EXPEDIENTE – ALMANAQUE ON-LINE 31

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Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses[1] 

Sérgio de Castro
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
sdcastro54@gmail.com

Resumo: O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade.

Palavras-chave: psicoses; desencadeamentos; metáfora paterna; psicoses contemporâneas.

NEO-TRIGGERS: BETWEEN DISCRETION AND EXUBERANCE IN PSYCHOSES  

Abstract: the author goes through different moments of Lacan’s teaching to address the triggering of psychoses, taking his conception in the classical or structuralist period of this teaching as a result of the absence of the paternal metaphor, and then examines another way in which psychoses and their triggers are present more frequently in contemporary times.

Keywords: psychoses; triggering; paternal metaphor; contemporary psychoses.

Imagem: Sofia Nabuco

O tema de minha intervenção, “Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses”, já nos introduz numa questão mais ampla, título do Congresso da AMP que acontecerá em 2024, Todo mundo é louco. Vejam que tal tema já é tributário de uma leitura da contemporaneidade que não se compatibilizaria inteiramente com os primeiros anos do ensino de Lacan, mesmo não havendo entre os diversos períodos de tal ensino propriamente rupturas.

Pois bem, quando falo em primeiros anos do ensino de Lacan, no tema que nos toca hoje, refiro-me, em especial, a “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Ali, como sabemos, há contrastes e diferenças nítidas, fundamentos mesmo da voga estruturalista que encontrava na França daquele período seu ápice. Eles serão então típicos do paradigma apresentado em “A instância da letra ou a razão desde Freud”, que inaugura a relação de Lacan com, justamente, a linguística estrutural. Estamos aí no cerne do que se convencionou chamar de Lacan clássico.  Como sabemos, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” os contrastes clínico/conceituais são sempre acentuados, fundados como estão nas premissas de articulação e diferença próprios da definição de estrutura. E aqui, a noção de simbólico, depositária que será da própria linguagem, estará, hierarquicamente falando, numa posição determinante com relação ao imaginário e ao real. Ou, se preferirmos, nesse momento do ensino de Lacan poderemos falar de um domínio do simbólico sobre o imaginário e o real. Pensaremos portanto ali num desencadeamento a partir de um encontro do sujeito com Um pai, numa solicitação proposta pela vida (a paternidade/maternidade, a perda de um ente querido, uma situação profissional imprevista, etc.) muitas vezes objetiva, à qual, no plano da subjetividade, aquele sujeito não foi capaz de responder recorrendo ao que chamaremos aqui de “ padrão” então vigente. Ou seja, responder a partir de uma posição terceira, fora do eixo a…..a’, como vemos no esquema L apresentado naquele momento por Lacan,  próprio da dualidade especular/imaginária. E isso, justamente por não dispor de recursos para, nessa resposta, sustentar-se no Nome-do-Pai, inscrito como poderia estar, no Outro. O Nome-do-Pai então deve ser pensado então como um significante especial e operador privilegiado para lidar com o real do gozo que teria emergido naquela solicitação feita àquele sujeito naquele momento. Ele será, portanto, o sustentáculo mínimo de toda a ordem simbólica. Falar então em hegemonia do simbólico, como podemos falar desse período do ensino de Lacan, resultaria nisso, em se tratando de um desencadeamento clássico de uma psicose: num dado momento da vida daquele sujeito ele terá sido solicitado a responder, subjetivamente, desde uma posição simbólica (aliás, desde esse significante privilegiado e dos recursos simbólicos transmitidas por ele), e, por não ter acontecido de aquele significante ter se inscrito no estoque significante daquele sujeito (inscrito no grande Outro, que será também um nome do inconsciente), haverá um desencadeamento. Ou, o que não estava inscrito no simbólico, por estar nele foracluído, retornará do real, na forma de fenômenos elementares, as alucinações sendo aqui o paradigma de tal retorno.

O que nos levaria então a um desencadeamento claramente marcado por um antes e um depois, em muitos casos só sendo possível um diagnóstico de psicose uma vez ocorrido tal desencadeamento. Tudo isso a partir deste significante (o Nome-do-Pai) que, em tese (ou, se se tratasse de uma estrutura neurótica), deveria estar inscrito no Outro para aquele sujeito, ali onde a linguagem e a fala, como instâncias simbólicas, se sustentariam. Daí as consequências por nós exploradas há muitos anos: sem a inscrição desse significante privilegiado no campo do Outro ou, a partir de sua formulação lacaniana clássica, com a foraclusão do Nome-do-Pai do simbólico, (P o) Pai zero e suas consequências imediatas: (Ф o), falo (simbólico) zero.

O caso paradigmático de então, como todos sabemos, será o de Schreber, que, justamente no momento em que recebe, em sua carreira jurídica, uma promoção há muito tempo almejada, perde o chão e não segura com a firmeza fálica que seria necessária, quer dizer, a partir do falo simbólico inscrito no Outro (justamente o que não havia em Schreber), o cargo de Presidente daquele tribunal. De onde a célebre fórmula já citada aqui de Lacan: o que é foracluído do simbólico (o Nome-do-Pai, nessa foraclusão maior indicada então por Lacan) retornará no real, quer dizer, enquanto fenômenos ruidosos e elementares, especialmente nas alucinações. Esse é, portanto, o desencadeamento clássico, contemporâneo de uma época – e aqui tocamos no que me parece ser o ponto principal da questão – em que esse significante privilegiado, sustentáculo mesmo de toda a ordem simbólica como Lacan a formulava então, estaria mais ou menos disponível, e de forma hegemônica, na cultura. Daí a nitidez e o contraste acentuados entre uma neurose, quando, então, naqueles sujeitos, o modo “padrão” se transmitiria (ainda que, é claro, a partir das singularidades do romance familiar de cada um), sendo esse modo padrão o Nome-do-Pai, urdido especialmente (mas não exclusivamente) a partir de uma organização patriarcal das famílias e uma psicose, onde tal transmissão não teria se dado.

O que gostaria de acentuar é que, com a famosa tese de Miller e Laurent (extraída de Lacan por certo) de um declínio do Nome-do-Pai, tal “modalidade padrão” de resposta deixa, gradativamente, de ser hegemônica na cultura. Até então teríamos o contraste e a nitidez típicos de uma clínica estrutural, na qual uma sustentação subjetiva daquele sujeito referida no Nome-do-Pai, ou não, fará a diferença entre uma psicose ruidosa, e o extraordinário daquele desencadeamento, no qual as formas delirantes agudas ou as psicoses alucinatórias crônicas seriam nítidas, e uma neurose, em sua suposta discrição e maior extensão social. No entanto, para tentarmos nos aproximar da questão das psicoses ordinárias, acho que seria importante enfatizar um outro ângulo de tais elaborações.  Isso dado o que me parece ser a complexidade da questão e um certo avanço mesmo que foi possível fazer sobre elas a partir de suas formulações iniciais no Conciliábulo de Angers, na Conversação de Arcachon e na Convenção de Antibes, todos eventos e elaborações feitos no final do século passado.

Ora, um ponto que me parece importante termos em mente é o de que tais elaborações serão tributárias, mais ou menos diretamente, das elaborações feitas por Jacques-Alain Miller e por Éric Laurent no curso psicanalítico de 1996/1997 que eles dividiam, intitulado O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se falei um pouco antes de uma “modalidade padrão” de resposta do sujeito a questões que a própria vida se lhe apresentava, será justamente o alcance e a extensão desse dito padrão que será examinado e posto em questão em tal curso. Pois, se o Outro não existe mais (e o advérbio mais aqui é fundamental), como propõem e examinam Miller e Laurent no curso citado, isso quer dizer que algo, no campo do Outro, mudou. E onde localizaremos tal mudança? Justamente em seu ponto de sustentação mínimo e fundamental: a inscrição ali do Nome-do-Pai. O declínio do Nome-do-Pai então (ou, se preferirmos, sua não inscrição, ao menos se tomarmos como referência a dita “modalidade padrão”) será correlativo e elucidará o que chamaremos de emergência do UM, tanto quanto da frase de Miller que já se tornou famosa, a saber, de que o objeto encontra-se hoje em seu zênite social.

Tentemos dar mais uma volta: o inconsciente estruturado como uma linguagem, esse inconsciente próprio do famoso retorno a Freud empreendido por Lacan, se sustentará no dispositivo do recalque, ou da Verdrangung freudiana. A partir de um recalque primário, teremos todos os recalques secundários, sempre compostos de material significante e que encontrarão em suas diversas modalidades de retorno – as famosas formações do inconsciente – as manifestações registradas por Freud e inaugurais mesmas da própria psicanálise. Aqui, nas formações do inconsciente, de um inconsciente portanto estruturado como uma linguagem, teremos os sintomas (sem a letra h), os famosos atos falhos e os sonhos, tal como apresentados por Freud na obra inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos e, posteriormente, em Psicopatologia da vida cotidiana. Ora, tal inconsciente, (e, portanto, toda a ordem simbólica que se desdobra e se sustenta aí) estará assentado no dispositivo do recalcamento e será inteiramente tributário da incidência do Nome-do-Pai sobre o desejo da mãe, naquela fórmula inicial de Lacan, a da metáfora paterna, apresentada em A instância da letra ou a razão desde Freud. O resultado de tal operação será tanto a significação como fálica, quanto a própria constituição do inconsciente como Outro. Ou seja, a constituição do sujeito como neurótico e a inscrição do falo enquanto falo simbólico nesse mesmo campo.

Ora, apresentar a tese (ou a constatação, para melhor dizê-lo) de que o grande Outro não existe mais (ou existe de forma tão fragmentada que não será mais entendido da mesma maneira) será afirmar que a metáfora paterna, constituída a partir do protagonismo do Nome-do-Pai, aquele recurso simbólico até então típico para lidar com o gozo, não opera mais a contento.

No Seminário 21, de 1973/74, Os não tolos erram, ainda inédito, Lacan descreverá uma situação em que certas mutações (justamente as indicadas aqui), que se articulam e se imbricam à própria constituição do sujeito (ou do falasser), produzirão novas modalidades de laço social (mas não fica claro se podemos falar aqui em laço social, tributário que é da noção de discurso, o que justamente parece estar afetado numa época em que o UM inteiramente só, em sua vocação autista, encontra-se numa espécie de zênite de cada falasser).

Ora, toda uma indistinção entre termos até então contrastantes e nítidos, veiculados mesmo por certas tradições e constitutivos do próprio pensamento estruturalista tal como operado por Lacan no início de seu ensino, simplesmente se pulverizam, ou se pluralizam. Podemos abordar tais mudanças de diversas maneiras possíveis, e as psicoses ordinárias serão, num plano clínico, uma maneira de constatá-las. Lacan afirmará no referido Seminário 21 que o sucedâneo a uma ordem articulada a partir do Nome-do-Pai e sua Lei simbólica será muito mais feroz e rígida, muito mais imperativa e normativa do que a ordem simbólica que lhe antecedeu. E a chamará de “ordem de ferro”. Portanto, tal “ordem de ferro” será um dos nomes do que se constata a partir da inexistência do Outro. Será a partir dela que tentaremos indicar algumas questões relativas às psicoses ordinárias em sua extensão contemporânea.

Desde o Seminário inacabado (ou apenas iniciado), que se chamaria justamente Os Nomes-do-Pai, até suas elaborações finais, em especial nos Seminários 23 e 24, o que veremos em Lacan será a desmontagem gradativa, correlata do próprio “movimento do mundo”, de uma ordem na qual o simbólico seria hegemônico e dominante. Quer dizer, Lacan passa a orientar e a repensar seu próprio ensino a partir de tais constatações nas quais, de uma ordem em que o Nome-do-Pai seria a modalidade predominante de sustentação subjetiva, passava-se a um entendimento no qual esse recurso simbólico para lidar com o gozo perde sua hegemonia, tornando-se apenas uma modalidade possível entre outras. A essa des-hierarquização radical constatada e então promovida por Lacan no âmbito de seu próprio ensino, veremos, por exemplo, o recurso aos nós serem produzidos. Aqui, simbólico, imaginário e real estarão num mesmo plano. O que permitirá, sem que se prescinda de um diagnóstico referido numa clínica estrutural, que seus termos possam ser fortemente nuançados.

