Do dom de Mauss ao inominável da pulsão 

Laydiane Pereira de Matos
Psicóloga
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
laydianep.matos@gmail.com

Resumo: Este artigo visa revisitar as bases do conceito de dom na teoria de Marcel Mauss e articular sua lógica com a transmissão de Freud e Lacan acerca da teoria de objeto. Para isso, contrasta a utilidade desse conceito na estruturação da primeira clínica lacaniana com sua discordância fundamental, que reside na impossibilidade da determinação significante propiciada pelo acesso ao simbólico em conseguir abarcar o real da pulsão, posto que seu caráter é sempre casuístico, utilizando-se do conceito de assentimento para sustentar tal argumento. 

Palavras-chave: dom; objeto; pulsão; Outro; assentimento. 

FROM MAUSS’S GIFT TO THE UNNAMEABLE OF THE DRIVE 

Abstract: This article aims to revisit the foundations of the gift concept in Marcel Mauss’ theory and articulate its logic with Freud and Lacan’s transmission about the object theory. To this end, it contrasts the usefulness of this concept in the structuring of the first Lacanian clinic with its fundamental disagreement, which resides in the impossibility of the significant determination provided by the access to the symbolic in being able to embrace the real of the drive, since its character is always casuistic, using of the concept of assent to support this argument. 

Keywords: gift; object; drive; Other; assent.

 

Imagem: Renata Laguardia

Introdução

Segundo Lacan, Freud referiu-se ao conceito de objeto em diversos momentos de sua obra, e sua importância percorre toda a psicanálise. Com vistas a retornar a Freud e corrigir possíveis deturpações desse conceito por psicanalistas pós-freudianos, ele enfatiza que falar da relação de objeto é falar de sua falta, posto que esse objeto é inapreensível e que dele temos apenas noções parciais. Tendo entrado na dialética do dom, o objeto não é de relação harmônica com o sujeito, mas, sim, de natureza enigmática, remetendo ao falo simbolizado enquanto significante do desejo do Outro (LACAN, 1956-57/1995). É esse Outro, fonte de dom, que propicia a transmissão de uma falta e o aparecimento do sujeito, efeito da imersão do homem na linguagem e que existe ao preço de uma perda (SANTIAGO, 2008). Porém, ainda que tenha se apoiado no conceito de dom – tema de pesquisa de Marcel Mauss –, Lacan já dava sinais da insuficiência do simbólico em dar conta da pulsão, apontando seu caráter casuístico, que, articulada ao Outro da linguagem, não garante seu assentimento com a lei simbólica (SALUM, 2009). Assim, este artigo visa percorrer o conceito de dom trabalhado por Mauss e sua articulação com a noção de objeto em Freud e Lacan, caminhando para o conceito de assentimento.

Dom em Mauss

Lacan, no Seminário 4, menciona por vezes o conceito de dom, remetendo-o à relação dialética entre sujeito e objeto. Segundo ele, não é possível tomar o objeto de dom sob uma perspectiva harmoniosa, visto que ele se apresenta como a possibilidade de um objeto intermediário que só surge no tensionamento que se abre quando a mãe, em sua relação com o filho, se apresenta como potência real (LACAN, 1956-57/1995). E por que Lacan o utilizou em seu ensino?

