intolerável pode ser um gozo desregulado, basta ler As Memórias de um doente de nervos, de Schreber. Nessa direção, ainda com Miller (2009), podemos dizer que o supereu é uma lei absoluta articulada ao gozo, melhor dizendo, um imperativo: Goze!

Mas, antes de adentrarmos no imperativo do gozo, faremos um retorno a um grande clássico, ou seja, a Freud. Para ele, o supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e sinônimo do ideal do eu. Em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914/1996) assinala a presença de um “agente psíquico especial” que funciona para alimentar o que estava determinado pelo campo do ideal, aumentando as exigências para com o eu. E alerta que não se trata de uma descoberta, mas de um reconhecimento clínico (CAMPOS, 2015).

Esse “agente psíquico especial” tem a função de vigilância e auto-observação, sendo uma voz alta e clara, falando na terceira pessoa – quando se trata de uma psicose, especialmente da paranoia –, ou de modo silencioso – no caso das neuroses, principalmente a obsessiva. Contudo, mesmo silenciosa, ela se mostra bastante eficaz, pois julga, antecipa, recrimina, etc. Enfim, trata-se de um grande tribunal instalado no pensamento dos sujeitos, em funcionamento permanente, mostrando toda a sua ferocidade. De certa maneira, podemos dizer que o supereu impulsiona o sujeito à ação para depois reclamar por punição (CAMPOS, 2015).

Retomando a proposta de comentar o texto de Lecouer, e nos distanciando da fórmula de Simmel, o autor nos diz:

a posição do bebedor é aquela de uma fundamental submissão a um apelo, de uma obediência sem pertinência a uma ordem, aquela que articula a injunção “Beba!”. O ato de beber, antes de ser um gozo, consiste em ceder às ordens de um imperativo de gozo. […] Beba, para esquecer! Enfim, beba! Mas sempre para seu bem. (LECOUER, 1992, p. 75)

E continua:

assim considerado, o supereu não é mais solúvel, ele não desaparece na solução alcóolica. O álcool torna-se, ao contrário, portador de um apelo, assegura a imanência da voz, de uma voz que governa um retorno incessante do sujeito ao mesmo, um retorno que se encarna e toma sentido numa face a face com o mesmo copo. (LECOUER, 1992, p. 75)

Na passagem acima, Lecouer nos aproxima bastante do termo “iteração”, trabalhado no seminário de Miller (2021) intitulado “O Um sozinho”, quando ele diz que na adicção bebe-se sempre o mesmo copo, sendo uma adicção à qual não se adiciona nenhum saber, em que 1 + 1 + 1 é igual a 1. Na iteração, o objeto é um fim em si mesmo, diferente da repetição, em que o objeto é um meio e há uma história, um enredo, uma cena que cristaliza o sujeito, ou seja, há a fantasia.

O ponto central que nos interessa ao trabalhar o supereu é poder ir além do herdeiro do complexo de Édipo, momento em que sua vertente reguladora se fazia mais presente. Foi com Lacan que pudemos acessar um supereu sem sentido, severo, ingovernável e destruidor que é muito mais próximo ao imperativo: Farás!

É na passagem do imperativo categórico ao imperativo de gozo que reside a figura voraz e feroz. Se o primeiro, o imperativo categórico, está ligado ao campo moral, da regulação, o segundo, o imperativo de gozo, traz a injunção ao gozo. Primeiro, vem o imperativo categórico (beber para desinibir, por exemplo), e, em seguida, opera o imperativo do gozo (punição por perder a festa). Assim, se por um lado há um imperativo que exige sacrifício, por outro, há o que impele ao masoquismo. Essa elaboração pode ser extraída de Lacan (1962/1998) quando ele trabalha o texto “Kant com Sade”.

É em Kant que Lacan localizou o imperativo categórico, em que o sujeito tenta atingir o bem e a dignidade pela virtude moral, se deparando com um impedimento ou mesmo com a censura. Já em Sade, ele se deparou com um direito ao gozo do corpo do outro. Ambos os imperativos se complementam, uma vez que levam o sujeito ao extremo, em um mais-além do bem-estar.

Mas o que faz a passagem do prazer ao seu além? O que acontece que uma simples cócega pode se tornar uma labareda de gasolina? Ou, o que faz com que o supereu não seja diluído no álcool e nem regulado?

Podemos pensar que se trata da questão da implantação da voz enquanto objeto a, pois tanto o supereu, quanto o objeto a, se impõem como modo de gozo. É extremamente comum escutarmos na clínica, e na nossa própria vida, as vozes do supereu em ação em sua vertente de duplo comando que se apresenta como dois imperativos: um que impele ao movimento e outro em vetor contrário. Se considerarmos a lei da física, o encontro da força de ambos causa uma paralisia (BARROS, 2015).

Trata-se de uma voz desincorporada, ou seja, não se trata do falar ou da entonação. Lacan atribui ao supereu um caráter de imperativo e o transforma em exigência impossível de contornar. Tal imperativo se presentifica como uma voz desencarnada, atribuída ao Outro,  não experimentada como vinda de outra pessoa, mas do Outro (ASSIS; VIEIRA, 2019). O que demonstra o caráter de objeto a da voz é o fato de ser atribuída ao Outro, por isso uma voz desincorporada. Nessa direção, o supereu lacaniano, ou o supereu como voz, incide muito mais em sua vertente de imperativo de gozo do que de imperativo moral (CORDEIRO, 2011).

Considerando a clínica da toxicomania, para não fugirmos tanto de nosso tema, ela é uma clínica do supereu (ALVARENGA, 2005) em sua vertente de gulodice. Em seu aspecto de imperativo de gozo, os toxicômanos vão em direção à ruptura fálica, o que não conduz necessariamente à forclusão do Nome-do-Pai, mas ao encontro com um gozo que desconheces limites, um gozo que pode ser destruidor e aniquilar o sujeito.

Lecouer (1992, p. 74) menciona que “o sujeito que se decide, em vão, a renunciar à bebida, não faz senão relançar, com ainda mais força, aquilo que, afinal, o empurra a beber”. Ou seja, o supereu alimenta-se da renúncia pulsional. Talvez por essa razão nos deparamos com recaídas cada vez mais devastadoras.

Em direção à conclusão, podemos dizer que a relação estabelecida com o supereu lacaniano não está ligada à identificação, mas, sim, a uma voz de comando sem corpo e sem nenhum contorno. Já o supereu freudiano é diferente, ele está ligado ao ideal do eu e ao imperativo moral e mantém uma vinculação com a identificação. Tal identificação é consequência da saída do complexo de Édipo e implica na incorporação da voz. O que Lacan desvela é “essa voz que diz ‘goza’ é o objeto a voz como presença, ou seja, a presença do Outro sob forma vocal maciça, experimentada como imperativo” (ASSIS; VIEIRA, 2011, p.274), que reclama obediência e convicção. Tal obediência é a característica mais marcante do supereu, pois trata-se de uma obediência que não deixa margem para questionamentos.

O supereu lacaniano se situa ali onde o complexo de Édipo não recobre nos termos identificatórios e normativos, atestando um certo fracasso estrutural ao Édipo. E aquilo que não é recoberto pelo complexo de Édipo, Freud, de maneira genial, já havia localizado como algo de uma instância crítica, principalmente na melancolia, em que está em jogo identificações mais primitivas e arcaicas.

Com Lacan, afirmamos que “nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (1972-73/1985, p. 11). Enfim, podemos perguntar: o supereu freudiano, aquele do casamento feliz com a garrafa, é muito diferente do supereu lacaniano, em que o que está em jogo é a ruptura com o faz-pipi?

O supereu faz jus ao ditado popular: o que não tem remédio, remediado está. E uma análise pode promover algum alívio à submissão ao imperativo do gozo, podendo promover um novo laço, um laço responsabilizado com seu desejo e seu modo de satisfação (BARROS, 2015).

Concluindo,

um problema que não tem solução não é um problema, é uma estrutura do impossível […] na psicanálise não se trata de curar a fantasia ou de tratar o supereu, como já disse Lacan, mas de atravessá-los e identificá-los como o osso de uma cura. (CAMPOS, 2015, p. 155)


Referências 
ALVARENGA, E. Do gozo do pai à melancolia. Papers del CA – Nova Epoca, n. 5, nov. 11 – 2005 Disponível em: <https://wapol.org/pt/articulos/Template.asp>. Acesso em: 22 jun. 2023.
ASSIS, G. K. O. de; VIEIRA, M. A. Supereu: a voz de um imperativo interrompido. Psicologia em Revista, v. 25, n. 1, p. 258-277, 2019. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682019000100015>. Acesso em: 22 jun. 2023.
BARROS, R. R. Prefácio. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CAMPOS, S. Supereu | Uerepus: das origens aos seus destinos. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
CORDEIRO, N. M. O supereu: imperativo de gozo e voz. Tempo psicanalítico, v. 43, n. 2, 2011.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1996. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1962).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LECOUER, B. O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de Toxicomania, 1992.
MILLER, J.-A. Clinica del superyó. In: Conferencias Porteñas. (Tomo 1). Buenos Aires: Paidós, 2009.
MILLER, J.-A. Aparelhos da escuta, lição de 23.03.2011 do Curso “O Um sozinho”. Opção Lacaniana, n. 83, p. 54-66. São Paulo: Eolia, set. 2021.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação nas Toxicomanias e Alcoolismo em 06 de junho de 2023.



Clínica psicanalítica do delírio[1]

Laurent Dupont
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne /AMP
laurentdupont.mail@gmail.com

Resumo: Em a “Clínica psicanalítica do delírio”, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura diante do real. Ao retomar as três etapas da construção do delírio, Dupont lança luz sobre o papel do narcisismo e da sublimação nesse processo. Nesse sentido, a tese lacaniana do delírio generalizado aponta, segundo o autor, para uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Palavras-chave: delírio; paranoia; sublimação; narcisismo; real.

PSYCHOANALYTIC DELIRIUM CLINIC

Abstract: In the “Psychoanalytic clinic of delirium”, Laurent Dupont starts from freudian considerations about delirium in the Schreber case and, throughout the text, he proposes to read the lacanian “everybody is crazy” as an attempt to cure the real. By resuming the three stages of delirium construction, Dupont sheds light on the role of narcissism and sublimation in this process. In this sense, the Lacanian thesis of generalized delirium points, according to the author, to an attempt to bring a signifier back to the hole: “everything that man builds, invents, thinks is a way of dealing with, of compensating for this fundamental hole of not sexual intercourse”.

Keywords: delirium; paranoia; sublimation; narcissism; real.

Imagem: Renata Laguardia

 

Proponho pensar sobre esta questão a partir de duas declarações, sendo a primeira de Freud (1911/1996, p. 78): “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”; e a outra, de Lacan (1978/2010, p. 31): “todo o mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Assim, é possível para nós entendermos o todo mundo é louco lacaniano como uma tentativa de cura; mas curar o quê?

Freud (1911/1996, p. 78) propõe uma construção do delírio em três etapas. Primeiro, a ideia de uma catástrofe universal, um processo que é realizado de forma silenciosa, deixando o sujeito impossibilitado de dizer algo. Vamos falar de perplexidade, sideração. Nenhum significante vem nomear esse colapso, o surgimento de um furo. Segundo tempo freudiano: a libido se desprende de pessoas ou coisas antes amadas (FREUD, 1911/1996, p. 79), deixando o sujeito em uma solidão radical. Esse desprendimento é o sinal de uma frouxidão tanto do imaginário quanto do simbólico: o silêncio da pulsão torna-se ensurdecedor, deixando o sujeito fora de tudo. A terceira etapa pode ocorrer no instante exato da segunda: reinvestimento da libido nos objetos de amor anteriores, mas sob a forma de um delírio. Esta é a tentativa de cura:

O que chama tão ruidosamente a nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão, e traz de volta a libido para as pessoas que ele havia abandonado. Na paranoia este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior, a verdade é pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna do lado de fora. (FREUD, 1911/1996, p. 79)

Lacan formula esse ponto da seguinte forma: o que está foracluído do simbólico, do exterior, retorna no próprio corpo do sujeito. O delírio é, portanto, uma tentativa de trazer um significante de volta ao furo, uma tentativa de localizar o gozo; seja desesperada, vã ou eficaz, ela é sempre uma tentativa de cura.

Querer, portanto, como é proposto hoje na psiquiatria, erradicar o delírio, ou que o sujeito o critique, significa suprimir a única tentativa de solução que o sujeito consegue estabelecer.

O que fazer com um delírio?

Freud não sustenta o delírio, ele o analisa, ele o segue ao pé da letra e identifica seus detalhes. De fato, um sujeito só pode delirar a partir dos significantes dos quais ele dispõe. O delírio, como o sonho ou o desenho na criança, está lá para produzir significantes, significantes da língua do sujeito. “Porca” é o significante a partir do qual Lacan pode construir o caso, seu surgimento testemunha que é este e não um outro. Há, de uma forma ou de outra, uma espécie de escolha do sujeito, uma redução ao núcleo de uma cifração mínima do inconsciente a céu aberto.

Seguir o delírio ao pé da letra, ou seja, lê-lo sem se deter no sentido que se desprende, leva Freud a formular algumas hipóteses: todas as construções, “as engenhosas erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião – a hierarquia de Deus, […] podemos avaliar, retrospectivamente a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido” (FREUD, 1911/1996, p. 80).

No delírio, pode haver uma tentativa de cura através de uma forma de sublimação. Isso está relacionado com o fato de que, por causa do desinvestimento da libido nas pessoas amadas, o retorno a elas é feito de início pelo eu do sujeito: “a libido liberada vincula-se ao eu e é utilizada para o engrandecimento deste” (FREUD, 1911/1996, p. 79) e visa à amplificação desse eu condenado ao caos.

Lacan fala nesse delírio de grandeza, da função de exceção que visa a ocorrência do delírio no caso do Presidente Schreber. Há, portanto, uma localização feita por Freud de uma colagem, ao mesmo tempo uma tentativa de cura por um reforço do narcisismo e o recurso a uma forma de sublimação, ambos se sobrepõem, soldados um ao outro: numa tentativa de colocar em forma o que Lacan nomeia de o sinthoma em Joyce: escabelo.

Freud (1911/1996, p. 83) também argumenta que “podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento que busca devolver a libido a seus objetos”. Assim, Freud mostra três tempos no estabelecimento do delírio: 1) colapso do mundo, deixando o sujeito fora do sentido, silencioso, sem recurso possível tanto em relação ao simbólico quanto ao imaginário. 2) Fase de agitação alucinatória, “o que é abolido retorna do exterior”. 3) O delírio é uma tentativa de cura na medida em que tenta restaurar o sentido e permitir o reinvestimento nos objetos. E Freud acrescenta essa frase de uma atualidade fulgurante: “Mas é essa tentativa de cura que os observadores consideram ser a própria doença”. Muito pouco mudou hoje em relação a essa observação, o delírio é visto menos como uma tentativa de cura do que como uma produção a se erradicar.

O delírio testemunha um colapso do imaginário e do recurso ao significante S1, sozinho, não ligado a um S2, como tentativa de lidar com o que retorna no corpo Um que deixa o sujeito desamparado. Mas esse significante S1 frequentemente não fornece ao sujeito nenhum significado em relação àquilo que acontece com ele, ao contrário, ele é o traço do furo radical de qualquer sujeito confrontado com o real. A elaboração delirante é, portanto, neste momento, uma tentativa de remendar o desenlace imaginário. Algumas vezes, esta solução pode operar uma nomeação, como em Joyce.

