Do dom de Mauss ao inominável da pulsão 

Laydiane Pereira de Matos
Psicóloga
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
laydianep.matos@gmail.com

Resumo: Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. 

Palavras-chave: dom; objeto; pulsão; Outro; assentimento. 

FROM MAUSS’S GIFT TO THE UNNAMEABLE OF THE DRIVE 

Abstract: This article aims to revisit the foundations of the gift concept in Marcel Mauss’ theory and articulate its logic with Freud and Lacan’s transmission about the object theory. To this end, it contrasts the usefulness of this concept in the structuring of the first Lacanian clinic with its fundamental disagreement, which resides in the impossibility of the significant determination provided by the access to the symbolic in being able to embrace the real of the drive, since its character is always casuistic, using of the concept of assent to support this argument. 

Keywords: gift; object; drive; Other; assent.

 

Imagem: Renata Laguardia

Introdução

Segundo Lacan, Freud referiu-se ao conceito de objeto em diversos momentos de sua obra, e sua importância percorre toda a psicanálise. Com vistas a retornar a Freud e corrigir possíveis deturpações desse conceito por psicanalistas pós-freudianos, ele enfatiza que falar da relação de objeto é falar de sua falta, posto que esse objeto é inapreensível e que dele temos apenas noções parciais. Tendo entrado na dialética do dom, o objeto não é de relação harmônica com o sujeito, mas, sim, de natureza enigmática, remetendo ao falo simbolizado enquanto significante do desejo do Outro (LACAN, 1956-57/1995). É esse Outro, fonte de dom, que propicia a transmissão de uma falta e o aparecimento do sujeito, efeito da imersão do homem na linguagem e que existe ao preço de uma perda (SANTIAGO, 2008). Porém, ainda que tenha se apoiado no conceito de dom – tema de pesquisa de Marcel Mauss –, Lacan já dava sinais da insuficiência do simbólico em dar conta da pulsão, apontando seu caráter casuístico, que, articulada ao Outro da linguagem, não garante seu assentimento com a lei simbólica (SALUM, 2009). Assim, este artigo visa percorrer o conceito de dom trabalhado por Mauss e sua articulação com a noção de objeto em Freud e Lacan, caminhando para o conceito de assentimento.

Dom em Mauss

Lacan, no Seminário 4, menciona por vezes o conceito de dom, remetendo-o à relação dialética entre sujeito e objeto. Segundo ele, não é possível tomar o objeto de dom sob uma perspectiva harmoniosa, visto que ele se apresenta como a possibilidade de um objeto intermediário que só surge no tensionamento que se abre quando a mãe, em sua relação com o filho, se apresenta como potência real (LACAN, 1956-57/1995). E por que Lacan o utilizou em seu ensino?

Segundo o dicionário, a palavra “dom” se origina do latim dominus, i, que significa “senhor de”, e remete tanto à posse de uma qualidade inata do sujeito, quanto à um título de honra a ele designado exprimindo homenagem e respeito. O dom seria uma espécie de dádiva, de presente, donde sua tomada de posse e usufruto faz do sujeito alguém importante (DOM, 2023). Foi o etnólogo Marcel Mauss, com seu Ensaio sobre a dádiva, que contribuiu para que o conceito tivesse maior consistência nas ciências sociais (MARTINS, 2012). Antes do surgimento da moeda, os serviços, trabalhos e alianças entre os indivíduos e seus clãs eram pautados por um caráter mágico de comum acordo (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), e Mauss expõe um conjunto de pesquisas empreendidas sobre as características do sistema de trocas em sociedades arcaicas (mais especificamente na Polinésia, Melanésia e Noroeste americano), nas quais o objeto de troca tinha seu valor delimitado não em sua utilidade, mas na crença universal de que o espírito do doador ficava na coisa dada. Isso fazia com que os grupos obrigatoriamente se presenteassem e se endividassem, uma solidariedade forçada pela qual quem recebia era obrigado a retribuir. O que era trocado não era apenas de ordem material, mas também se trocavam gentilezas, festas e feiras, evidenciando que a circulação das riquezas era apenas um dos termos de um contrato mais geral e mais permanente (MAUSS, 1923-24/1950). Assim, esse contrato compartilhado pautado num significado oculto resultava na filiação e no funcionamento social entre coletividades, denotando o valor do simbolismo nas sociedades (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011).

Claude Lévi-Strauss é quem escreve a introdução à obra de Mauss, e nela aponta a relevância de seu estudo para a psicanálise e demais áreas. Ele comenta que a recepção do trabalho de Mauss se deu de forma não acolhedora na época, visto que, enquanto escrevia, as ideias de Freud ainda não haviam chegado na França, e seu trabalho foi uma primeira manifestação de evolução objetiva nas ciências psicológicas. Tomando como o marco de seu estudo o apontamento de que o inconsciente e a relação com o outro são o que explicam os fatos sociais, ele chega a referenciar um artigo de Lacan – L’agressivité en psychanalyse, de 1948 – para apoiar tal concepção. Mais à frente, aponta para o papel da linguagem na articulação entre o eu e o outro, sendo possível apenas através dela que o pensamento simbólico se exerça. Para Strauss, o social é uma realidade autônoma, em que o significante precede e determina o significado. No que remete ao trabalho de Mauss, ele inova dizendo que o que está em jogo na dádiva que obriga a dar, receber e retribuir não é, como Mauss apontou, o espírito da coisa que ainda paira sob ela, mas, sim, que esta é a forma consciente pela qual a sociedade pôde apreender algo que está além, no campo do inconsciente (MAUSS, 1923-24/1950).

Dom e o objeto em psicanálise

Santiago (2008) aponta que a importância do dom para a psicanálise vem da forma como Lacan o pôde apreender na pesquisa de Mauss enquanto sistema de trocas simbólicas. O que importa é que o simbólico suprime o gozo sob o objeto, passando a denotar seu caráter mítico. Da perda de gozo, assume-se o significante do desejo do Outro, enigmático, e essa é a dimensão essencial do objeto na experiência analítica. Em Lacan (1956-57/1995), temos que toda relação objetal é fundamentalmente imaginária, e que desde o início das origens dos objetos eles já são considerados outra coisa para além do que são: são objetos trabalhados pelo significante, cuja estrutura é impossível de se extrair.

Associando com o conceito de objeto em Freud, o caráter de mais além da coisa referenciado no dom equipara-se com o objeto que está para sempre perdido, o objeto das primeiras satisfações, que sempre deixa uma hiância entre o que se procura e o que se encontra. No primeiro ensino de Lacan (1956-57/1995), o objeto associa-se ao falo, objeto imaginário privilegiado, que perpassa a relação dual entre mãe e filho. A passagem do objeto de necessidade para o objeto de dom pode ser ilustrada no exemplo da mãe que alimenta o filho com o objeto seio. A mãe, submetida à sua própria falta, nutre um interesse particular pela criança e lhe oferta o seio como objeto simbólico, de dom, visando mais além da necessidade. Porém, a essa mãe simbólica contrapor-se-á a mãe real, que é a face da mãe que ameaça no filho sua possibilidade de querer, tomando-o como sutura daquilo que lhe falta (SANTIAGO, 2008). Miller (2014) sinaliza que frente à potência devoradora da mãe, a criança ou a preenche, ou a divide. Preenchê-la significa suturar sua falta e anulá-la enquanto mulher, ao passo que a dividir seria o seu oposto, não ser o falo que lhe falta e se deparar com a insuficiência em dar conta de seu desejo. Quando a criança não sutura a falta em que se apoia o desejo da mãe, abre-se espaço para que os objetos dessa relação tomem forma de dom.

É nesse jogo de presença e ausência – em que a criança acredita que é amada por si mesma, mas que na ausência da mãe o objeto intermediário sob forma de dom se apresenta – que o falo enquanto objeto imaginário, signo de dom, aparecerá tanto do lado da mãe quanto do lado da criança, orientando a identificação formadora do eu, e alienando não mais ao desejo da mãe, mas, à cadeia significante (BARROSO, 2015). A partir dessa mãe real, ameaçadora e não toda fálica, a criança vai tecer sua questão sobre como saciar o desejo da mãe sem por ela ser devorada, e o seio, os excrementos e o falo entrarão no circuito de mais além do objeto, permitindo o acesso à realidade simbólica e ao desejo (SANTIAGO, 2008). A partir daí, Miller (2014, p. 7) lembra que é “o desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico”, desembocando em uma espécie de construção delirante mítica acerca do enigma do desejo do Outro.

O Outro e o assentimento

Tais associações entre dom, objeto e falo vão ao encontro do que Mauss e Strauss apontaram em seus trabalhos, no sentido que diante uma coletividade há uma organização simbólica inconsciente que não se reduz ao individual e ao concreto das ações, mas que remete à uma submissão, a um mais além compartilhado. Esse mais além pode ser tomado aqui como a lei do Outro, que preexiste ao sujeito e que lhe veda, a partir da perda que há na articulação entre significante e significado, o acesso a uma relação dual com a coisa (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Assim, será a partir do Outro, que se particulariza em cada sociedade segundo sua versão imaginária, que as coisas ganharão valor na cadeia de trocas e onde a estrutura poderá se desenrolar (SANTIAGO, 2008; SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), permitindo ao sujeito apoiar seu fantasma na parte de real que foi destacada deste, e fazer dela seu mito individual (SALUM, 2009).

Porém, é importante apontar que mesmo se utilizando do conceito de dom para pensar o acesso ao simbólico e a relação de objeto, Lacan já no início de seu ensino discordava dos estruturalistas apontando que não basta o Outro preexistente para garantir a admissão à lei (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Além da estrutura significante, é preciso levar em conta uma abertura para o real, pois o mito não o esgota e tem em seu correlato um sujeito com seu corpo, sua pulsão e seu gozo, que não se deixam abarcar por completo pelo significante (SALUM, 2009).

Pensando a causalidade da pulsão em contrapartida com a determinação significante, podemos recorrer ao conceito de assentimento,[1] definido aqui como a crença na estrutura combinatória significante que preexiste (crença no Outro). Há primeiro um reconhecimento desse encontro com o simbólico, mas é preciso também que se tenha uma admissão inicial, o assentimento por parte do sujeito. É a crença nessa inscrição que permitirá a simbolização, uma maneira de se estabelecer dentro da lei do Outro. Assentir à causa é sacrificar-se em nome de um Outro que não existe e que permitirá alguma legalização do gozo (SALUM, 2009).

Assim, na dialética do dar-receber-retribuir, não basta que o simbólico se apresente para que o sujeito assinta em entrar nesse jogo. Existe nesse desenrolar o papel ativo tanto da pulsão quanto do arcabouço simbólico previamente construído, no qual o sujeito será forçadamente inserido. Há o Outro como suporte do significante, e neste ponto Lacan pôde recorrer a Mauss para se apoiar no conceito de dom em jogo nas trocas simbólicas, mas há, também, o sujeito e seu inominável da pulsão e do gozo, que pode assentir ou não com essa inscrição. Portanto, a estrutura significante do Outro e o assentimento do sujeito são suplementares, e não justapostos, e é isso que Lacan aponta desde o início de seu ensino (SALUM, 2009). 