Segundo o dicionário, a palavra “dom” se origina do latim dominus, i, que significa “senhor de”, e remete tanto à posse de uma qualidade inata do sujeito, quanto à um título de honra a ele designado exprimindo homenagem e respeito. O dom seria uma espécie de dádiva, de presente, donde sua tomada de posse e usufruto faz do sujeito alguém importante (DOM, 2023). Foi o etnólogo Marcel Mauss, com seu Ensaio sobre a dádiva, que contribuiu para que o conceito tivesse maior consistência nas ciências sociais (MARTINS, 2012). Antes do surgimento da moeda, os serviços, trabalhos e alianças entre os indivíduos e seus clãs eram pautados por um caráter mágico de comum acordo (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), e Mauss expõe um conjunto de pesquisas empreendidas sobre as características do sistema de trocas em sociedades arcaicas (mais especificamente na Polinésia, Melanésia e Noroeste americano), nas quais o objeto de troca tinha seu valor delimitado não em sua utilidade, mas na crença universal de que o espírito do doador ficava na coisa dada. Isso fazia com que os grupos obrigatoriamente se presenteassem e se endividassem, uma solidariedade forçada pela qual quem recebia era obrigado a retribuir. O que era trocado não era apenas de ordem material, mas também se trocavam gentilezas, festas e feiras, evidenciando que a circulação das riquezas era apenas um dos termos de um contrato mais geral e mais permanente (MAUSS, 1923-24/1950). Assim, esse contrato compartilhado pautado num significado oculto resultava na filiação e no funcionamento social entre coletividades, denotando o valor do simbolismo nas sociedades (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011).

Claude Lévi-Strauss é quem escreve a introdução à obra de Mauss, e nela aponta a relevância de seu estudo para a psicanálise e demais áreas. Ele comenta que a recepção do trabalho de Mauss se deu de forma não acolhedora na época, visto que, enquanto escrevia, as ideias de Freud ainda não haviam chegado na França, e seu trabalho foi uma primeira manifestação de evolução objetiva nas ciências psicológicas. Tomando como o marco de seu estudo o apontamento de que o inconsciente e a relação com o outro são o que explicam os fatos sociais, ele chega a referenciar um artigo de Lacan – L’agressivité en psychanalyse, de 1948 – para apoiar tal concepção. Mais à frente, aponta para o papel da linguagem na articulação entre o eu e o outro, sendo possível apenas através dela que o pensamento simbólico se exerça. Para Strauss, o social é uma realidade autônoma, em que o significante precede e determina o significado. No que remete ao trabalho de Mauss, ele inova dizendo que o que está em jogo na dádiva que obriga a dar, receber e retribuir não é, como Mauss apontou, o espírito da coisa que ainda paira sob ela, mas, sim, que esta é a forma consciente pela qual a sociedade pôde apreender algo que está além, no campo do inconsciente (MAUSS, 1923-24/1950).

Dom e o objeto em psicanálise

Santiago (2008) aponta que a importância do dom para a psicanálise vem da forma como Lacan o pôde apreender na pesquisa de Mauss enquanto sistema de trocas simbólicas. O que importa é que o simbólico suprime o gozo sob o objeto, passando a denotar seu caráter mítico. Da perda de gozo, assume-se o significante do desejo do Outro, enigmático, e essa é a dimensão essencial do objeto na experiência analítica. Em Lacan (1956-57/1995), temos que toda relação objetal é fundamentalmente imaginária, e que desde o início das origens dos objetos eles já são considerados outra coisa para além do que são: são objetos trabalhados pelo significante, cuja estrutura é impossível de se extrair.

Associando com o conceito de objeto em Freud, o caráter de mais além da coisa referenciado no dom equipara-se com o objeto que está para sempre perdido, o objeto das primeiras satisfações, que sempre deixa uma hiância entre o que se procura e o que se encontra. No primeiro ensino de Lacan (1956-57/1995), o objeto associa-se ao falo, objeto imaginário privilegiado, que perpassa a relação dual entre mãe e filho. A passagem do objeto de necessidade para o objeto de dom pode ser ilustrada no exemplo da mãe que alimenta o filho com o objeto seio. A mãe, submetida à sua própria falta, nutre um interesse particular pela criança e lhe oferta o seio como objeto simbólico, de dom, visando mais além da necessidade. Porém, a essa mãe simbólica contrapor-se-á a mãe real, que é a face da mãe que ameaça no filho sua possibilidade de querer, tomando-o como sutura daquilo que lhe falta (SANTIAGO, 2008). Miller (2014) sinaliza que frente à potência devoradora da mãe, a criança ou a preenche, ou a divide. Preenchê-la significa suturar sua falta e anulá-la enquanto mulher, ao passo que a dividir seria o seu oposto, não ser o falo que lhe falta e se deparar com a insuficiência em dar conta de seu desejo. Quando a criança não sutura a falta em que se apoia o desejo da mãe, abre-se espaço para que os objetos dessa relação tomem forma de dom.