A partir de tais referências, e do que Lacan permite que se extraia delas, é possível sair de uma distinção por demais mecânica, como dirá Laurent (2022),  entre as psicoses e as neuroses. Poderemos a partir daí ultrapassar parcialmente esse regime de contrastes nítidos e acentuados, por exemplo entre foraclusão e não foraclusão do Nome-do-Pai, ou mesmo que se fale e se localize outros tipos de foraclusão, como a foraclusão generalizada ou a foraclusão de fato. Talvez aqui possamos ir além da própria noção de psicose ordinária, quando tratar-se-ia, ainda seguindo Laurent (2022), de, em cada caso, encontrar a pequena e singular montagem dos nós que cada sujeito produziu para dar conta de si mesmo no mundo e na vida.Quer dizer, cada arranjo, cada pequeno arranjo que tão frequentemente se construirá a partir de recursos distintos do que chamei de padrão, articulado ao Nome-do-Pai. Pois, uma vez que os recursos disponíveis na cultura hoje para a sustentação de cada falasser sejam tantos, e tão distintos da modalidade clássica chamada Nome-do-Pai, basta que pensemos rapidamente nas redes sociais, na internet, na deep internet e na IA – cujos efeitos e consequências mal pressentimos – para nos darmos conta de que ali se oferecem infindáveis termos e recursos de amarração subjetiva fora da modalidade clássica, para constatarmos que as consequências e funcionamento do que poderíamos então chamar de “ordem de ferro” são de alcance amplo e ainda mal vislumbrados. E, se falávamos de uma Lei simbólica enquanto um certo padrão da cultura, uma vez que referida no Nome-do-Pai, talvez possamos falar hoje de uma norma psicótica (LAIA, 2023), que não seria simplesmente sinônimo de psicose, mas do que indiquei como “ordem de ferro”, quer dizer, uma ordem que não oferecerá, predominantemente, operadores simbólicos para lidar com o real do gozo.  Ou seja, cada um hoje tem que se valer de normas que proliferam no lugar da falta da Lei simbólica, que não será mais passível de ser definida como um universal, ou articulada a um suposto Discurso Universal, uma vez que tal Lei deixa de ser típica da cultura, ou das culturas, de um modo geral. Para pressentirmos o alcance da questão podemos pensar, por exemplo, no próprio avanço da extrema direita (não da direita, mas da extrema direita) tal como se constata hoje em várias partes do mundo. Ou seja, o recurso ao cassetete, como antevê Lacan em “Televisão” (LACAN, 1973/2003), ou à força bruta, na medida em que algo da ordem simbólica se desarranje gravemente, como se constata hoje, ou nos fundamentalismos religiosos, no próprio triunfo da religião,[2] nas radicalizações em tantas áreas e atividades humanas (os jogos eletrônicos, o vício numa academia de ginástica, a posição subjetiva do adicto enfim), poderão  ser pensados como consequências dessa desregulação de uma Lei simbólica até então tida como fundamental. Pois essa “desregulação” da Lei simbólica, escrita assim com maiúscula, trará efeitos agudos em diversos campos e domínios, como o da diferença sexual, uma vez que, como também aprendemos em “Televisão”, tal diferença será tributária e se fundamentará mesmo no recalcamento primário[3] e secundários que lhe seguirão.

Então, creio que podemos dizer que a questão do ordinário, nessa era pós-Nome-do-Pai, ou das psicoses ordinárias, tem a ver com o comum, com o que se estabeleceu, com o que é veiculado nas rotinas dos discursos, ou do desfalecimento dos discursos operado pelos jogos eletrônicos, pela IA, pela internet, etc. Isso talvez relativize um pouco a questão do extraordinário enquanto, em se tratando de uma psicose, remeta apenas ao extraordinário de uma sintomatologia. É possível que possamos dizer aqui, no domínio da “ordem de ferro”, que é o da contemporaneidade, que, sim, muitos sujeitos ainda se sustentam a partir de uma amarração subjetiva a partir do Nome-do-Pai, mas que em outros, muito discretamente às vezes, um pequeno desenganche – para usarmos um termo ao qual recorremos numa clínica dos nós – acontecerá e será importante detectá-lo, e nosso trabalho seria o de acompanhar ou até possibilitar que um outro tipo de enganche ou de grampo, para usar outro termo que nos é caro hoje, se produza. Seriam, estes últimos, falasseres passíveis de serem situados no campo das psicoses, ordinárias certamente, mas, especialmente, contemporâneas. Portanto, não parece suficiente dizer que uma psicose ordinária seria uma psicose que não desencadearia, ou que não se desencadeou ainda. Não; se tomarmos a questão pelo prisma da norma psicótica, uma psicose ordinária poderia sim se desencadear ou já ter se desencadeado. Não me pareceria essa a distinção principal a ser feita. A questão do ordinário, então, e das psicoses ordinárias, talvez seja a questão das psicoses contemporâneas, em que a extensão delas é, sem dúvida, muito maior, e teriam a ver com os recursos dos quais os falasseres lançam mão nas normas que passam a vigorar na atualidade, que são recursos muitas vezes precários de regulação do gozo. Ou, se não precários, inéditos, invenções contemporâneas (porque alguns são razoavelmente estáveis, inclusive, ainda que invenções contemporâneas). Para concluir: tal regulação precária do gozo, ou o ineditismo dos arranjos para lidar com ele, é que definirá e esclarecerá o ordinário de uma psicose típica de nossa época.


 

 Referências
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. O triunfo da religião. In: O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1974).
LAIA, S. Por que as psicoses…  ainda. Revista Curinga, n. 55, p. 164-175, 2023.
LAURENT, É. O inconsciente e o acontecimento de corpo. ECOS – Boletim da 25a Jornada EBP-MG, n. 3, 2002. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2021/o-inconsciente-e-o-acontecimento-de-corpo/. Acesso em: 01 jul. 2023.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanalise e Saúde Mental em 23 de maio de 2023.
[2]  Como indica Lacan (1974/2005, p. 65): “[a religião] não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre inúmeras outras coisas também. […] O real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender, e a religião terá então muito mais razões para apaziguar os corações. A ciência é novidade, e introduzirá um montão de coisas perturbadoras na vida de todos. Ora, a religião, sobretudo a verdadeira, tem recursos de que sequer se suspeita. Por enquanto ela fervilha”.
[3] Lacan (1973/2003, p. 530) dirá que Miller, seu entrevistador, se “resvalou no esquerdismo”, não o terá feito no “sexo-esquerdismo”. Parece-me que hoje lidamos com algo que na década de 1970 chamava-se de “sexo-esquerdismo”, mas com as diferenças produzidas e acentuadas pelo discurso da ciência, quando, por exemplo, cirurgias de mudança de sexo são cada vez mais banais e acessíveis. Será algo, portanto, do recalque primário e da própria constituição do inconsciente que estará concernido aqui. E, no horizonte, o afã humano de fazer existir a relação sexual. Como lidaremos com tais questões, tais como se apresentam hoje, possivelmente definirá todo o porvir da psicanálise no mundo.



Schreber, ainda contemporâneo[1]

Sérgio Laia
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
laia.bhe@terra.com.br

Resumo: Este texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, bem como da leitura que Freud e Lacan lhe consagraram. Privilegia-se, então, o que ele experimentou como rompimento da Ordem do Mundo, sua emasculação e um recurso inventado e designado por ele como “desenhar”.

Palavras-chave: psicose; emasculação; imaginário; real; ordem simbólica; Nome-do-Pai.

SCHREBER, STILL CONTEMPORARY 

Abstract: This text aims to demonstrate Schreber’s contemporaneity based on his Memory and the commentaries made by Freud and Lacan on this book. It highlights what Schreber experimented as a rupture of the Order of World, an emasculation and a resource invented and called by him as “drawing”.

Keywords: psychosis; emasculation; imaginary; real; symbolic order; Name-of-Father.

 

Imagem: Renata Laguardia

Ao propor, para Lilany Pacheco, Diretora do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), esta aula com este título, quis, de início, me servir daquele que pôde se tornar um “caso” decisivo para a clínica psicanalítica das psicoses (FREUD, 1912/2021; SCHREBER, 1903/1980) e articulá-lo à próxima Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) – Há algo de novo nas psicoses… ainda. Porém, em que uma psicose, marcada claramente pela anulação, no simbólico, desse significante ordenador fundamental que Lacan chamou de Nome-do-Pai, pode ser contemporânea deste nosso mundo perpassado muito mais por uma crítica (e mesmo uma derrocada) do patriarcado? O que o delírio schreberiano de procriação e de filiação, fortemente marcado por conotações religiosas e redentoras, pode ser contemporâneo aos nossos dias atravessados pela descrença no Pai, pelo desmantelamento dos ideais e por transformações que distanciam a família do que tradicionalmente se conceberia como sendo uma família? Por que, também, um caso assolado pela persistência de um delírio extraordinário, por alucinações auditivas e visuais, seria contemporâneo quando, em nossa clínica, as psicoses se apresentam de forma muito mais ordinária e sem essas características com que classicamente eram diagnosticadas?

Ora, a persistente contemporaneidade de Schreber já se destacaria pela permanente importância de seu texto para a clínica psicanalítica das psicoses. Assim, Schreber ainda seria contemporâneo porque se trata de um caso incontornável para cada um de nós que sustenta, com a psicanálise, tratamentos possíveis para as psicoses ou, valendo-me de um escrito de Lacan (1966/2001, p. 214), sua persistente contemporaneidade se alinha com aquela mesma de Freud pois “o texto de Schreber é um grande texto freudiano, no sentido de que, antes de ser Freud que o esclareça, é ele que ilumina a pertinência das categorias cunhadas por Freud, sem dúvida, para outros objetos”. O próprio Freud (1912/2021, p. 622) antecipa essa designação que lhe fará Lacan ao afirmar, no final de seu estudo sobre Schreber, que “na verdade, os ‘raios divinos’ de Schreber compostos por condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides são tão somente os investimentos libidinais materializados e projetados para fora, e emprestam ao seu delírio uma concordância flagrante com nossa teoria”. De fato, como um desses “outros objetos” aludido por Lacan (1966/2001, p. 214), o funcionamento do aparelho psíquico concebido por Freud não deixa de se fazer presente quando Schreber (1903/1980, p. 35) compara “a alma humana […] contida nos nervos do corpo” a “fios de linha mais finos” e, assim, por meio das impressões externas, “os nervos são levados a vibrações que, de um modo inexplicável, produzem o sentimento de prazer e desprazer; possuem a capacidade de reter recordações das impressões recebidas (a memória humana)”. A contemporaneidade de Schreber também pode ser relacionada ainda à própria contemporaneidade de Lacan (1966/2001, p. 215) pois este último ressalta que “o texto de Schreber se verifica como um texto a ser inscrito no discurso lacaniano” ao permitir-lhe “retomar o fio” que o leva à “aventura freudiana” a partir da “trincheira aberta” por sua tese de doutorado dedicada à psicose paranoica.

Publicado em 1903, sustento também que Memórias de um doente dos nervos pode ser lido como uma espécie de vanguarda para sua época e muito mais próximo de nossos dias. Afinal, entre tantas revelações realmente impressionantes, encontramos nele o relato de como um homem alemão e tradicional, Presidente da Corte de Apelação de Dresden, que se concebia como tendo “uma natureza tranquila, quase sóbria, sem paixão, com pensamento claro e cujo talento individual se orientava mais para a crítica intelectual fria do que para a atividade criadora de uma imaginação solta” (SCHREBER 1903/1980, p. 82), foi a princípio surpreendido pela ideia de como “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”  e, algum tempo depois, não sem resistir, a princípio, à exigência de ser transformado em mulher, acabou por consagrar seu corpo a essa emasculação para, numa copulação com Deus, poder gerar uma nova raça humana e encontrar alguma solução para os males terríveis que o atormentavam (SCHREBER, 1903/1980, p. 60, 72-78 e 175-177).

Schreber (1903/1980, p. 60) sustentava que sua aspiração inicial de ser uma mulher em uma relação sexual seria, em “plena consciência”, rejeitada com “indignação” por ele, mas acabou por considerar que ela lhe havia “sido inspirada por influências externas que estavam em jogo”. Ao abordar o quanto a emasculação de seu corpo o deixava entregue a violentos assédios sexuais promovidos por Flechsig, chega mesmo a destacar que esse seu primeiro e mais renomado psiquiatra não aparecia aí como um homem, mas em sua “qualidade de alma” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Ainda assim, não deixa de afirmar o seguinte: “pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive certeza de ter tomado conhecimento dele” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Porém, também relata que, nessa mesma ocasião, foi “tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo, e excitado pelas primeiras revelações sobre as coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas” (SCHREBER, 1903/1980, p. 77). Portanto, é a nessa excitação ou, para utilizar um termo lacaniano, é a nesse gozo que Schreber se apoia para ceder sua “honra”, seu “amor-próprio viril” e sua “personalidade moral”. E, assim, o modo como se consagra, mesmo que não sem resistência, a esse fora que lhe afeta o corpo, feminizando-o, me parece ser um marco importante de sua contemporaneidade, na medida em que vivemos hoje em um mundo onde as diferenças de gênero são em geral abordadas como meros efeitos de uma dominação histórico-social e os corpos são cada vez mais convocados a viver o que há de fluido e múltiplo em seus modos de satisfação.

Um último aspecto da contemporaneidade de Schreber, relacionado a um modo como opera com o imaginário, me surpreendeu, embora, conforme veremos, não deixe de estar associado às suas experiências com a emasculação. Assim, vou explicitar um pouco mais, primeiro, o que me permitiu, de início, declarar Schreber ainda como contemporâneo a nós e, em seguida, abordar sua experiência com o que Lacan (1958/1966, p. 571, schéma I) chamou de “gozo transexualista”. Por fim, procurarei mostrar como ele faz uso da imagem para operar com o real do gozo que lhe toma o corpo, evocando, a meu ver, o que Miller (2006-2007/2013) destacou como o imaginário no último ensino de Lacan.

Fratura, desordenamento e reconstrução

Ao concluir um Congresso da AMP intitulado A ordem simbólica no século XXI e anunciar o seguinte, Um real para o século XXI, Miller (2014, p. 22) afirma que vivemos um “desarranjo da ordem simbólica” e a “pedra angular” dessa ordem, ou seja, “o Nome-do-Pai, se trincou”, na medida em que o capitalismo e a ciência colocam radicalmente em questão as referências paternas até então vigentes. Também nos lembra que o próprio Lacan, ao longo de seu ensino, “depreciou essa função-chave” relacionada ao pai, passando a considerá-la “nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo” (MILLER, 2014, p. 22). Por sua vez, esse furo que o Nome-do-Pai não colmata, afeta toda espécie humana, “é a inexistência da relação sexual” porque, para os “seres vivos que falam”, há uma “carência de saber concernente à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22) e a qualquer proporcionalidade entre os corpos sexuados. A foraclusão, portanto, não é mais apenas um mecanismo específico das psicoses e que atinge, no simbólico, o Nome-do-Pai: quanto à inexistência de uma proporcionalidade entre os sexos, a essa carência de um saber capaz de regular a sexualidade humana como acontece com a dos outros seres vivos não falantes, a esse “rebaixamento do Nome-do-Pai”, a foraclusão se generaliza e experimentamos, por conseguinte, uma “extensão da categoria de loucura a todos os seres falantes” (MILLER, 2014, p. 22).