Foi em 1978, em seu último ensino, que Lacan (1978/2010, p. 31) formulou: “Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que não há nada além de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante”.  Se a metáfora paterna é responsável pela relação do sujeito com o Outro e por sua alienação ou não, a partir do Seminário XI, Lacan traz à tona, com o objeto a, a questão sob o ângulo da separação, da extração. Seja em relação ao S1 sozinho, falha de significantização do gozo, seja de defesa contra o real. Nos dirá Jacques-Alain Miller (1990): retorno de gozo para o lugar do Outro na paranoia, retorno de gozo generalizado no nível do corpo na esquizofrenia, o retorno do gozo, localizado, mas deslocado no corpo como Outro no fenômeno psicossomático.

O delírio generalizado seria uma defesa contra o real. Quanto mais Lacan avança em seu ensino, mais ele apresenta essa noção de que tudo é sonho, tudo é delírio, tudo é semblante. Em relação a quê? Em relação à relação sexual que não existe, que não se inscreve, que não pode se inscrever. Nada é pré-estabelecido, nada é programado para permitir o encontro. Lacan (1978, p. 8) dirá que a psicanálise, nesse sentido, é em si mesma um delírio: “A psicanálise não é uma ciência. Ela não tem estatuto de ciência, ela só pode estar à espera, a esperar por isso. É um delírio – um delírio que se espera que comporte uma ciência”. Lacan vai dizer que o objeto a é um semblante, que o amor é um semblante, que a verdade é uma mentira… tudo isso em relação a esse real que não é nem apreensível pelo imaginário, nem pelo simbólico.

Tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar esse furo fundamental da não relação sexual. Lacan (1972-73/2008, p. 149) chega ao ponto de dizer que “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalangue”. A própria linguagem é um delírio. Assim, o sujeito, na imaturidade de seu nascimento, nesse momento em que se trata apenas de uma substância gozante, experimenta de forma radical a ausência de um programa, de relação com o Outro nesse primeiro encontro com o significante, mordida do significante no corpo, marca que deixa um traço indelével, marca Um, essa que Jacques-Alain Miller (2011) diz em O Ser e o Um: “É o Um do significante”. Este Um é apagado pela ação da linguagem que faz emergir o ser. Em “Joyce, o Sinthoma”, Lacan (1975/2003, p. 561) diz desta forma: “A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”. O ser também é um semblante, o ser também é um delírio, uma elucubração sobre esse traço inicial, esse traumatismo inicial de lalangue, e é esta a marca, o traço da existência do sujeito, o qual itera. Isto é trans-estrutural. Todos são delirantes porque a partir desta marca, esta mordida no corpo pelo Um do significante, cada sujeito será elaborado, elucidado, construído. Essa marca, esse encontro inicial, é impossível de dizer porque o real não pode ser dito, só pode ser definido, unicamente com base na lógica, no equívoco, no que se itera no sujeito. É por isso que os testemunhos de passe não dizem o real, como tal eles são ficções, contam como cada um, um a um, tem sido capaz de desconstruir suas ficções, suas identificações, sua relação com o objeto, em suma, seus delírios. Isso é o que permitiu a Jacques-Alain Miller dizer que, tendo sido o passe feito uma vez, todos os escabelos foram queimados, restam os escabelos do passe: a ultrapassagem.[2] Recordo essa definição de escabelo por Jacques-Alain Miller (2016): aquilo em que se sobe para se fazer bonito e para se tornar belo, para se empurrar para cima, o cruzamento do narcisismo e da sublimação. Aqui vemos ressurgir os dois pontos de referência freudianos, o narcisismo e a sublimação, no que concerne a Schreber.

O delírio universal seria, portanto, uma tentativa de cura diante do real, do furo trans-estrutural da não relação sexual.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Giselle Moreira

Referências
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J., L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Ornicar?, n. 14, 1978.
LACAN, J. Joyce, o Sinthoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978). 
MILLER, J.-A. Algumas reflexões sobre o fenômeno psicossomático. In: WARTEL, R. et al. Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 87-97.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. L’être et l’Un, enseignement prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 16 mars 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: www.congressoamp2016.com/uploads/ Acesso em: 18 jan. 2023.
[1] Publicado originalmente em francês em L’hebdo–Blog, n. 136, em 6 de maio de 2018. Disponível em: https://www.hebdo-blog.fr/clinique-psychanalytique-delire/
[2] No original: l’outrepasse.



A criança, seus delírios e os delírios de seus pais[1] 

Suzana Faleiro Barroso
Psicanalista
Membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com

Resumo: A partir da noção de delírio generalizado, o texto discute a questão da especificidade do delírio na psicose infantil. Segundo o comentário de fragmentos da clínica, verifica-se, numa infância paranoica, diferentes modos de tratamento do gozo sem o Nome-do-Pai.

Palavras-chave: psicose infantil, delírio, lalíngua de família, tratamento do gozo.

THE CHILD, HIS DELUSIONS AND THE DELUSIONS OF HIS PARENTES

Abstract: Based on the notion of generalized delirium, the text discusses the question of the specificity of the delirium in childhood psychosis. According to the commentary on fragments from the clinic, it is possible to verify, in a paranoid childhood, different ways of treating jouissance without the Name-of-the-Father.

Keywords: child psychosis, delirium, family lalangue, treatment of jouissance.

 

Imagem: Sofia Nabuco

 

“O mal dos bichos foi aprender a falar conosco”
(GULLAR, 2010, p. 52)

Abordar a psicose a partir do ultimíssimo ensino de Lacan abre novos horizontes para a clínica da psicose infantil. A releitura dos fenômenos alucinatórios, do delírio e dos fenômenos do corpo e do gozo a partir das últimas formulações lacanianas sobre a linguagem parece nos liberar de antigos debates sobre a psicose infantil, além de nos relançar para uma clínica do pós-Édipo, que é a nossa atualmente. A inexistência do Outro e a forclusão generalizada implicando que todos deliram, nos dispensaria, por exemplo, do debate sobre a criança psicótica, se ela delira ou não; ou se o delírio seria apenas característico da psicose do adulto, ou ainda se haveria especificidade do delírio na infância?

Segundo Miller (2015, p. 309), a frase “Todo mundo é louco, isto é, delirante” é uma espécie de condensado do ultimíssimo ensino de Lacan, que contaminou a clínica estrutural, supondo mais uma continuidade do que uma descontinuidade entre as estruturas clínicas.

A articulação entre psicose e linguagem perpassa todo o ensino de Lacan. A perspectiva estrutural da linguagem, na década de 50, em contraponto a uma perspectiva psicogenética dominante até então na psicanálise com crianças, libertava a psicose infantil do campo das deficiências. Para além de uma clínica estrutural do delírio, a introdução da noção de lalíngua, tão bem transmitida no artigo “Falar é um transtorno de linguagem”, de Pascale Fari, tende a generalizar o delírio, até então considerado exclusividade da psicose.

Vemos que a linguagem no ultimíssimo Lacan foi distanciando-se da noção de estrutura para aproximar-se das noções de aparelho, órgão, parasita. Passamos então dos “distúrbios da linguagem” decisivos no diagnóstico diferencial da psicose na década de 50, a partir da releitura de Schreber, à “linguagem como distúrbio”, a partir da leitura de Joyce.

O conceito de lalíngua, que se elabora no Seminário 20, já implicava uma versão do Outro diferente daquela do grafo do sujeito, pois leva em conta a antecedência lógica do campo de gozo em relação ao campo da linguagem. Por não comportar a dimensão do sentido, lalíngua altera todo o panorama das relações do sujeito ao Outro e até mesmo a definição do Outro. Lalíngua diz respeito à dimensão inconsistente e múltipla da língua, isto é, massa sonora que antecede à captura na linguagem e que implica a inexistência do Outro. Lalíngua desconstrói o edifício teórico sustentado pela primazia do significante.

Apoiada na estrutura de linguagem do inconsciente, a teoria freudiana do delírio tem como causa o destino da libido na paranoia, cujo investimento, ao ser retirado do mundo externo e dos objetos, provoca uma catástrofe no mundo subjetivo, a dissolução do imaginário, que cabe ao delírio restaurar. “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na verdade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1911/1996, p. 95). O trabalho do delírio é o modo do paranoico de reconstruir seu mundo de maneira a poder viver nele novamente, comparável à fantasia do neurótico.

Classicamente, o delírio constituiu-se como o ordenador maior do diagnóstico de psicose. Onde não havia delírio não havia psicose. O grau de paranoia, na qual os delírios estão sempre presentes, era um critério decisivo para o diagnóstico e tratamento possível da psicose, por ser considerado um índice importante da relação do sujeito com a linguagem e com o campo do Outro.

Segundo uma clínica estrutural, a paranoia constituiria um fraco diagnóstico na infância. Por exemplo, no artigo “Cura de un niño paranoico?”, François Leguil (1992) discute a pertinência desse diagnóstico para uma criança. Ele recupera a opinião de Clérambault, para quem os fenômenos psicóticos podem ser observados na criança, porém, sem que o delírio tome uma forma sistematizada nessa época da vida. Clérambault teria considerado as “regras da idade”, segundo as quais a criança não estaria submetida à necessidade imperiosa que move o adulto de conduzir o esforço de seu trabalho delirante até uma elaboração lógica de uma solução última.

François Leguil (1992) sugeriu que a observação de uma cura e de uma estabilização deve sempre levar em conta os efeitos do questionamento promovido pela confrontação real com o Outro sexo para além da infância. Apoiando-se na teoria da sexualidade, ele justifica a necessidade de uma prudência quanto ao diagnóstico de paranoia antes do encontro com a falta do significante fálico, o que não concerne mais à infância, pois supõe que o sujeito já se tenha colocado à prova em relação à castração no ato sexual. O capítulo do delírio na psicose infantil é, portanto, controverso, e não uníssono. De um modo geral, desde a psiquiatria, acreditava-se na precariedade das formações delirantes na infância e menos ainda na sua sistematização.

A sistematização delirante requer etapas nas quais ocorrem profundos remanejamentos do significante desencadeado. Com base na noção de “escala dos delírios” (LACAN, 1955-56/1985, p. 92), que supõe o avanço do delirante na evolução do trabalho de construção, J.-C. Maleval (2009) descreveu o percurso do delírio. Trata-se de quatro períodos, cada um com uma especificidade ao nível do gozo e da dinâmica da elaboração delirante, que pode ir da perseguição paranoica à parafrenia. O primeiro período se caracteriza pela deslocalização do gozo e pela perplexidade angustiante; o segundo corresponde à tentativa de significação do gozo do Outro; o terceiro período é o da identificação do gozo do Outro; e o quarto é o do consentimento ao gozo do Outro.

A tendência dos psiquiatras infantis, a exemplo de Ajuriaguerra (2007), é de afirmar que, nas crianças, os sentimentos delirantes estão mais presentes do que as ideias delirantes em seus aspectos fenomenológicos, isto é, convicção subjetiva, impenetrabilidade e impossibilidade de conteúdo. G. Heuyer (1951) descreveu o delírio de imaginação ou delírio de sonhos típico da infância, a saber, relato fantástico, mais ou menos sistematizado, quase sempre deslocado no tempo e no espaço, cujos temas podem ser grandeza ou filiação e no qual as ideias se confundem com a realidade.

A ampliação do conceito de delírio tributária das reformulações de Lacan sobre a linguagem, o gozo e o corpo estão presentes no artigo de Pascale Fari, no qual a linguagem como distúrbio do real explica o delírio generalizado. De maneira impactante, ela nos fala de lalíngua como o que arruína o ordenamento simbólico da linguagem, isto é, o núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana. Falamos a partir desse ponto excluído do simbólico, a partir da lalíngua de família e tentamos nos extrair desse lugar tecendo laços, articulando um discurso a partir desses significantes sozinhos, desses símbolos petrificados fora da cadeia. O delírio generalizado é isso. O delírio reconstrói uma trama discursiva a partir de elementos não simbólicos. É esse o trabalho de Samuel, caso tão bem conduzido por Patrícia Ribeiro, e que nos ensina sobre a invenção do sujeito no discurso analítico. É na medida em que Samuel vai tecendo sua trama que ele pode ir construindo uma posição de extimidade com relação à lalíngua que lhe agitava o corpo. Ele fala a partir do ponto de exclusão que marcou sua existência.

Com a noção de lalíngua, ganha-se também a condição de diagnosticar o estatuto dos distúrbios da fala e da linguagem na infância psicótica, que, a exemplo dos mutismos, dos distúrbios da comunicação, da presença dos significantes holofraseados, constituem índices da forclusão dos significantes fundamentais do sujeito e de sua desinserção no discurso.         

As câmeras de vigilância: tentativa de localizar o gozo, sem o Nome-do-Pai, no objeto olhar

A hipótese da inexistência do Outro indica o quanto a clínica do objeto torna-se fundamental para o tratamento psicanalítico das psicoses, visto que o problema maior a ser visado pelo tratamento é o gozo. Como então tratar o gozo não interditado pela lei do pai através de lalíngua e não da linguagem, a partir do objeto e não do Outro?

O trabalho clínico parece consistir em tentar localizar o que o sujeito psicótico traz como um possível esboço do que é, para o sujeito neurótico, o objeto a. A psicanálise pode então sustentar uma clínica do objeto visando à extração do excedente de gozo na psicose infantil. Trata-se de localizar o gozo fora do corpo por meio de uma redução do gozo, sem a qual não há laço social possível.

Considerando a prevalência dos distúrbios da estruturação corporal nas psicoses da criança, trata-se de priorizar as intervenções clínicas destinadas a promover alguma negativização do gozo, isto é, a separação entre o corpo e o gozo. O alvo principal da clínica do objeto é mais a deslocalização do gozo do que os fenômenos clássicos da forclusão do significante do Nome-do-Pai. Colocam-se então em primeiro plano os excessos relativos à positividade do gozo mais do que o déficit centrado sobre a escala fálica.

O objeto não está conectado à função fálica na psicose. Ele se encontra, portanto, em seu pleno caráter de substância, isto é, de substância real e não de consistência lógica. Segundo Miller (2005), há duas vertentes do objeto a: 1) extração corporal; 2) consistência lógica. Na neurose, o objeto a definido como um furo no Outro, um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar. Nas psicoses, verificam-se os fenômenos de corpo tributários da substância gozante, isto é, o objeto não dessubstancializado cujo gozo irrompe no corpo sem a negatividade que lhe seria conferida pela castração.

Na conjuntura psicótica, o objeto está à mão, o que implica o corpo na sua dimensão absolutamente substancial. A voz e o olhar comparecem como objetos privilegiados da substancialidade do corpo fora da lei do pai. A voz áfona emerge como audível, e o olhar se torna visível. “A voz, que ninguém escuta, e o olhar, que ninguém vê, existem, portanto, na experiência do sujeito psicótico” (NAVEAU, 2006, p. 76). Os objetos tendem à multiplicação quando não há a extração do excedente de gozo. Tanto as vozes como os olhares se multiplicam. Manifestam-se sob formas separadas com um evidente caráter de exterioridade em relação ao sujeito. Trata-se da exterioridade dos objetos e não de extimidade.