Conclusão

As menções de Lacan ao conceito de dom no que se refere à relação de objeto parecem encontrar apoio no que se pode chamar de mais além da coisa. No estudo de Mauss, o que está em jogo entre os povos é a crença de que o espírito do doador fica na coisa dada, levando, através da obrigação consentida de dar-receber-retribuir, à criação de laços e contratos sociais firmados sob um pacto simbólico. Strauss amplia essa visão ao comentar que, mais além do espírito do doador sempre presente na coisa dada, o que está em jogo nessa dinâmica é o quê de inconsciente os povos apreendem sob a forma consciente do espírito, assinalando o caráter de primazia do significante na construção da realidade e dos fatos sociais (MAUSS, 1923-24/1950). Já em Freud e em Lacan, o que está em jogo na dialética do dom é a nostalgia do objeto perdido, restando dele apenas uma marca, um resto de real que o sujeito circundará em sua crença e em sua busca sem sucesso (LACAN, 1956-57/1995).

Apesar da aproximação com o conceito de dom, aponta-se que já no início de seu ensino Lacan diverge de estruturalistas como Lévi-Strauss ao defender que há no sujeito algo para além da determinação significante, não totalmente abarcado pelo simbólico, e a isso nomeia de real (SALUM, 2009). Segundo Lacan (1956-57/1995, p. 92), é o real que “oferece sempre, no momento exato, tudo aquilo de que se necessita quando se foi, enfim, regulado pelos bons caminhos, à distância correta”. Portanto, é ao real que o simbólico se constitui como resposta, e não, como totalidade (SALUM, 2009).

De Mauss até hoje, o discurso do Outro mudou. Se antes o ideal e a crença num Outro mítico organizavam o mundo, hoje estamos no tempo do Outro que não existe, em que o assentimento declina e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos de gozo ofertados. Não pretendendo apelar para o saudosismo, é preciso verificar como o sujeito se relaciona com esse Outro da contemporaneidade, sem eximi-lo de ser responsável por sua posição, mas, verificando como ele assim o faz (SALUM, 2009). Essa talvez seja a aposta da psicanálise: permitir que algo do singular, do real da pulsão e do gozo apareçam sem desconsiderar o universal da lei e do discurso.

Sob forma de abertura para o real que convoca ao saber fazer, convidamos o leitor ao fim deste artigo a pensar como se daria a leitura dos modos de subjetividade contemporâneos sob a ótica dos conceitos de dom, objeto, Outro e assentimento: estariam eles hoje sustentados pelas mesmas premissas descritivas?


Referências:
BARROSO, S. F. A imagem e o imaginário: quando o sujeito é excluído do imaginário materno e permanece sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2015. Disponível em: www.institutopsicanalise-mg.com.br. Acesso em: 17 de set 2022.
DOM. In: Aulete Digital. 2023. Disponível em: < https://www.aulete.com.br/dom>. Acesso em: 25 maio 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, 45-66, out. 2012. Disponível em: journals.openedition.org. Acesso em: 17 de set. 2022.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva, com introdução à obra de Marcel Mauss por Claude Lévi-Strauss. Lisboa: Edições 70, 1950. (Trabalho original publicado em 1923-24).
MILLER J.-A. A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana On-line, n. 15, 1-15, 2014. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 28 de set. 2022.
SALUM, M. J. G. A psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos, agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea.  Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica), Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
SANTIAGO, A. L. Dom e oblatividade. Scilicet. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda., 2008, p. 97-100.
SARTI, M. M; COUGO, R. H. F. A; TFOUNI, L. V. O simbólico, o imaginário e o dom. Intersecções, v. 4, n. 2, 237-254, nov. 2011. Disponível em: revistas.anchieta.br/. Acesso em: 28 de set. 2022.
[1] Difere do conceito de consentimento por não operar a partir da instauração de um acordo com o campo do Outro, tendo como funcionamento a vertente do gozo (SALUM, 2009).



Despatologização ou desmedicalização: a forclusão do sintoma[1]

Philippe la Sagna
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne
plasagna@free.fr

Resumo: Após a crise do DSM5 e o surgimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC) na clínica, o modelo de patologia para as doenças mentais se tornou um “transtorno” e se enfraqueceu. Nessa nova situação, o referente passa a ser os circuitos neuronais associados aos comportamentos que são isolados em áreas. Um dos efeitos principais e lógicos disso é a despatologização e a desmedicalização com o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos e visamos o poder de agir, o empoderamento, e realizamos, assim, uma forclusão do sintoma tão caro à psicanálise, que não visa o seu apagamento, mas sim aquilo que o sujeito sabe fazer com ele.

Palavras-chave: doenças mentais; despatologização; desmedicalização; forclusão; sintoma.

DEPATHOLOGIZATION AND DEMEDICALIZATION: THE FORECLOSURE OF THE SYMPTOM

Abstract: According to the author, after the DSM5 crisis and the emergence of the Research Domain Criteria (RDoC) in the clinic, the pathology model for mental illness became a “disorder” and weakened. In this new situation, the referent becomes the neuronal circuits associated with behaviors that are isolated in areas. One of the main and logical effects of this is depathologization and demedicalization with the erasure of therapy. Today, we educate, rehabilitate and aim at the power to act, the empowerment, and thus carry out a foreclosure of the symptom so dear to psychoanalysis, that it does not aim at its erasure, but at what the subject knows how to do with it.

Keywords: mental illness; depathologization; demedicalization; foreclosure; symptom.

Imagem: Sofia Nabuco

A questão trans lança luz sobre uma forte tendência na psiquiatria e até da medicina: a despatologização generalizada da clínica e até mesmo sua desmedicalização. Nós queremos cuidados, mas não queremos mais “fazer dela uma doença”. Em seu artigo “La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique”,[2] Éric Laurent (2014) havia apontado o fracasso do DSM-V. Em outro artigo, publicado em L’évolution psychiatrique, ele mostrou a lógica do que chamou de “a grande translação clínica contemporânea” (LAURENT, 2019, p. 57).  A crise do DSM levou ao aparecimento fulgurante do Research Domain Criteria (RDoC)[3] na clínica.

Nessa nova situação, toma-se como o referente não mais as doenças, patologias ou mesmo pacientes, mas circuitos neuronais correlacionados com dados comportamentais que podem ser isolados em áreas. Em 2015, Steeves Demazeux, de Bordeaux, e Vincent Pidoux, em um artigo sobre este projeto RDoC, mostraram que o desafio dos RDoCs era abandonar o diagnóstico. O conceito do RDoC é o de formalizar construtos teóricos que serão os blocos de construção da classificação. O projeto é apresentado como uma pesquisa, o que o protege de uma verificação clínica efetiva. Os “campos” de pesquisa nunca deixam de surpreender: medo, circuito de recompensa, aversão, adicção, cognição (atenção e percepção, memória), aos quais acrescentamos “os processos sociais, e os sistemas de ativação e de modulação cerebrais”. Em seu livro l’Éclipse du Symptom, S. Demazeux (2019) mostra que o que antecedeu ao DSM, desde o início do século XX nos Estados Unidos, foram estudos estatísticos sobre a saúde mental: esses projetos têm em comum o fato de que eles viram as costas para toda herança da psiquiatria. Eles vão ainda mais longe, já que parecem querer abandonar a própria noção de sintoma.

À frente desse projeto RDoC está um psicólogo: Bruce Cuthbert. Em um recente artigo, ele define “a estrutura de trabalho do RDoC” (CUTHBERT, 2021). O essencial é o desenvolvimento de uma tabela de entrada dupla. No eixo das ordenadas, estão as áreas já mencionadas aqui, e no das abscissas há amontoados de “circuitos cerebrais”, os genes, as células, e até mesmo as moléculas e os comportamentos.

O autor especifica que os “construtos” são “conceitos não calculáveis” propostos a partir de conjuntos convergentes de dados (CUTHBERT, 2021, p. 78). Para ele, o essencial é definir trajetórias de desenvolvimento: “A maior parte das doenças mentais são distúrbios do desenvolvimento neurológico, a maturação do sistema nervoso interagindo com uma grande variedade de fatores externos mesmo antes do nascimento” (CUTHBERT, 2021, p. 78). E ele se refere à extensão das desordens do neurodesenvolvimento (TND):

A este respeito, para tomar um exemplo, Craddock e Owen propuseram um gradiente para a patologia de neurodesenvolvimento que, de forma contínua, parte da deficiência intelectual e avança para o autismo, a esquizofrenia, o transtorno esquizoafetivo, o transtorno bipolar e a depressão unipolar. (CUTHBERT, 2021, p. 84)

Aqui, não há descontinuidade no real onde um sujeito do transtorno poderia entrar sorrateiramente. A abordagem supõe uma continuidade entre o normal e o anormal que se torna o substituto do patológico. A abordagem é dimensional.

Em nosso campo, fomos capazes de avançar uma hipótese continuísta de natureza diferente com o “todo mundo é louco”. A ideia era modular a oposição do tipo estrutural neurose/psicose e passar da falta própria do significante para um exame das conexões e a uma clínica nodal, borromeana, ou mesmo para uma lógica difusa. Mas não é nunca uma continuidade baseada na avaliação dimensional de um déficit em referência ao normal.

A frase de Lacan é um falso universal a ser lido à luz do não-todo da sexualidade feminina. Lacan, em Vincennes, em 1978, enfatizou que não havia nada de universal no discurso analítico. Ele acrescentou que, nesse aspecto, “não é uma questão de ensino”. A loucura é também: “ensinar, o que não pode ser ensinado” (LACAN, 1979, p. 278). Não se trata de dizer, para os RDoCs, que “todo mundo é louco”, mas, sim, que “todo mundo é normal”. Em um recente colóquio em Nantes, um dos participantes (Nicolas Georgieff) sublinhou: “Do lado das ‘doenças’, o modelo de patologia – que se tornou disorder – se enfraqueceu. Isso é particularmente verdadeiro para os distúrbios reunidos no novo compartimento do ‘neurodesenvolvimento’, supostos como sendo eminentemente médicos” (GEORGIEFF, 2021).

Para os TNDs, o genótipo substitui o sintoma e substitui a clínica. Um dos efeitos principais e lógicos dessa desmedicalização é o apagamento da terapêutica. Hoje, educamos, reabilitamos, visamos o reforço do poder de agir – empowerment – e elogiamos a resiliência. A doença mental escapa ao psiquiatra, mas também ao psicólogo, que é sempre um pouco psi demais tanto para os clientes que não são mais pacientes, como também para os seus cuidadoresInvestimos nos pares cuidadores. Realizamos assim uma foraclusão do real da doença. A doença, de fato, não é um ser; é o real da existência do vivente / sujeito. Como Lacan (1953/1998, p. 282) assinalou em 1953 citando a observação de Hegel: “a doença [é] a introdução do vivente na existência do sujeito”. A psicanálise não visa o apagamento do sintoma, mas sim aquilo com que o sujeito se vira, que ele saiba fazer com ele como faz com a sua imagem, que ele o manipule. Atualmente, embaralhamos tudo isso. Essa confusão contemporânea corre o risco de produzir o que Lacan evocava como os “hollow men” (MILLER, 2007), homens com a cabeça cheia da palha, com a palha dos circuitos neuronais e dos genes. O psicanalista é então um sintoma do qual queremos prescindir, como de resto. Lacan (1973/2003, p. 554) afirmava em 1973 “que os tipos clínicos decorrem da estrutura”. No entanto, tudo isso não permite que se constituam correlatos na neurose. “Os sujeitos de um tipo não têm, portanto, qualquer utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).  Lacan (1975-76, p. 55) argumentou que a função do sintoma é a de operar a nomeação do simbólico: “a nomeação é a única coisa no simbólico da qual temos certeza de que ela faz furo”. Essa nomeação não garante a consistência do sistema simbólico, mas, sim, seu furo. Isso se opõe à “futilidade” da ciência, “que é óbvio que ela apenas progride pela via – é seu método, é sua história, é sua estrutura – só progride pela via de preencher os furos” (LACAN, 1975).