Esse abalo das referências paternas, bem como a exposição, também cada vez mais atual, desse furo relativo aos corpos humanos sexuados, fazem Miller (2014, p. 23) declarar que há “uma grande desordem no real”. Essa declaração me parece mostrar, no âmbito do que nos tem acontecido, esta “ideia-limite” (MILLER, 2014, p. 28) encontrada no último ensino de Lacan (1975-76/2007, p. 133): “o real é sem lei” . Esse desordenamento no real e esse destaque à trinca (ou à fratura) que atinge o Nome-do-Pai como significante fundamental são, como insistirei a seguir, indícios importantes do que apresento como a atualidade de Schreber.

Em seu livro, a Ordem do Mundo é definida como “uma ‘construção prodigiosa’, diante de cuja sublimidade recuam todas as representações construídas pelos homens e povos, no curso da história, sobre suas relações com Deus” (SCHREBER, 1903/1984, p. 47). Em outros termos, a sublimidade da Ordem do Mundo se eleva frente às representações divino-paternais formuladas historicamente. Mais adiante, a função da Ordem do Mundo é articulada à conservação do que é vivo, na medida em que Schreber (1903/1984, p. 81, nota 35) a concebe como a “relação legítima”, ou seja, fundada em uma lei, e “que subsiste entre Deus e a criação” convocada “à vida, dada como algo em si, através da essência e das qualidades de Deus”.

Mesmo com o que tem de sublime, vital e prodigioso, a Ordem do Mundo foi alvo de um ataque: “ocorreu […] uma fratura, estreitamente ligada” a seu “destino pessoal” (SCHREBER, 1903/1984, p. 48), e Lacan (1958/1966, p. 558) se vale dessa fratura para localizar “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Logo, fraturada a Ordem do Mundo, nada mais fica como antes da vida do sujeito, tudo se desregula e ele sucumbe ao peso da mortificação real de seu corpo. Nesse contexto, é importante lembrar que Schreber (1903/1984, p. 49 e 227) atribuiu essa “fratura” a um “assassinato de alma” e – como “as almas eram feitas, segundo sua condição de existência, em conformidade com a Ordem do Mundo, apenas para gozar” enquanto “o homem ou outras criaturas da Terra” se dedicavam a “uma ação na vida prática” – tal assassinato faz como que uma desertificação do gozo atinja severamente todo o mundo. Evocando, então, Lacan (1960/1966, p. 819) e sua célebre citação de um poema de Valéry (1921/1984, p. 28-29), o mundo de Schreber se torna sem vida e vão, frente a essa falha que incide sobre o gozo e compromete gravemente também toda ação humana.

Especificamente para Schreber, tal comprometimento é o próprio adoecimento que, durante quase uma década, o afasta da regularidade de um convívio familiar e social, além de impedi-lo de gozar do posto vitalício, pautado em uma nomeação irreversível, definida por ordem do rei e que o consagrava como Juiz-Presidente da Corte de Apelação da cidade de Dresden. Mas essa fratura tem efeitos devastadores também sobre a própria Ordem do Mundo porque, como nos mostra a leitura que Freud (1912/2021, p. 558) faz do livro de Schreber, devido a tal lacuna, “a existência do próprio Deus parece ameaçada”, uma vez que os nervos dos seres humanos vivos […], no estado de uma excitação extrema” passam a exercer “uma atração tal sobre os nervos divinos que Deus não consegue mais se livrar deles”.

Minha questão, em termos lacanianos, é se não poderíamos ler essa fratura da Ordem do Mundo também como a própria constatação – tão contemporânea – de uma inexistência do Outro que, no entanto, não apaga a presença do Outro como corpo em nossas vidas. Nesse mesmo contexto, também indago se não haveria – nessa excitação extrema dos vivos demarcada por Schreber – uma antecipação do que hoje vivemos como uma imperiosa exigência de satisfação. Assim, a fratura da Ordem do Mundo experimentada por Schreber se realiza, em nossos dias, para todos, o que não deixa de ressoar a formulação lacaniana que Miller (2022) nos convidou a tomar como o título do próximo Congresso da AMP, em 2024: “todo mundo é louco”.

assassinato de alma – marca dessa fratura que incidiu sobre a Ordem do Mundo e desestabilizou Schreber, como ser humano, em sua ação na vida prática – envolvia “circunstâncias” que “não estão claras” para ele, relacionadas à sua vida privada e que precisaram ser excluídas do livro para garantir-lhe a publicação (FREUD, 1912/2021, p. 582). Logo, segundo Freud, esse “assassinato” poderia ter sido elucidado por fatos que estariam, por exemplo, no Capítulo III de Memórias de um doente dos nervos e que foi suprimido para que esse livro fosse publicado. Freud (1912/2021, p 583), seguindo as pistas literárias deixadas pelo próprio Schreber, particularmente aquelas do poema “Manfredo” de Byron, acaba encontrando a menção a um incesto, mas verifica que, nesse ponto, “se rompe […] o curto fio”. Logo após se deparar com tal ruptura e verificando o quanto uma suposta ligação com um incesto não se sustenta, passa a se referir à expressiva quantidade de poluções que Schreber tem no curto período quando as visitas diárias da esposa no hospital deixam de acontecer e, então, retoma a “suposição” de que “o adoecimento” teria a ver com “uma irrupção de uma moção homossexual” da qual o laço com a esposa e, também, a própria paranoia seriam uma espécie de defesa: o desejo homossexual perturbaria consideravelmente um homem como Schreber (sobretudo em sua época) e, então, a paranoia eclodiria como uma tentativa de afastá-lo dessa perturbação, embora também o abalou consideravelmente.

Freud (1912/2021, p. 584) não deixa de ressaltar que falta “um conhecimento mais preciso” da “história de vida” de Schreber para que se pudesse explicar as razões de a “irrupção da libido homossexual” ter se dado após sua nomeação como Presidente da Corte de Apelação. Ao não encontrar os dados que confeririam mais precisão ao que determinaria o “assassinato de alma” e sem conseguir qualquer acesso à presença de algum desejo homossexual recusado por Schreber antes do desencadeamento da psicose, Freud (1912/2021, p. 583) se vale do lugar que o psiquiatra Flechsig, ou seja, um homem, passou a ocupar no delírio de perseguição desse “doente dos nervos”, assim como da andropausa que, de algum modo, já poderia afetar-lhe o corpo e a disposição sexual, além dos fracassos vividos, juntamente com a esposa, com relação à geração de filhos. A figura de Flechsig, em que Freud (1912/2021, p. 589-590) chega também a localizar uma “transferência” do “anseio” vivido com relação ao pai e ao irmão com uma “intensificação erótica”, torna-se decisiva para a formulação da hipótese relativa à moção homossexual da qual a paranoia seria uma defesa:

o motivo do adoecimento foi o surgimento de uma fantasia feminina do desejo (homossexual passiva), que tomara por objeto a pessoa do médico. Contra essa mesma fantasia, ergueu-se parte da personalidade de Schreber, uma intensa resistência, e a luta defensiva, que talvez tivesse podido igualmente consumar-se em outras formas, escolheu, por motivos que desconhecemos, a forma do delírio de perseguição. Aquele por quem o doente antes ansiava agora se tornava o perseguidor, e o conteúdo da fantasia de desejo, o conteúdo da perseguição. (FREUD, 1912/2021, p. 586)

Por sua vez, Lacan (1958/1966, p. 558) também associa o assassinato de alma a “um dano” que Schreber consegue “desvelar apenas em parte”. Porém, o que foi retirado para viabilizar a publicação do Memórias de um doente dos nervos  (cujo Capítulo III serve como referência-vazia por se encontrar literalmente suprimido) passa a ser lido como a instalação, no livro mesmo, do que foi assassinado, ou seja, da anulação, em uma psicose, do que Lacan (1969/2001, p. 373, grifos nossos) chama de transmissão […] de uma constituição subjetiva, ou seja, a presença mesma da foraclusão se demarca no corpo textual de um livro e, por isso, Lacan (1958/1966, p. 559) se empenha para mostrar, “na forma mais desenvolvida do delírio com a qual o livro se confunde […] uma estrutura que se verificará similar ao processo mesmo da psicose”. Assim, no que Schreber escreveu como suas Memórias, encontramos o furo da foraclusão do Nome-do-Pai, a presença do que é imemorável e não dá lugar a qualquer história de uma transmissão na qual um sujeito é tramado.

Nesse contexto, vale ainda citar o valor que Lacan (1958/1966, p. 535) confere à “cadeia quebrada” como marca da “irrupção no real” do “símbolo”. Afinal, se tradicionalmente o símbolo é junção de duas partes separadas, essa separação, essa ruptura, também o constitui, embora seja mais dissimulada pelas estruturas clínicas diferentes das psicoses, ou seja, pelas neuroses e perversões. É essa presença ineludível da quebra de um encadeamento, de uma transmissão subjetiva, de uma história, é essa separação característica do símbolo que, no entanto, se tenta dissimular e que, ao contrário, nas alucinações auditivas testemunhadas por psicóticos, implica que, “no lugar onde o objeto indizível é rejeitado no real, uma palavra (mot) se faz escutar […] vindo no lugar do que não tem nome” (LACAN, 1958/1966, p. 535, grifos nossos). Portanto, esse livro de Memórias do imemorável, de registro do que ficou foracluído de toda inscrição, é essa palavra que, mesmo sem lugar até então em sua vida subjetiva, Schreber quis fazer ecoar. Não foi sem razão que, com a expectativa de a ciência futuramente se beneficiar de suas descobertas e como o projeto de retornar à sua “vida prática” de Presidente da Corte de Apelação, Schreber fez todos os esforços para publicar esse livro que, sobretudo em sua época, não deixava de soar insólito e desconcertante para tais objetivos. Por conseguinte, é interessante considerarmos que conseguiu fazê-lo ser aceito pela editora Oswald Mutze de Leipzig (SANTNER, 1997, p. 18) que, diferente dos objetivos científico-profissionais que o mobilizavam, mas não sem dar-lhe a possibilidade de registro da palavra que não encontrava lugar em sua vida, publicava apenas livros ocultistas e teosóficos.

Lacan (1958/1966, p. 564), a partir de sua leitura do livro de Schreber, ressalta que “é em torno desse furo onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito”, onde a cadeia se quebra ou, ainda, em termos schreberianos, onde a Ordem do Mundo foi fraturada, “que é travada toda a luta onde o sujeito se reconstrói”. Nesse contexto, diferente dos pós-freudianos que insistiram na hipótese freudiana de que, com a paranoia, Schreber se defendia contra a homossexualidade, Lacan (1958/1966, p. 567) prefere indicar que tal hipótese só foi sustentada por Freud porque este, ao redigir e publicar seu estudo sobre tal caso, respectivamente em 1911 e 1912, ainda não havia escrito “Introdução ao narcisismo” (1914). Cotejando, então, o estudo sobre Schreber e as descobertas de Freud a propósito do lugar do narcisismo na economia libidinal e no adoecimento subjetivo (inclusive por suas incidências mortíferas), Lacan (1958/1966, p. 567) considera que, se “a ideia da Entmannung”, ou seja, da emasculação, da feminização do próprio corpo, deixa de suscitar, com o tempo, a indignação de Schreber, é porque ele acaba por experimentá-la como uma inversão da experiência de que como “sujeito estava morto”.

Evocando, então, de início, a célebre e terrível concepção schreberiana de si como um “o primeiro cadáver leproso” conduzindo “um cadáver leproso” (SCHREBER, 1903/1984, p. 106), Lacan (1958/1966, p. 568) a toma como uma “regressão do sujeito”, “tópica”, “ao estádio do espelho, na medida em que a relação com o outro especular se reduz aí a seu gume mortal”. Mas Lacan (1958/1966, p. 568-569) também nos mostra que, a essa morte do sujeito, responde “uma prática transexualista”, na qual Schreber se feminiza e acaba se entregando à “copulação divina”, que lhe servirá de restauração da “estrutura imaginária” mais além daquela regressão tópica que lhe assolou mortiferamente o corpo. Logo, não sem sofrimentos consideráveis, a emasculação serve a Schreber para ir além da própria cadaverização, para tentar ter outro corpo e, desse modo, podemos dizer, como mulher, um Outro diferente daquele que o persegue, assim como outra relação com a vida. Nessa direção em que o corpo, uma vez emasculado, possa fazer-lhe as vezes de Outro, Schreber mostra-nos também o quanto é mesmo contemporâneo ao arco-íris formado pelas cores LGBTQI+.

Imaginário

Muito ainda poderia ser apresentado e esclarecido sobre como a emasculação perturba, toma o corpo de Schreber e ganha um lugar nesse “problema de solução elegante” (LACAN, 1958/1966, p. 572) no qual as psicoses encontram-se envolvidas. Certamente, em outra ocasião, poderei me dedicar a essa explicitação. Neste texto, interessa-me agora muito mais focalizar um modo específico de Schreber se posicionar e conceber sua emasculação. Nesse modo, considero que encontramos um uso do imaginário que não se restringe àquele de uma reconstrução do que lhe foi solapado por sua morte como sujeito. Trata-se de um uso que me parece já apontar para a nova concepção do imaginário no último ensino de Lacan, elucidada por Miller (2006-2007/2012, p. 147-276).