O caso clínico de Samuel, um menino de 9 anos, apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças, me pareceu bastante importante seu singular interesse pelas câmeras de vigilância. No primeiro encontro com a analista, ele pergunta se no consultório existiriam câmeras de vigilância. Ao desenhar, parece esboçar a localização do gozo no objeto olhar. Desenha a “garagem de um prédio onde há um porteiro que não vê o que a câmera – que está em destaque no desenho – do prédio vê: uma sombra que se esgueira pelo muro e esfaqueia e esquarteja alguém, deixando um rastro de pedaços de corpo e muito sangue, como ele me mostra desenhando e colorindo de vermelho”. Noutra sessão, relata ter pedido a avó materna uma mini câmera portátil de presente para vigiar o lugar, isto é, “um barracão nos fundos que… teria algo de estranho, certos ruídos”.

Mais adiante, no relato da analista que o atende, encontramos novamente a presença da câmera de vigilância. Ele falou de sua proposta “de ajudar a vigiar as crianças no recreio para que elas não entrem com bebidas escondidas, como ele supõe que possa acontecer, chegando mesmo a propor a câmera de vigilância para ajudá-lo”. Essa demanda, dessa vez visando o laço social no contexto da escola, não consiste na possibilidade do tratamento do gozo por meio do objeto olhar?  

A lalíngua de família e o não lugar do intruso 

O caso de Samuel nos coloca a par de sua lalíngua de família, uma língua da exclusão e da violência. Conforme queixa dos pais, o irmão mais velho do menino não suporta a presença do caçula: “Essa rivalidade com Samuel se manifesta sem tréguas: o irmão nunca o chama pelo nome, atrapalha quando ele está brincando, mal lhe dirige a palavra e quando o faz, geralmente, é com muita raiva”. 

Nos desenhos do menino o tema de um Outro mau, intrusivo e mortífero, que mata e trucida, é frequente. Segundo a analista, em determinada sessão “ele desenha um personagem que descreve como um ser parasita, explicando que ele costuma entrar nos corpos das pessoas e quando o faz, ela se transforma em um monstro e morre, ambos, a pessoa e o parasita”.

A figura do “ser parasita” sobre a qual Samuel fala me pareceu bem lacaniana, pois evoca a noção de falasser e da linguagem, provenientes do último ensino. Como foi dito antes, desde a leitura da escrita de Joyce por Lacan passamos a trabalhar com a hipótese da linguagem como parasita. O sujeito psicótico é o mais indicado para testemunhar isso, tal como o fez Samuel. Disse Lacan: “a questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-76/2007, p. 92). É o que nos permite sustentar que todo mundo delira.  No melhor dos casos, pode-se fazer disso um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.

Se extraindo do núcleo de real que o constituiu, Samuel faz a ficção da família de um desenho animado, uma versão na qual o tema do excluído toma forma: nessa família, haveria um membro rejeitado, uma porquinha relegada a ficar abandonada em casa, por ser doente com câncer e que, por isso, seus pais decidiram escondê-la do mundo”.

Samuel testemunha a marca da transmissão da lalíngua de família e nos permite retomar Lacan na Conferência de Genebra. O que retorna nos sonhos e no sintoma, enfim, nas formações do inconsciente, sob o formato de tropeços os mais diversos e de vários tipos de formas de dizer, depende de como a lalíngua foi falada e entendida pelo outro.  Ele afirma que os pais instilam um modo de falar na criança:  “A forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais a aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9). A linguagem interpreta as marcas de lalíngua, que vão sendo depositadas sobre o corpo do infans.

O tema do excluído e do intruso aparece em vários contextos tanto da família quanto da escola de Samuel. No ambiente escolar, que põe a prova a inserção desse sujeito num laço social, destaco a figura de um colega de sala, um duplo de Samuel, que, segundo ele, está na escola onde não deveria estar por ser uma criança doente, “cujo lugar deveria ser em uma escola especial, pois ele não é como os outros”. Esse colega parece viabilizar uma certa recomposição da imagem do eu, que por ser constantemente invadida pelo gozo escópico deslocalizado promove a inquietante estranheza.

Aqui pretendo articular o ultimíssimo Lacan com o primeiríssimo, pois recorrerei à teoria dos complexos familiares como chave de leitura do problema do intruso, tão patente no caso do Samuel.

Desde 1938, no artigo “Os complexos familiares”, Lacan problematizou a paranoia estruturante do eu por meio do complexo de intrusão, segundo o qual a imagem do outro em relação à qual o eu se aliena tem um caráter estrangeiro e intrusivo. É nesse complexo que se funda o alicerce de temas delirantes da paranoia pela dominância do imaginário.

As ligações da paranoia com o complexo fraterno manifestam-se pela frequência dos temas da filiação, da usurpação e da espoliação, assim como sua estrutura narcísica se revela nos temas mais paranoides da intrusão, da influência, do desdobramento, do duplo e de todas as transmutações delirantes do corpo. (LACAN, 1938/2003, p. 51)

Lacan discute o papel traumatizante do irmão no complexo familiar de intrusão: “A intrusão parte do recém-chegado e infesta o ocupante; na família, em regra geral, trata-se de um nascimento, e é o primogênito que desempenha, em princípio, o papel de paciente” (LACAN, 1938/2003, p. 50).

O transitivismo paranoico, no qual o eu regride a um estágio arcaico de sua constituição, pode explicar a tendência à agressividade, por vezes necessária a separação entre o eu e o outro. A afinidade da paranoia com o eu especular foi retomada na lição de 08/04/1975, do Seminário RSI, em que é definida como um visgo imaginário. A paranoia estrutura-se, pois, sobre a base de uma proliferação do imaginário e sobre a fixação do sujeito no estágio do espelho. 

A invenção do projeto pedagógico: uma saída esboçada pela via do Ideal? 

Um projeto pedagógico proposto por Samuel, “para ajudar Lucio a se sair melhor nas notas já que ele tem dificuldades de aprender”, me pareceu uma outra maneira de tratar o real do gozo, dessa vez por meio do Ideal, não sem conexão ao destino do objeto olhar. Se, até então, Samuel e o colega compunham o eixo imaginário a-a’, no qual Samuel sofre do ódio e da intrusão sem a mediação do Outro, a invenção do saber pedagógico entre eles promove o ideal pedagógico no lugar do Nome-do-Pai forcluído. Com o Lacan dos complexos familiares diríamos que a estagnação da sublimação do complexo de intrusão cede à ação do simbólico. Samuel assumiria o lugar do educador ideal.

Essa solução, que no caso do Samuel parece uma missão, mais do que um ideal, evoca o Emílio de Rousseau e suas lições de educação. Rousseau inscreveu seu nome no campo do Outro mediante a escrita de seu tratado de educação. Ele pretendia uma espécie de pedagogia capaz de eliminar o gozo. Propôs inclusive a eliminação de qualquer lição verbal, de maneira que o educando mantivesse sua natureza pura sem contaminação pela linguagem, ainda que isso lhe custasse o próprio laço social.

Para concluir, recorro ao comentário de J.-A. Miller (2015, p. 308) em “Todo el mundo es loco” sobre uma pergunta-título de um colóquio, a saber, “o que pode esperar o psicótico hoje?”.  Miller sugeriria já à entrada do colóquio a frase “Todo mundo é louco, quer dizer, delirante”. A tendência à generalização do delírio implica, certamente, o seu declínio, e articula-se a uma mudança na própria concepção de loucura.


Referências 
AJURIAGUERRA, J. Psicoses infantis. In: MARCELLI, D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Editora Artmed, 2007, p. 201-226.
FARI, P. Lalíngua. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1996. (Trabalho original publicado em 1911).
GULLAR, F. Zoologia bizarra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Os complexos familiares. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1938).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LEGUIL, F. Cura de un niño paranoico? In: Niños en psicoanálisis. Buenos Aires: Manantial, 1992, p. 127-133.
MALEVAL, J.C.  Locuras histéricas y psicosis disociativas. Buenos Aires: Paidós, 2009
MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Opção Lacaniana, n. 43, p. 7-81. mai. 2005.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
NAVEAU, P. L´extraction de l´objet a et le passage à acte. La Cause Freudienne, n. 63, p. 75-78, 2006.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 16 de junho de 2023



“Folitiquement” incorreto[1],[2]

Pascale Fari
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne/AMP
pfaripsy@gmail.com

Resumo: O significante “loucura” não é mais admissível em psiquiatria. O psiquismo tem sido apagado, o qualificativo “mental” se tornou uma relíquia incômoda e o que permanece é simplesmente “a doença”. Diante do sufixo-mestre atual, neuro, o essencial não é mais o que o paciente tem a dizer, mas sim que ele engula a coisa. O cérebro é o objeto primordial dessa doença, a máquina é seu modelo original. É a psicanálise que, por sustentar a dimensão da subjetividade, constitui o obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Palavras-chave: loucura; doença mental; delírio.

“FOLITIQUEMENT” INCORRECT

Abstract: The signifier “madness” is no longer admissible in psychiatry. Psychism has been erased, the qualifier “mental” has become an uncomfortable relic and what remains is simply “the disease”. Faced with the current master suffix, neuro, what is essential is no longer what the patient has to say, but that he swallows it. The brain is the primary object of this disease, the machine is its original model. It is psychoanalysis that, by sustaining the dimension of subjectivity, constitutes the greatest obstacle to reducing madness to an organic disturbance.

Keywords: craziness; mental disease; delirium.

Imagem: Renata Laguardia

Talvez, um dia, se saberá melhor o que pode ser a loucura.
(FOUCAULT, 1964/2002)

Referimo-nos  à psiquiatria transformada numa questão para todos.
(LACAN, 1964/2003)

A cena se desenvolve em um setor de psiquiatria adulta na região parisiense. O caso de um paciente esquizofrênico que vai particularmente mal é abordado em reunião. A discussão está animada, rica de vinhetas clínicas trazidas por todos. Durante a conversação, eu digo: “Ele está completamente louco nesse momento”. Silêncio incomodado, todos olham para frente. Após um tempo de pausa, a conversação recomeça sobre outra coisa, como se nada tivesse acontecido. Um colega psiquiatra me explicará: “Não se pode mais falar de loucura, isso não se diz mais”. É verdade.

Investigação sobre um apagamento 

Eu já sabia, há muito tempo, que o termo doença mental tinha suplantado o termo loucura; que inúmeros loucos se encontram na rua ou na prisão; etc. Mas eu descobri lá, entretanto, o que é o corolário lógico disso: a loucura não é mais admissível em psiquiatria. O significante ele mesmo se tornou tabu. Silenciosamente obliterado. Politicamente incorreto.

Sempre excluídos, os loucos tinham um lugar no discurso psiquiátrico e no hospício. A exclusão lhes conferia um lugar. Lidaríamos, a partir daí, com a negação – até mesmo a forclusão – da loucura? Estamos nesse desenlaçamento antecipado por Michel Foucault (FOUCAULT, 1964/2002, 1973-74/2006), no qual a loucura e a doença mental terminam por se separar? À força de reduzir a doença mental à uma afecção orgânica chegou-se a “pasteurizar o hospital psiquiátrico” sem mais aí encontrar a loucura?

O silêncio embaraçado de meus colegas testemunha, apesar de tudo essa presença ainda quente de um real que não encontra mais como se nomear? O que é exatamente esse apagamento? O que é que o tornou possível? Quais são as consequências disso?

Engolir a doença (mental) 

Não se fundamentando senão por dados quantitativos, o cientificismo estuda sua distribuição “sem referência a nenhum conteúdo significativo ou absoluto” (MILLER, 2004, p. 8).  Nessa “ditadura da média”, a ideologia da objetividade das cifras se alimenta da vacuidade de sua significação. Nesse reino de quantificação desenfreada, joga-se uma cumplicidade implacável entre as exigências econômicas da Administração e a psiquiatria organicista, entre o Um gestor e o Um bioquímico ou neuronal.

Uma vez o psiquismo apagado, o qualificativo “mental” se torna uma relíquia incômoda; permanece “a doença”, simplesmente. Assim, se indica ao paciente que a “esquizofrenia é como o diabetes, é uma doença crônica”; detalha-se para ele os sintomas (todos deficitários); único recurso, tomar cuidadosamente todos os seus medicamentos para impedir a inevitável progressão do mal. O essencial não é o que o paciente teria a dizer, mas sim que ele engula a coisa. Às “velhas leis” [do hospital] (FOUCAULT, 1975/2002, p. 288): “Você não se mexerá, não gritará”, acrescentou-se esta: “Você engolirá” (neurolépticos, refeições, cuidados, explicações…). E Foucault (1975/2002, p. 289) conclui: “entre a loucura que não se quer mais e a cura que dificilmente se espera, [o] ‘bom doente’ [é] aquele que come bem”.

No entanto, atualmente a forma que toma a cifra quando ocupa o psíquico é o “significante-mestre, o sufixo-mestre, é neuro-” (MILLER, 2018). O cérebro é seu objeto primordial, a máquina é seu modelo original.

O homem-máquina: o “reset” do eletrochoque 

O imaginário contemporâneo comporta uma “identificação à máquina”, nós tratamos ou gostamos de “ser tratados como uma máquina”, continua Jacques-Alain Miller. A língua está impregnada disso – acionada, encarnada, “estar no clima” disso ou daquilo…, robotizada, superexcitada, etc.

Eis o que esclarece a volta surpreendente do eletrochoque: “Neurologia: mudança a respeito do eletrochoque”;[3] “Psiquiatria: a incrível revanche dos eletrochoques”;[4] “A sismoterapia é particularmente brilhante contra a depressão severa”.[5] 

Rebatizada “sismoterapia” ou “eletroconvulsivoterapia” (ECT), trata-se sempre de uma crise convulsiva provocada pela passagem de uma corrente elétrica no cérebro – entre 50 e 200 V (até 350 V), para uma intensidade de 50 a 800 mA. Mencionemos aqui que o custo dos eletrochoques é elevado, é um ato que “dá lucro”, principalmente às clínicas privadas.

Um novo padrão se impõe (GUELFI, ROUILLON, 2017, p. 660; SZEKELY; POULET, 2012), que promete o ECT como “o tratamento o mais eficaz da depressão severa”. Atualmente é admitido (senão preconizado) recorrer a ele logo de início (ao passo seu uso se limitava anteriormente aos casos resistentes à quimioterapia e que apresentem um risco vital). As indicações não esquecem ninguém (mulheres, grávidas, crianças, terceira idade). Se bem que “não consensuais”, elas se multiplicam em todas as direções, da primeira descompensação esquizofrênica até a adição à internet dos adolescentes…

Incrível, mas verdadeiro, poucos estudos tratam dos danos cerebrais causados pelos eletrochoques; grande parte desses estudos são antigos e insuficientes (SACKEIM et al., 2007). Em 2007, o primeiro estudo de envergadura conclui pela persistência de problemas cognitivos (memória, aprendizagem, pensamento).

Quanto ao mecanismo de ação, mistério… Alguns contam com “camundongos modificados geneticamente” por serem verdadeiramente deprimidos! As hipóteses são abundantes, evocam uma espécie de branle-bas de combat[6] para interromper as principais perturbações induzidas pela descarga elétrica. Sem se confessar explicitamente, o modelo que emerge dessas conjecturas se parece com a função reset de uma máquina.

Um problema, entretanto: a “taxa de recaída […] importante e precoce” após um tratamento de ECT (oito a doze sessões por algumas semanas). Pouco importa, os tratamentos “de manutenção” ou “de controle” são recomendados – ainda o modelo da máquina – para prevenir uma recidiva. Dentro de pouco tempo a adição aos eletrochoques?