Conversação 

Angèle Terrier: Obrigada Philippe La Sagna. Você nos apresenta pesquisas na vanguarda da tese “neuro”, na qual há muito claramente uma questão de se livrar de toda noção de patologia, de sintoma, de diagnóstico e até mesmo do paciente, a fim de estar interessado apenas em circuitos neurais correlacionados a dados comportamentais, estando a saúde mental reduzida, portanto, a um quadro de dupla entrada. É o que você nomeia como uma despatologização da clínica ou uma desmedicalização. E aqui, por falta de tempo, eu gostaria de ouvir você discutir isso com Hervé Castanet, que fala mais sobre a patologização da vida mental.

Philippe La Sagna: Sim, há alguma discussão; embora talvez seja um pouco a mesma coisa. Parece-me que a patologização da vida mental, sobre a qual evocava Hervé Castanet, diz respeito, acima de tudo, ao fato de que, a partir do momento em que as neurociências tomaram o poder – podemos ver isto de uma maneira diferente –, elas abordaram toda a vida mental como sendo suscetível a desordens e inventaram, portanto, as doenças. Foi isso que colocou o DSM no fosso. Depois de um tempo, eram quatrocentos e cinquenta tipos de doenças mentais, o que levou as pessoas a dizer: “Vamos parar”. Isso parou no dia em que nos perguntamos se o fato das mulheres estarem tristes durante seus períodos menstruais era uma doença mental ou não. As feministas responderam: “Não, não é uma doença mental”.

A pergunta que você me fez sobre os furos também é igualmente importante. O que acontece com os furos na ciência? Acredito que a ciência da qual falava Lacan e a ciência de hoje não têm muito a ver. É preciso entender que a ciência, no momento, funciona como uma startup, tanto no nível do financiamento, quanto das publicações. Os laboratórios também operam com esse modelo.

O caso Theranos[4] é um exemplo que está causando um escândalo no momento. Apesar de se afirmar como ciência, ela se verificou completamente manipulada. Estou recebendo em análise alguns cientistas que me dizem como é difícil fazer pesquisas sem adulterar os resultados para conseguir financiamento. Há uma retórica da promessa, como diz François Gonon; é preciso levar às pessoas a esperança dos amanhãs que cantam: transplantes de cérebro, por exemplo. Estamos quase lá! Parece-me que isto está de acordo com o que disse Hervé Castanet. Para obter amanhãs que cantem, você inventa coisas que não existem. Não é mais uma questão de tapar furos, mas de evitá-los. Esta ciência é muito mais louca do que a anterior. Antes, quando ela encontrava um furo, tentava respondê-lo, tampando-o. Agora, quando confrontados com um furo, passam para outra coisa.

A. Terrier: O que você está destacando é o delírio destas falsas ciências. A pergunta que eu estava me fazendo foi baseada nessa citação de Lacan que você retomou no final de sua palestra, na qual ele indica que a ciência só avança ao preencher furos. É realmente uma questão de foracluir o próprio furo do simbólico.

P. La Sagna: Talvez eu não concorde com você porque, se fosse uma questão de foraclusão, isso deixaria uma esperança. Tudo o que é foracluído no simbólico retorna no real, você sabe disso. A foraclusão do sujeito da ciência, é o cientista.

A. Terrier: Isso retorna, de fato.

P. La Sagna: Poderia dizer, por exemplo, que a ciência forclui o sujeito e, infelizmente, o cientista é um sujeito que retorna no real, que diz a si mesmo que não deveria ter feito a bomba atômica e que vai atirar uma bala na própria cabeça. Se os furos da ciência fossem foracluídos, eles retornariam no real. Mas, hoje, os cientistas os ignoram, ou seja, eles entram sorrateiramente por cima deles. Como demonstrava o meu amigo François Gonon, com quem trabalhei por muito tempo, apenas os resultados positivos são publicados. O que importa se, três meses depois, novos resultados são publicados demonstrando a falsidade dos resultados anteriores, se ninguém os lê. Eles aparecem em um pequeno parágrafo. É por isso que eu digo que eles evitam os furos. Isso não é mais a ciência de Lacan, na qual havia debates, colóquios. Hoje em dia, não é o mesmo real.

Hervé Castanet: Em sua palestra, você diz: “estas falsas ciências”. Podemos dizer isso em nosso campo, mas, assim que o deixamos, essa declaração não pode ser ouvida; essa é a prática que é valorizada em todos os dispositivos científicos atualmente, ou em quase todos. Portanto, a pergunta que fiz a mim mesmo é menos porque isso é assim, do que questionar como isso pôde ser possível. Como esse modo de proceder, do qual zombamos sempre, pode hoje prosperar? Aplicando uma epistemologia, por mais rudimentar e eficaz que seja, por exemplo a de Canguilhem, percebe-se que esses argumentos não se sustentam e, apesar de tudo, generalizaram-se a tal ponto que os laboratórios, não só na França, mas também no exterior, são mantidos por esse tipo de ciência. Daí minhas referências ao Collège de France e à Academia de Ciências.

Fiquei muito sensibilizado com a observação feita anteriormente por J.-A. Miller. Não ficamos obrigados, de uma certa forma, a estar nos porões, nas catacumbas, quando constatamos que todos os dispositivos são desse tipo? Os acadêmicos de psicologia não sonharam sempre com o jaleco branco? Zombamos tanto deles e de sua disciplina, ao nos referirmos ao famoso texto de Canguilhem. De maneira efetiva, suas esperanças de pertencer à ciência generalizaram esses procedimentos. Nossa crítica a essas “falsas ciências”, mesmo a nossa zombaria – porque é tão triste que temos que colocar um pouco de humor – não impede que elas tenham efeitos sobre a prática, mesmo em hospitais. Os textos aos quais me refiro não são marginais; há uma menção explícita de intervenção no cérebro.

Lembro-me de uma apresentação de pacientes para residentes no Hospital Universitário de Marselha (CHU). Após a apresentação, durante uma hora, nós tentamos determinar no departamento de geronto-psiquiatria se se tratava de uma demência frontal ou de esquizofrenia. Obviamente, ambas podem coexistir. Uma jovem residente me disse: “Mas você passou uma hora discutindo, enquanto uma varredura de scan, que não custa nada – era uma época em que havia um déficit de um bilhão no AP-HM – teria lhe esclarecido imediatamente”. Para ela, estávamos fazendo a história do pensamento.

A. Terrier: É de fato dessa história que esta ciência gostaria de prescindir.

Tradução: Rodrigo Almeida
Revisão: Márcia Bandeira

Referências
CUTHBERT, B. N. Le cadre de travail des RDoC: faciliter la transition de la CIM et du DSM vers des approches dimensionnelles qui intègrent les neurosciences et la psychopathologie. Annales médico-psychologiques, v. 179, p. 75-85, 2021. Disponível em: https://www.em-consulte.com/article/ 1420731/le-cadre-de-travail-des-rdoc% C2%A0-faciliter-la-transit. Acesso em: 01 jun. 2023.
LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/ revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023. .
DEMAZEUX, S. L’Éclipse du symptôme: L’observation clinique en psychiatrie (1800-1950). Paris: Ithaque, 2019.
LACAN, J. Intervention au Congrès de la Grande Motte de l’École freudienne de Paris. Lettres de l’École freudienne, n. 15, p. 69-80, 1975.
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LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
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LAURENT, É. La crise post-DSM et la psychanalyse à l’âge numérique. Revue  la Cause du Désir, n. 87, 2014. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-145.htm>. Acesso em : 01 jun. 2023.
GEORGIEFF, N. La psychiatrie: une médecine sans maladies? Disponível em: http://www.ch-le-vinatier.fr/actualites-23/la-psychiatrie-une-medecine-sans-maladies-951.html?cHash=4bba4d93f41da1a11697433871b582f1.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne. Le tout dernier Lacan. Curso de 02 de maio de 2007. (Inédito). Disponível em: <https://jonathanleroy.be/wp-content/uploads/2016/02/2006-2007-Le-tout-dernier-Lacan-JA-Miller.pdf>. Acesso em : 01 jun. 2023.
[1] Texto originalmente publicado em: Revue Quarto, n. 131, jun. 2022
[2] N.T.: Em português, “A crise pós-DSM e a psicanálise na era digital”.
[3] O RdoC é um projeto de pesquisa do Instituto de Saúde Mental dos EUA iniciado em 2009 cujo objetivo é formalizar um novo sistema diagnóstico psiquiátrico que seja capaz de alinhar as classificações do DSM às descobertas em genômica e neurociência.
[4] N.T.: Theranos é uma empresa de tecnologia de testes de sangue que se destina a ser usada em pacientes reais para diagnosticar uma infinidade de doenças. A empresa controlada por uma empresa de biotecnologia, seguiu sem amplo estudo de avaliação. Confrontados por outra empresa seus dados se mostraram inconsistentes. (Cf.: https://setorsaude.com.br/o-escandalo-theranos-pode-ser-apenas-o-comeco/)



Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves
Psicóloga clínica
Mestre em Psicologia (PUC/MG)
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
edwigespsique@yahoo.com.br

Resumo: Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea?

Palavras-chave: psicose ordinária; paradigma; clínica contemporânea. 

ORDINARY PSYCHOSIS: PARADIGM OF CONTEMPORARY CLINIC? 

Abstract: It is a consensus among analysts that hypermodern subjects present themselves in the clinic somewhat refractory to the traditional intervention patterns of an interpretive psychoanalytic clinic, which had Oedipus as its central theory. With the fall of ideals, transference does not operate in the same way and the symptoms, no longer interpretable, come now labeled as disorders. In times when the Other does not exist, subjects can find other ways to stabilize themselves and to form a social bond beyond the Name-of-the-Father. Therefore, we ask ourselves: how can ordinary psychosis contribute to contemporary clinical practice? 

Keywords: ordinarypsychosis; paradigm; contemporary clinic.

 

Imagem: Renata Laguardia

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, que a transferência não opera da mesma forma e que os sintomas se apresentam sob outras roupagens.

Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social, para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, questionamos se a psicose ordinária seria o paradigma da clínica contemporânea. 

Psicose ordinária 

Fruto de um movimento iniciado em 1996, o termo criado por Jacques-Alain Miller, e que foi tornado público em 1998, questiona a clínica estruturalista inicialmente proposta por Lacan e estaria em consonância com seu último ensino.

A expressão “psicose ordinária” não possui uma definição rígida. Não se trata de um novo conceito, mas de um significante cuja aposta é fazer eco na prática clínica. Uma tentativa de resposta diante da impossibilidade de classificar alguns casos dentro do binarismo neurose ou psicose.

Na primeira clínica, Lacan admite a metáfora paterna como a operação que irá trazer uma estabilização ao registro imaginário no início da vida psíquica. Na segunda clínica, a metáfora paterna perde o status de nomeação e ganha o lugar de predicado, passando a designar uma das muitas possíveis amarrações dos três registros. O sujeito pode nunca desencadear uma psicose fazendo uso de outras soluções que fazem as vezes do Nome-do-Pai.