Ainda no período em que a emasculação era experimentada apenas como uma injúria ou, mais especificamente, quando os “raios divinos” a aludiam como “supostamente iminente”, eles “acreditavam poder zombar” de Schreber dizendo-lhe: “‘Miss Schreber’” e, nesse contexto, é importante considerar o esclarecimento de Marilene Carone, tradutora brasileira, situado em uma nota de pé-de-página, de que, na Alemanha, o termo inglês Miss tinha então um sentido pejorativo, indicando uma mulher solteira cuja reputação era duvidosa (SCHREBER, 1903/1984, p. 136). Nessa mesma ocasião, outras expressões, segundo Schreber (1903/1984, p. 136), lhe eram “frequentemente usadas e repetidas até a exaustão”, tais como: “‘Você deve ser representado como alguém entregue à devassidão voluptuosa’, etc., etc.”. A palavra representado é destacada pelo próprio Schreber (1903/1984, p. 136), que também lhe agrega, em uma nota de pé-de-página, um esclarecimento que julgo decisivo:

O conceito de “representar”, isto é, dar a uma coisa ou pessoa outra aparência, diferente da que ela tem por sua natureza real (expressando em termos humanos [ou seja, acrescento, fora da língua dos nervos e das almas]: “falsificar”) desempenhou e ainda hoje desempenha um papel muito importante no universo conceitual das almas […] Talvez tenha-se chegado à convicção de que, uma vez que se conseguisse criar de um homem uma impressão diferente da que corresponde às suas características reais, também poderia ser possível tratar o homem em questão de acordo com esta impressão. Tudo isso se reduz, pois, a um autoengano, completamente sem valor do ponto de vista prático, uma vez que o homem, naturalmente, no seu comportamento de fato, e particularmente na linguagem (humana), sempre dispõe de meios de fazer valer suas características reais contra a “representação” intencionada.

Verificamos que a emasculação imposta a seu corpo, mesmo implicando-lhe transformações e experiências de gozo reais, não deixa de lhe ser, também, o que a língua dos nervos concebe como “representação” e, os humanos, “falsificação”.  Ela se compõe, portanto, como um “autoengano” o faz colocar-se “contra a ‘representação’ intencionada”. Nessa via contrária, nessa leitura do que pode existir de falso no que experimenta realmente como imposto, considero que Schreber se confere algum uso do benefício da dúvida e, assim, utiliza um recurso decisivo, a meu ver, para o tratamento das psicoses.

Essa possibilidade de ir contra, não sucumbir e, sobretudo, encontrar outro destino para o que lhe imposto parece-me se consolidar ainda mais com o que, segundo a concepção das almas, é o “desenhar”: trata-se do “‘uso consciente da imaginação, com o objetivo de produzir imagens (predominantemente imagens mnemônicas) que depois são vistas pelos raios’” (SCHREBER, 1903/1984, p. 222). Assim, frente ao “martírio espiritual” que lhe “era proporcionado pelo falatório idiota das vozes”, ele se permite desenhar, tornar “visível” em sua “cabeça ou também fora dela”, de forma que essas vozes passam a ter “a impressão” de que os “objetos e fenômenos” assim desenhados “realmente existiram” e, como essa imposição vinda das vozes e os nervos são experimentados como milagres, ele chega a chamar o procedimento do desenho de “milagre às avessas” (SCHREBER, 1903/1984, p. 223). Importante esclarecer que não se trata do desenho como o que se registra ou se esboça, com finalidade artística ou não, mas de uma espécie de projeção ou duplicação, em imagens, do que se está fazendo ou se pode fazer. Nos termos mesmos de Schreber (1903/1984, p. 223):

Posso me “desenhar” em outro lugar, diferente daquele no qual eu de fato estou; por exemplo, enquanto me sento ao piano, estar ao mesmo tempo no quarto ao lado em frente ao espelho, com roupas femininas […], criar para mim mesmo e para os raios, quando estou deitado na cama à noite, a impressão de que meu corpo é dotado de seios e de órgãos sexuais femininos. Desenhar um traseiro no meu corpo […] tornou-se para mim um hábito de tal forma que eu o faço quase involuntariamente toda vez que me inclino.

Para uma elucidação de como esse uso do imaginário chega a permitir-lhe não sucumbir ao que lhe é imposto, vale citar o modo com que por vezes lidava com os “pássaros miraculados” cujas vozes, em outras circunstâncias, exigiam-lhe trabalhar até a exaustão para respondê-las e decifrá-las: “fazendo troça” com tais aves, ele fazia com que aparecessem em sua cabeça a “própria imagem” desses pássaros “sendo devorados por um gato” (SCHREBER, 1903/1984, p. 224). Com isso, parece-me que ele acede a outro gozo, bem diferente daquele que lhe era imposto e o devastava “a satisfação produzida por esta atividade é realmente grande”, sobretudo ao conseguir “obter do modo mais fácil possível as imagens desejadas”, de forma que a “visão de imagens atua […] de um modo purificador sobre os raios, e eles”, assim, o “penetram […] sem a violência destrutiva que lhes é peculiar” (SCHREBER, 1903/1984, p. 225).

Segundo Miller (2006-2007/2012, p. 258), no ultimíssimo ensino de Lacan, uma análise implica “ultrapassar a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse ultrapassamento, o corpo tem uma função decisiva: “no silêncio do real, e enquanto sempre se tem que desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, isto é, ao corpo” (MILLER, 2006-2007/2012, p. 259). Vimos que a emasculação de Schreber toma seu corpo como uma saída frente ao furo da foraclusão do Nome-do-Pai no simbólico, mas, ainda assim, ele sucumbe a tal furo. Ela também lhe confere alguma voz para responder ao silêncio do real do gozo que lhe toma o corpo, esse silêncio que, no entanto, parece ser almejado na medida em que Schreber insiste na exaustação que lhe provoca o falatório das vozes e, nesse contexto, seu livro destemido e perturbador me parece ser um modo de ele se fazer escutar nessa que seria a sua voz. Logo, a emasculação, nesse caso, não deixa de ser, às avessas, uma consagração, mesmo que delirante, aos referenciais paternos. Não é sem razão que, evocando esse recurso paterno que é o falo, Lacan (1958/1966, p. 566) nos brindou com uma interpretação que se aplica à emasculação schreberiana: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”. Ora, a invenção do desenhar nos aponta para outra via e, mesmo que não tenha sido tão trilhada quanto aquela da emasculação, implica o corpo e me parece oferecer a Schreber uma oportunidade muito mais satisfatória para “superar”, como formula Miller (2006-2007, p. 259) “a hiância entre o imaginário e o real”. Nesse contexto, se a consagração delirante ao pai na emasculação ganha mais corpo que o desenhar, é porque, possivelmente, Schreber habitava um mundo ainda muito centrado nas insígnias paternas e, assim, o recurso ao desenho, no modo como ele o inventa e pratica, soa mais contemporâneo ao nosso mundo desabitado do que é paternalmente ordenado.


 

Referências
FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).
LACAN, L. D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 531-583. (Trabalho original publicado em 1958).
LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In:  Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 793-827. (Trabalho original proferido em 1960).
LACAN, J. Présentation des “Mémoires d’un névropathe”. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 213-217. (Trabalho original publicado em 1966).
LACAN, J. Note sur l’enfant. In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 373-374. (Trabalho original escrito em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2012. (Trabalho original proferido em 2006-2007).
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (org). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
MILLER, J.-A. Tout le monde est fou – AMP 2024. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 112, p. 48-57, nov. 2022.
SANTNER, E. L. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984. (Trabalho original publicado em 1903).
VALÉRY, P. Esboço de uma serpente. In: CAMPOS, A. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 26-57. (Poema original publicado em 1921).
[1] Aula inaugural do Curso de Psicanálise do IPSM-MG proferida em 6 de março de 2023.



A escola, o instituto e a ética das consequências

Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? – abril/2023


Jésus Santiago
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br

Resumo: No presente texto, o autor apresenta a forma de funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que para a prática institucional dedicada à formação analítica. O modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e sobre a diferença entre a Escola e o Instituto.

 Palavras-chave: Escola; Instituto; ética; teoria; prática clínica.

THE SCHOOL, THE INSTITUTE AND THE ETHICS OF CONSEQUENCES

Abstract: The present essay discusses the operation of the School and Institute of psychoanalysis taking into consideration that both the clinical practice and the psychoanalytical institution invested in the teaching of psychoanalysis share the same principle. The psychoanalytical way of perception has more to do with an ethical dimension than epistemic itself – it is about an ethical dimension that comes from the deduction of the fact that there is no theory of the unconscious without a practice that is able to take the experience of the unconscious into account. The author thus offers a reading on the contemporary psychoanalytical environments and on the difference between the psychoanalytical School and the Institute.

Keywords: School; Institute; ethics; theory; clinical practice.

Imagem: Sofia Nabuco

O que se impõe como princípio de orientação para a prática clínica impõe-se também para a prática institucional lacaniana voltada para a formação analítica. Vejamos como se pode formular esse princípio de orientação que, a meu ver, serve tanto para a prática clínica quanto para a nossa concepção do que é uma instituição psicanalítica a serviço do discurso analítico. O meu ponto de partida é admitir que, se a psicanálise ocupa uma posição singular no conjunto das ciências, é porque ela, apesar de se inspirar em seus fundamentos e seus métodos, é, antes de tudo, uma prática cujo fundamento é a experiência do ser falante com o inconsciente. Esclareço ainda que a psicanálise não é uma “teoria do psiquismo” e, tampouco, uma “teoria do inconsciente”, como se o psiquismo ou o inconsciente existissem em si e que seria apenas necessário desvelar o seu funcionamento intrínseco. A psicanálise recusa-se, assim, a abordar o inconsciente nos termos de uma cosmologia, ou seja, não se trata de tomá-lo como uma entidade substancial fechada em si mesma, como se fosse uma realidade qualitativamente determinada, hierarquicamente ordenada, submetida a leis diversas, cuja existência antecedesse o próprio surgimento da prática psicanalítica.

Renúncia da pressuposição cosmológica

Enquanto prática, o edifício conceitual da psicanálise é concebido como uma construção segundo o estilo work in progress, exatamente como na ciência da física, que não se constitui como um conhecimento em que seus objetos existiriam em si para além de suas produções conceituais e metodológicas. O que é característico da ciência que se faz presente entre nós desde o século dezesseis é deixar em aberto a abordagem cosmológica das coisas do mundo. A ideia de Cosmo teve o seu predomínio até o surgimento da física de Galileu, que contribuiu para desfazer o mundo da tradição, ordenado e limitado. O discurso da ciência está em marcha e progride inexoravelmente, transformando o mundo fechado da cosmologia no universo infinito da física.

O nosso ponto de partida é admitir que a existência do mundo[1] não nos assegura absolutamente acerca da existência de uma cosmologia. Muito antes pelo contrário, o próprio saber da ciência demonstra que não há avanços na apreensão das coisas do mundo sem a renúncia de toda pressuposição cosmológica.[2] Como se viu antes, a emergência da ciência exigiu o abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo enquanto unidade fechada de um Todo qualitativamente determinado e refratário aos acontecimentos contingentes oriundos do Real. Isso quer dizer que as coisas do mundo, com as quais a ciência lida, não são preexistentes ao saber da ciência.

A respeito do modo como a psicanálise trata essa objetividade do mundo, é preciso levar em conta o trabalho inaugural de Freud com a Interpretação dos sonhos, em que a conceituação do inconsciente se institui como um lugar que ele próprio denomina como uma Outra cena (eine anderer Schauplatz) (LACAN, 1962-63/2005). Introduzir a função do inconsciente como Outra cena a partir do sonho esclarece o que vem a ser, por sua vez, o tratamento que a psicanálise confere às coisas do mundo. Em segundo lugar, Lacan (1962-63/2005) propõe que essa dimensão da cena, que se apresenta como separada do mundo, aponta para a distinção radical entre o mundo e esse lugar impossível de ser simbolizado pela via das leis e do sentido, ao qual denominamos Real, lugar em que as coisas adquirem existência. Assim, as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis da linguagem, leis que, por consequência, não podem ser tomadas como inteiramente homogêneas ao Real (LACAN, 1962-63/2005).

O inconsciente é, portanto, exemplar acerca do modo como a psicanálise capta e apreende as coisas do mundo, distinguindo nelas o real que lhes é concernente. Mais do que uma questão epistêmica, há uma dimensão ética implícita na formulação de que a teoria psicanalítica do inconsciente não teria vindo à luz sem a interposição da prática clínica de Freud com o sujeito histérico. Trata-se da dimensão ética que se deduz do fato de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência do sujeito com o inconsciente. Isso quer dizer que, se há uma teoria do inconsciente, ela é fruto da prática clínica e, nesse sentido, se há uma teoria em geral na psicanálise, ela se constitui sempre, segundo os termos do Lacan (1968-69/2008, p. 64), como “teoria da prática analítica”. Como ele próprio pôde sentenciar: “o caminho do inconsciente propriamente freudiano, foram as histéricas que o ensinaram a Freud” (LACAN, 1964/1988, p. 20). Com isso, reconhece-se a impossibilidade em instaurar uma teoria da prática – concebida como a definição máxima do discurso analítico –, por meio da mera especulação conceitual, notadamente, quando esses conceitos estão a serviço de uma Weltanchauung (“visão de mundo”).