… à lier[7]

A exacerbação da violência em psiquiatria ultrapassa a prática dos eletrochoques. Ela se deve precisamente a esse apagamento da loucura em proveito da saúde mental, aquela que “não tem outra definição senão a da ordem pública. Trata-se sempre do uso, do bom uso da força” (MILLER, 1999, p. 14). Negando a subjetividade, em nada querer saber do que os pacientes têm a dizer, nesses “confins onde a palavra se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos” nos advertia Lacan (LACAN, 1954/1998, p. 376).

Nada surpreendente, portanto, a inflação imoderada das medidas coercitivas (hospitalizações forçadas, isolamento, contenção). Em 2015, aproximadamente um quarto das hospitalizações foram feitas sem o consentimento de 100.000 pacientes concernidos (FAVEREAU, 2017),[8] ou seja, duas vezes mais que há dez anos. Surpreendente contraste com a ambição da Lei de 5 de julho 2011, que esperava limitar o recurso à força e garantir os direitos dos pacientes! O filme de Raymund Depardon, 12 dias, mostra isso de maneira de pungente: os pacientes são convidados a se expressar, mas a entrevista com o juiz encarregado de avaliar a medida, focalizada sobre a legalidade do procedimento, reduz sua palavra a uma casca vazia. Deste mal-entendido absoluto, o não-encontro redobra a alienação.

Da mesma maneira, a colocação em quarto de isolamento e a utilização das amarras de contenção vão crescendo, manifestando às vezes uma certa imprecisão entre cuidado e sanção disciplinar; para Geneviève Hazan, responsável pelo controle geral dos locais de privação de liberdade, as causas disso são múltiplas: a redução dos efetivos, a falta de formação das equipes…, mas também a amplificação mediatizada “de acontecimentos dramáticos, mas excepcionais” (CGLPL, 2016, p. 80).

Ora, a periculosidade, a passagem ao ato imprevisível, não é justamente o que resta (ou o que faz retorno) da loucura amarrada, negada, privada de subjetividade, extraída de toda psicopatologia? Do Daech[9] a Trump passando pelos fatos diversos, espelho de aumento disto que ameaça o laço social, a violência bruta, incontrolável, que angustia e fascina. “A loucura só existe em uma sociedade”, indicava Foucault, ela não existe fora das formas que a isolam, a excluem ou a capturam. Assim, o binário razão/não razão que servia para discriminar a loucura parece ter sido substituída por aquele da segurança/violência. “Cada cultura, afinal de contas, tem a loucura que merece” (FOUCAULT, 1961/2002, p. 150).

Eu “psychote”, tu “psychotes”… todo mundo delira 

Mas a dissolução do par razão/não razão tem igualmente outros motivos muito sérios: todo mundo delira, e a partir de agora todo mundo sabe disso. Não se surpreende mais que, na rua, todos falem sozinhos – com ou sem telefone –, é uma simples questão de modalidades de aparelhagem com o Outro.

A coisa passou para a língua. É claro, Le vocabulaire pours tous, de Berscherelle, confirma como “tabu” o termo “louco”, substituído pelo intolerável “doente mental”; essa modificação da terminologia médica data do século XX, conforme o Dictionnaire historique de la langue française das Edições Robert. Por outro lado, “delirar” e “delirante” são completamente banalizados. Last but not least, “psychoter” fez sua entrada oficial no Petit Robert em 2013, depois no Larousse em 2015. “Parano”, “schizo”, circulam. Esses novos usos, deslocados, provocadores, irônicos, levam uma parte da carga de real associada a seu emprego original.

Eles atestam, entretanto, também uma perturbação profunda. Com a decadência do Nome-do-Pai, o “todo”, garantia de uma organização estável, não tem mais utilidade ou lugar, mostra J.-A. Miller. Não se crê mais nas classes. As distribuições estanques são totalitárias e ultrapassadas. O DSM aninhou-se assim na crise das classificações que afetavam a nosografia psiquiátrica (MILLER, 2011, 2017).

Da mesma forma, na segunda clínica de Lacan, a perspectiva do sinthoma “é a versão lacaniana de […] fragmentação das entidades clínicas no DSM. Não se trata da mesma fragmentação, mas é o mesmo movimento de desestruturação das entidades”, observa ainda J.-A. Miller. O enunciado Todo mundo é louco, proferido em seu tempo por Lacan, chama uma nova clínica, na qual o “sintoma se torna uma unidade elementar”.

A psicanálise não é um humanismo

Não esqueçamos que o DSM foi concebido não somente para negar a dimensão psíquica, mas também para combater a psicanálise (BERCHERIE, 2010, p. 635-640). Esse combate permanece eminentemente atual. Assim, financiado por dois laboratórios farmacêuticos, uma pesquisa sobre a “imagem da esquizofrenia” (L’ObSoCo, 2015) na imprensa se descobre ser um cavalo de Tróia para incriminar a psicanálise. Os argumentos são misteriosos. Os adeptos da organicidade têm, entretanto, razão sobre um ponto: a psicanálise carrega a dimensão da subjetividade e constitui um obstáculo maior à redução da loucura a um distúrbio orgânico.

Nessa configuração, protestos humanistas e voos literários são vãos. Face ao rolo compressor dos negativistas que se recusam a ouvir aqueles de quem deveriam cuidar, afiemos nossos conceitos e nossa clínica.

Há a loucura do mundo, há aquela que habita nossa abjeção a mais íntima e há a patologia psiquiátrica. Nós não temos saudade das classes perdidas. Mas nós sabemos que apagar ou negar as diferenças redobra a exclusão. Não negar a loucura é também abordar com rigor o real da psicose como tal.

De cada um, nós temos a aprender seu uso incomparável da língua, sua irredutibilidade absoluta, sua estranheza. A nos ligar às variações qualitativas do heterógeno, sem fascinação, sem romantismo, sem complacência.

Tradução: Tereza Cristina Côrtes Facury
Revisão: Beatriz Espírito Santo Nery Ferreira

Referências 
BERCHERIE, P. Pourquoi le DSM? L’obsolescence des fondements du diagnostic psychia  trique. L’Information psychiatrique, n. 7, v. 86, p. 635-640, set. 2010. Disponível em:  www.cairn.info. Acesso em: 01 jun. 2023.
CONTRÔLEUR GÉNÉRAL DES LIEUX DE PRIVATION DE LIBERTÉ (CGLPL). Rapport thématique: Isolement et contention dans les établissements de santé mentale. Paris: Éditions Dalloz, 2016. Disponível em: www.cglpl.fr. Acesso em: 01 jun. 2023.
FAVEREAU, É. Les chiffres affolants des soins psy sans consentement. Libération, 15 fev. 2017. Disponível em: www.liberation.fr. Acesso em: 01 jun. 2023. 
FOUCAULT, M. A loucura só existe em uma sociedade. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1961).
FOUCAULT, M. A loucura, ausência de obra. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1964).
FOUCAULT, M. Bancar os loucos. In: Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. (Coleção Ditos e Escritos I). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Trabalho original publicado em 1975).
FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Trabalho original publicado em 1973-74).
GUELFI, J.-D., ROUILLON, F. Manuel de Psychiatrie. 3. ed. Paris : Elsevier Masson, 2017.
LACAN, J. Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1954).
LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1964).
L’OBSERVATOIRE SOCIETE & CONSOMMATION (L’ObSoCo). L’Image de la schizophrénie à travers son traitement médiatique (Synthèse). 2015. Disponível em: www.fondation-fondamental.org. Acesso em: 01 jun. 2023. 
MILLER, J.-A. Saúde mental e ordem pública. Curinga, n. 13, p. 14-24, set. 1999.
MILLER, J.-A. A era do homem sem qualidades. Opção Lacaniana On-line, n. 1, 2004. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 01 jun. 2023.
MILLER, J.-A. Intuições milanesas, Parte II. Opção Lacaniana On-line, n. 6, p. 1-21, nov. 2011.
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SACKEIM, H. A. et al. The cognitive effects of electroconvulsive therapy in community settings. Neuropsychopharmacology, n. 1, v. 32, p. 244-254, 2007.
SZEKELY, D.; POULET, E. L’Électroconvulsivo thérapie. In: De l’historique à la pratique clinique: principes et applications. Marseille: Solal, 2012.
[1] Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, n. 98, p. 50-54, 2018. 50-54. Disponível em: www.cairn.info.
[2] N.T.: Título em francês: Folitiquement incorrect. Optamos por conservar o neologismo Folitiquement em referência à palavra francesa folie (“loucura”), mantendo o jogo de palavras da autora com a expressão “politicamente incorreto”.
[3] Cf.: CABUT, S. Neurologie: volte-face sur l’életrochoc. Le Monde, 18 nov. 2018. Disponível em: www.lemonde.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[4] Cf.: MALYE, F. ; VINCENT, J. ; LAGRANGE, C. Psychiatrie: l’incroyable revanche des életrochocs. Le Point, 25 ago. 2015. Disponível em: www.lepoint.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[5] Cf.: SZAPIRO-MANOUKIAN, N. La sismothérapie fait des étincelles contre la dépression sévère. Le Figaro, 27 nov. 2015. Disponível em: sante.lefigaro.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[6] A expressão “branle-bas de combat” remete a uma grande agitação durante os preparativos de uma operação ou uma ação, frequentemente realizada em uma emergência de maneira desordenada e barulhenta. Cf.: La Langue Française. Disponível em: www.lalanguefrancaise.com.
[7] A expressão francesa “fou à lier” tem o significado de “loucura” ou “doença mental”.
[8] N.A.: Conferir também o relatório publicado pelo L’Institut de recherche et documentation en économie de la santé (Irdes): COLDEFY, M.; FERNANDES, S.; LAPALUS, D. Les soins sans consentement en psychiatrie. Questions d´économie de la Santé, n. 222, fev. 2017. Disponível em: www.irdes.fr. Acesso em : 01 jun. 2023.
[9] Uma das siglas, considerada como tendo conotação negativa, para o Estado Islâmico.



A locução sobre as psicoses na infância: uma leitura do texto lacaniano[1]

Tereza Facury
Psicanalista
terezafacury@gmail.com

 

Resumo:  A autora faz uma leitura comentada do texto de Lacan “Alocução sobre as psicoses na infância”, de 1967, no qual ele nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência. Ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos, como a segregação, o racismo e a regulação pela norma que não dá lugar à exceção, temas que nos interessam especialmente no caso das crianças as quais atendemos.

Palavras-chave: segregação; gozo; criança generalizada; psicose.

ALLOCUTION ON PSYCHOSES IN CHILDHOOD: A READING OF THE LACANIAN TEXT

Abstract: The author makes a commented reading of Lacan’s text “Allocution on psychoses in childhood”, from 1967, in which he warns us that there is a segregation that expands as an effect of the progression of science. He anticipates the events we witness today, such as segregation, racism and regulation by the norm that does give rise to exception, themes that interest us especially in the case of the children we assist in our clinical practice.

Keywords: segregation; jouissance; generalized child; psychosis.

Imagem: Sofia NabucoNo ano de 1967, Maud Mannoni organiza o “Congresso sobre a Infância Alienada”, um colóquio muito eclético que aglutinou psicanalistas de horizontes extremamente diversos em torno da clínica das psicoses na infância.

 

Primeira psicanalista a se dedicar à escuta das crianças débeis e a problematizar a questão do corpo na debilidade, ela supunha que as crianças débeis e suas mães viviam em uma fusão de corpos associada à presença de um ponto obscuro, não simbolizado na subjetividade materna e que por isso retorna no real do corpo do sujeito. Dessa forma, o enfoque da debilidade recai sobre a dualidade do vínculo da mãe com a criança débil, no qual ocorre uma prevalência do imaginário fantasmático da mãe como um orientador para a identificação da criança no espelho, em detrimento da ação do simbólico sobre essa identificação. O livro de Maud Mannoni, A criança atrasada e a mãe, marca a entrada do débil na psicanálise. Até então, por um erro de interpretação, ela estaria reservada às pessoas inteligentes.

Lacan valoriza essa abordagem de Maud Mannoni, porém, faz um contraponto ao propor uma causa significante para a debilidade. Trata-se, para ele, conforme nos diz Suzana Barroso (2014, p. 49), dos “efeitos no plano do imaginário corporal da criança do mecanismo da holófrase, a saber, a fusão ao nível da cadeia significante […], pois implica a posição de criança-objeto condensador de gozo do Outro.”

Entretanto, para Lacan, não se trata de uma fusão entre o corpo da mãe e o da criança, mas, sim, da primeira dupla de significantes que se solidificam, ou seja, uma fusão ao nível da cadeia significante e seus efeitos, tal como encontramos no Seminário 11:

Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar. (LACAN, 1964/1985, p. 231)

O Congresso sobre a Infância Alienada

Convidado a falar de improviso no encerramento desse Congresso, Lacan (1967/2003, p. 361) se refere a esse convite como “a este lugar, […] de ter que nos interrogar […], sobre o que fazíamos em decorrência dessa obra, e, para tanto, remontar a ela”. Ele se referia, é claro, à obra de Freud, se colocando em desacordo com os pós-freudianos ao argumentar: “Não menos notável é que nada tenha sido mais raro, em nossas colocações destes dois dias, do que o recurso a um desses termos que podemos chamar relação sexual (para deixar de lado o ato), inconsciente e gozo”. Destaca, ainda, que o fato de não levarem em conta a presença do gozo e da linguagem na relação mãe-criança fornece sustentação à “uma fantasia postiça – a da harmonia no habitat materno”.

Nos anos 1970, Maud Mannoni assume uma posição crítica com relação ao diagnóstico e à clínica estrutural, assim como em relação às instituições para psicóticos. Defensora de uma prática libertária, ela distanciou-se da orientação lacaniana, identificando-se com a proposta existencialista.

Essa prática libertária é exatamente um dos pontos observados por Lacan quando, ao final do Congresso, ele é convidado a se pronunciar. Ele adverte quanto ao fato de que essa liberdade, sugerida por uma prática dirigida a esses sujeitos, traz em si seu limite e seu engodo. A questão é como podemos apreender a referência a partir da qual podemos tratá-los sem cairmos nesse engodo.

Ele evoca os debates ocorridos entre ele e Henri Ey, sobre a associação entre loucura e liberdade. Evocar a liberdade como forma de tratamento da psicose é acreditar que o psicótico sofreria de uma repressão social. Liberdade em nome de experimentar sem empecilhos o gozo. Temos um exemplo disso na suposição dos pós-freudianos de que a relação da mãe com a criança se daria em um ambiente de total harmonia. Pelo contrário, entre a mãe e a criança há o Outro. Lacan não pensava que a loucura era um insulto à liberdade, ao contrário, ele pensava que liberdade e loucura eram indissoluvelmente ligadas. O que Lacan escreve é que toda “formação humana” tem de refrear o gozo. O aporte de Freud não diz respeito a uma ética do princípio do prazer, ao contrário, é saber através do discurso qual a relação do sujeito com o gozo. É por isso que Lacan retoma junto aos psicanalistas a importância do princípio da ética, tal como colocado pela psicanálise.

Quando Lacan (1967/2003) nos adverte de que há uma segregação que se amplia como efeito da progressão da ciência, ele se antecipa aos acontecimentos que hoje presenciamos – a segregação, o racismo, a regulação pela norma que não dá lugar à exceção – e que nos interessam especialmente no caso das crianças que atendemos. E, continua, trata-se de saber como nós psicanalistas responderemos à segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes.

Ao tomar a segregação como efeito da universalização, entram em jogo modificações nas estruturas sociais e, consequentemente, na vida das pessoas, e isso incide na nossa prática analítica ao tratarmos o gozo em questão no sintoma. Lacan se pergunta como os psicanalistas vão responder a essa segregação posta na ordem do dia por uma subversão sem precedentes. A segregação faz parte de toda operação simbólica e faz-se presente na alteridade do gozo na tentativa de resistir a integrar a própria rede de referência e significações a partir de um não-saber sobre o gozo (MACÊDO, 2017).