Nesse sentido, a introdução da categoria clínica “psicose ordinária” tem, segundo Miller (2010) duas consequências em direção oposta: por um lado, uma maior precisão no diagnóstico da neurose e, por outro, uma generalização do conceito de psicose.

No que se refere à primeira consequência, Miller (2010, p. 20) afirma:

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa.

Quanto à generalização do conceito de psicose, Miller (2010) nos esclarece que a concepção de Nome-do-Pai enquanto predicado implica em um apagamento das fronteiras entre neurose e psicose, uma vez que todo ordenamento é delirante: todo mundo é louco. Na neurose, a fantasia. Na psicose, o delírio.

Trata-se, então, de que alguns sujeitos encontram em outro significante uma suplência ao Nome-do-Pai, permitindo-lhes viver experiências no laço social com alguma estabilização. Neuróticos ou psicóticos, cada sujeito cria a sua solução, uma invenção.

Na perspectiva milleriana, seja na neurose, seja na psicose, o sujeito criará maneiras de se defender do real do gozo. Na neurose, o sintoma vem como suplência à insuficiência do pai real. Já na psicose, a solução vem em suplência ao Nome-do-Pai.

Uma vez que não será a presença ou a ausência do Nome-do-Pai que definirá se um sujeito é neurótico ou psicótico – mas, sim, sua posição de gozo no mundo, bem como aquilo que pode grampeá-lo ao seu corpo e permitir-lhe localizar-se no laço social –, interessa-nos saber o que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a direção do tratamento psicanalítico dos sujeitos sob transferência em tempos em que o Outro não existe.

Paradigma 

Agamben (2009), após vasta pesquisa sobre a utilização da terminologia “paradigma” por diferentes filósofos, define o conceito, aproximando sua pesquisa à de Michel Foucault. O paradigma agambeniano seria um exemplo, um modelo que, ao mesmo tempo em que expõe a categoria a qual pertence, não exclui sua particularidade. Exclui a dicotomia entre universal e particular. Trata-se de um método (de pesquisa) que não é dedutivo, nem indutivo, e que parte da singularidade em direção a ela mesma.

Tratar um fenômeno como paradigmático seria concebê-lo como uma figura epistemológica. Uma ilustração que explica, por si só, o conjunto do qual faz parte, sem, contudo, transformá-lo em regra geral ou em categoria replicável. Assim, o panóptico seria paradigma da sociedade de controle e o shopping center o paradigma da sociedade de consumo. Seria a psicose ordinária o paradigma de uma era que denuncia a falência do Nome-do-Pai?

O paradigma enquanto via alternativa que comporta um indecidível entre o particular e o universal, pode se alojar no intervalo, na lacuna que marca a condição de existência do sujeito freudiano. Como esclarece Miller […], por sujeito entendemos o “efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra”. Se no reino animal cada indivíduo é exemplar perfeito de sua espécie, realizando exaustivamente o universal, o ser atingido pela linguagem nunca realizará exaustivamente nenhuma classe nosológica. Se é justamente ao efeito deste hiato que chamamos sujeito, consideramos que o paradigma, ao se afastar do positivismo que explora a antítese entre o particular e o universal, resguarda o negativo que sustenta o sujeito do inconsciente. (CARVALHO, 2020, p. 60)

Inferimos que a psicose ordinária pode ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea, apoiados na seguinte declaração de Laurent e Miller (1998, p. 9):

Como operar todos os dias na prática, sem inscrever o sintoma no contexto atual do laço social que determina sua forma, na medida em que ele o determina na sua forma? Temos a intenção, Eric Laurent e eu, de afirmar este ano a dimensão social do sintoma. Afirmar o social no sintoma, o social do sintoma, não é contraditório com a inexistência do Outro. Ao contrário, a inexistência do Outro implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela abre.

Clínica contemporânea 

Miller (2005, p. 7) considera que haveria um consenso entre os psicanalistas de que “os sujeitos contemporâneos, pós-modernos e até mesmo hipermodernos são desinibidos, neo-desinibidos, desamparados, desbussolados” e que, na tentativa de identificar um marco para o início deste desbussolamento ele acabou por levantar uma segunda questão: será que não temos bússola ou temos outra bússola? A partir dessa pergunta, ele levanta a hipótese de que a bússola atual é o objeto a e que, sendo assim, o discurso de nossa época remonta à estrutura do Discurso do Analista, assim como o discurso do inconsciente remonta à estrutura do Discurso do Mestre.

Para Miller (2005), à época de Freud, o mal-estar produzido pela civilização nos sujeitos vitorianos se devia à imposição de um recalcamento de gozo. Entretanto, o mal-estar que vivemos hoje diz respeito a um imperativo de gozo. A que se deve tal mudança? Segundo a hipótese milleriana, instituída a psicanálise com Freud, antecipa-se, de alguma maneira, a ascensão do objeto mais-de-gozar ao zênite social. A elevação do objeto a ao status de bússola em nossos dias seria uma das repercussões de um século de exercício da psicanálise.

As condições de possibilidade para a criação da psicanálise foi o sintoma histérico: um real que faz furo no discurso da ciência. Dar sentido ao real do sintoma, tomá-lo como verdade foi o saber-fazer instituído e transmitido por Freud. Entretanto, o sintoma não se apresenta mais da mesma maneira. Ali, o sintoma era o efeito de uma moral civilizada, o resto de uma operação que tentava domar as pulsões. Se hoje o imperativo é “Goze!”, os sintomas não se apresentarão da mesma forma:

Nos dias de hoje, acrescentando-se ao mal-estar da psicanálise, produziu-se uma cisão do ser no sintoma. […] O sintoma tinha algo a dizer. Era definitivamente a intencionalidade inconsciente que fazia consistir o sintoma. Pois bem, na palavra sintoma, o “sin” se foi e só restou o “toma”. Doravante, o sintoma foi reduzido a distúrbio. (MILLER, 2005, p. 15)

Segundo Laurent e Miller (1998), a subjetividade contemporânea está submersa, em escala industrial, por semblantes, sob um movimento difícil de ser resistido. Acrescentam que o simbólico contemporâneo está escravizado pelo imaginário, submetido a ele. À psicanálise resta convocar o real.

Se na era vitoriana havia uma identificação vertical ao líder, às instituições, o que vivemos no capitalismo tardio é uma identificação horizontal. Como ”sequelas da escalada do objeto a ao zênite social” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 15), temos homens e mulheres determinados pelo isolamento, cada um com seu gozo, bem como a proliferação dos comitês de ética.

Se hoje “pode-se dispensar o Nome-do-Pai enquanto real com a condição de dele se servir como semblante” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 6) e se uma psicose pode estabilizar-se através de um substituto do Nome-do-Pai, entendemos que a clínica pode se servir da psicose ordinária, em sua pluralidade de amarrações, como paradigma para o tratamento de sujeitos que apresentam sintomas decorrentes da queda do Pai.

Assim, a leitura binarista da clínica estrutural se mostra insuficiente para abordar os sujeitos hipermodernos e seus sintomas pulverizados. Laurent (2020) afirma que Lacan, em seu último ensino, nos deixa indicações para reinventar a psicanálise e compreendemos que nosso ponto de partida é, portanto, a clínica borromeana.

De acordo com Laurent (2020, p. 49, tradução nossa), Lacan nos aponta que há “uma estabilização da metáfora delirante graças a uma ficção não edípica” e que esse apontamento pode ser generalizado quando o relemos a partir da segunda clínica. Se na psicose não existe um Outro bem construído, a direção do tratamento dos sujeitos psicóticos nos serve como baliza para o manejo clínico psicanalítico dos sujeitos na contemporaneidade:

A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do Nome-do-Pai. (LAURENT, 2018, p. 49)

Se, na primeira clínica lacaniana, a psicanálise só seria possível a partir da transferência, que, por sua vez, só existe com um Outro bem estabelecido, como a psicanálise pode operar em tempos em que o Outro não existe? Isso significa dizer que o saber não está suposto no analista e que este, então, operará seguindo o saber do analisante.

Seguindo esta trilha, a posição de sujeito suposto saber é substituída pela posição daquele que segue o analisante. É o analisante quem sabe. Essa mudança de estatuto da transferência, relacionada à inexistência do Outro, implica em irmos na contramão da primeira clínica.

Baseado na fórmula geral da comunicação, de que recebemos a própria mensagem de maneira invertida, o analista será esse Outro que produzirá o efeito de retorno do saber que é próprio do analisante. Entretanto, nos adverte Laurent (2020, p. 44, tradução nossa), “isso só pode funcionar na condição de dar a esse saber seu alcance de singularidade radical. Não se pode saber o que é antes que esse saber chegue a ser recebido em sua forma invertida”.

Nesse sentido, necessita-se do analista para um acréscimo de sentido que faça verdadeiro o tropeço. Uma significação que provoque o despertar. Um significante novo. Assim, o analista secretaria o falasser:

Nos fazemos de destinatário do sujeito que nomeia o gozo não negativizável. Procedemos destacando as nominações mais singulares feitas pelo sujeito. […] Onde havia a hiância no Outro obstruída pelo objeto a não extraído, se constrói uma borda desse Outro pela série de nominações. A série responde ao real sem lei. (LAURENT, 2020, p. 51, tradução nossa)

Na primeira clínica, o analista se colocava como secretário do alienado no campo das psicoses; hoje, tal papel cabe também nas neuroses.

Considerações finais 

Vivemos em um momento em que as fronteiras entre neurose e psicose não são tão claras. A horizontalidade das relações no laço social faz com que o analista não opere mais a partir do lugar de suposição de saber, mas como aquele que secretaria o analisante, auxiliando-o a construir uma série de nomeações que façam borda em sua defesa contra o real do gozo, seja ele neurótico ou psicótico.

O analista, como aquele que devolve ao sujeito, de forma invertida, o que ele lhe diz, será o destinatário que fará um acréscimo de sentido que eleve o saber do analisante à sua singularidade radical, provocando-lhe um despertar, como um significante novo. Para cada sujeito, neurótico ou psicótico, a amarração dos registros real, simbólico e imaginário será uma invenção absolutamente particular. É o que nos ensinam os psicóticos ordinários.


Referências
AGAMBEN, G. ¿Qué es un paradigma? Fractal: Revista de Psicologia, n. 53-54, v. 14, 2009.
CARVALHO, S. O caso paradigmático e a nosologia estrutural. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana II: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 45-72.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 79, p. 52-63. jul. 2018.
LAURENT, É. Tratamiento psicoanalítico de la psicosis e igualdad de las consistencias. In: MILLER, J.-A.; BRIOLLE, G. La conversación clínica. Olivos: Grama Ediciones, 2020, p. 41-54.
LAURENT, E.; MILLER, J.-A. O Outro que não existe e seus comitês de ética. Curinga, n. 12, p. 4-18, 1998.
MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 42, p. 7-18, 2005.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana On-line, n. 3, 2010. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br/nranterior. Acesso em: 14 set. 2021.



A despatologização lacaniana e a outra[1]

Francesca Biagi-Chai
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
bia.chai@free.fr

Resumo: A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma. 

Palavras-chave: clínica; despatologização; gozo; totalitarismo; poder jurídico.

THE LACANIAN DEPATHOLOGIZATION AND THE OTHER 

Abstract: The author examines the concept of depathologization, presenting the arguments that they justify the opposition already presented in the title of the text: the Lacanian and the other. If the author states that the lacanian institution depathologizes, it is because it is conceived according to the Moebian topology, governed by discourse and clinic. “Savage” depathologization makes it possible to equate “the feeling of each person” with his reality and this must therefore be recognized as such. It is evident the evacuation of the unconscious and, equally, of the symptom. 