A ética do primado da prática  

Ao delimitar o campo da prática analítica, por um lado, como um terreno fértil para as mais diversas invenções clínicas, e não apenas aquela concernente à histeria, postula-se, por outro lado, que a prática analítica é realista e, portanto, não-nominalista. O ensino de Lacan não esconde a sua filiação realista em razão da apreensão do real pela psicanálise se opor à separação radical entre os conceitos e as coisas. A prática analítica apenas é possível por sua concepção do sintoma, na qual se formula a conjunção entre o real e a linguagem. Isso, aliás, é da ordem das evidências: se a psicanálise busca modificar o real pela função da fala, é porque, segundo ela, a articulação entre o real e a linguagem é um pressuposto intransponível (SANTIAGO, 2007).

Vale dizer, por outro lado, que suas perspectivas inovadoras quanto ao tratamento do sintoma não emergem em estado bruto, sem a ação dos conceitos psicanalíticos. Afirmo que o valor ético do primado da prática diz respeito ao fato de que os conceitos e as categorias clínicas com as quais lidamos e cujo aggionarmento visamos não apenas atendem as exigências da prática analítica, mas também têm a sua origem nesse âmbito da prática.  Se Lacan chega a pôr em questão a existência de uma teoria do inconsciente – como ele o faz no transcurso do Seminário De um Outro ao outro , o faz na medida em que ele é apenas apreensível, conceitualmente falando, no campo da prática. Diante disso, pode-se inferir que o inconsciente é exemplar da dimensão consequencialista da ética, na medida em que sua conceituação não advém da mera especulação sobre a sua existência, mas, sim, da prática que o toma como objeto de uma experiência. A ética mostra-se implicada nessa formulação de que o inconsciente apenas é apreensível no campo da prática, considerando que a visada da psicanálise é a incidência efetiva no real do sintoma.

Se o princípio ético do primado da prática deve prevalecer, é preciso evitar o viés puramente especulativo, muito presente nos ambientes psicanalíticos contemporâneos, em que a psicanálise se transforma numa espécie de “sociologismo inflexível” (MILLER; MARTY, 2021) a serviço de uma causa política ideal. A psicanálise não pode acolher de modo imediatista e desprezando suas exigências éticas os significantes-mestres que passam a circular como resposta ao mal-estar da civilização. É sabido que o conceito de gênero assumiu uma importância capital para certos psicanalistas, tendo em vista que através dele foi possível contrapor ao reducionismo da questão sexual ao seu componente biológico. Em função da crítica à visão naturalista e biologizante dos corpos, passou-se a adotar a noção de gênero como uma construção social normatizada e que é convocada, por Judith Butler, a ser problematizada e criticada, como acontece em seu livro Problemas do gênero. Mais tarde, em seu livro Desfazer o gênero, essa mesma noção é objeto de uma consígnia de desconstrução.

Fazer incidir na psicanálise a concepção butleriana do conceito de gênero sem nenhuma crítica a empurra para uma visão puramente sociológica da diferença sexual, pois as posições sexuais tornam-se entidades socialmente construídas. Se, com Stoller, é em relação ao pai do par parental que o gênero se constrói, em Butler, o substrato da construção do gênero é social. Se, para a psicanálise, a posição sexual de um sujeito compreende um modo de gozo singular, para Butler, o gênero pertence à socialidade, ao socius. Por tomar o terreno das relações entre os sexos como um universo socialmente construído sem exterior, sem alternativa, sem escapatória é que se pode falar de uma sociologia inflexível. Nenhum sujeito pode escapar da performatividade social do gênero (não há sujeito e nem subjetividade). É apenas por meio da operação de disfuncionamento social promovida pelo ativismo militante dos grupos identitários que se pode gerar mudanças nas identidades de gênero e das normas heterossexuais dominantes. É notório que essa deriva para o sociologismo torna a psicanálise vulnerável a esse ativismo, em detrimento do que é a sua coluna vertebral, ou seja, a prática clínica.

Entre intensão e consequência

Dizer que a psicanálise é uma prática não a torna, portanto, uma disciplina refém da mera aplicação de regras técnicas rígidas, oriundas de uma suposta teoria psicanalítica. Uma das virtudes e resultados do Seminário da Ética da Psicanálise, que se desenvolve no início da década de 60, é contrapor-se a essa cisão entre teoria e prática e, segundo essa orientação, as questões técnicas são substituídas pela perspectiva ética. Logo, se a psicanálise não procede pela separação radical entre a teoria e a prática, se a empreitada psicanalítica se afirma como uma prática, essa prática não existe sem a dimensão ética. Se não há prática clínica sem ética, o mesmo acontece com a política, que visa constituir-se como o horizonte que organiza e anima a vida institucional de uma comunidade de analistas. Ou seja, não há uma prática institucional com a Escola e com o Instituto sem considerar a ética da psicanálise. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições que tentam se inspirar na prática institucional concebida, por Lacan, durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?

Em artigo publicado na revista La Cause freudienne, sob o título de “Política lacaniana”, Miller (1999) avança na ideia de que uma tal ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas perspectivas distintas: de um lado a “ética da boa intenção”, que não é freudiana, e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível com o campo conceitual freudiano. De outro lado, a “ética das consequências”, que sempre se julga pelo ato e, por meio do estatuto do ato, por seu valor e suas consequências. Para mim, não há dúvidas que essas duas perspectivas éticas sempre estão presentes como princípio para os que se dispõem na arte de governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.

Evidentemente que essas éticas aparecem como tendências que se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das questões que concernem as atividades cotidianas da instituição psicanalítica: a formação analítica, a admissão de novos membros, a autorização da prática clínica, o passe, a garantia, a produção, entre outras. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da boa-intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que seria uma instituição que, supostamente, responderia pelos fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra prisioneira dos limites da figura da hegeliana da “bela-alma”, que, no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação na qual estamos todos envolvidos.

Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura, necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de Escola importam muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no real de uma comunidade de analistas. É só observar o que nos últimos anos temos feitos com relação ao discurso analítico: mais do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade, dado provas de uma ação que visa injetar novos elementos nesse real.

Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de que o analista deve despojar-se de sua enfatuação, dando testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção, proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos a empreitada de dissolver os grupos e colocar em questão a lógica dos chefes e líderes, e passamos à fundação da Escola. E o que não poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de entrada, como uma forma de reconhecer que a autorização do analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto e de sua Seção Clínica.

A proposta do Instituto surge nos rastros do desejo de Lacan em criar um Departamento de Psicanálise, no contexto do ambiente universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos conhecem como sendo o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de re-fundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente do nosso Mestrado) e do Doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O próprio Miller (1997, p. 13) afirma que, se ele inventou o “Instituto foi para prosseguir, na França e em outros lugares, essa via que não é outra senão a de Lacan”. E a pergunta que emerge a partir daí é a seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, porque seria necessário criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de fundação que promoveu uma iniciativa institucional e a outra? Se trata simplesmente de espaços institucionais geográficos distintos? Claro que não! 

Duas lógicas distintas a serviço da formação analítica

Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende, invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia própria do discurso analítico se justifica em função de que é o saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que anima a existência da Escola e o que permite ter como seu sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe apenas existe porque a experiência analítica secreta essa forma de saber cuja lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e se produz por intermédio da transferência e é nisso que, enquanto modo de saber, ele está, genuinamente, ancorado na experiência analítica.

Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise, lhe é característico: o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio ao discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola na medida em que, ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação em detrimento daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a transferência de trabalho, transferência que apenas pode se personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto, entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que permanecerá para sempre como atópico: “Enquanto que a Escola se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região, país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo, tal como o matema” (MILLER, 1997, p. 13).


Referências
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
MILLER, J.-A. L’acte entre intention et conséquence. La Cause freudienne, n. 42, mai. 1999.
MILLER, J.-A. Ouverture de la surprise à lénigme. IRMA – Le Conciliabule d’Angers: Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma, 1997.
SANTIAGO, J. A querela atual do sintoma: o realismo lógico da psicanálise em face do nominalismo contemporâneo. Curinga, v. 24, p. 11-19, 2007.
[1] Conferência proferida em 15 de abril de 2023 durante atividade do IPSM-MG intitulada Para que serve o Instituto?
[2] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[3] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOYRÉ, 1982, p. 182)

 

Debate: 

Lilany Pacheco: Queria agradecer muitíssimo ao Jésus, um trabalho espetacular. Achei interessante isso de você enfatizar: a psicanálise não é, a psicanálise não é, a psicanálise não é… É parecido com o que Lacan fez nos seus Escritos para dizer o que o inconsciente não é. Achei essa pulsação importantíssima e que culminou nessa explicitação das duas lógicas de maneira espetacular, clara, marcada por esse percurso que nos deu o chão, para escutarmos a lógica que nos orienta em direção à Escola e a lógica que nos orienta em direção ao Instituto.

Jorge Pimenta: Jésus, quero agradecer a sua conferência. Eu gostaria que você voltasse a falar sobre o primado da prática, pois você citou a questão da militância no marxismo. Há um termo da dialética hegeliana retomada por Marx que é a práxis. Podemos pensar essa questão do primado da prática, ou a teoria da prática, em função desse termo, práxis. Achei interessante você ter feito essa referência à Weltanschaaung, na medida em que, em Freud, há uma distinção entre a prática da psicanálise daquela da filosofia que é essa de uma visão de mundo. Outra questão que eu faria é sobre a ética da psicanálise. Pode-se pensá-la não como uma deontologia, como é a ética das profissões; mas, o que seria a ética da psicanálise? Ela inclui o sujeito na sua vertente de parlêtre, o gozo, a pulsão?

Bruno Engler: Incialmente eu gostaria de te agradecer, Jésus, pelo esforço de demonstração do que para mim é o que fundamenta a nossa prática. Minha questão é a respeito do que eu entendi como uma ética do ato, uma ética em ato. Quero perguntar-lhe sobre o que estaria em jogo no ato de Lacan na dissolução da Escola tanto no que diz respeito à sua causa quanto em relação aos seus efeitos, como uma forma de pensarmos o lugar que estamos hoje.

Cristiana Pittella: Quero te agradecer muito, Jésus, por sua exposição. Você poderia retomar a questão da Escola como sujeito, a questão do ato e da ética própria da psicanálise? Poderíamos pensar assim também para o Instituto, pois, me pareceu que há algo que se conjuga com a Escola na forma do trabalho do Instituto.

Jésus Santiago: Antes de responder a sua questão, Cristiana, queria saber se você considera que o Instituto também deve ser concebido como um sujeito? Digo isso pois como se sabe, Jacques-Alain Miller propõe uma tese, na sua Teoria de Turim sobre o sujeito da Escola,  qual seja, que a Escola de Lacan deve ser tomada como um sujeito passível de interpretação. Como ele se exprime nesse texto: “a vida de uma Escola deve se interpretar. É interpretável. Interpretável analiticamente”.

Cristiana Pittella: Não sei e é exatamente isso que te pergunto: como considerar ou pensar Instituto? Por exemplo, chamou-me muito a atenção você destacar que “a jornada clínica incide na formação do analista”. Parece-me que há algo aí também do sujeito, do ato e da ética da psicanálise em jogo no Instituto.

Jésus Santiago: Sim, Cristiana, considero a sua questão de fundamental importância para pensarmos o futuro de nosso trabalho com o Instituto. Devo dizer-lhe que apesar das duas lógicas distintas, isto é, o saber suposto do lado da Escola e o saber exposto do lado do Instituto, penso que essas duas lógicas existem em função de um objetivo comum, que é a formação analítica. Isso quer dizer que a lógica do Passe e a do matema não existem na vida concreta desses dois sujeitos de Direito – Escola e Instituto – de forma separada e estanque. Logo, a vida coletiva do Instituto apenas tem lugar se estiver a serviço do discurso analítico. Concluo, portanto, de modo taxativo, que a vida coletiva do Instituto é tão interpretável quanto a vida coletiva da Escola.

Patrícia Ribeiro: Jésus, muito obrigada. Minha questão diz respeito ao que você sublinhou sobre o “risco de autofagia” no que toca ao discurso analítico. Seria possível pensar nesse risco a partir da leitura do texto de Miller (2005) “Uma fantasia”, especificamente quando ele afirma que o discurso da civilização hipermoderna tem a estrutura do discurso do analista?

Jésus Santiago: É verdade, a hipermodernidade faz com que, de alguma maneira, o discurso da civilização passe a ser o discurso analítico, e não o discurso do mestre. Essa é a ideia central que Jacques-Alain Miller desenvolveu nesse texto ao qual você fez referência. Porém, explicite melhor o que você pensa sobre a relação dessa mudança com a tese da autofagia, ou seja, de que o discurso analítico tende ele próprio a se destruir.

Patrícia Ribeiro: Exatamente por isso, pelo fato de que não haveria mais, como esclarece Miller, uma relação de avesso da psicanálise, com o discurso do mestre, como havia antes, mas sim uma relação de afinidade, de convergência com a civilização.

Jésus Santiago: Bastante interessante a sua questão Patrícia. É verdade: se o discurso analítico – e não o discurso do mestre – passa a ser o discurso da civilização, pode-se conjecturar se isso não agravaria o processo da autofagia próprio do discurso analítico. Penso que, para avançarmos, teríamos que enfrentar o seguinte problema: para que a psicanálise possa exercer sua função de “lâmina cortante” das identificações subjetivas se faz necessário, ou não, uma relação de exterioridade da operação analítica com relação ao programa da civilização. Lembro-lhe que, nesse texto mesmo, Miller sugere a ideia de que o surgimento do discurso analítico trouxe consequências importantes no âmbito da sexualidade e da feminilidade. Em outros termos, desde o Século das Luzes não houve discurso mais potente do que a psicanálise para fazer vacilar os semblantes da vida civilizada. Assim, respondo a sua pergunta com uma outra pergunta: se a psicanálise não agisse de modo exterior ao programa dominante da civilização, ela teria desempenhado esse papel de fazer vacilar os semblantes nas esferas do sexual e do feminino?