Segundo Laurent (1999), Lacan já enfatizava que, para localizar o gozo em questão para a criança, somos obrigados a levar em conta o tratamento do gozo em uma escala que não é a escala familiar de tratamento do gozo pela metáfora paterna, o Édipo. Os Seminários de Lacan posteriores a essa época apontam um caminho teórico que nos conduz a como os psicanalistas têm abordado o gozo e o falo imaginário, uma vez que já se apresentavam insuficientes. O estatuto do pai moderno é do pai falido, humilhado, do qual se espera que trabalhe e promova o sustento da casa. Ele tem um estatuto que se reorganiza para assegurar a distribuição do gozo de maneira conveniente e, para tal, já não contamos com o pai. Os discursos organizam o mundo e o sujeito vai se inscrever aí apesar do pai (LACAN, 1967/2003).

Parece ficar claro que Lacan, ao perguntar sobre como nós psicanalistas podemos estar nesse mundo de mudança e ao mesmo tempo tomar uma distância para que seja possível tratar o gozo em questão no sintoma, nos aponta que o caminho é a ética acompanhada da construção de uma teoria a partir de Freud que nos oriente para que possamos acompanhar os efeitos no real das mudanças que ele predizia nesse momento. Porém, não é sem alegria. Uma pergunta a ser atualizada à atualidade do nosso tempo.

A criança, seu corpo e a mãe

A abordagem dos temas pertinentes à relação mãe-criança e dos efeitos na civilização do progresso da ciência convergem na expressão “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Lacan fala sobre tais temas – o lugar de objeto da criança na relação com a mãe, o gozo, o inconsciente, o corpo, a relação sexual que não existe, o real como impossível articulado ao discurso da ciência e ao discurso do analista – como sendo uma bússola que orienta nosso trabalho na clínica com crianças e, nesse sentido, as psicoses infantis são, para nós, um campo fértil de aprendizagem.

Os analistas pós-freudianos não falaram durante o Congresso sobre esses temas e por isso eles atraíram a atenção de Lacan. Sua crítica em relação à existência de um mito, preconizada por eles, de uma fantasia postiça na relação mãe-criança, se deve ao fato deles não se darem conta, na relação mãe-criança, da presença da dimensão do gozo e da linguagem e da fantasia como aquilo que articula o desejo e o gozo. Por isso, Lacan aponta o preconceito irredutível de que é sobrecarregada a referência ao corpo enquanto esse mito não for suspenso. Esse mito produz uma elisão que pode ser notada a partir da noção de objeto a, embora seja ele mesmo o que é elidido. A elisão só é compreendida ao “se opor que seja o corpo da criança o que corresponda ao objeto a” (LACAN, 1967/2003, p. 366).

Para Laurent (1999), o deslocamento da criança do falo ao objeto a tem na teoria uma função de báscula que afeta, inclusive, o fim da análise da criança. São duas formas de conceber os problemas, a realização fálica e a separação do objeto.

Lacan é muito mais prudente nesses anos, o que o leva a pensar que, para assegurar-se de que o corpo da criança não corresponda ao objeto a, é necessário algo mais do que apostar no pai. Não se trata de anular a teoria fálica precedente, “Este valor fálico tipifica a criança no sexo, dá à criança uma orientação sobre o sexo e é o que a permite apostar no pai” (LAURENT, 1999, p. 42). Se separa por construções de ficção, ficções reguladoras que permitam operar de algum modo a separação.

“A questão está em saber se, pelo fato da ignorância em que é mantido esse corpo pelo sujeito da ciência, haverá direito de fazer a esse corpo pedaços para o intercâmbio” (LACAN, 1967/2003, p. 367). Assim, ele pensava que o problema da época seria o recorte do corpo em pedaços que circulariam em nome do liberalismo. Nos anos 90 ele anuncia os colóquios sobre ética da ciência e a bioética.

No caso específico da criança, a construção da fantasia consiste em um modo dela se assegurar de que seu corpo não vá responder ao objeto a, que não seja o objeto de gozo da mãe. Portanto, construir uma fantasia que o anima, com a versão do objeto que disponha segundo sua idade, é uma possibilidade.

Aqui nos cabe perguntar qual tratamento podemos deduzir para a psicose infantil. Para Laurent (1999, p. 42), seria dar uma versão do objeto a. Ou seja, que a criança, inclusive a criança psicótica, dê uma posição de gozo, não de seu inconsciente; posição de gozo tal como Lacan utiliza em “Posição do inconsciente”.

Criança generalizada

O que está em questão no uso do termo “criança generalizada” é a relação do sujeito com o gozo, seja ele o adulto ou a criança. Se não existe “gente grande”, como confessa o capelão ao poeta André Maulraux, todos somos crianças? Portanto, o que separa o adulto da criança não seria a cronologia, nem a puberdade, mas, sim, a responsabilidade do sujeito com relação ao seu modo de gozo. O que separa uma criança da pessoa maior é a ética que cada um faz de seu gozo. A grande pessoa é aquela que se faz responsável pelo seu gozo.

François Leguil (2001, p. 145), em seu texto “As crianças contumazes”, diz que:

A grande pessoa desaparece na criança e, por “necessidade”, a contingência passa ao contingenciamento. As crianças, as ciências da educação as classificam, avaliam-nas, ordenam-nas, comparam-nas, separam-nas, emparelham-nas, repartem-nas […], isso é um encarceramento e, mesmo sendo epistemológico, não deixa de ser segregativo.

A psicologia com seus mitos de harmonia e desarmonia evolutivas, está de acordo com um tempo em que essa era a norma que faz de um sujeito uma grande pessoa. O que Lacan propõe é que o sujeito enfim em questão

não é mais o sujeito que a religião do pai cernia em sua dignidade, e sim o sujeito do inconsciente, … , esse sujeito do inconsciente é o sujeito da ciência. E este é a “resposta do real”. (LEGUIL, 2001, p. 145)

Mas, então, o que é uma grande pessoa?

Leguil (2001, p. 146) discute se a grande pessoa seria determinada pela condição “ser pai” e, nessa ocasião, evoca a noção de autoridade:

o saber sobre o pretenso “desenvolvimento” da criança se edifica no lugar do que se poderia, de outro modo, construir da ação paterna. O pai, sua autoridade, hoje já não é mais isso que faz de uma criança uma grande pessoa. E de nada serve ir contra, tal como aqueles que pensam que a solução é “institucional” e que é necessário “restaurar a lei do pai”.

Sabemos que Lacan, em vários lugares de seu ensino, mencionou que o respeito que o pai pode obter de seus filhos depende da demonstração que ele soube lhes transmitir, ou seja, de que a mãe deles causava seu desejo. Ou seja, que a mãe deles não era toda mãe. Portanto, o que faz uma grande pessoa é a relação que ele entretém com o gozo.

Leguil (2001, p. 146) arrisca um palpite e tenta adivinhar porque Lacan se distancia de alguns autores com quem ele mantinha uma interlocução. Para ele, o que estaria em questão nesse debate é que “quando o gozo se torna pecado, o sujeito que se coloca na medida do dever prescrito pelo Outro ‘experimenta’ naturalmente sua indignidade”.

A idade do sujeito, para a psicanálise, depende da demanda mesma, e os sujeitos têm a idade da sua demanda. Para Leguil (2001, pp. 150), “a-grande-pessoa-que-não-há” é o sujeito das teorias sexuais infantis de FreudSua ideia é a de que “Além da fantasia existem de fato grandes pessoas, de quem o particular, enfim reconhecido dos resíduos do recalque, não torna tão fácil catalogá-las, como os psiquiatras acreditaram pode realizar com os fatos da perversão” (LEGUIL, 2001, p. 147). E lança uma pergunta: o que a psicanálise tem a propor no lugar do mal-estar na civilização, em que “o declínio da autoridade paterna, numa metamorfose social atravessada pela aceleração das técnicas, abandonará os sujeitos aos efeitos de um saber sempre mais segregativo?” (LEGUIL, 2001, p. 147).

Não há, assim, a grande pessoa, a não ser que, com Freud, “não sem alguma antinomia com a segurança da ética utilitarista, coloquemos o gozo no seu lugar que é central, para apreciar tudo que, ao longo da história, se afirma como moral” (LACAN, 1967/2003, p. 299).

O que seria então? Do que a psicanálise poderia dispor para responder a esse desafio coletivo de que não há mais grandes pessoas, uma vez que sua experiência repousa somente sobre a palavra?

Os imperativos taxinômicos são cúmplices do poder segregativo, e com as crianças “a coisa é mais sensível”, seja com as crianças como infância, seja com as crianças da “grande-pessoa-que-não-há”. O saber constituído em uma norma funciona como significante mestre, por isso a consequência é sempre política, e Lacan a nomeia segregação.

Já a prática da transferência desorganiza todos os saberes. O psicanalista opera sobre a fantasia a partir de sintoma, esse é a sua referência, e só temos conhecimento dele porque ele nos é endereçado. É o que Miller nomeava em 1982 como “clínica sob transferência”, e essa clínica, por sua natureza, interdita qualquer classificação.

Para Leguil (2001, p. 150), “a segregação começa com a negação do ‘isso se endereça a mim’, a mim que sou constituído por este endereçamento, quando minha oferta mesma o produziu”. E a demanda se constitui com o desejo inconsciente. Considerar a presença do sujeito do desejo pode interditar a edificação do saber normatizado, pois o “desejo é articulável e não articulado”. Somente a difusão de um saber extraído da prática de uma transferência pode ir contra a segregação.

A combinação dos dois discursos, o da ciência e o do capitalismo, se tornou mais frequente, de tal forma que conseguiu romper os fundamentos de uma tradição como a do Nome-do-Pai. Segundo Miller (2014), o próprio Lacan rebaixou essa função, Nome-do-Pai, ao fazer dela não mais do que um sinthoma, uma suplência do furo. Esse rebaixamento na clínica introduz algo inédito como perspectiva, expresso por Lacan ao dizer “Todo mundo é louco, isto é, delirante”. Tal aforismo é a tradução da categoria da loucura estendida a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber concernente à sexualidade. E isso abala a base do diagnóstico psicanalítico, que é a diferença entre neurose e psicose.

Palomera (2019) comenta que Lacan, ao escrever a frase “Todo mundo é louco”, quis ser provocativo frente aos ideais coletivos da saúde mental, o que não significa uma abolição da clínica, mas, sim, que não há nenhuma possibilidade de alcançar normas comuns e que, quanto mais globalizados os ideais da civilização, mais comuns serão os espaços de civilização, e lembra que, se algum dia chegarmos ao ponto de fazer uma norma para tudo, o pesadelo “Todo mundo está louco” será realizado.


 

Referências
BARROSO, S. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
LACAN, J. Alocução sobre as psicoses das crianças. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original proferido em 1967).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1964).
LAURENT, É. Hay um fin de analisis para los niños. In: Hay um fin de analisis para los niños. Buenos Aires: Coleccion Diva,1999.
LEGUIL, F. As crianças contumazes. Revista Curinga – Lacan e a lei, n. 17, nov. 2001.
MACÊDO, L. Lacan e a segregação. Revista Curinga – Tempos de Segregação, n. 44, jul/dez. 2017.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
PALOMERA, V. Prólogo. In: Un psicoanalista, intérprete em la discórdia de los discursos. Barcelona: Gredos, 2019.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise com Crianças em 19 de abril de 2023.



O ordinário do gozo, fundamento da nova clínica do delírio[1] 

Dominique Laurent
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
laurent.dominique@wanadoo.fr

Resumo: A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária. 

Palavras-chave: norma; lei; psicose, neurose, sinthoma; psicose ordinária.

THE ORDINARY OF JOUISSANCE, FOUNDATION OF THE NEW CLINIC OF DELIRIUM

 Abstract: The neurotic norm is a false evidence imposed on the history of patriarchy. Norms are said in the plural, they proliferate, while the law is said in the singular. It is necessary to understand that the paternal metaphor is never fully realized, in order to go beyond the binary neurosis and psychosis. The concept of sinthome, in this sense, constituted an advance in the “unclassifiable” clinic, that is, in the clinic of ordinary psychosis. 

Keywords: norm; law; psychosis; neurosis, sinthome; ordinary psychosis.

Imagem: Renata Laguardia

A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996 em seu seminário, inaugura, dizia ele, “a era lacaniana da psicanálise”, a “da errância, a dos não-tolos erram, a daqueles que são mais ou menos tolos do pai, mais ou menos tolos do Outro” (MILLER, 2005, p. 10-11).

Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais como um todo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever em Gaia ciência que “Deus está morto”, já não estaria inscrevendo essa questão? Houve, entretanto, ideais que foram resistentes e puderam assentar de modo decisivo a função paterna, um dos detentores do título do Outro. Isso é tão verdadeiro que na psicanálise “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante que o Outro existe” (MILLER, 2005, p. 10). Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho de sua desconstrução e de sua pluralização no equívoco dos não-tolos erram. Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de basta. Não há mais necessidade de ninguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente se tornou louca. 

Crença e loucura

A função paterna se apresenta daqui para frente como o avesso do mestre, sob a forma depreciada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia para todos, para assegurar a satisfação de seus desejos e lhes devotando um amor igual. O verdadeiro Outro, ao qual se recorre como garantia, é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica para aquele que encarna a função de pai como se comportar, mas ela autoriza e reconhece, de modo inédito, estilos de vida outrora condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai tem conduzido os movimentos de reivindicação e de luta das mulheres, dos gays e lésbicas para registros diversos cujo último, depois do mariage pour tous,[2] diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber um filho por P.M.A.[3] 

Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para-além do pai. O bom uso da função do significante-mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não seja fora-da-lei. O discurso do direito, ao assegurar a promoção do direito à diferença, pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito com o gozo? Em outras palavras, a identificação a um significante-mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não se resolve apenas na prática sexual, o sintoma verifica isso, mesmo que o parceiro sexual seja ocasionalmente o parceiro sintoma do sujeito.

A norma neurótica, construída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan dava a entender em Os complexos familiares,[4] a neurose é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva tomado em uma relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs em um momento da história do patriarcado. Sem dúvida Lacan falava de um momento remoto. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, elas são falantes. A lei se diz no singular, ela pode, para Lacan, se reduzir aos comandos da fala segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também as que são majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo pelo qual se vive a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não é única. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas P.M.A., o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais casais ou não, encarregados de família ou não. O combate pela emancipação feminista em relação à ordem simbólica tradicional, seguido pela noção de gender, que tenta reduzir a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida até os queer que, confrontados a uma fuga de identificações, se prendem a modos de gozar cada vez mais singulares.

Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma, isto é, do parceiro gozo.

Do patriarcado ao parceiro gozo 

Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal em sua composição e recomposição, assim como as da parentalidade. Mais ainda, estamos sendo confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, pelo retorno por artifício ao casamento funesto da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um regime novo, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado dos estilos de vida. O valor social atrelado a um ou a outro varia segundo o preço atribuído pela civilização ao ideal e ao objeto a. Não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem em seu modo de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil acreditar que elas sejam ainda a norma. 