Keywords: clinic; depathologization; jouissance; totalitarianism; juridic power.

Imagem: Sofia Nabuco

Despatologizar a clínica – expressão ousada – impõe-se em um tempo em que se substitui a referência no significante por aquela que se ancora na busca de um gozo inflacionário. Com efeito, se a opinião pública até o presente identificava a loucura através dos problemas da palavra e da linguagem, ela não consegue detectá-la no gozo em primeiro lugar.Desse ponto de vista, a sociedade desconhece a loucura; ela também desconhece as estruturas clássicas da neurose. Ela opera uma despatologização selvagem. A isso convém opor uma outra concepção da despatologização, que eu qualifico de lacaniana: despatologizar não consiste em aplanar a clínica, mas manter suas bordas. Que o gozo vem esconder, suplantar a estrutura – no uso feito, por exemplo, do semblante na suplência – não apaga as arestas do real como tal. O real, testemunha da estrutura.

Ponto de partida em Lacan

O momento em que o gozo assume seu valor, seu lugar igual ao significante, marca uma passagem no ensino de Lacan, acentuado como tal por Jacques Alain Miller no Seminário Mais, ainda. É a partir daí que se pode fazer com que o gozo responda à foraclusão generalizada. A partir desse momento, Lacan une, ao condensá-los, significantes da clínica até então separados, fazendo aparecer neologismos equivalentes a uma nova forma de matemas. Assim é o termo lalangue, que se constitui a partir de “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998). Será o mesmo com parlêtre, que tem, diz ele, vantagem em substituir o inconsciente (LACAN, 1975/2003). E o sintoma toma o nome de moterialismo (LACAN, 1975/1998). Podemos entrever esse mesmo princípio na passagem do supereu ao gozo em si mesmo, aquele do eu (moi) ao ego, passando pela dimensão megalomaníaca do eu (moi) que, na psicose, vem sempre no lugar da impossível subjetivação. Esse pré-requisito permite nos orientarmos na concepção da despatologização em direção à qual J.-A. Miller avança através do binário irredutível do ser e da ex-sistência. Essas duas versões do parlêtre, lado significante e lado objeto, apresentam-se como não segregativas entre as estruturas, embora a estrutura não tenha sido excluída. 

Consequências do lado do analista 

Do lado analista, a primeira consequência concerne à interpretação. Às formas conhecidas de interpretação lacaniana (corte, interpretação apofântica, equívoco) agora se juntam modos de dizer ou de fazer, quando signos discretos da psicose aparecem, signos tais como os que vislumbramos nos consultórios dos analistas. Isso dá um alcance maior ao dizer de Lacan. O analista é um retificador que opera apenas pela sugestão; dito de outra forma, ele não impõe algo que teria consistência, ele se sustenta em ex-sistir (LACAN, 1979). O que faz o verdadeiro ou o falso é o peso do analista, que opera por alguma coisa que não constitui a base da contradição (LACAN, 1979). Lacan não designa o analista como semblante do objeto a? Na psicose, fazer apelo à lógica, por exemplo, para que se produza um assentimento por parte do sujeito, é uma das formas possíveis dessa função do analista (rhéteur). O mesmo acontece quando o analista desliza um significante entre dois S1 independentes. Resta ao sujeito apreendê-lo como uma nuance que faça as vezes de S2, atenuando o poder e a rigidez da cadeia significante. Não se poderia dizer que, na psicose, convém não abordar a questão diretamente (“noyer le poisson”) – em outras palavras, prescindir da localização do falo para se servir dele e se virar com o objeto a no bolso? Na neurose, convém pescar o peixe, pois esse incomoda. Ele impede o acesso ao objeto a, aqui, destacável (GONZALES-RENOU; VIGUÉ, 2021).

A instituição lacaniana despatologiza

Enquanto uma psicose não está desencadeada, pode-se falar, verdadeiramente, de psicose? A psiquiatria começa aí onde o laço social se rompe e onde, no desencadeamento, não há nenhum discurso no qual o sujeito possa se alojar. É por isso que a instituição equivale a uma patologização: é a instituição psiquiátrica que assina a patologização clínica. A questão, então, é: como subverter a instituição e levá-la a uma mudança de paradigma que seja isomórfica ao tratamento do gozo? Tive a oportunidade de organizar no Centro Hospitalar Paul Guiraud de Villejuif o que relatei em Traverser les murs (BIAGI-CHAI, 2020): uma instituição concebida segundo a topologia moebiana regida pelo discurso e pela clínica, e não pelo lugar e o tempo. Essa topologia que não tem temporalidade é, desde então, um apoio contra o deixar cair e a ruptura. Ela participa da despatologização no sentido de que o paciente, seguido por seu psiquiatra, faz uso da instituição: ela se torna, então, instrumento. De fato, ele pode solicitá-la para diferentes modalidades de hospitalização ou acompanhamento fracionado, na medida de seus próprios significantes mestres. É evidente, por exemplo, que, em tal contexto, o conceito de recaída perca todo o seu sentido, assim como os preconceitos que desconsideram a clínica, apostando apenas na vontade e não no inconsciente, com o único propósito de evitar a transferência. 

Despatologização e variações da responsabilidade penal

Sem dúvida, é no campo da criminalidade que a despatologização lacaniana é mais capaz de fazer ressoar na opinião pública o próprio significado da ética da psicanálise. De fato, as categorizações da clínica psiquiátrica avançadas como saber já não podem explicar o que preside a passagem ao ato, porque desvinculam o sujeito de seu ato. Extrair a lógica de um crime próprio ao sujeito, a saber, o poder da compulsão, a tentativa ou não de resistir a ela, o crédito e as respostas dadas aos sinais de alerta pelo entorno, é o que se poderia chamar de diagnóstico de gozo. A clínica não desaparece, mas ela se torna bússola para interpretar, e não um objetivo a ser alcançado. Unindo o “todo mundo é louco” de Lacan a seu “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (LACAN, 1966/1998, p. 873), é bem do gozo que se trata na medida em que o gozo cessa apenas na morte física, ele sempre pode ser interrogado. Despatologizar não deve mais ser entendido no sentido comum de uma subtração da patologia, mas pode ser elevado à altura de um conceito lacaniano.

Debate 

Anaëlle Lebovits-Quenehen: Muito obrigada, Francesca Biagi-Chai. Uma primeira questão muito simples, mas me parece que isso conta muito em seu texto: você pode voltar na oposição que faz entre uma despatologização “lacaniana” e uma despatologização, poderíamos dizer, “selvagem”? 

Francesca Biagi-Chai: A despatologização selvagem está em andamento. Não seria isso que atravessa a questão trans que levantamos, na qual se diz que as palavras são fatos jurídicos e na qual a evacuação do inconsciente, a evacuação do sintoma, é evidente. E, ao mesmo tempo, dizer isso é afirmar que não existe patologia, que o sentimento de cada pessoa vale tanto quanto sua realidade, realidade que deve, desde então, ser reconhecida como tal. É um totalitarismo que faz equivaler a palavra à coisa. Não há possibilidade para o sujeito se colocar a questão de sua própria divisão, de seu próprio mal-estar, de uma interrogação, de uma sutileza. Não há mais coisas de fineza, nada mais é possível, isso é o que o torna totalitário. É uma despatologização na medida em que, por exemplo, as associações dizem que “não, não é necessário se endereçar nem a um psiquiatra nem a um psicanalista, nem a ninguém”, porque no fato de encontrar um psiquiatra, um psicanalista, há o risco de patologizar a pessoa. Então, se se quer mudar de sexo, isso se faz automaticamente; no “automaticamente” há uma redução, um desaparecimento do inconsciente, que é evidentemente muito inquietante, selvagem, desde que o sujeito não possa desenvolver, ele mesmo, os significantes de sua própria mudança, a significação de seu próprio desejo.

Jacques-Alain Miller: Sem dúvida, é suficiente uma declaração perante as autoridades: “Eu sou uma mulher”; e você é uma mulher, mesmo se não tocamos no seu corpo.[2]

Francesca Biagi-Chai: Sim, é isso. Eu sou isso que eu digo.

Jacques-Alain Miller: Sim! Poderíamos dizer que é a partir do momento em que se é cidadão que isso tem peso. Mas, não! Se falamos isso aos três, quatro anos, todo o mundo se mobiliza. É enorme, você tem que se beliscar para acreditar, mas esse é o discurso. O Estado de Direito se tornou louco. Em sua intervenção, você leva isso às últimas consequências e encontra o ponto de reconstrução, no qual “todo mundo é louco”, mas, em particular, o Estado de Direito.

Francesca Biagi-Chai: Isso vai muito longe; por exemplo, até nas acusações. É suficiente que alguém tenha sido acusado para que o que foi dito sobre ele seja verdade. Não somente o inconsciente desaparece, mas a justiça também. Todo o percurso desaparece.

Jacques-Alain Miller: Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de que os analistas queiram lidar com isso é patologizar. O Estado de Direito não tem nada a fazer com os psicólogos. Com os médicos, é diferente. Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de os analistas quererem tratar do assunto é patologizar.

Francesca Biagi-Chai: Eles precisam dos médicos.

Jacques-Alain Miller: Eles precisam de médicos, e isso até o fim de seus dias, mas isso não entra em conta diante do poder do direito, o poder jurídico. Como isso é feito em nosso país, dar as chaves de nossa civilização aos juízes? Quando se franqueia os limites do Ocidente, a questão se coloca diferentemente, porque o Estado de Direito não existe: isso protege, de qualquer forma, essas loucuras.

Francesca Biagi-Chai: Sim, porque é totalitarismo contra totalitarismo.

Jacques-Alain Miller: O que você traz é o totalitarismo jurídico. O Estado de Direito tem o poder de prendê-lo ou de lhe impor multa se você não obedece, o que é absolutamente espantoso.

Francesca Biagi-Chai: Foi isso que me impressionou, que todo os saberes desaparecem, o saber mesmo desaparece, o trauma desaparece, não há mais trauma. Não há mais choque de lalangue sobre o corpo, tudo isso desaparece totalmente.

Jacques-Alain MillerCom a Escola da Causa Freudiana construímos uma pequena barragem com duas emendas.[3] Mas ela é frágil e pode ser submersa por uma onda. Há sempre cantos onde não se atreveram a vir nos buscar, mas a perspectiva é verdadeiramente a clandestinidade, como foi o caso para a psicanálise no Leste – como na Hungria –, onde se continua a psicanalisar de uma forma muito honrosa. Nosso futuro é talvez nas catacumbas.

Francesca Biagi-Chai: Queremos deixar claro que a identidade não é a identificação, já que agora identificamos alguém a uma pequena parte dele próprio, a uma pequena parte corporal. Somos identificados a um trecho de vida, a um troço de pele, a uma cor de pele… Tivemos que trabalhar. Esse termo de identidade participa desse desaparecimento do inconsciente e contribui para o totalitarismo.