É nesse jogo de presença e ausência – em que a criança acredita que é amada por si mesma, mas que na ausência da mãe o objeto intermediário sob forma de dom se apresenta – que o falo enquanto objeto imaginário, signo de dom, aparecerá tanto do lado da mãe quanto do lado da criança, orientando a identificação formadora do eu, e alienando não mais ao desejo da mãe, mas, à cadeia significante (BARROSO, 2015). A partir dessa mãe real, ameaçadora e não toda fálica, a criança vai tecer sua questão sobre como saciar o desejo da mãe sem por ela ser devorada, e o seio, os excrementos e o falo entrarão no circuito de mais além do objeto, permitindo o acesso à realidade simbólica e ao desejo (SANTIAGO, 2008). A partir daí, Miller (2014, p. 7) lembra que é “o desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico”, desembocando em uma espécie de construção delirante mítica acerca do enigma do desejo do Outro.

O Outro e o assentimento

Tais associações entre dom, objeto e falo vão ao encontro do que Mauss e Strauss apontaram em seus trabalhos, no sentido que diante uma coletividade há uma organização simbólica inconsciente que não se reduz ao individual e ao concreto das ações, mas que remete à uma submissão, a um mais além compartilhado. Esse mais além pode ser tomado aqui como a lei do Outro, que preexiste ao sujeito e que lhe veda, a partir da perda que há na articulação entre significante e significado, o acesso a uma relação dual com a coisa (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Assim, será a partir do Outro, que se particulariza em cada sociedade segundo sua versão imaginária, que as coisas ganharão valor na cadeia de trocas e onde a estrutura poderá se desenrolar (SANTIAGO, 2008; SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011), permitindo ao sujeito apoiar seu fantasma na parte de real que foi destacada deste, e fazer dela seu mito individual (SALUM, 2009).

Porém, é importante apontar que mesmo se utilizando do conceito de dom para pensar o acesso ao simbólico e a relação de objeto, Lacan já no início de seu ensino discordava dos estruturalistas apontando que não basta o Outro preexistente para garantir a admissão à lei (SARTI; COUGO; TFOUNI, 2011). Além da estrutura significante, é preciso levar em conta uma abertura para o real, pois o mito não o esgota e tem em seu correlato um sujeito com seu corpo, sua pulsão e seu gozo, que não se deixam abarcar por completo pelo significante (SALUM, 2009).

Pensando a causalidade da pulsão em contrapartida com a determinação significante, podemos recorrer ao conceito de assentimento,[1] definido aqui como a crença na estrutura combinatória significante que preexiste (crença no Outro). Há primeiro um reconhecimento desse encontro com o simbólico, mas é preciso também que se tenha uma admissão inicial, o assentimento por parte do sujeito. É a crença nessa inscrição que permitirá a simbolização, uma maneira de se estabelecer dentro da lei do Outro. Assentir à causa é sacrificar-se em nome de um Outro que não existe e que permitirá alguma legalização do gozo (SALUM, 2009).

Assim, na dialética do dar-receber-retribuir, não basta que o simbólico se apresente para que o sujeito assinta em entrar nesse jogo. Existe nesse desenrolar o papel ativo tanto da pulsão quanto do arcabouço simbólico previamente construído, no qual o sujeito será forçadamente inserido. Há o Outro como suporte do significante, e neste ponto Lacan pôde recorrer a Mauss para se apoiar no conceito de dom em jogo nas trocas simbólicas, mas há, também, o sujeito e seu inominável da pulsão e do gozo, que pode assentir ou não com essa inscrição. Portanto, a estrutura significante do Outro e o assentimento do sujeito são suplementares, e não justapostos, e é isso que Lacan aponta desde o início de seu ensino (SALUM, 2009). 