Os tipos de sintomas e os imperativos de gozo 

Lacan apreendeu o sintoma em sua dimensão singular, isto é, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, já que ele remete sempre ao um a um. Essa perspectiva do sintoma é, entretanto, correlativa de uma outra, a do sintoma apreendido pela estrutura. Em “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan (1973/2003) coloca a questão sobre os tipos de sintomas como a clínica os isolou antes da psicanálise, pelo olhar da particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade desses tipos como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não respondem ao nominalismo da contingência, mas ao realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são então identificáveis pelo “imperativo de gozo”. A Zwangneurose deve ser generalizada para além daquilo que a neurose obsessiva permite perceber.

Essa questão do gozo está em primeiro plano no caso freudiano do Homem dos Lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, dedicou a ele todo um seminário de DEA.[5] É com esse caso que Freud introduz pela primeira vez o termo Verwerfung, rejeição à castração, que é acompanhado, ao mesmo tempo, de um reconhecimento da castração. Para Lacan, como observa J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado assim: “como formular uma coexistência da Verwerfung e do reconhecimento da realidade?” (MILLER, 1987-88, p. 11). J.-A. Miller situa em primeiro lugar a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele nomeia “forclusão como mecanismo simbólico” (LACAN, 1954/1998, p. 388-89). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento linguageiro significante – e não um sentido – que é subtraído do circuito”. É um elemento “que faz sentir seus efeitos somente por sua ausência, e que mobiliza muitas significações em torno dela, sem que essas significações cheguem a alcançar esse próprio significante” (MILLER, 1987-88, p. 16).

A forclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não põe em questão toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar na assunção […] da função paterna, mas sobre a função da castração” (MILLER, 1987-88, p. 21). A forclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956 com a “Questão preliminar…” (LACAN, 1957-58/1998). A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica numa forclusão do Nome-do-Pai?

Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são interrogadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Assim que um menos se dirige ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito se desestabiliza. É o que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se esse falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (MILLER, 1987-88, p.40).

A paranoia e a clínica universal do delírio

A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a forclusão generalizada vem evidenciar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente reabsorvido pela mortificação significante e que, a esse respeito, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que ali onde está o gozo, e não simplesmente o joui-sens[6] fálico, é a língua em seu conjunto que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se faz com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se imobilizam dependem do sinthoma e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthoma tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas de procurar em cada caso a singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.

O conceito de sinthoma constituiu um avanço considerável para compreender uma clínica confusa, “inclassificável”, e aquela que chamamos desde a Conversação de Arcachon de clínica da psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, a ênfase dada por Lacan ao impacto do dizer sobre o corpo antes da entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade […] é a mesma coisa” (LACAN, 1975-76/2007, p. 52). Lacan havia mostrado desde o estádio do espelho a paranoia constitutiva do sujeito em seu imaginário em relação ao outro e elaborou os diferentes tratamentos desta paranoia constitutiva. Ele chega a concluir com a teoria dos nós que a psicose paranoica consiste em que o sujeito amarre a três, em uma continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros traz o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1964/1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S(Ⱥ).

O impacto do dizer no corpo, antes de qualquer entrada em cena do olhar no estádio do espelho, depende do troumatisme.[7] Ele é apreendido a partir do furo, da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como fazendo furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamava de “clínica universal do delírio aquela que toma seu ponto de partida disso, que todos nossos discursos são apenas defesas contra o real” (MILLER, 1996, p. 90). A fórmula “todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31) remete à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que concerne a sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso subverte as diferenças feitas até então entre neurose e psicose.

Para concluir, não é excessivo dizer que, com a declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico para se defender do real não é mais a norma mesmo que haja sempre pais e mães em torno dos quais o discurso se apega mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, a esse respeito, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello

Referências
MILLER, J.-A. O Homem dos Lobos. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eólia, 1987-88.
MILLER, J.-A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32
LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. (Texto original publicado em 1954).
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).
LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original redigido em 1973).
 
[1]Texto publicado originalmente na revista La Cause du Désir, n. 98, p. 26-30, 2018.
[2] Lei de 17 de maio de 2013 que abre às pessoas do mesmo sexo, residindo na França, a possibilidade de se casarem.
[3] Procriação Medicamente Assistida.
[4] Cf. LACAN, J. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987.
[5] Cf. AFLALO, A. Réévaluation du cas de l’Homme aux loups. La Cause freudienne, n. 43, 1999, p. 85-117.
[6] N.T.: Jogo de palavras valendo-se da homofonia entre joui-sens, “sentido gozado”, e jouissance, “gozo”.
[7] N.T.: Jogo de palavras com trou, “furo”, e traumatisme, “traumatismo”.



O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares[1]

Alejandra Glaze
Psicanalista
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana/AMP
aglaze@gramaediciones.com.ar

Resumo:  Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. 

Palavras-chave: delírios familiares; imaginário desenfreado; objeto a. 

THE OBJECT a AS A COMPASS IN TIMES OF FAMILY DELUSIONS 

Abstract: In her investigation into the particularity of current family delusions, the author takes as her starting point the location of a delusion linked to an unbridled imaginary that, for this very reason, is profoundly standardizing and invasive for the child. And it points out how psychoanalysis can take advantage of another perspective of reconfiguration of families, taking as reference the object a, by nature antinomic to the current lifestyles traced with the mark of the universal. 

Keywords: family delusions; unbridled imaginary; object a.

Imagem: Sofia Nabuco

O tema proposto para esta apresentação me fez pensar muito, pois, para mim, era um obstáculo a ideia de que, para além da época, haveria algo de delírio nos assuntos familiares, ao menos no sentido que costumamos dar ao delírio quando dizemos “Todos loucos” ou “Todo mundo é louco”.

Portanto, para além da questão da época, sabemos que cada criança provém de um delírio familiar, se pensarmos que dizer “todos delirantes” nada mais é do que afirmar que não há possibilidade de alcançar normas comuns. Ou seja, cada um faz obstáculo, ou mesmo, é um obstáculo à norma para todos. Mas não proponho isso considerando a via de uma despatologização (como faz hoje a clínica moderna ligada ao DSM[2] e às neurociências), mas como forma de dizer que a exceção não faz a regra.

Esse é o caminho atualmente aberto em direção aos estilos de vida que, como disse Jacques-Alain Miller no texto de apresentação do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, implica “uma liberdade imprescritível porque é a dos sujeitos de direito” (MILLER, 2022, p. 17), quando sabemos que hoje são os direitos humanos que regem a subjetividade moderna.

Para chegar rápido ao ponto, esse delírio familiar que vocês localizam como uma questão de época, no caso da neurose, ele descreve mais um imaginário, de certo modo, um tanto desenfreado. Considero que esta é a questão da época: um delírio ligado a um imaginário desenfreado.

Vou ler uma citação de Laurent, retirada de seu artigo “Responder al niño de mañana”, referente à narrativa pós-moderna sobre a criança:

A criança e o adolescente se veem submersos em uma produção industrial de ficções romanceadas que os ocupam enormemente, pois temos que contar as horas de televisão, de ficção televisiva, para sonhar sua vida frente a uma tela. Se somarmos a isso os videogames e os jogos de encenações, vemos que a criança está ligada a toda uma trama ficcional, narrativa, romanceada, que invade a sua vida como nunca. Ela lhe proporciona, amplificando, todos os elementos que a ficção edípica não pode transmitir. (LAURENT, 2001, p. 98)

Isto é o que podemos chamar de imaginário desenfreado.

Embora o delírio familiar seja o próprio Édipo, devemos nos perguntar sobre a particularidade de nossa época para esse delírio familiar, que nada mais é do que a multiplicação deslocalizada do núcleo familiar e dispersa no tecido do mundo ao qual a criança chega. É assim que eu respondo o porquê de vocês localizarem o delírio familiar em nossa época. Nessa deslocalização. E isso tem suas consequências subjetivas e clínicas. Um imaginário que, muitas vezes, é profundamente invasivo, no qual a criança é aprisionada e de onde é difícil retirá-la.

Mas vamos abordar essa questão sob outra perspectiva: sabemos que o que deve ser feito como homem ou como mulher, o ser humano terá que apreender inteiramente com o Outro, pois pertence “ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro”, como disse Lacan (1964/1988, p. 194) no Seminário 11, acrescentando que “o Édipo é propriamente isso”, essa captura nessa trama que vem do Outro. 

Isso nos coloca diretamente no que podemos chamar de a trama do familiar, a maneira pela qual se tece aquilo que dá forma a nossa vida, isso que nos faz sujeitos tal como o somos, embora sempre haja um resto… Resto com o qual também tecemos, nem mais nem menos, aquilo que nos define. Um modo de sermos nomeados pelo outro, de onde cai essa peça indizível como produto do que eu chamaria a operação do familiar sobre cada um. O não familiar, que também opera como esse lugar no qual não podemos nos reconhecer a partir dos brasões que vêm do outro, desde essas marcas que vêm do outro familiar.

Mas vamos por partes, porque estou lhes contando o final desse percurso.

Até mesmo Jacques-Alain Miller – na mesma linha de Laurent –, em seu artigo “Em direção à adolescência”, disse que

A incidência do mundo virtual […] faz com que o saber, antes depositado nos adultos, esses seres falantes que eram os educadores, incluindo aí os pais – era necessária a mediação deles para aceder ao saber –, esteja agora automaticamente disponível mediante uma simples demanda formulada à máquina. O saber está no bolso, não é mais o objeto do Outro. [E isso me parece fundamental para o tema que me propuseram para esta atividade.] Antes, o saber era um objeto que era preciso buscar no campo do Outro, era preciso extraí-lo do Outro pelas vias da sedução, da obediência ou da exigência, o que exigia que se passasse por uma estratégia com o desejo do Outro. (MILLER, 2015, p. 24.)

Poderíamos dizer que este é um outro modo de definir a decadência do patriarcado.

A internet é povoada por manuais que sempre tentam, sem sucesso, e às vezes até com consequências dramáticas, funcionar como o Outro que define a maneira de ser homem ou mulher, de adquirir algum tipo de identidade, às vezes baseada em ideais, mas muitas vezes também em gozos.

Vocês podem ver um exemplo no WikiHow, uma página na qual existem diferentes manuais para adolescentes, eu apenas listo alguns:  Como agir de forma inteligente frente aos seus amigos, Como aparentar ser meiga, Como beijar um rapaz, Como pegar na mão pela primeira vez (apenas para meninas), Como conseguir um namorado no ensino médio, Como flertar com os olhos,  Como saber se uma garota gosta de você, Como abraçar seu namorado/namorada pela primeira vez, Como agir como uma adolescente normal, Como agir quando o cara que você gosta está por perto, Como ser uma garota perfeita, ou até mesmo Como ser uma garota má.

Pois bem, os manuais, os protocolos, os costumes – mas também o Édipo como trama – vêm tentar preencher esse furo que Lacan definiu com a frase: não há relação sexual.

Mas o que isso significa? Significa que o que faz objeção ao pleno dizer é o mesmo que se opõe ao encontro harmônico entre os sexos e provém da captura do ser humano na linguagem, do caráter do inconsciente estruturado como linguagem. É uma outra forma de enunciar a castração freudiana.

Mas sigamos com o nosso tema. Um famoso slogan dizia: “Pertencer tem seus privilégios”: a uma família, a um grupo, a uma tribo, a uma fraternidade, a uma escola… e um longo etcetera, o que conduz ao ponto do primado do Outro do lado do amor e, por conseguinte, aos assuntos de família. Pois bem, hoje em dia, em muitos casos, esse gosto pelos privilégios que advinham do pertencimento foi perdido? Já que isso que interpela como sendo o estranho/o diferente, que retira da série e reenvia a um lugar Outro que aquele da cena familiar, parece ser o que rege hoje a vida dos sujeitos. Qual seria a nossa prática nesses casos? Todas essas são perguntas pertinentes aos tempos em que vivemos.

Outra perspectiva que aponta para o mesmo: em nosso tempo, a paternidade foi substituída pelas chamadas parentalidades, que não é mais do que um outro nome para o concebido mal-entendido dos sexos.

Desse modo, o planejamento familiar hoje responde ao legítimo direito ao gozo, pelo qual o sujeito contemporâneo defende seu direito de ter e formar uma família segundo as suas condições de gozo. Em suma, a conformação da família continua respondendo à deriva do sintoma como maneira de responder à inexistência da relação sexual para cada um. Portanto, longe de uma leitura conservadora dessas mudanças na estrutura familiar, devemos pensar em suas consequências sobre os sujeitos e na clínica que a acompanha. É onde está a psicanálise. É a de seguir pensando a resposta do sujeito como um modo de lidar com o mal-entendido entre os sexos, enfim, com a ausência da relação sexual. E, nesse sentido, orientar-se em direção ao real da família, é colocar – frente ao mal-entendido dos sexos – o sintoma como suplência da não relação sexual. E, nessa linha, o Édipo não seria mais que um sintoma do sujeito. Seria sua maneira de fazer com esse mal-entendido e com o gozo, com aquele hetero que aparece e não é dialetizável, que não entra em nenhuma forma de troca.

Como aludi anteriormente, passamos da autoridade paterna para a autoridade parental. E o que emerge dessa modificação é a parentalidade que, sem dúvida, teve consequências no modo de constituição da família.

A parentalidade repousa sobre a exclusão de toda combinação ou complementaridade de funções, implicando em uma simetria e uma igualdade entre o pai e a mãe no que diz respeito à ordem familiar. Dessa forma, a família vem substituir o pai e a mãe. E o termo parentalidade vem para substituir o termo família. E também o do parentesco. Ele advém da mudança de autoridade no núcleo da família no marco da lei.

Há pouco tempo, a lei argentina substituiu o conceito de patria potestad[2] pelo de responsabilidade parental. A palavra potestad se conecta com o poder que evoca a potestad do direito romano, centrado na ideia da dependência absoluta da criança em uma estrutura familiar hierárquica, enquanto a responsabilidade “implica o exercício de uma função encabeçada por ambos os progenitores, que se manifesta num conjunto de faculdades e deveres destinados, primordialmente, a satisfazer o superior interesse da criança ou do adolescente”. (Isso na terminologia jurídica, é claro.)

Parentalidades? Claramente se trata de um neologismo cunhado há pouco tempo e destacado por M.-H. Brousse em 2005, que dá conta da manifestação dos efeitos sobre a ordem familiar produzidos pela mutação da civilização, assinalada por Lacan a partir dos anos 70.

Antes se falava em guarda, agora em dever de assistência, e isso era decidido pelos pais com a concordância de um juiz. Agora, dependendo da idade da criança, ela pode pedir para falar com o juiz e ter o direito de expor os seus desejos. E é interessante o que essa mudança de paradigma produz no âmbito do núcleo familiar. Enquanto o Édipo, baseado na autoridade do pai, marcava uma relação que consistia na pregnância de uma lei velando a ausência da relação sexual, a parentalidade produz uma equivalência entre mãe e pai. Mas nesse apagamento da diferença pai/mãe e, por conseguinte, de suas funções, vemos também que a diferença homem/mulher também é afetada, assim como todo o sistema de parentesco.

Ser falado pela família, pelo desejo do Outro, fazer parte de um discurso familiar, é uma tentativa de dar sentido ao segredo sobre o gozo que os une, é cernir o real tratado por esse discurso e se encontrar com a estrutura ficcional de toda verdade. Em suma, toda família é um aparato de gozo, uma forma de salvaguardar o segredo do gozo como indizível.

Ressaltemos também que o ensino de Lacan desfamiliarizou a doxa freudiana do Édipo, desalojando a metáfora paterna para, assim, afastar-se do mito e da determinação do destino, orientando nossa clínica para além de Édipo. O ponto central de seu ensino foi o de localizar o gozo e orientar-se para Um real que as ficções do mito e da lei do pai para todos pretendiam cobrir.