C. Dewambrechies-La Sagna: As propostas de F. Biagi-Chai me fizeram pensar em uma garota que recebi essa semana, vinte e três anos, assediada por um garoto há oito anos, vindo à clínica sentindo-se tão desesperada ao ponto em que tentou se suicidar. O jovem foi, portanto, condenado com uma suspensão e proibição de se aproximar dela. Quando a jovem é questionada, escutamos que ela vê esse rapaz em todos os lugares. Ele está em todos os lugares, em cada esquina. E, um dia, ele estava na casa de uma amiga quando ela estava lá. Ela perguntou a essa amiga como se chamava o rapaz que estava no outro canto da sala. A amiga falou o nome do rapaz. Assim, a jovem apresentou uma queixa contra ele. Ele foi, então, condenado, apesar de nunca ter falado com ela. Ele provavelmente nunca a seguiu. “Mas como você sabe que ele está seguindo você?”. “Bem ele tem um Citroën vermelho… ou cinza…”. Eu disse: “Vermelho ou cinza?”. Ela responde: “Ele trocou de carro”. Assim, para entrar no delírio, assistimos a uma remodelação permanente em função do que é do real. Em seguida, três gotas de pirlimpimpim e a jovem logo se sentirá melhor. Tudo isso vai ser completamente esquecido. Não necessariamente para aquele que foi condenado. Nem por ela, cujo status e mundo mudam. Isso apoia o fato que a terapêutica medicamentosa irrealiza.

A. Lebovits-Quenehen: Esse é um ponto muito importante. Na despatologização, o fator da eficácia medicamentosa é maior.

C – Dewambrechies-La Sagna: Isto foi importante. Você disse isso, Jacques-Alain Miller, em seu curso uma vez: nós esvaziamos os hospitais psiquiátricos e isso é uma coisa boa, mas ao mesmo tempo não é suficiente. É necessário um acompanhamento para essas subjetividades que são completamente reviradas pelo fato de passar de um estatuto a outro. O estatuto de ser assediado não é, de forma alguma, o mesmo que o estatuto de estar em plena forma. Seu mundo muda, todos os seus amigos reclamam de você, chamam você, perguntam se você está sendo seguido. Em breve, não vamos lhe perguntar mais nada pois você não terá mais nada a responder a esse respeito. Contudo, há todo um universo a ser reconstruído de forma diferente, com outros suportes. Eu penso nisso como um exemplo muito recente: ouvi a semana passada – talvez como alguns de vocês – um programa sobre hipocondria na rádio France Culture. É fascinante, a hipocondria. É suficiente dizer à pessoa: “Você já teve ideias como essa?”. “Oh, sim, desde os vinte anos”. “Escreva suas ideias em um caderno”. A pessoa escreve: “Eu tive um tumor cerebral aos vinte anos”, e lhe respondemos: “Você pode ver que esse tumor não avança tão rápido”. E é suficiente também dizer aos hipocondríacos para não irem ao Google com a ideia de que, se não forem verificar, talvez fiquem um pouco menos doentes. Todos os estudantes de medicina têm todos os sintomas, estão doentes; isso faz parte das coisas habituais”, proferem esses especialistas que trabalham em grandes serviços, tendo consultas em grandes serviços parisienses. Eles ousaram falar assim sobre o problema da hipocondria; embora os hipocondríacos, quando sofrem de hipocondria, são pessoas que se torturam muito.

Tradução: Kátia Mariás
Revisão: Maria Rita Guimarães

Referências
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original publicado em 1966).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. Une pratique de bavardage. Le Séminaire, livre XXV, “Le moment de conclure”, leçon du 15 novembre 1977. Ornicar?, n. 19, 1979.
GONZALES-RENOU B.; VIGUÉ, L. Conversation avec Francesca Biagi-Chai. Horizon, n. 66, L’Envers de Paris, 2021.
BIAGI-CHAI, F. Traverser les murs. La folie, de la psychiatrie à la psychanalyse. Paris: Imago, 2020.
[1] Texto originalmente publicado na revista Quarto 131, Ravages du bien-être, de junho de 2022.
[2] Proposta estabelecida por G. Poblome, É. Zuliani e P. Fari. Não relido pelo autor.
[3] A Escola da Causa Freudiana propôs duas emendas de “segurança jurídica” que o Senado introduziu e que a Comissão Mista Paritária manteve em seu texto na sua forma atual.



A neurose obsessiva ao redor do cheiro do ralo

Paulo Henrique Assunção Rocha
Formado em Filosofia (UFMG) e em Teatro (CEFART/Palácio das Artes)
Aluno do Curso de Formação em Psicanálise do IPSM-MG
paulohassuncao@gmail.com

Resumo: No romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, um homem sem nome, dono de uma loja de penhores, passa a ser assombrado pelo cheiro fétido que sai do ralo do banheiro do seu trabalho, ao mesmo tempo em que fica obcecado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta diariamente. É ao redor dessa trama que abordaremos aspectos significativos da neurose obsessiva, como sua posição em dívida em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição, a postergação e o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos. 

Palavras-chave: O Cheiro do Ralo; literatura; psicanálise; neurose obsessiva.

THE OBSESSIONAL NEUROSIS SURROUNDING THE SMELL OF THE DRAIN 

Abstract: In the novel O Cheiro do Ralo (in literal translation: “The Smell of the Drain”), written by Lourenço Mutarelli, a nameless man, owner of a pawn shop, starts to become haunted by the fetid smell that escapes the bathroom’s drain at his shop, while also becoming obsessed with a lady’s ass, a lady who works in the cafeteria he attends daily. It is from this plot that we intend to approach significant aspects of the obsessional neurosis, such as its debt position towards the father, the serial objects, the relationship between the gaze and the anal object, the repetition, as well as the postponement and the metonymic slide of compulsive thoughts. 

Keywords: O Cheiro do Ralo; literature; psychoanalysis; obsessional neurosis.

 

Imagem: Renata Laguardia

É notório o campo aberto por Freud na aproximação entre literatura e psicanálise, no interior da qual uma das suas perspectivas mais importantes se dá pela possibilidade de que o texto literário possa nutrir o campo psicanalítico. Lacan também constantemente utilizou-se de obras literárias e artísticas para, segundo ele, “tomar a lição” (LACAN, 1973-74, aula de 09/04/1974, tradução nossa, s/p).

O romance O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, parece assim ser uma obra instigante para examinar a questão da neurose obsessiva, como a posição em relação ao pai, os objetos em série, a relação entre o objeto anal e o olhar, a repetição cerimonial, o deslizamento metonímico dos pensamentos compulsivos e o desejo postergado.

Narrado todo em primeira pessoa, o protagonista do livro de Mutarelli, que não tem seu nome invocado em nenhum momento do romance, é dono de uma pequena loja de objetos usados. As pessoas que vão até o seu empreendimento estão sempre em condições financeiras deploráveis e de extrema necessidade, oferecendo muitas vezes mercadorias singelas, que o personagem principal faz questão não apenas de comprar pelo menor preço, mas também de insultar quem as vende. É a partir do momento em que é afetado pelo cheiro que sai do seu banheiro, da aquisição de um olho de vidro vendido por um cliente e da obsessão com as nádegas da atendente da lanchonete, que ele tem seu previsível cotidiano perturbado. Esses três objetos – o ralo, o olho e a bunda – são os pontos em torno dos quais o protagonista gira por toda a trama e que buscaremos desdobrar em nossa análise.

Grande parte do romance se passa no empreendimento do protagonista, para o qual diversos clientes se dirigem para penhorar uma série de artefatos, que podem ser de um violino, livros e vinis raros a objetos valiosos, mas frequentemente são apetrechos sem nenhum valor. Mais do que ser um colecionador, o personagem central busca retirar, por meio dos “objetos”, a dignidade de seus “clientes”, incitando uma posição de dúvida e aviltamento, oferecendo mais dinheiro por coisas banais ou uma miséria por artefatos valiosos. Procura constantemente humilhá-los ao ouvir suas histórias de vida e da relação deles com esses objetos que levam para vender, e assim tentar arrancar sempre mais através dessa negociação um a um, procedimento que parece enaltecer seu narcisismo e buscar aniquilação desse outro.

Você nunca me deu nada.

Eu sempre paguei.

É. Tudo o que eu tinha eu vendi para o senhor.

Eu pedi para você me vender?

Não. Pedir não pediu.

Então por que vendeu?

Porque eu precisava.

Não. Vendeu porque quis.

Foi ou não foi?

Foi.

Então diga, eu vendi porque quis.

Eu vendi porque eu quis.

Muito bem. (MUTARELLI, 2011, p. 96)

Nessa coleção de objetos e nas injúrias do narrador, uma série se forma e vai se deslocando, como aquilo que Lacan caracterizou como uma “metonímia permanente” do sintoma obsessivo (LACAN, 1960-61/2010). Romildo do Rêgo Barros (2015, p. 46) definiu como, na neurose obsessiva, “o sujeito se organiza contra a significação, tornando potencialmente infinito o deslizamento das conexões”. Já não importa mais para o protagonista quais são as bugigangas vendidas, as histórias que as pessoas contam, as humilhações que provoca, tudo se torna apenas uma infinita e interminável lista de coisas a serem adquiridas.

No momento em que começa a ter problemas com o cheiro horrível que exala do ralo no banheiro do trabalho, algo que acontece já na primeira página do romance, o protagonista tem sua falsa normalidade abalada. Desse incômodo constante com o ralo e do receio do cheiro ser associado a ele (“Só não quero que eles pensem que o cheiro do ralo é meu”), algo em sua vida passa a falhar, a sair do rumo ordinário que tentou construir e manter.

Aqui cheira a merda.

É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo.

Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro?

Eu.

Quem mais?

Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta: E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 16)

É Lacan quem magistralmente vai revelar sobre a “evacuação da merda”, afirmando que “o homem é o único animal para quem isso apresenta um problema, mas prodigioso” (LACAN, 1967-68/2006, p. 74). Isso fica evidente para a neurose obsessiva, cuja relação sádico-anal é apontada por Freud (1926/1996) em Inibições, sintomas e ansiedade como essencial para entender a escolha dessa neurose pelo sujeito. A regressão da pulsão ocorre por meio de um conflito psíquico e da ambivalência, na qual as ideias contraditórias sucedem-se e anulam-se. Além disso, se, no estágio anal, a possibilidade de dar ou não algo ao Outro é apenas uma possibilidade, para o obsessivo o imperativo de dar tudo ao Outro é levado às últimas consequências. Se sentir “um merda” ganha equivalência com a merda com a qual o obsessivo metrifica o outro. Lacan afirma que o “tudo para o outro” do obsessivo é “a perpétua vertigem da destruição do outro, ele nunca faz o bastante para que o outro se mantenha na existência” (LACAN, 1960-61/2010, p. 255). Segundo Miller (1986, p. 140, tradução nossa) em H²O, há muito tempo os psicanalistas já haviam notado a afinidade do caráter obsessivo com “a vertente do erotismo anal, o espirito da economia e até mesmo da avareza”.

Esse ímpeto de destruir o Outro, ao mesmo tempo em que lhe dá enorme consistência, estabelece uma peculiar estratégia de rebaixamento dos seus pequenos outros. É justamente essa a maneira como o protagonista de O Cheiro do Ralo lida com todos que o cercam, demonstrando uma incapacidade ímpar para estabelecer vínculos afetivos. É curioso que comece a se importar com os outros, seus semelhantes, somente na medida em que concebe incomodá-lo com o próprio cheiro. Talvez não estejamos tão distantes de Lacan quando ele diz que “A civilização, lembrei lá como premissa, é o esgoto” (LACAN, 1971/2003, p. 15). É na sua não capacidade de acobertar o que tem de mais íntimo, o que faz no âmbito privado (“o banheirinho”), que nosso protagonista passa a se envergonhar com o olhar e a expectativa alheia: “Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim” (MUTARELLI, 2011, p. 9).