Aluna do Instituto: Também quero te agradecer, Jésus. Fiquei pensando sobre essas perguntas que se fazem sobre a técnica da psicanálise, como, por exemplo, o manejo com o pagamento da sessão, fazendo acreditar que haveria respostas prontas para isso. Estamos hoje às voltas com isso, sobre como fazer operar, como obter respostas práticas, tais como cobrar a falta na sessão, sobre pagamento, etc.

Lilany Pacheco: Essa pergunta diz respeito aos jovens que demandam na supervisão, por exemplo, saber como agir nessas situações de falta à sessão, pagamento…

Aluna do Instituto: O que mais existe hoje são cursos que ensinam como cobrar a sessão, como se faz isso ou aquilo.

Jésus Santiago: As perguntas referentes ao modo como se analisa hoje são talvez as mais importantes e de mais difícil resposta. Não é à toa que tivemos inúmeras Jornadas e Encontros no Campo Freudiano que versam sobre o tema de como se analisa hoje. Na história do movimento freudiano, as questões que envolvem os procedimentos clínicos de intervenção segundo um conjunto de regras a serem seguidas denominava-se, até o surgimento do ensino de Lacan, “técnicas psicanalíticas”. Assim, as questões relativas à transferência e à contratransferência, à regra fundamental, à regra da abstinência e ao modo de intervenção (ativo ou passivo), à duração das sessões, à posição do analisante (frente a frente ou deitado no divã), entre outras, eram abordadas como se fossem questões de natureza puramente “técnica”. Foi Lacan quem trouxe um verdadeiro abalo nessa visão cristalizada do tratamento, em que as questões técnicas tornavam-se prevalentes com relação ao teor conceitual do que é o inconsciente, a transferência, a interpretação, a sessão analítica e etc. Por exemplo, ao abandonar a delimitação cronológica do tempo da sessão, submetendo-a a uma temporalidade variável ou curta, Lacan evidencia que as questões técnicas devem estar submetidas à perspectiva ética própria do discurso analítico. Ao ser portadora de uma temporalidade variável, a sessão analítica consiste em um modo de interpretação por meio do corte da sessão, sob a responsabilidade do analista.

Lucia Mello: Eu peço a você, Jésus, um comentário a respeito da Conversação Clínica, sobre a sua importância.

Jésus Santiago: Eu proporia uma distinção entre uma Conversação que teria incidência, de preferência, epistêmica, e outra, que teria um alcance mais clínico. Tomaria como exemplo da modalidade epistêmica a Conversação de Arcachon, que criou as condições para Jacques-Alain Miller formular a noção de “psicose ordinária”. Permito-me falar do alcance clínico da Conversação a partir da experiência que a Ana Lydia Santiago pôde desenvolver no contexto de projetos de pesquisa-intervenção que aconteceram no âmbito da rede pública de ensino. Segundo o método da Conversação, buscou-se intervir nesses sintomas da modernidade que são os problemas e impasses que atingem a vida escolar, na infância, como é caso do fracasso escolar, da segregação e da violência presente nas escolas.[i] É sabido que a escola lida muito mal com as particularidades da subjetividade, seja na infância, seja na adolescência. Nesse caso, o interesse maior da Conversação é resgatar a singularidade do sujeito e o modo como o coletivo pode abrir espaço, a partir da conversa, para que cada sujeito produza novas enunciações e práticas.

Como define Miller (2003), uma Conversação estimula a série de associações livres. A associação livre poder ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes. Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um dado momento. O intuito de uma Conversação não é produzir uma enunciação coletiva – pois, do ponto de vista da psicanálise, isso é impossível –, senão uma associação livre coletivizada, da qual se espera um certo efeito sobre o saber. Outros analistas fizeram uso do método da Conversação com o objetivo também clínico, como é o caso do Phillipe Lacadée, no âmbito dos jovens adolescentes e da variedade de sintomas que lhes concernem.   

Maria Rita Guimarães: Faço coro aos agradecimentos e cumprimentos a Jésus, sua conferência foi muito esclarecedora. O que me interessou muito diz respeito ao ato. Se eu me recordo da leitura desse texto ao qual você fez referência – Política lacaniana –, Miller (1997-98/2017) vai trazer uma pergunta: “como se reconhece um ato?”. E responde: “por seus efeitos”.

Então, me parece que, numa sessão clínica, o analista tem condições de reconhecer esse ato de um modo mais evidente na próxima sessão, no que vai se seguindo aí na análise. No CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) é possível a gente perceber que houve um efeito desse ato, mediante o impasse apresentado, quando, através da Conversação, esboça-se alguma saída. Como se poderia reconhecer o ato em suas consequências, segundo a política lacaniana, no coletivo institucional?

Jésus Santiago: Aparentemente, a pergunta da Maria Rita exigiria uma resposta que sairia do escopo de nossas discussões sobre o Instituto e a Escola. Porém, não! A própria existência da primeira Escola de Psicanálise, isto é, a Escola Freudiana de Paris, acontece como fruto de um “ato” – o ato solitário de fundação de Lacan. Entendo que o ato no plano do coletivo institucional supõe o desejo do analista, que, por sua vez, se define como a “pura enunciação” que visa a “diferença absoluta”. O ato de fundação vem para impedir aquilo que é um pressuposto da própria constituição da IPA (International Psychoanalytical Association), a saber: criar um coletivo que congregue todos os analistas do mundo. Sendo que não existe todos os analistas e tampouco o analista. “Só existe um analista, mais outro, mais outro, mais outro analista, tem mille e tre analistas” (MILLER, 1984, p. 15).

Há ainda o fato de que esse conjunto de todos os analistas está referido – porque não dizer “identificado” – ao Outro que se situa fora dele: o pai morto. Para Miller (1984, p. 15), “a IPA é um coletivo de analistas fundado pela identificação ao pai morto”. A Escola de Lacan não se constitui como um conjunto fundado no culto da memória e tampouco no apego ao legado de seu ensino. O ensino de Lacan existe de modo vivo, entre nós, orientando-nos em nossas práticas clínicas e institucionais, em que cada analista entra com a singularidade própria de sua experiência do inconsciente e do modo como cada um fez a passagem de analisante e analista. Vale dizer que constituímos um conjunto paradoxal e sem uniformidade e homogeneidade, um conjunto à la Bertrand Russell que tem como ponto de partida o axioma:  “o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos”. Considere que o conjunto P é: o conjunto de todos os conjuntos que não possuam a si próprios como elementos. Se todos os conjuntos estão formando outro conjunto, então ele não pode ser um conjunto, daí surge o paradoxo inerente à orientação lacaniana: não existe conjunto de todos os conjuntos, nem classe de todas as classes.

Tânia Abreu: Jésus, é sempre um prazer te ouvir. Eu estou trabalhando em minha tese de doutorado sobre a experiência analítica e seus efeitos de formação, e ela tem relação com o que você falou, sobre o fato de que o analista se autoriza de si mesmo. Achei fantástico você fazer essa diferença entre o Instituto e a Escola a partir do Passe, nesses termos: “O instituto, que não tem o Passe, mas o matema, pode ser interpretado?”. A Escola pode ser interpretada, pois ela é sujeito, ela é dividida.

Você colocou o matema do lado do Instituto e o Passe do lado da Escola. A interpretação, a meu ver, só pode mesmo estar do lado da Escola. Mas o Instituto precisa avançar também, precisa ser revisto o seu mecanismo. Qual a ferramenta que podemos pensar para esse aguilhão?

Jésus Santiago: Tânia, creio que já pude responder a sua pergunta quando tratei da questão formulada por Cristiana Pittella. Mesmo que a interpretação esteja preferencialmente do lado da Escola e, sobretudo, porque no seu coração temos o Passe e o AE – cuja função principal, como temos visto em nossas discussões, é interpretá-la –, isso não invalida que o coletivo de analistas que assumem responsabilidades possa lançar mão da interpretação no trabalho do Instituto. Afirmo isso na medida em que o trabalho de transmissão do saber analítico no Instituto se faz sob os auspícios dos princípios e meios que se veicula no próprio discurso analítico. Nesse sentido, o instrumento com o qual contamos para fazer valer a função de aguilhão do Instituto é tanto a transferência de trabalho quanto a interpretação – notadamente, quando esta última incide sobre os efeitos de grupo e ao mutualismo inerente à vida associativa das instituições psicanalíticas.

Marcia Mezêncio: Agradeço por sua exposição. Eu também estou às voltas com esse tema sobre o qual discuti nas Lições Introdutórias, bem como na Diretoria de Cartéis. São questões sobre o saber suposto e o saber exposto, a elaboração provocada do saber e o aguilhão. Mas fiquei me perguntando, diferentemente dessa distinção, sobre o que haveria em comum entre a Escola e o Instituto. E se a resposta não seria a transferência de trabalho, porque ela está em questão no Passe, no Cartel e no Instituto. Se o Instituto está articulado à vertente do saber exposto, como ele poderia fazer uso da transferência de trabalho?

Jésus Santiago: Vou dar continuidade às minhas respostas com a questão do Jorge. É interessante porque ele faz uso do termo práxis, que foi muito corrente num momento em que, tanto ele como eu, estávamos imersos numa prática política militante contra o regime de ditadura militar que tomou conta do Brasil a partir de 64. Aliás, nós exercíamos uma militância em um grupo político revolucionário – Ação Popular Marxista-Leninista – que, inicialmente, adotava uma orientação maoísta e, pouco a pouco, migrou para uma perspectiva leninista e com forte influência do marxista italiano Antônio Gramsci. A questão das relações entre a prática e a teoria sempre foi uma questão importante para os militantes da esquerda revolucionária em ação sob o regime da ditadura militar. Havia toda uma polêmica sobre a questão da prática, sobre o voluntarismo, o “tarefismo” e, também, sobre o lugar da teoria e da formação teórico-política do militante. É verdade que, nesse momento dramático de nossa história política, surge, entre nós, o uso corrente dessa categoria práxis. Como explicar esse uso? Penso que se tratava de encontrar uma relação “dialética” entre a teoria e a prática, uma vez que nos defrontávamos com o que, para nós, era o desvio do “tarefismo”, ou do voluntarismo, ou seja, para a militância, a ação política tendia a se tornar uma “prática sem teoria”.

Do lado do marxismo também chamado de estrutural, aquele propugnado por Louis Althusser (1977), buscava-se resolver esse problema do voluntarismo do militante por meio do que ele designava como a “prática teórica”. Ele próprio foi levado a fazer uma “autocrítica” porque isso levou a um outro tipo de desvio: o do teoricismo, ou seja, uma “teoria sem prática”. No fundo, sob o nome de “teoria”, Althusser aposta em algo inteiramente diverso do que o surgimento da psicanálise pode promover a esse respeito, pois, segundo ele, a “prática teórica” seria capaz de gerar algo novo no domínio do pensamento e da ação.

No terreno da psicanálise, me parece curioso o fato de que o termo práxis surge, logo no início do Seminário 7, A ética da psicanálise”, provavelmente, porque Lacan (1959-60/1988) debatia com o ambiente psicanalítico de sua época a questão da redução da prática analítica a um protocolo de regras técnicas. Um ano após, durante o Seminário 8, A transferência, Lacan (1960-61/1992, p. 85) esclarece que o emprego do termo práxis se justifica pelo fato “de que o acesso ao real não deve ser concebido como correlativo da busca de um tema” – que seria teórico – “ainda que este seja universal”. Ele é explícito a esse respeito, ao dizer, que a “théoria […] por mais contemplativa que possa ser, ela não é somente isso, e a práxis da qual ela se extrai […] o demonstra de modo suficiente. Sob esse ponto de vista, a ideia de uma “prática teórica”, como sugere Althusser, constitui-se, para o campo freudiano, um disparate. A teoria não é, portanto, “uma mera abstração da práxis, nem sua referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação” (1960-61/1992, p. 85). Em suma, com o termo práxis, Lacan mostra que, em psicanálise, o surgimento da teoria não se faz sem a interveniência da prática, e a teoria, por sua vez, se confunde com o exercício e o poder – to pragma – do fazer e do ato analítico. A meu ver, é insuficiente o simples apelo à interação dialética entre a teoria e a prática, a exemplo do que faz o marxismo, como argumento para manter o emprego do termo práxis. Tenho a impressão que a vertente mais autêntica do que vem a ser a práxis apenas se mantém no horizonte de práticas que se sustentam no âmbito da experiência, como é o caso, na psicanálise, da experiência do inconsciente.

Por outro lado, as práticas que se alimentam pela via dos ideais, por exemplo o ideal de transformação do mundo, com vistas a atingir uma sociedade justa, sem oprimidos e exploradores – tendem rebaixar a prática ao plano de um ativismo com conotações messiânicas. Para Walter Benjamin, marxismo e messianismo, revolução e redenção, seriam duas faces de uma só e mesma pessoa, ou de um só e mesmo pensamento. Segundo ele, “a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da redenção” (BENJAMIN, 1940/2012, p. 242). Portanto, que laço se pode estabelecer entre esses dois aspectos, em que um se qualifica como “política” e o outro como “religião”? Longe de se excluírem, esses dois aspectos parecem se reforçar mutuamente, encontrando no pensamento de Benjamin analogias surpreendentes, que chega a falar de “paradoxal reversibilidade recíproca” do religioso no político e do político no religioso. Ao contrário do evolucionismo de esquerda, Benjamin não concebe a revolução como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso econômico e técnico (ou da contradição entre forças e relações de produção), mas como interrupção de uma evolução histórica criando as condições para uma sociedade sem classes, sem Estado e sem dominação patriarcal. Contrário a uma visão linear e quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da temporalidade fundada por um lado na rememoração, por outro na ruptura messiânica e revolucionária da continuidade. A revolução é o equivalente profano da interrupção messiânica da história, e também, como se disse antes, “suspensão messiânica do devir” (LÖWY, 2012, p. 135).