A questão é que justamente o que uma análise propunha como desfamiliarização, uma clínica mais além do gozo como separação dos significantes que vêm do Outro, hoje vemos isso em ato no social, de modo que talvez pudéssemos dizer que os sujeitos chegam ao consultório desfamiliarizados.

A partir do último ensino de Lacan, somos alertados para uma teoria que poderíamos chamar de pós-edípica do inconsciente, que separa o modo de gozo do sujeito e do Outro, da função paterna.

Já em 1970, nas Jornadas da Escola Freudiana de Paris, Lacan sustenta o declínio do pai e desenvolve as suas consequências, que não são poucas. Poderíamos defini-la como uma ordem de vizinhança, que vem romper com aquela ordem hierárquica que implicava a autoridade única.

Ele postula a fragmentação do Nome-do-Pai (um multiculturalismo que empuxa para modos segregativos de gozo) e, em 1974, o associa a extensão do domínio do real produzido pela ciência ao desenvolvimento do poder da religião, um poder que não é o mesmo de antes, uma vez que se tornou a religião dos irmãos e não do Pai, produzindo-se, assim, o que Brousse chama de “multirreligiosismo”. O Islã é o contraexemplo disso, e assim Miller diz em seu texto “Em direção à adolescência”: “O Islã talvez seja o discurso que tem melhor em conta que a sexualidade faz um furo no real, que coagula a relação sexual e que organiza o laço social na não-relação” (MILLER, 2016, p 27.). É aquele discurso que diz exatamente o que é ser mulher, homem, mãe, etc. Ou seja, no Islã não há lugar algum para o mal-entendido.

À diferença da força que tem a identificação com um S1, à maneira do Islã, na modernidade as insígnias são etéreas. E assim esse neologismo das parentalidades descreve uma modificação no laço social contemporâneo que se sobrepõe à família, referindo, de alguma maneira, a um sonho de universalismo e à fragmentação do Nome-do-Pai. A parentalidade implica que o pai seja substituído pelos pares, e a monoparentalidade ou co-parentalidade provém desse princípio.

Mas saibamos que a previsão de Lacan sobre a ascensão da segregação é correlativa a esse apagamento da diferença em favor da semelhança: os mesmos com os mesmos. Deste modo, podemos dizer que é a família que vem substituir o pai e a mãe, apagando o resto real que assegurava a diferença. Assim, se confia à ciência o real da reprodução, separada do simbólico da filiação.

A parentalidade é o nome que vem deslocar os significantes anteriores de autoridade, tal como eles se desprendiam de um sistema de parentesco fundado na diferença dos sexos e no intercâmbio de mulheres. Dessa forma, podemos considerar a parentalidade como um sintoma que surge da modificação desse sistema. 

Porém, o segredo que cobre a estrutura familiar, seja homossexual ou heterossexual, monoparental ou não, é o de velar sempre o hetero do gozo feminino, o gozo do Outro que habita em cada unidade familiar. Todas essas formas que hoje chamamos de parentalidades são formações familiares que se ordenam em torno desse gozo como hetero, como heterogêneo a qualquer ordenação governada pelo significante do Nome-do-Pai.

Seguindo Bassols (2016, s/p), cito: “se a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo reordena hoje a família, e isso em formas tão díspares como equivalentes entre si”.

Esse segredo do gozo é o umbigo do real em torno do qual giram as novas formações familiares com todas as suas múltiplas variações, fazendo-se e desfazendo-se em função das formas cada vez mais singulares de gozo sintomático. Então, podemos definir a família como o resultado de um mal-entendido entre os gozos, ou um mal-entendido entre os sexos, diante do qual o sintoma se coloca como suplência da não relação sexual. E é assim que a instabilidade nos vínculos familiares de hoje segue a lógica de uma equivalência entre significantes mestres que são trocados segundo as condições de gozo.

Porém, há outra faceta dessa parentalidade: ela gira em torno da criança como objeto fundamental, definindo a nova família. Uma parentalidade como sintoma, que se impôs nas sociedades modernas, tendo a criança em seu centro como objeto, o que configura outro sintoma da época. O abuso, devido ao qual decorre essa atenta vigilância em nossa época, pois, mais do que nunca, é necessário reafirmar o tempo todo a criança como sujeito, frente a esse empuxo de tomá-los como meros objetos de troca, em uma encarnação do objeto a, e, por conseguinte, tomados pela pulsão em seu estado puro, com suas consequências no corpo. Um objeto apaixonadamente desejado e rejeitado ao mesmo tempo, disse Laurent (2010) em “A criança como real do delírio familiar”.

Na época do sujeito “familiarizado” (e digo isso um pouco comicamente), dizíamos que o sujeito consultava um analista quando a determinação significante falhava, furava. Nessa diferença entre o dever ser (em geral atormentado por Ideais que vem do Outro) e o que se é. Bem, qual seria a diferença nessa época do imaginário desenfreado? Às vezes simplesmente se trata de desembaraçar-se dele. Éric Laurent disse muito bem:

“Diante da falha nos semblantes, que se aprofunda, um duplo desejo vem à luz, de acordo com a lei de ferro do superego. De um lado, um chamado invasivo à segurança e seu corolário: a instalação de uma sociedade de vigilância com seu panóptico maluco. De outro, o fascínio de viver como uma máquina finalmente liberta dos semblantes.” (LAURENT, 2012, p. 58)

É o que Miller havia dito sobre a palavra do pai que adoece, que o pai é traumático. E aqui se abre uma nova perspectiva para a época. O espectro de respostas é variado é vai desde a violência desencadeada até a criação de novas formas de existência.

Vejamos um exemplo. Sacha, um jovem de São Francisco, busca desembaraçar-se disso que vem do Outro em uma nova maneira de se vestir: saia de mulher e camisa de homem. Não buscava provocar, senão mostrar que não se identifica nem com o sexo feminino nem com o masculino, e assegurava não pertencer a nenhuma condição sexual. São vários os que o seguem, e um deles define sua posição do seguinte modo: “Não binários em um mundo binário”. O que destacam é “poder tomar decisões no seu dia a dia sem se sentirem deslocados”. Que o mundo não se divida em “para meninos” ou “para meninas”, mas que haja um leque mais amplo de possibilidades. Ou como escreve um deles: “bonecas são para meninas, caminhões são para meninos, quebra-cabeças são neutros… Meu gênero é um puzzle”.[4]

Essa identidade puzzle é o ajustamento, com a ajuda do discurso da ciência, do homem “liberado” dos semblantes. Mas que, muitas vezes, se constitui também como um fantasma, na medida em que regularia o mal-estar na relação sexual como uma nova forma de normativização.

Nesse sentido, é interessante o que formula Paula Sibila em seu livro La intimidad como espectáculo, em que diz que há uma permanente incitação à criatividade pessoal, à excentricidade e à busca de diferenças, que, sem dúvida, não cessa de produzir cópias descartáveis do mesmo. Uma capacidade de criação que se vê sempre capturada sistematicamente pelos tentáculos do mercado, desativando permanentemente essa invenção. Uma época em que qualquer demanda vinda do Outro, aparece como uma exigência tirânica que nem sempre é respondida da melhor maneira.

Disso também dão conta os novos libertários, um extremo liberalismo baseado na ideia de uma liberdade sem vínculos com o outro, inclusive sem responsabilidade social e rechaçando a política, muito distante do liberalismo que se baseava nas liberdades individuais e que foi a pedra fundamental para a queda dos absolutismos, constituindo cidadãos com direito a uma autoridade política por consenso. Pois bem, hoje muitos jovens na Argentina se dizem libertários, e, inclusive, um de seus líderes chega a propor a venda gratuita de órgãos (“Cada um é dono do seu corpo”).

Porém, seu outro lado é que o sujeito deve ser deixado “livre” em relação às suas contingências, de modo que o que eles propõem é um país sem Estado, cada um por sua conta e risco. Ou seja, algo da ordem de um mundo sem Outro em uma meritocracia levada ao extremo. Um deserto do real. Às vezes, inclusive, conduz a uma violência de tom reivindicativo que não chega a tomar a forma de um chamado ao Outro, mas como uma denúncia.

Seria realmente muito simples se houvesse uma força exterior que nos oprimisse, família, Édipo, etc., e que, libertando-nos dela, acessaríamos a um outro estatuto de existência. É uma ideia determinista distante do que a psicanálise sustenta, pois por mais determinados que sejamos por nossa história, regras de família, Édipo, construção fantasmática, etc., sempre estará em jogo algo que está mais além das determinações e que é a escolha contingente por parte do sujeito a partir de um elemento que não é feito para dominar, comandar, submeter, mas para causar o desejo: o que Lacan chamou de objeto a, que obstrui toda ordem e norma. O objeto a como causa, esse obscuro objeto do desejo, uma parte do corpo que foi cedida ao campo do Outro e que faz furo. Uma falta com a qual desejamos. Uma cessão ao Outro que depois iremos buscar, justamente, no campo do Outro.

É, sem dúvida, a única aposta possível na clínica desse delírio generalizado, desse imaginário desenfreado: construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço, em uma época na qual o sujeito se vê obrigado a se tornar o inventor de seu próprio modo de ser e estar no mundo.

Para terminar, e seguindo Laurent, trata-se de propor, a partir de nossa clínica, uma reconfiguração das famílias em torno daquele objeto que descompleta, que não tem nada de universal, que é sempre hetero e propor uma nova forma de abordagem do sintoma, diferente daquela clínica que despatologiza o sujeito ancorando-o nos estilos de vida, sintagma com o qual J.-A. Miller lê um traço da época; essas formas diversas, mas também unificadoras, com os quais se apresentam os estilos de vida atuais.

Menos do que um mundo de desejo, este é o mundo do gozo, uma disjunção que implica um empuxo para entender as mutações e multiplicação de desorientações e estilos de vida, levando a graves fundamentalismos ou explosões de violência, bem como ao chamado desencadeamento da questão de gênero. 

Tradução: Patrícia Ribeiro
Revisão: Maria Rita Guimarães

Referências 
BASSOLS, M. Famulus.  Lacan XXI – Revista FAPOL Online, ago. 2016. Disponível em: <https://www.lacan21.com/sitio/famulus/?lang=pt-br>. Acesso em: 13 jul. 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LAURENT, É. Responder al niño de mañana. Carretel – Revista de la Diagonal Hispanohablante, Nueva Red Cereda, n. 4, 2001.
LAURENT, É. A criança como real do delírio familiar. In: KUPERWAJS, I. (org.). Psicanálise com crianças 3. Tramar lo singular. Grama Ediciones: Buenos Aires, 2010.
LAURENT, É. A ordem simbólica no século XXI: consequências para a cura. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 12, 2012.
MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 72, mar. 2016.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 32, 2022.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 02 de junho de 2023.
[2] DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na edição em português.
[3] Patria potestad, ou, conforme o direito brasileiro,  “pátria potestade”, é um instituto jurídico originário da Roma Antiga e adotado por alguns países, com diferentes abrangências, para regular as relações entre o genitor ou genitores com seus filhos não emancipados. (PATRIA postestad. Disponível em:  <https://es.wikipedia.org/wiki/Patria_potestad>. Acesso em: 13 jul. 2023.)
[4] N.T.: Quebra-cabeça.



Todo mundo é louco[1]

Frederico Zeymer Feu de Carvalho
Psicanalista, A.P. da Escola Brasileira de Psicanálise AMP
fredericofeu@uol.com.br

Resumo: Texto de explicitação do aforismo lacaniano “todo mundo é louco”, tema do congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2024, destacando seu contexto de enunciação, ligado ao impossível de se ensinar, e o último ensino de Lacan, do qual esse aforismo é uma bússola. 

Palavras-chave: loucura; psicose; delírio; discurso analítico.

EVERYONE IS CRAZY

Abstract: Explanation text of the Lacanian aphorism “everyone is crazy”, theme of the 2024 Congress of the World Association of Psychoanalysis, highlighting its enunciation context, linked to the impossible to teach, and Lacan’s last teaching, of which this aphorism is a compass. 

Keywords: craziness; psychosis; delirium; analytical speech.

Imagem: Renata Laguardia

1.
A frase “todo mundo é louco” é um aforismo criado por Lacan no ano de 1978. Ele pode ser tomado como um “condensado do seu ultimíssimo ensino”, conforme proposto por J.-A. Miller (2007-2008/2015, p. 309). Está sob a égide e o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à não garantia do Outro concernindo, portanto, à linguagem como tal. Esse aspecto recobre duas proposições negativas de Lacan: “não há Outro do Outro” e “não há metalinguagem”, proposições equivalentes entre si, que refletem tanto a incompletude do simbólico quanto a inconsistência de um sistema lógico, tal como abordado pela tradição lógico-filosófica do século XX. O segundo aspecto é a intraduzibilidade do gozo. Esse aspecto não concerne ao sistema da língua, tomado em si mesmo e por si mesmo, mas à falta de um significante no Outro para nomear ou referir o gozo, conforme o “princípio da indeterminação da tradução” de Quine (1951), segundo o qual haverá sempre inadequação entre a palavra e a coisa, o sentido e a referência.

No ensino clássico de Lacan, S(Ⱥ) designa, primordialmente, a incompletude e a inconsistência do Outro que está no fundamento da ordem simbólica, sendo então designado como “significante de uma falta no Outro” (LACAN, 1960/1998, p. 832), cujo correlato é $, o sujeito recoberto pela barra devido à falta de um significante que o represente, mas aludindo também àquilo que o Nome-do-Pai não é capaz de nomear.

No ultimíssimo ensino de Lacan, esse que começa, segundo a periodização proposta por Miller, no capítulo nono do Seminário 23, S(Ⱥ) se torna o “furo no real”. Ou seja, passamos da incompletude e inconsistência do simbólico a um furo no real. Lacan se refere a esse matema como o “verdadeiro furo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 130), remetendo ao troumatisme (em francês, trou significa um “buraco”), ao traumatismo da incidência do gozo fora do sentido que afeta o falasser, para além, portanto, da falta inerente ao simbólico que afeta o sujeito. No traçado dos nós, esse furo é localizado fora do registro simbólico, na medida em que não há o Outro do simbólico, e na conjunção entre o Imaginário e o Real, demarcando a opacidade do imaginário. Talvez a única proposição possível para esse furo no real seja uma outra proposição negativa: não há proporção sexual (Il n’a pas de rapport sexuel). Estamos, portanto, confrontados com a presença desse furo no real, com esse troumatisme, para além da falta ou limite do simbólico. Esse traumatismo é o que se apresenta no acontecimento de corpo que marca a incidência do gozo como fora do sentido.

Essas considerações nos remetem à questão enigmática por excelência, “que queres” (che vuoi), mas na medida em que ela permanece sem resposta. Para além da dialética do desejo que caracteriza o ensino clássico de Lacan, segundo a qual o desejo é sempre desejo de desejo, tal questão nos remete ao gozo como fora de sentido. Se pudéssemos localizar o furo no real, talvez seja justamente nessa inadequação do gozo, na medida em que o gozo do falasser não se articula ao Outro, diferentemente do que a falta ligada à castração permite articular na dialética do desejo, na medida em que o neurótico é aquele que “faz de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia da função do Outro” (LACAN, 1962-63/2005, p. 56). Desde esse ponto de vista, a loucura de todo mundo, ordinária, que se refere ao falasser, seria mais próxima de um parafuso a mais que permanece solto ou desarticulado do que de um parafuso a menos que faltaria no universo dos parafusos.