Conclusão

As menções de Lacan ao conceito de dom no que se refere à relação de objeto parecem encontrar apoio no que se pode chamar de mais além da coisa. No estudo de Mauss, o que está em jogo entre os povos é a crença de que o espírito do doador fica na coisa dada, levando, através da obrigação consentida de dar-receber-retribuir, à criação de laços e contratos sociais firmados sob um pacto simbólico. Strauss amplia essa visão ao comentar que, mais além do espírito do doador sempre presente na coisa dada, o que está em jogo nessa dinâmica é o quê de inconsciente os povos apreendem sob a forma consciente do espírito, assinalando o caráter de primazia do significante na construção da realidade e dos fatos sociais (MAUSS, 1923-24/1950). Já em Freud e em Lacan, o que está em jogo na dialética do dom é a nostalgia do objeto perdido, restando dele apenas uma marca, um resto de real que o sujeito circundará em sua crença e em sua busca sem sucesso (LACAN, 1956-57/1995).

Apesar da aproximação com o conceito de dom, aponta-se que já no início de seu ensino Lacan diverge de estruturalistas como Lévi-Strauss ao defender que há no sujeito algo para além da determinação significante, não totalmente abarcado pelo simbólico, e a isso nomeia de real (SALUM, 2009). Segundo Lacan (1956-57/1995, p. 92), é o real que “oferece sempre, no momento exato, tudo aquilo de que se necessita quando se foi, enfim, regulado pelos bons caminhos, à distância correta”. Portanto, é ao real que o simbólico se constitui como resposta, e não, como totalidade (SALUM, 2009).

De Mauss até hoje, o discurso do Outro mudou. Se antes o ideal e a crença num Outro mítico organizavam o mundo, hoje estamos no tempo do Outro que não existe, em que o assentimento declina e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos de gozo ofertados. Não pretendendo apelar para o saudosismo, é preciso verificar como o sujeito se relaciona com esse Outro da contemporaneidade, sem eximi-lo de ser responsável por sua posição, mas, verificando como ele assim o faz (SALUM, 2009). Essa talvez seja a aposta da psicanálise: permitir que algo do singular, do real da pulsão e do gozo apareçam sem desconsiderar o universal da lei e do discurso.

Sob forma de abertura para o real que convoca ao saber fazer, convidamos o leitor ao fim deste artigo a pensar como se daria a leitura dos modos de subjetividade contemporâneos sob a ótica dos conceitos de dom, objeto, Outro e assentimento: estariam eles hoje sustentados pelas mesmas premissas descritivas?


Referências:
BARROSO, S. F. A imagem e o imaginário: quando o sujeito é excluído do imaginário materno e permanece sem a ajuda de nenhuma imagem estabelecida. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, 2015. Disponível em: www.institutopsicanalise-mg.com.br. Acesso em: 17 de set 2022.
DOM. In: Aulete Digital. 2023. Disponível em: < https://www.aulete.com.br/dom>. Acesso em: 25 maio 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. (Trabalho original proferido em 1956-57).
MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, 45-66, out. 2012. Disponível em: journals.openedition.org. Acesso em: 17 de set. 2022.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva, com introdução à obra de Marcel Mauss por Claude Lévi-Strauss. Lisboa: Edições 70, 1950. (Trabalho original publicado em 1923-24).
MILLER J.-A. A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana On-line, n. 15, 1-15, 2014. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br. Acesso em: 28 de set. 2022.
SALUM, M. J. G. A psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos, agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea.  Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica), Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
SANTIAGO, A. L. Dom e oblatividade. Scilicet. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda., 2008, p. 97-100.
SARTI, M. M; COUGO, R. H. F. A; TFOUNI, L. V. O simbólico, o imaginário e o dom. Intersecções, v. 4, n. 2, 237-254, nov. 2011. Disponível em: revistas.anchieta.br/. Acesso em: 28 de set. 2022.
[1] Difere do conceito de consentimento por não operar a partir da instauração de um acordo com o campo do Outro, tendo como funcionamento a vertente do gozo (SALUM, 2009).