Por outro lado, entendo que a questão da prática assume uma especificidade própria em função desse viés profundamente anti-messiânico que circunscreve o fazer clínico do psicanalista a uma operação sobre o sintoma. Meu ponto de vista é que isso introduz na relação entre teoria e prática uma perspectiva pragmática no fazer clínico do psicanalista que provém do último ensino de Lacan. É o que permite referir-se ao primado da prática sobre a teoria psicanalítica que assume o valor de um princípio epistêmico que se faz presente desde o momento em que a psicanálise desponta na cena do mundo enquanto um tratamento ofertado ao ser falante. Assim, a via pragmática se afirma, uma vez que, para Lacan, não há uma psicanálise teórica que se diferencie de uma psicanálise aplicada e que esteja completamente separada desta última. Se não existe uma teoria psicanalítica propriamente dita, é com efeito certo que, em Freud, a clínica da histeria apenas venha à tona segundo uma “teoria da prática psicanalítica” (LACAN, 1968-69/2008, p. 64).

Sobre a questão da deontologia, posso responder a partir do que disse antes: a deontologia considerada como um conjunto de regras e de deveres que regem a prática analítica seria o avesso da dimensão propriamente ética da psicanálise. Se a deontologia constitui um conjunto de regras a ser seguida, ela é, portanto, exatamente o contrário do que são os princípios que orientam a ação do analista. A esse respeito, vale a pena recuperar o que Miller aborda em seu curso “Donc” acerca do paradoxo do cético de Wittgenstein enunciado pelo lógico Saul Kripke (MILLER, 2011). Em termos analíticos, eu traduziria esse paradoxo assim: nenhum ato analítico pode ser determinado por um protocolo de regras a serem seguidas, pois não há como garantir, por meio de um saber seguir regras, um saber fazer futuro consoante com supostas regras.

Houve um momento em que o campo analítico se viu ameaçado pela vontade do Estado-providência de regulamentar a psicanálise, e, nesse momento, fomos levados fazer um esboço de um código deontológico que expusesse os princípios e procedimentos da prática analítica. Tendo em vista que esses projetos de regulamentação não foram adiante, esse código foi para gaveta.

Lilany Pacheco: E está na gaveta….

Jésus Santiago: Sim! Ficou na gaveta. Com isto quero dizer que não é possível conduzir um tratamento analítico no horizonte de um código deontológico. Vou aproveitar para responder à aluna do Instituto que fez uma questão importante sobre a técnica. Evidentemente que as questões sobre a técnica psicanalítica surgem quando estamos em dificuldades com algum problema no tocante ao atendimento de um paciente. Muitas vezes, procura-se resolver essas dificuldades por intermédio de um fazer sob o comando de um conjunto de regras prescritivas. Lacan propõe que as questões técnicas devem estar submetidas aos princípios que conferem substância à chamada ética da psicanálise. Isso significa que não há como dirigir um tratamento analítico por meio de um protocolo de regras técnicas a serem seguidas. A medicina hoje, a tão propalada “medicina baseada em evidências”, é marcada pelo uso de guidelines, pelo emprego rotineiro de protocolos e, em suma, por princípios de caráter estritamente técnicos. Parecem-me importantes os questionamentos e as investigações, que já têm lugar no terreno da medicina, sobre o emprego do protocolo na atividade clínica do médico.

É possível afirmar que na prática psicanalítica, em contraste com essa disseminação do uso dos protocolos na medicina, exige-se uma relação íntima entre teoria e prática, e tendo a considerar que esse ponto se constitui como algo inédito no campo dos saberes em geral.  À luz do ponto da psicanálise, pode-se dizer que uma questão que emerge na atividade clínica do analista não se resolve sem a dimensão teórica, sem a dimensão conceitual. Porém, é preciso admitir, por sua vez, que essa mesma dimensão conceitual apenas adquire consistência e valor epistêmico, se ela emana a partir de uma problematização que tem lugar no seio da prática analítica.

A meu ver, é nessa interação dialética entre teoria e prática que reside o precioso aforisma enunciado por Miller: “não há clínica psicanalítica sem ética”. Vale dizer que as relações entre teoria e prática são um dos principais princípios éticos da psicanálise. Aliás, é no interior desse problema que se pode inserir a importância da prática da supervisão. A supervisão entendida não apenas como um trabalho dirigido à construção do caso, mas, também, como espaço para a interpretação da prática do analista e do desejo do analista. Por exemplo, é o trabalho da supervisão que pode lançar-se na questão: temos nesse caso clínico o funcionamento do desejo do analista como motor do tratamento?

Sobre a pergunta do Bruno Engler, sobre a questão da dissolução, parece-me interessante colocá-la como uma referência para se pensar a dimensão do ato, sobre a dimensão ética do ato, como você mesmo se expressou. O interessante no caso do ato da dissolução é constatar o que diz Miller no texto que citei antes: “Um ato entre a intenção e a consequência”. Afirma-se assim: não é que não haja nele o componente da intenção. No fundo, todo ato é portador de uma intenção. E respondendo também à Maria Rita: no entanto, o que importa destacar na concepção lacaniana do ato analítico é a sua consequência. Permanece, para todos nós, a questão: quais são as consequências do ato da dissolução? Portanto, apenas se obtém o alcance do ato por intermédio de suas consequências. É o caso também da interpretação! Só se pode aquilatar o alcance de uma intepretação a partir de seus efeitos. Assim, a interpretação apenas existe em relação com os seus próprios efeitos. Por essa razão, é quase impossível querer fazer uma teoria exaustiva do que vêm a ser as diversas modalidades da interpretação na prática analítica.

Agora, eu acho que há um outro ponto importante no ato da dissolução, promovido por Lacan, ponto que Miller aborda, nesse texto, e que, para mim, permanece em aberto. Trata-se do que num dado momento desse texto ele se propõe a esclarecer, que é a orientação que Lacan adotava para a sua prática institucional. Ele se pergunta se Lacan não mantinha um respeito excessivo para os grupos existentes no interior de sua Escola. É quase como se ele tomasse a formação de grupos num coletivo de analistas como um real insurgente. De alguma maneira, isso se constitui como um problema para a política de Escola, tendo em vista que esses grupos muitas vezes incorrem em perspectivas incompatíveis com os princípios do que o próprio Lacan ensinava.

Vejam, por exemplo, a importância que psicanalista de confissão católica Françoise Dolto assumiu no ambiente da Escola Freudiana de Paris. Em uma entrevista de Jacques-Alain Miller (2022, p. 425) recentemente publicada no livro Lacan Redivivus sobre o ato de dissolução em Lacan, ele revela a formação de um grupo que ele nomeia como o “partido jesuíta”, ou o “partido católico”, que assume claramente uma perspectiva que degrada sobremaneira as finalidades do discurso analítico. Aponta-se, inclusive, que o grande líder dessa tendência católica dentro da Escola Freudiana de Paris era o grande teórico, especialista em história e na mística cristã, o jesuíta Michel de Certeau. Então, o que aconteceu naquela ocasião é que a dissolução privilegiou o funcionamento do tipo Escola e buscou intervir nos efeitos de grupo que, de alguma maneira, degradavam a própria finalidade da Escola que é a formação analítica.

É nítido que, ao longo de sua trajetória, Lacan sacrifica a iniciativa institucional em nome do discurso analítico. Respondendo ao Bruno Engler, eu diria que a dissolução é um momento crucial para entendermos o que vem a ser o ato analítico propriamente dito. E diria mais: o ato da dissolução de Lacan encarna o essencial do ato analítico, que é a passagem de analisante à analista. Digamos que a Escola Freudiana de Paris estava voltada muito mais para favorecer e alimentar o discurso do mestre do que dar sustentação ao que designamos como discurso psicanalítico.

Acho importante a lembrança de que a dissolução se constitui como um momento exemplar do que seria o ato analítico e que o ato não é apenas o ato de fundação. E, sob essa ótica, o ato de fundação traz nele próprio a dissolução.

Por outro lado, se a Escola de Lacan deve estar a serviço do discurso analítico e se, por definição, todo discurso é o que faz laço social, deve-se levar em conta a relevância de sua inserção legal/jurídica na sociedade civil. Diante disto, se pode ter uma ideia da importância dos estatutos jurídicos tanto para a Escola, quanto para o Instituto. Na minha opinião, a importância do pertencimento simbólico de uma instituição psicanalítica no terreno do público é tal que ela só passa a existir no momento em que se torna detentora de um estatuto legal, jurídico. Por isso Lacan estimulava que as instituições psicanalíticas deveriam buscar o reconhecimento de utilidade pública junto dos órgãos competentes.

Retorno, agora, à questão da Cristiana Pittella que, a meu ver, converge com a pergunta da Tânia. Acredito que esse ponto é fundamental para as nossas discussões sobre as relações entre Escola e Instituto ao assumir uma posição de que o Instituto é tão sujeito quanto a Escola e, portanto, como a Escola, o Instituto é também interpretável. Posso dar um exemplo do quanto o Instituto também é interpretável. É inevitável para todo aquele que assume tanto responsabilidades de condução dos trabalhos, quanto tarefas com a transmissão da psicanálise no seu interior, se perguntar se o trabalho desenvolvido se mostra compatível, ou não, com o discurso analítico. Se a lógica do Instituto é a do saber exposto, é a do matema, evidentemente que corremos riscos de nos confundirmos com o que fazem os universitários. Sempre me chamou a atenção a frase inicial do escrito de Lacan (1975/2003, p. 316) “Talvez em Vincennes”: “Talvez em Vincennes venham a se reunir os ensinamentos em que Freud formulou que o analista deveria apoiar-se, reforçando ali o que se extrai de sua própria análise, isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu”. Ainda que se tratasse da criação de uma Seção Clínica, Lacan formula, nessa passagem, que o trabalho de transmissão do saber analítico deve se apoiar na experiência do inconsciente que teve lugar no transcurso de uma análise. Por mais que o foco do que se transmite na Seção Clínica passe preferencialmente pelo saber exposto, é preciso concebê-la como permeável àquilo que Freud inventa como a base da clínica psicanalítica, a saber, a experiência do inconsciente. Por consequência, a Seção Clínica deve ser considerada como uma extensão da sessão analítica, tendo em vista que consiste em mais “uma maneira de interrogar o psicanalista, de lhe forçar declarar suas razões” (LACAN, 1977, p. 14). Minha hipótese é de que o Instituto, o nosso Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, tornar-se-á mais suscetível de interpretação caso ele se aproxime ainda mais dos princípios de funcionamento do que Lacan chamou de Seção Clínica.

Acrescento ainda que, em Minas Gerais, temos uma situação muito favorável, pois o Instituto e a Escola existem como espaços institucionais conectados um ao outro. Penso, inclusive, que devemos favorecer, cada vez mais, essa interação entre essas duas instituições. Não devemos, de modo algum, manter o funcionamento dessas duas modalidades de coletivos de analistas como formas institucionais estanques. Ressalto, por último, que uma outra razão que torna interpretável o Instituto é o fato de que este se apresenta, de alguma maneira, subordinado à lógica da Escola. Portanto, devemos favorecer o processo de interação entre Escola e Instituto, na medida em que, no tocante ao discurso analítico e às exigências próprias da clínica analítica, o saber exposto apenas encontra suas razões considerando a prevalência do saber suposto.

Com relação à pergunta da Márcia Mezêncio acerca da função do aguilhão do Instituto com relação ao discurso analítico, eu entendo da seguinte forma: se você se dirigir à Universidade fazendo o uso dos termos conceituais como o objeto a ou a função do S1 no tratamento analítico, será preciso detalhar e explicitar do modo o mais transparente possível o valor desses termos. Já em nossas discussões clínicas, quando fazemos uso deles, não se faz necessário explicitá-los e detalhá-los. No terreno de uma discussão clínica, em nossas Jornadas ou Congressos, a conversação flui e avança, pois o que anima essas discussões são os interesses imediatos, ou não, relativos à prática da psicanálise.

Na Universidade não é assim, pois ela se mantém em função de uma exigência e rigor com relação ao que denominamos de saber exposto. No meu ponto de vista, e conto, a esse respeito, com muitos anos de experiência como professor universitário, essa exigência concernente ao saber exposto se constitui de um modo radicalmente outro, no âmbito do Instituto de Psicanálise. Se o Instituto lida preferencialmente com o saber exposto, ele, ao mesmo tempo, reconhece a primazia do saber suposto na operação analíticaPorém, como questiona Márcia, porque afirmar que o Instituto funciona como um aguilhão? Eu penso que o uso da figura do aguilhão para caracterizar o estilo de trabalho do Instituto apenas se esclarece se o colocarmos diante da tese da autofagia inerente ao discurso analítico. O fator de aguilhão próprio do saber exposto existe para estabelecer alguma medida ao efeito de dissipação ou corrosão próprio do que é basal na experiência analítica, isto é, o saber suposto. Em outras palavras, se aquilo que se conquista na análise, se a especificidade do saber que se adquire na experiência viva da análise, tende a se esvair, se faz necessário ao coletivo de analistas o saber exposto como meio de preservação do discurso analítico.