O que se segue são inúmeras e desesperadas tentativas de tamponar o ralo, ele chega mesmo a retirar o vaso e concretar o buraco, tentando assim aniquilar o que lhe assombra. Sua reação acaba por levar a um entupimento do cano do escritório e a um aumento ainda maior do cheiro insuportável. A tentativa obsessiva de tamponar o furo acaba por entupi-lo com a própria merda, a merda do seu ser, ou, como diz Lacan (1960-61/2010), seu ser de merda.

Refaz então o buraco e passa a se deitar para aspirar o vapor que sai dele: “Rastejo até o banheirinho. Tiro a toalha do ralo. Cheiro, cheiro, cheiro…” (MUTARELLI, 2011, p. 122). Há claramente um gozo nisso, seu corpo goza com essa ação de agachar e inalar compulsivamente o vapor do ralo, algo proibido, excessivo e que deve ser feito apenas escondido, longe dos olhares de todos. É nessa ação sem sentido, que faz envergonhado e solitariamente, que parece, enfim, se reconhecer:

Deitado de bruços, inalo. Trago. Para ele o ralo sou eu. Observo, atento, o buraco. Nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo. Só há o escuro que sou. E isso é tudo o que me resta para amar. (MUTARELLI, 2011, p. 176)

Podemos notar também nas ações do protagonista de obstruir e reabrir o ralo que, mais que agir, o que ele faz é um enorme esforço para desfazer o que foi feito, um contra-ato que mantém tudo imutável. Há nisso uma similaridade com o procedimento de anulação de um evento, denominado como “mágico” por Freud (1926/1996, p. 120):

Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas bifásicos, nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram.

O segundo ponto de inflexão no romance se dá quando um homem chega ao escritório e oferece ao protagonista um olho de vidro. Ele fica fascinado e chega mesmo a estabelecer uma equivalência entre o olho e as nádegas tão desejadas da funcionária da lanchonete: “Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.” (MUTARELLI, 2011, p. 36). Por isso, já não é capaz mais de negociar, pagando um alto preço pelo objeto desejado. O olho passa a ser um objeto que traz sempre no bolso, levando-o para ver a bunda da atendente, deixando-o em cima de sua mesa de trabalho, assistindo TV, conversando com ele. Passa a mostrar para os clientes e outras pessoas, dizendo: “Era do meu pai” (MUTARELLI, 2011, p. 37). O olho começa a ver pelo narrador, a ser seu companheiro, sendo levado a todos os lugares em que ele vai e, cada vez que fala sobre ele, inventa e aumenta a história do olho paterno, dando enorme densidade a esse Outro. É exatamente como na neurose obsessiva, cuja questão é a relação com o objeto olhar, e não o pai. Miller (apud SIRIOT, 2020, s/p), em seu ensino inédito O Ser e o Um, afirma: “O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”. E, ainda sobre a função escópica, Cristiane Barreto (2017, s/p) ressalta que:

O neurótico obsessivo, em dívida, sem o ‘bolso’ do psicótico para carregar seus objetos seriados, faliciza-os e os carrega na fantasia, fixa-se onde a fantasia encontra satisfação, ou, ao invés de fixar, poder-se-ia dizer, com Schejtman, que o sujeito adormece onde encontra satisfação na fantasia. Esse mecanismo pode ser relacionado com o lugar que o escópico ocupa para o sujeito obsessivo, a potência (ilusória) atribuída ao lugar do Outro, dessa forma, o olhar ganha uma dimensão de gozo proporcional à consistência atribuída ao Outro, que, permanece em sua censura perene.

Adiante no romance, quando ao protagonista é oferecida a prótese de uma perna, compra-a sem hesitar. Decide, então, montar um pai:

Eu já tenho o olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que, com o tempo, vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi. Se foi, antes que eu o tivesse. Foi, antes de eu nascer. Nem me viu. Nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez. Eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou. Ele nunca me viu. Eu só o imaginei. A vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome. Eu mesmo o batizei. Eu mesmo cuidei de criá-lo. De cada detalhe, eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto. Não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites. Ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara. Nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança. Não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo. E que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe, e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu. Talvez, ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein. (MUTARELLI, 2011, p. 141)

Desde Freud e o caso do Homem dos Ratos é destacada a centralidade da questão paterna na neurose obsessiva. Gazzola (2002, p. 42), em seu comentário sobre o pai de Ernst Lanze, enfatiza que, nesse caso, “é um pai que não termina nunca de morrer”, e que “esse pai volta sempre, como um fantasma, para assombrar o sujeito, quando se trata de gozar”. Em O Cheiro do Ralo acompanhamos, através do olho de vidro e da perna protética, não a tentativa de criar um novo pai para se servir dele, mas um pai que “imaginou” e que, como o personagem, nem nome tem, nada sabe, nada transmitiu, é apenas um esboço de pai advindo de objetos comprados.

A bunda é outro objeto em torno do qual o romance e o protagonista giram. O personagem se vê perdidamente apaixonado pelas nádegas da atendente da lanchonete que frequenta todos os dias. Com a desculpa de ir ver a bunda, passa a consumir todos os dias um hambúrguer (X-Tudo), o que piora ainda mais seus problemas intestinais e consequentemente o cheiro ruim do ralo.

Ao se deparar com a garçonete, é incapaz de compreender seu nome e reter seu rosto, não se interessa por nada mais além de sua bunda. Chega a nomeá-la de Rosebud, em alusão ao trenó, grande mistério de Cidadão Kane de Orson Welles, e que guarda curiosa homofonia com o objeto desejado pelo protagonista. Suas investidas na garçonete levam a uma obsessão: sonha com a bunda, alucina, ensaia diversas maneiras de enfim possuir esse objeto. A garçonete também está interessada, mas a inabilidade social do protagonista o leva sempre a adiar o encontro e, mais do que isso, sua obsessão com a bunda destrói a própria possibilidade de que o encontro aconteça, tornando-o impossível. No seu constante cálculo dos objetos e das relações, há o receio de que, fora das suas fantasias previsíveis, essa satisfação irá ser corrompida: “Mas, se eu for, estrago tudo. Depois vem as cobranças. Eu sei. Mulher é tudo igual. Não adianta você ser sincero. Elas sempre querem mais. E aí logo mandam o convite pra gráfica” (MUTARELLI, 2011, p. 36). O personagem só é capaz de imaginar a possibilidade de uma relação mediada pela relação mercantil: “Se começar dessa forma, ela virá com as cobranças. E eu prefiro pagar para ver”. Como Lacan afirma no Seminário 6 (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), para o neurótico obsessivo trata-se de manter o desejo como instituído na sua impossibilidade: “É sempre para amanhã que o obsessivo reserva o engajamento de seu verdadeiro desejo”.

Após uma série de desencontros, a garota da lanchonete consente em agir conforme a fantasia do narrador, aceita fazer como ele quer, ser paga para mostrar sua bunda. Ela vai ao seu trabalho e, diante dele, abaixa as calças e exibe a bunda. Ele caminha até ela e chora copiosamente agarrado às nádegas.

A bunda é, e sempre foi, o desejo, a busca de tentar alcançar o inatingível. Essa bunda era, enquanto impossível, enquanto alheia, o contraponto do ralo. Mas o que eu realmente buscava não estava ali. Tampouco em outro lugar. O que eu buscava era só a busca. Era só o buscar. E por isso agora já não há mais desejo, só cansaço. Só o vazio. Só a certeza do incerto. Agora é preciso encontrar algo novo, de preferência uma bunda nova, para acreditar. Uma nova bunda em que eu possa crer. Nessa bunda eu não creio mais. Não que ela minta, ou tenha um dia mentido, para mim. Não. O mentiroso sou eu. (MUTARELLI, 2011, p. 171)

O objeto antes tão precioso, ao ser confrontado degrada-se rapidamente e vira nada: “E, assim, mais uma coisa a bunda se torna. Como tudo, como as coisas que tranco na sala ao lado” (MUTARELLI, 2011, p. 173).

É também aqui que se articula a questão entre os objetos olhar e anal, ou entre o ideal e a merda. O obsessivo reveste o objeto anal falicamente e também o encobre com o olhar. O “olhar envelopa a merda” (BARRETO, 2017, s/p), fazendo do objeto malcheiroso uma preciosidade, como o personagem faz com o ralo, o olho e a bunda. Mesmo assim, mesmo quando ele parecia ter tudo o que queria, não havia mais nada ali para ele desejar: “Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu” (MUTARELLI, 2011, p. 179).

O verdadeiro estatuto do desejo na neurose obsessiva, diz Lacan (1958-59, aula de 10/06/1959, tradução nossa, s/p), é que “o obsessivo é alguém que nunca está verdadeiramente aí, no lugar onde está em jogo algo que poderia ser qualificado: ‘seu desejo’. Onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí que ele está”. 


Referências
BARRETO, C. A neurose obsessiva e o olhar: quando olhar serve para não ver. 2017. (Inédito).
BARROS, R. do R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926).
GAZZOLLA, L. R. Estratégias na neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 6: Le désir et son interprétation. (Trabalho original proferido em 1958-59). (Inédito).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Trabalho original proferido em 1973-74). (Inédito).
LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Trabalho original publicado em 1971).
LACAN, J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. (Trabalho original publicado em 1967-68).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. (Trabalho original publicado em 1960-61).
MILLER, J.-A. H²O. In: Matemas II. Buenos Aires: Manantial, 1986.
MUTARELLI, L. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SIRIOT, M. O gozo feminino: uma orientação em direção ao real. In: XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Boletim Infamiliar. 2020. Disponível em: www.encontrobrasileiro2020.com.br/ o-gozo-feminino-uma-orientacao-em-direcao-ao-real. Acesso em: 30 set. 2022.



Entrevista com Sérgio de Campos

Sérgio de Campos
A.M. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/A.M.P.
sergiodecampos@uol.com.br

Imagem: Sofia Nabuco

Almanaque On-Line: No final do volume 2 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses – volume este intitulado “As psicoses ordinárias” (CAMPOS, 2022a) – você cita Lacan quando ele afirma, a propósito da religião, que a psicanálise não triunfará: ela sobreviverá ou não. Podemos ampliar a questão da sobrevivência da psicanálise no que diz respeito ao que temos nos dedicado, atualmente, no Campo Freudiano, a saber, à problemática da despatologização. Considerando a tendência atual que aponta para a ausência de patologias e, em seu lugar, apenas estilos de vida e, ainda, a exigência de uma fraternidade que põe em marcha a reivindicação democrática de igualdade, somada à eficácia medicamentosa que irrealiza a patologia, podemos concluir, como você diz, sobre a presença de um novo empuxo higienista da sociedade contemporânea. O que você pode nos dizer sobre esse futuro da psicanálise? Uma vez que o discurso analítico não tem nada de universal, como é possível salvar a clínica do singular, do para o “Um-sozinho”, nesse mar aberto de discursos que insistem em vender e disseminar o “para-todos”?

Sérgio de Campos: Em primeiro lugar, quero agradecer à equipe da Almanaque On-line pelo gentil convite para participar desta entrevista, pelas perguntas instigantes formuladas que me colocaram a trabalho e pela oportunidade de conversar com vocês sobre a clínica das psicoses.