2.

Como proposição, “Todo mundo é louco” é um paradoxo, ou seja, não tem estatuto lógico, assim como a célebre frase de Epimênides, “todo cretense é mentiroso”, dita por um cretense (MILLER, 2022). O paradoxo consiste em que ambas as proposições só poderiam ser ditas ou de um ponto de vista transcendental, um ponto de vista fora do conjunto de todos os mentirosos cretenses ou de todos os loucos, lugar de exceção que desmente a proposição universal, ou de um ponto de vista imanente, ou seja, de um ponto de vista particular de quem é designado mentiroso ou louco, só podendo ser dita por um indivíduo do conjunto, ou seja, por um mentiroso ou por um desarrazoado, sem ter alcance universal.

Como um aforismo da prática analítica, por sua vez, a frase “todo mundo é louco” equivale a uma generalização decorrente da incidência de uma experiência enigmática de gozo conotada por um S1, uma marca de gozo, ao qual se liga um S2, ou seja, um saber, e à disjunção entre eles.

Se postulamos, com esse aforismo, a igualdade fundamental do falasser, é porque esse S1, como tal, é fora-de-sentido; como consequência, o S2, que busca engendrar algum sentido a essa experiência sem sentido, será necessariamente delirante. Passamos então do operador de perplexidade, S1, ao saber delirante, S2 (MILLER, 2007-2008/2015).

É a essa experiência primária do gozo que se refere o matema S(Ⱥ) no ultimíssimo ensino de Lacan. Não há resposta para o enigma endereçado ao Outro em relação a essa experiência. Ela se impõe ao ser falante a partir de uma dupla certeza: isso quer dizer alguma coisa e isso concerne a mim, visto que essa experiência é um acontecimento que concerne ao meu corpo; mas não se sabe o quê isso quer dizer, engendrando, assim, o trabalho inconsciente de cifração.

A certeza concerne, portanto, ao real, e não ao simbólico. Ela pode ser formulada nesses termos: há gozo ou há do gozo. Mas, quando essa certeza se estende ao campo da linguagem, entramos no delírio.

Duas vias se colocam a partir daí, duas formas de se arranjar com esse furo no real. A primeira delas consiste em atribuir um sentido retroativo a essa marca de gozo, S1, a partir do saber inconsciente, S2, no sentido de um trabalho de interpretação do inconsciente em torno do desejo do Outro, ou seja, levando em conta um laço com o Outro. Mas como o Outro é barrado, esse saber conserva seu caráter delirante. Freud chamou essa significação retroativa de naträglicha posteriori, chamando a atenção para seu caráter ficcional e falacioso. De fato, se a fantasia é uma resposta do real a essa experiência enigmática de gozo, ela não deixa de levar em conta um laço com o Outro por intermédio da extração do objeto a, ao qual o neurótico se consagra, ao transportar para o Outro a função desse objeto sob a forma da Demanda do Outro, $ <> D, como Lacan desenvolve em seu Seminário sobre a angústia (LACAN, 1962-63/2005).

Essa via demonstra o limite do teste de realidade como uma barreira para o delírio. Miller aborda esse ponto a partir do texto freudiano “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (FREUD, 1911/1969). Freud diz, nesse texto, que a passagem do princípio do prazer ao princípio de realidade não afeta o inconsciente como tal e que o princípio de realidade é, na verdade, uma continuação do princípio do prazer sob novas condições. Em outras palavras, a renúncia ao princípio do prazer, que é soberano (há gozo), só é possível por intermédio de um ganho de prazer, de uma compensação, de uma infiltração da fantasia no campo da realidade, o que mostra que o gozo, como tal, é impossível de negativizar.

A segunda via do falasser para se arranjar com o furo no real refere-se à busca de uma significação da experiência enigmática fora do laço com o Outro, sem o apoio no Outro ou desacreditando o Outro, no sentido da Unglauben, da descrença. Essa possibilidade pode se dar de diferentes maneiras. O saber pode assumir a forma de um delírio extraordinário, de uma auto elaboração da experiência enigmática de gozo, como vemos em Schreber, ou de uma manipulação da língua, como vemos em Joyce, ou seja, a partir de uma invenção que não está no cardápio do Outro. Ambos se utilizam do material da própria língua para criar uma nova língua, particular, que remodela o Outro, em lugar de fazer um laço com ele.

Nesse sentido, podemos dizer ainda que a ironia esquizofrênica, como uma outra maneira de fazer frente ao furo no real, toma partido de S(Ⱥ), na forma de uma crítica feroz do Outro, sem remendá-lo, e sem que, necessariamente, esse furo no real seja tamponado pelo delírio.

Ao considerar essas duas vias, a via da neurose e a via da psicose, tomamos a afirmação genérica “todo mundo é louco” de uma forma restrita, o que permite dizer que a psicose, ao contrário da loucura, não é para todo mundo. Provisoriamente, podemos concluir, então, que todo mundo é louco antes de ser ou não psicótico.

A experiência universal do delírio (continuísta) se concilia, assim, com o realismo clínico da estrutura (descontinuísta). Em outros termos, o aforismo “todo mundo é louco” concerne mais a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica, do que a uma orientação clínica, no sentido da sua estratégia e da direção do tratamento.

3.

Se o contexto geral do aforismo “todo mundo é louco” pertence ao ultimíssimo ensino de Lacan, seu contexto específico pode ser localizado no ano de 1978. Miller solicita a Lacan que ele intervenha, a partir de um escrito, em favor do Departamento de Psicanálise de Paris VIII (Universidade de Vincennes). Esse texto ficou conhecido com o título “Lacan a favor de Vincennes” e foi publicado em português no número 65 da Revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise.

Esse contexto específico leva em consideração as questões sobre o ensino da psicanálise, não só na universidade. Ele aborda, em primeiro lugar, a diferença entre o discurso do analista e o discurso da universidade, mas também as dificuldades de ensino da psicanálise se levarmos em consideração a estrutura do próprio discurso analítico, uma vez que o agenciamento desse discurso exclui o saber exposto da psicanálise. Como ensinar então o que não se ensina?

Nesse texto, a frase “todo mundo é louco” é acompanhada da explicitação “isto é, delirante”, que a complementa. A frase que se segue é a seguinte: “é isso mesmo que se demonstra no primeiro passo rumo ao ensino”. Ou seja, como afirma Miller (2022), afirmar que todo mundo delira é a condição de todo ensino. Trata-se de uma “crítica feroz à função do ensino” (MILLER, 2022, p. 11), forma da ironia analítica que não deixa de remeter à ironia esquizofrênica. A frase refere-se, portanto, ao impossível inerente ao ofício de ensinar qualquer coisa, ao impossível de educar, como dizia Freud, e não à clínica propriamente dita e ao impossível próprio do discurso analítico.

Pelo contrário, podemos dizer que é justamente por conceber que há um impossível em jogo, ou seja, por se orientar pelo real, que a prática analítica não é apenas um delírio. Pois nada pode fazer frente ao delírio senão o real, e não a razão ou a crença.

Isso não quer dizer que a prática analítica nada tenha a ver com o saber. Mas trata-se de um saber suposto e não de um saber exposto que se ensine ou que se aplique como uma técnica. No discurso do analista, o saber é sous-posé, sub-posto ao objeto a, seu agente (a/S2). Esse saber suposto é um saber deslocalizado e contingencial. Não sabemos quando ou de onde ele pode emergir, mas ele é suposto advir da transferência. Ele é também disjunto de S1 (S2 // S1), o significante mestre do inconsciente. O que isso quer dizer?

Trata-se, justamente, da emergência de um novo saber, disjunto da cadeia significante (S1 – S2) que subsiste no inconsciente como automaton (repetição do mesmo); de um saber que não engendra um novo sentido, mais um saber-fazer com o S1 isolado pela experiência analítica como marca de gozo. Esse saber disjunto, fruto da experiência analítica, de nada serve para outro analisante. Por isso não pode ser ensinado. Ele é limitado por seu alcance singular e pragmático. Mesmo que ele seja uma espécie de ficção ou de invenção, como acontece frequentemente na psicose, esse limite singular e pragmático é também um limite ao delírio. Mas podemos dizer que esse S2, oriundo da prática analítica, é um saber que concerne a um real e ao embate com o fora-do-sentido.

4.

É possível evocar, ainda, o contexto contemporâneo desse aforismo, ou seja, o imperativo da despatologização. Miller (2022, p. 10) observa que Lacan não diz “todo mundo é normal”, mas “todo mundo é louco”, o que convém mais a um apagamento dos limites entre normalidade e loucura do que a uma despatologização generalizada. Todo mundo é louco à sua maneira.

A despatologização, ao contrário, vista como um imperativo contemporâneo, supõe, por detrás da “reivindicação democrática de uma igualdade fundamental dos cidadãos” (MILLER, 2022, p. 9), a conversão de uma patologia a um modo identitário ligado a um determinado estilo de vida. O estilo de vida viria, assim, no lugar de uma designação clínica. O fim da clínica, que podemos ver no horizonte dessa reivindicação, busca também o fim de toda hierarquia fundamentada no saber, isto é, de toda assimetria na relação entre médico ou profissional psi e paciente.

Mas, ser nomeado por um estilo de vida pode ser tão alienante quanto uma nomeação diagnóstica – em relação à qual a psicanálise sempre se pautou por uma reserva, em especial em sua oposição ao DSM e a favor do respeito à singularidade –, embora a despatologização, seja, ao menos aparentemente, menos segregativa.

Essa reivindicação se estende ao campo jurídico, afirmando-se a partir do direito ao próprio corpo e à nomeação de si mesmo, como na frase autodeclarativa “eu sou o que eu digo que eu sou”, forma contemporânea do cogito ergo sum (“penso, logo existo”) de Descartes, que reafirma a soberania do Eu, ficando o médico ou o psi, apesar de algumas ressalvas da lei, sob a autoridade do paciente.

Em relação a essa autodeclaração, podemos formular a questão: o que é uma autoridade clínica? Recorro aqui a uma expressão conhecida de Carlo Viganò para se referir ao saber contingente que advém da experiência analítica, mesmo dentro de uma instituição. A autoridade clínica não é o saber do especialista; tampouco aquilo que o paciente pode dizer de si mesmo, mas o que se impõe por si mesmo na medida em que, como diz Lacan, “isso fala”.

5.

Por fim, gostaria de me referir à conferência feita por Pascale Fari, membro da Escola da Causa Freudiana de Paris, pronunciada na cidade de Rosário, em uma atividade preparatória da XXIII Jornada da Escola de Orientação Lacaniana, em outubro de 2022. Essa conferência parte de uma formulação de Miller durante a Conversação de Antibes, em torno das psicoses ordinárias: “falar é um transtorno de linguagem” (BATISTA; LAIA, 2012, p. 250), que se articula à frase dita por Lacan, em 1978.

De fato, a frase “todo mundo é louco” pode ser tomada em um sentido banal. Somos todos loucos na medida em que falamos a torto e a direito, em uma fuga desenfreada do sentido, sem nos preocuparmos se o que falamos existe ou não. A ideia de que “falar é um transtorno de linguagem” enfatiza, por sua vez, mais as repercussões e ressonâncias da linguagem no corpo, o fato de que padecemos da linguagem que falamos.

Isso é evidente, por exemplo, em relação à injúria. Mas todo delírio está ligado, de alguma forma, a uma significação íntima. Um elemento, um significante qualquer, de repente se destaca do conjunto articulado da linguagem e se absolutiza, torna-se louco, no sentido de um significante primordial que pode, até mesmo, ressignificar todo o conjunto da língua, como acontece com Schreber.

Lacan chamou de lalíngua a existência da língua fora do laço social e que subsiste à normalização da linguagem pelo discurso. “Lalíngua encarna esse núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana” (FARI, 2023, s/p). Sendo assim, podemos dizer que não existe A Língua, que a língua é uma multiplicidade inconsistente, e que só existem línguas particulares, efetivamente faladas, mutantes e vivas, como uma ficção gramaticalmente ordenada por regras de uso, mas cuja significação íntima não pode ser compartilhada. É o laço social que normaliza o sentido, isto é, os desvios de lalíngua, introduzindo uma rotina, uma pragmática de seu uso no mar dos mal-entendidos.

O que especifica o esquizofrênico, diz Lacan, é o fato de habitar a língua sem a ajuda dos discursos estabelecidos. É o que revela um paciente que se inquieta pelo fato de se sentir excluído do grupo de colegas na escola: “Eu me dirijo a eles, fazendo uma pergunta. Eles podem até me responder, mas isso não desencadeia nenhuma conversa”. Ele deseja entrar no laço social, mas é como se não tivesse a senha de acesso, e isso o angustia a ponto de se sentir um objeto estranho, não admitido nos agrupamentos sociais, por não compartilhar do mesmo regime de crenças, ou melhor, pela dificuldade em fazer semblante social com a linguagem.

Essa dificuldade típica da psicose é inerente a todo ato de tomar a palavra. Não quando se fala pelos cotovelos, como se diz, seguindo o moinho das palavras, mas quando o uso da palavra exige que se diga “eu” como sujeito da enunciação. Uma paciente, ao retornar para uma segunda entrevista, começou a sessão exatamente com essa pergunta essencial: “quem fala?”. A paciente se refere “a quem cabe tomar a palavra em uma sessão analítica?”. Certamente, há uma proliferação de vozes que falam em nós e que serão decantadas no decorrer de uma análise; mas essa pergunta, “quem fala?”, não deixa de evocar a emergência de um sujeito no moinho das palavras, seja quando se faz um ato falho ou um Witz, seja para operar o corte veiculado por um ato de enunciação.

Ao tomar a palavra, o falasser corre sempre o risco de se desconectar do Outro, por falar a mais ou a menos, por se mostrar inadequado, por expor uma forma de satisfação sintomática, enfim, uma forma particular de recortar e usar a linguagem e de usufruí-la como sua lalíngua. O corpo goza em silêncio, mas é com as marcas de gozo fixado em um acontecimento de corpo que se fala.

Não sem razão, o ato de tomar a palavra está na raiz de muitas formas de desencadeamento da psicose. Se falar é um transtorno de linguagem, podemos dizer que ele também é uma espécie de acontecimento de corpo que atualiza o seu trauma. De certa forma, sempre falamos sozinhos, desde o lugar em que se está fora do sistema da língua.

O discurso analítico é, nesse sentido, uma nova forma de laço social que permite acolher um sujeito a partir desse lugar de enunciação em que somos estranhos à linguagem, em sua inigualável singularidade, para além de um modo de vida identitário e de nossa alienação ao Outro. Nesse sentido, o discurso analítico é um laço social inusitado, destinado a desnudar nossa relação íntima com a língua, isolando seus pontos de ancoragem no corpo, seus S1s, a fim de que o analisante possa se virar com isso de uma outra maneira. Mas não é isso, precisamente, um delírio? A reconstrução de um saber a partir de seus elementos díspares, não simbólicos e intraduzíveis?


Referências
BATISTA, M.C.; LAIA, S. (Orgs.). A Psicose Ordinária (A Convenção de Antibes). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
FARI, P.  Hablar es um transtorno de lenguaje. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=qz4jD-2ONDw. Acesso em: 10 abr. 2023.
FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 1969. (Trabalho original publicado em 1911).
LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1960).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978).
MILLER, J.-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
[1] Seminário pronunciado no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em março de 2023, em torno do tema do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que terá lugar em Paris, no ano de 2024.