Em O triunfo da religião, Lacan (1974/2005) afirma que a religião triunfará, a psicanálise sobrevirá ou não. Desde seu início, Freud enfrentou inúmeros obstáculos no caminho da psicanálise, a começar pelos seus discípulos. Verificamos que, através dos tempos, a lista continuou a crescer: a religião, as mais diversas formas de psicoterapias, a psiquiatria biológica, as neurociências, o cognitivismo, a regulamentação da psicanálise, a ortodoxia e o dogmatismo, os psicanalistas – imbuídos pelo espírito da sociedade de ajuda mútua contra o discurso analítico (SAMCDA) –, entre outros, e, agora, no contexto de nossa época, a despatologização. Pode-se dizer que a despatologização equivale a pronunciar que não haverá mais patologias alusivas à psiquiatria clássica. A despatologização forclui a psicopatologia na promessa de sanar o desequilibro neuroquímico com novos medicamentos.

A reinvindicação igualitária e o empuxo higienista do “para-todos” impõem o desaparecimento da clínica, na qual, antes, um sujeito era acometido por uma enfermidade expressa de maneira singular, e, agora, ele passa a integralizar um grupo constituído de sujeitos de direitos, alinhados a um estilo de vida, cuja finalidade comum é a de alcançar o bem-estar e a felicidade. Lacan (1969-70/1992) já nos advertira no Seminário 17, O avesso da psicanálise, que existe um preço a se pagar, visto que não há fraternidade sem exclusão que se manifesta sob as diversas formas de segregação. Lacan assinala que a fraternidade é uma ideia ridícula e não tem fundamento científico, de modo que estamos isolados no campo do um. Com efeito, a fraternidade serve para recobrir a experiência da segregação, pois, no fundo, tudo que existe na sociedade se baseia na segregação.

A despatologização é concebida a partir do contemporâneo calcado em uma fraternidade utópica, inscrita na reivindicação democrática de uma igualdade universal, a qual apregoa o apagamento das diferenças e nas exigências de um bem comum “para-todos” (MILLER, 2022). Então, o resultado da despatologização é a substituição do princípio clínico pelo princípio jurídico que vem prometer a utopia da inclusão de todos (MILLER, 2022). Logo, sob essa ótica, espera-se que todo mundo é ou possa se tornar normal. Nesse ponto, reside um paradoxo, pois quanto mais todo mundo é normal, mais medicamentos são comercializados. Então, sob o prisma do Manual Diagnóstico e Estatísticos dos Transtornos Mentais (DSM), numa espécie de nominalismo sem lastro, onde os transtornos mentais aumentam consideravelmente a cada edição, constata-se que quanto mais desaparece a clínica, mais estreita se torna a faixa entre a normalidade e a enfermidade, de sorte que ao mesmo tempo, todos se tornam normais e passíveis de serem medicados.

Enfim, o discurso analítico, apanágio do singular e do “um-sozinho” sem o Outro, se inscreve nas fissuras do discurso dominante e promove a deflação do gozo. A psicanálise não é “para-todos” e não visa a normalidade. Mas, não nos aflijamos com isso, pois ela visa a satisfação para com o sinthoma e não tem a presunção de salvar o mundo. A psicanálise se inscreve como um discurso que não seria o do semblante, no qual o real é sem lei, visto que ele é o resultado da conjunção entre o significante e o gozo, que advém da ruptura da ordem simbólica.

Se, na primeira clínica de Lacan, o que escutamos são as significações que evocam a compreensão sob o nexo causal de uma estrutura clínica, cujo gozo está implicado, na segunda clínica, a condução de uma análise, sob o paradigma do Il y a de l’Un – no que concerne ao postulado de que não há relação sexual – não é concebida como ontologia do ser, mas como existência do um que se apreende a partir das homofonias, das inanidades sonoras, dos equívocos e das jaculações nas fendas da compreensão. Em suma, o ultimíssimo Lacan propõe que, no inconsciente, temos uma escrita passível de ser lida pelo analista e pelo analisante, de maneira que a leitura vem substituir a escuta. Assim, a interpretação apenas incide sob a condição de ser uma leitura a um parlêtre que sabe se ler (MILLER, 2011).

A.O.: Em seu texto “A presença do analista na psicose ordinária” (CAMPOS, 2023), publicado na última edição da Almanaque On-line, você localiza que uma das estratégias da neotransferência na operação analítica faz com que o analista opere como se ele fosse o sinthoma, com uma ajuda-contra aquilo que impele o sujeito na direção de A mulher, ou seja, uma ajuda contra o delírio edificado ali onde o sujeito se depara com o real. Nos parece uma forma de orientação em que o analista está avisado de que um delírio, ao mesmo tempo em que pode ser interpretado como uma tentativa de cura, traz também desordem e sofrimento e pode surgir incitando passagens ao ato que colocam o sujeito em risco. Furar a consistência e a onipotência do Outro é uma aposta numa leitura menos invasiva que pode advir, mas, por outro lado, poderia também favorecer sintomas depressivos e novos desligamentos? E como você diferenciaria a ajuda-contra do analista da posição da psiquiatria contemporânea que visa erradicar o delírio?

S.C.: É recomendável a prudência na prática de intervenções ousadas na condução de casos de psicoses ordinárias, visto que elas podem ocasionar desencadeamentos. A prática da ajuda-contra aquilo que impele o sujeito em direção de A mulher tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio e furar a onipotência do Outro. Em contrapartida, a ajuda-contra nos casos de desligamentos e sintomas depressivos pode agir a favor de um secretariado por parte do analista que contribua para um novo enlaçamento ou religamentos, como uma identificação por parte do sujeito em uma ancoragem que desempenhe um papel social positivo. Ainda no que concerne ao campo das externalidades social, corporal e subjetiva, uma leitura atenta do caso pode fornecer o instante preciso de incluir a ajuda-contra que deve incidir como uma bricolagem, uma pequena invenção que possa permitir uma extração de gozo, impedir ou adiar as errâncias, os desligamentos, as passagens ao ato e os desencadeamentos, assim como propiciar suplências.

A.O: Miller (1996) nos diz, em seu texto “Clínica irônica”, que todos os nossos discursos não passam de defesa contra o real. A isso ele nomeia como clínica universal do delírio, uma perspectiva que você trabalha no volume 1 de seu livro Investigações lacanianas sobre as psicoses, volume intitulado “As psicoses extraordinárias” (CAMPOS, 2022b). É interessante observar que essa clínica se constitui a partir da ironia, mas da “ironia infernal da esquizofrenia”, pois é só a partir do ponto de vista do esquizofrênico e de sua ironia que podemos aferir tal clínica. Se a ironia esquizofrênica, diferentemente do humor neurótico, nos diz que o Outro não existe e que não há discurso que não seja do semblante, colocamos as seguintes questões: como a ironia pode ser conveniente ao psicanalista para o seu fazer clínico? Ele pode tomá-la como um direcionamento clínico frente ao delírio generalizado? E, por fim, ainda no que se refere à esquizofrenia, Miller (2010), em seu texto “Efeito do retorno às psicoses ordinárias”, afirma que a noção de psicose ordinária estreita o campo da neurose e amplia o campo da psicose. Através de sua pesquisa que culminou na publicação de seu livro, como você pensa o estatuto contemporâneo da esquizofrenia?

S.C.: Miller, em “Clínica irônica” – texto que, embora de 1996, está atualíssimo –, define a clínica universal do delírio como sendo aquela na qual todos os discursos não passam de defesas contra o real. A clínica universal do delírio pode ser examinada do ponto de vista do esquizofrênico, na medida em que ele não é capturado por nenhum discurso e que ele está fora do laço social. É interessante ressaltar que, se por um lado, na paranoia, o Outro existe – uma vez que ele é consistente, invasivo e real, pois ele contém o objeto a –, por outro, na esquizofrenia, o Outro não existe, já que ele não foi constituído. Pode-se acrescentar que o esquizofrênico não se defende do real pelo simbólico, pois ambos os registros se equivalem, uma vez que se interpenetram em razão de uma falha na cadeia borromeana.

No que concerne à ironia, ela se distingue do humor, visto que se, por um lado, o humor se inscreve no Outro e vai ao encontro do sujeito, por outro, a ironia surge no campo do sujeito e vai de encontro ao Outro. Portanto, a ironia é uma defesa contra a invasão do Outro e ela denuncia que o Outro não existe. A ironia pode ser conveniente ao analista, mas se a neurose fosse curada por ela, não haveria necessidade da psicanálise. Miller (1996) advoga que a psicanálise tem uma ética irônica, já que ela se fundamenta na inexistência do Outro. Assim, o esquizofrênico, como aquele que se situa em uma exclusão interna, nos serve de orientação para conceber a clínica universal do delírio, na medida em que o simbólico não funciona para se defender do real.

Com isso, o paradigma da esquizofrenia se torna a direção para o ultimíssimo Lacan, onde o Outro não existe. De certo modo, Lacan considera que há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo, e foi por essa razão que ele dedicou parte de seu ultimíssimo ensino ao que ele pôde aprender com James Joyce. O ego de Joyce se constitui sem a imagem do corpo, mas a partir de um enquadramento traçado pela escritura (MALEVAL, 2019). Com efeito, a obra de Joyce e o sinthoma são homólogos e a escrita de Joyce prende o imaginário ao enodar o real e o simbólico, impedindo o deslizamento de um sobre o outro (LACAN, 1975-76/2007).

À guisa de conclusão, em “Clínica irônica”, Miller (1996) afirma que a tese universal do delírio é uma tese freudiana. Para Freud, nada deixa de ser sonho. Portanto, se tudo é sonho, “todo mundo é louco, isto é delirante”. Freud apresenta uma passagem equivalente ao aforisma lacaniano na qual afirma que, em certa medida, somos todos paranoicos, e louco seria aquele que não conseguiu alguém para ajudá-lo a incluir o seu delírio na realidade (FREUD, 1930/1980). Então, se o ultimíssimo ensino de Lacan se encontra com Freud, pelo avesso, como numa banda de Moebius, podemos cotejar um postulado com outro e concluir que, tanto para Freud, quanto para Lacan, o delírio é comum a todos. Por fim, de acordo com Miller (2013), o delírio é universal porque os homens falam e porque habitam a linguagem. Assim, o delírio linguístico lacaniano ocorre porque existe uma inconformidade das palavras às coisas, o que significa uma inadequação do simbólico ao real.

Entrevista realizada por: Giselle Moreira, Kátia Mariás, Lilany Pacheco e Rodrigo Almeida.

Referências
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022a.
CAMPOS, S. de. Investigações lacanianas sobre as psicoses. Volume 2: As psicoses extraordinárias. Belo Horizonte: Topológica, 2022b.
CAMPOS, S. de. A presença do analista na psicose ordinária. Almanaque On-line, n. 30, mar. 2023. Disponível em: http://institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/a-presenca-do-analista-na-psicose-ordinaria. Acesso em: 22 jun. 2023.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1980. p. 74-171. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LACAN, J. A escrita do ego. In: O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MALEVAL, J.-C. Appréhension de la psychose ordinaire. In: Repères pour la psychose ordinaire. Paris: Navarin, 2019,  p. 41.
MILLER, J.-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 190-199.
MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana online – Nova série, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/ efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 23 de março de 2011. 2011. (Texto inédito).
MILLER, J.-A. Momento de concluir. In: El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER J.-A. Todo mundo é louco. AMP 2024. Opção Lacaniana, n. 85, p. 8-17, dez. 2022.