A esse propósito, considero os testemunhos de Passe como uma manifestação exemplar do que acabo de dizer. Não sei se os colegas AE que estão presentes nesta sala vão estar de acordo, mas eu julgo que há uma diferença substancial entre os primeiros e os últimos testemunhos de um AE. À proporção que avança o que acostumamos chamar entre nós de “ensino do AE”, o teor de enunciação dos testemunhos tende a reduzir sua força e sua intensidade. Segundo o vocabulário empregado nesta manhã, eu arrisco dizer que à medida que os testemunhos se avolumam, o saber do AE tende a tornar-se saber exposto. Ou seja, passa-se a falar da passagem de analisante à analista em termos mais conceituais, com uma perda significativa, em suas construções, do valor e do alcance de sua experiência mais íntima com o inconsciente.

Maria José Gontijo SalumAgradeço pelo que você trouxe. Concordo com o que você falou sobre privilegiar a Seção Clínica e, especialmente, dando esse passo, que é o de propor a Conversação Clínica. Ela traduz uma maturidade nas discussões clínicas no interior do Instituto em Minas Gerais, após todos esses anos de funcionamento. O que eu queria perguntar – e me parece fundamental quando se retoma a discussão do saber exposto a partir da relação da psicanálise com a ciência – seria sobre o uso que a psicanálise pode fazer da ciência, no sentido de se abrir para os procedimentos da ciência. Isso não seria também uma forma de responder à pergunta dessa atividade de hoje sobre “Para que serve o Instituto?”, ou seja, se essa operação seria possível de ser feita no interior do Instituto?

Eu pergunto pois a maioria dos jovens que chegam ao Curso de Psicanálise do Instituto, e ouvimos isso ao fazermos as entrevistas, demandam localizar no Curso, por exemplo, a possibilidade de não simplesmente estudarem a psicanálise, mas de uma certa sistematização. E, quando perguntamos sobre o que é essa sistematização, o ponto ressaltado por eles é a articulação da prática com a teoria psicanalítica.

Outro ponto que eu queria também destacar, a partir da relação Escola-Instituto, é que não há a menor dúvida de que o Instituto só existe a partir da Escola, sustentado pelos membros da Escola. Acho isso fundamental e, nesse sentido, me parece que um modo de o Instituto não ficar repetindo um modelo de mestria e de grupos é por meio de sua relação com a Escola, pois a política da psicanálise se faz a partir da Escola. Sendo assim, o Instituto conectado à Escola é fundamental.

Jésus Santiago: Para responder à questão da Maria José – “Para que serve o Instituto?” –, vou retomar a questão da Conversação. Digo isto pois tenho a convicção de que qualquer aggiornamento possível do Instituto terá que passar pelo que chamaria de método da Conversação. Acredito que por essa via nós teríamos mais chances de aproximar a oferta de formação que dispensa o Instituto daquilo que se constitui como o seu sustentáculo, que é a Seção Clínica. Voltemos, portanto, sobre o modo como se pode conceber a Conversação tal como ela vem sendo praticada entre nós. Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela é um dispositivo que foi criado, alguns anos atrás, por Jacques-Alain Miller, com o intuito de dar conta das grandes questões clínicas geradas pela desordem do real que se instalou com o advento do século XXI. A problematização da atualidade clínica que o psicanalista enfrenta, em seu cotidiano, culminando com a invenção da chamada psicose ordinária, é decorrente da Conversação de Arcachon. Devo destacar aqui todo um campo de elaboração acerca do tema da Conversação, sendo que a mais conhecida é a que surge com um dos ícones da filosofia pragmática, nos Estados Unidos, que é o Richard Rorty. É possível extrair elementos sobre a teoria da Conversação em sua concepção pragmática da linguagem, pois o interesse da filosofia, segundo o filósofo, não é epistêmico, mas ético. O objetivo da conversação não é atingir a verdade, mas fazer existir a série potencialmente infinita que por si só é o signo de um progresso, para o saber, e não de uma regressão (RORTY, 1961).  Devo referir também, a partir de sugestão que me foi transmitida pela Ana Lydia, ao escritor e ensaísta francês Marc Fumaroli (1994), que em seu livro Trois institutions littéraires trata do assunto. O autor se dedica a explicitar a ideia de que a Conversação, concebida como uma instituição privada, é elevada, na França, à categoria de uma arte: ela impulsiona a criação de um “fórum de espíritos”, em que o lugar e o laço comum era a literatura. A “arte da conversação” é vista, por Fumaroli, como um dos alicerces da cultura clássica francesa, pois designa uma prática desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, caracterizada pela busca de uma dimensão estética e hedonista nas trocas mundanas. A expressão concerne originalmente à conversação mundana, mas suas práticas e seus valores se estendem para o conjunto da sociedade culta e tiveram grande influência na literatura clássica francesa.

Um bom exemplo do que vem a ser o uso do princípio da Conversação no Campo Freudiano é o livro, recentemente publicado na França, que trata do tema da solução trans. Esse livro, que em breve será traduzido para o português, é o estabelecimento da Conversação de UFORCA (Union pour la Formation en Clinique Analytique) tal como ela aconteceu, sob a base do dizer de seis sujeitos que se veem ocupados por uma problemática trans e que decidiram falar com um psicanalista inserido nos trabalhos e atividades de uma Seção Clínica. Esclareço que a Conversação de UFORCA se realiza em torno Seções Clínicas francófonas que, como se disse antes, não se confundem com a Escola. Pois a Seção Clínica é um Instituto de formação no qual os docentes e responsáveis são de orientação lacaniana. Ela propõe, portanto, o ensino fundamental de psicanálise, que se estrutura em torno de três eixos: seminários teóricos, seminários práticos e conversações clínicas com os pacientes. Parece-me decisivo para o futuro do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais a introdução desse método da Conversação Clínica. Porém, é preciso considerar que a realização de uma Conversação Clínica, segundo esse método, praticado nas Seções Clínicas francófonas, passa por algumas exigências, a saber: a escolha de uma temática clínica rigorosamente escolhida e que concerne uma problemática pertinente à prática analítica; os casos clínicos escolhidos deverão ser previamente discutidos e construídos; realização de uma brochura contendo o relato dos casos, a ser distribuída com alguma antecedência; e, por fim, a conversação deve visar a extração de teses, hipóteses e, sobretudo, uma orientação clínica para o nosso trabalho analítico cotidiano.

Henri Kaufmanner: Você formalizou duas questões sobre as quais venho pensando, pois, nesses últimos anos, tenho acompanhado a formação dos novos Institutos e das novas Seções – Sul, Nordeste, Leste-Oeste – como êxtimo, inicialmente, e, depois, como presidente da Escola Brasileira de Psicanálise. No entanto, há algo aqui em Minas que fazemos há muito tempo e que é interessante nessa discussão da construção dos Institutos: trata-se de um certo tensionamento quanto à oferta de cursos de formação. É claro que há uma demanda financeira, os cursos permitem sustentar a estrutura da Escola. Mas, mais do que isso, há uma relação com o saber e com o ensino que constitui um caminho complicado nessa discussão que você traz de maneira tão clara e brilhante.

Quando você afirma sobre a importância de se criar espaços e investir, prioritariamente, na dimensão da clínica – e minha participação nessas reuniões sempre foi apontando a importância da Seção Clínica –, você não falou sobre a psicanálise em intensão e em extensão. Mas parece que há algo em que o Instituto pode operar, nisso que chamamos da psicanálise em extensão, que é a inscrição do Instituto na cidade, nos serviços, nas redes.  É algo que em Minas já existe há muito tempo, embora já tenha sido muito maior, pois as condições políticas hoje não são tão favoráveis como já foram. Contudo, temos sempre que tender a expandir. E, então, quando você formaliza o Passe, isso esclarece algo que tem relação com a pergunta da Tânia Abreu e que seria o seguinte: qual o real em jogo em cada uma dessas formulações. Se a pergunta da Escola é sobre o que é um analista, o que o matema traz é uma tentativa de formalização da nossa prática, de inscrever algo da nossa prática, de escrever de alguma forma o real, fazer uma fórmula do real, o que é da ordem do impossível também.

Nós sabemos que isso inspirou Lacan a fazer uma matematização da psicanálise, ainda que o matema não seja uma fórmula. O que interroga o Instituto é seu enfrentamento do real da cidade, dos seus espaços e da tentativa de matemizar isso que é da ordem do impossível. É importante que tenhamos essa clareza, pois, se a Escola é sujeito e é interpretável, o Instituto pode se apresentar dividido a partir desse encontro com esse real da experiência. Isso está ligado a uma maior participação do Instituto nos espaços mais diversos, o que a gente já fez aqui em Minas, mas que hoje vive um refluxo.

Jésus Santiago: Sou bastante sensível a essa formulação proposta pelo Henri Kaufmanner de que é preciso contar com a presença do real em nossa política institucional dirigida seja à Escola, seja ao Instituto. Diante disto, é preciso ter uma certa atenção como os rumos da oferta de formação analítica que ele intenciona fazer. Esse cuidado com o Instituto diz respeito ao fato de que se faz necessário introduzir esse real da clínica, considerando que o seu forte é transmissão por meio do saber exposto. Quando falei de aproximação do Instituto com a Seção Clínica pensava exatamente nesse ponto de que as nossas atividades visando a formação não podem se restringir à transmissão do saber exposto, sem o concurso do real da clínica. Tendo a considerar que, sem a introdução desse real da clínica, como se referiu anteriormente Henri, nós abrimos as portas para a lógica de grupo, ou mesmo para a lógica de reconhecimento que se faz a partir da formação de grupos no interior da instituição psicanalítica. É sabido que Lacan não considerava que, ao constituir um funcionamento do tipo-Escola para um coletivo de analistas, que isso eliminaria, como num estalar de dedos, os efeitos de grupo. Em nossas conversas sobre a orientação lacaniana concernente à instituição psicanalítica, Antônio Benetti sempre enfatiza que, diante do real em jogo no próprio funcionamento do tipo Escola, é inevitável a formação de grupos mutualistas como uma das respostas possíveis. Se o grupo traz em seu cerne uma consistência que é própria do imaginário, evidentemente que ele se presta a ser utilizado como resposta ao real em jogo na formação infinita do analista. Se, por um lado, é quase inevitável a tendência à formação de grupos, por outro lado, a criação da Escola visa, em última instância, o tratamento desses efeitos de grupo. Assim, se os grupos não são elimináveis, eles terão que ser tratados, inclusive interpretados pela própria Escola-sujeito. Se, de um lado, eu estou inteiramente de acordo com o Henri, de que se faz necessário fazer valer o real no cerne das atividades do Instituo, de outro, discordo dele quando nomeia como sua tarefa principal o enfrentamento do real da cidade. Penso que o objetivo a ser buscado pelos responsáveis do Instituto é, sim, tensionar os seus cursos, seminários clínicos e outras atividades através do real da clínica.

É sob esse viés que temos que adotar um olhar crítico sobre o que é um curso ou um seminário clínico articulado à concepção lacaniana da formação analítica. Por exemplo, um curso do Instituto se distingue da gama de cursos que surgem na cidade pelo simples fato de que um curso do Instituto toma a psicanálise como uma prática. A dimensão da prática tem que ser muito bem exposta num curso de formação. Portanto, não podemos fazer um curso como os demais cursos de especialização ligados às Universidades. Não podemos fazer um curso sobre o conceito de inconsciente, conceito de pulsão, conceito de estruturas clínicas, etc.

Nós temos que trabalhar melhor entre nós para criar uma alternativa que seja inovadora e compatível com aquilo que é o objetivo da psicanálise e que é tratar o sintoma. Estou insistindo muito nesse ponto, mas, se a gente não levar isso em consideração, simplesmente a psicanálise vai sofre os mesmos abalos que um dia sofreu o marxismo.

A psicanálise não deve, por exemplo, se tornar uma mera ideologia de defesa das questões de gênero, das questões segregativas – e não digo que a questão da segregação não tenha a sua importância, mas não é a Escola que tem que abraçar essa causa. A causa da Escola é a formação do analista. Se abdicarmos desse ponto, a psicanálise vai acabar, vai se extinguir. Se a psicanálise se transformar numa ideologia, se ela perder o seu teor subversivo, que é o de tratar o sintoma, ela vai se fragilizar enquanto discurso. Desse modo, eu penso que temos uma responsabilidade em não deixar reduzir a psicanálise a mais uma cosmologia ou a uma ideologia sobre a modernidade, sobre o contemporâneo, sobre as questões da segregação racial e sexual! Essas questões existem e temos que encontrar as formas mais compatíveis com o discurso analítico para tratá-las. Por essa razão, considero que deveríamos favorecer a perspectiva da Seção Clínica no contexto do funcionamento do Instituto.

Lilany Pacheco: Nesse sentido, me parece importante pensar, em relação à Seção Clínica, que os Núcleos de Pesquisa não se constituam em grupos de especialistas.

Jésus Santiago: O problema é que trabalhar no sentido da aproximação do Instituto e da Seção Clínica não é nada simples. Em primeiro lugar, porque temos que conviver pela frente com a proibição da apresentação de enfermo, que é o elemento fundamental na estrutura da Seção Clínica. De toda forma, devemos fazer todos os esforços de invenção para fazer prevalecer os princípios que orientam a tese lacano-milleriana da Seção Clínica.

Maria de Fátima FerreiraJésus, obrigada por sua conferência. Me chamou a atenção o modo como funciona a Conversação Clínica, especialmente a discussão do caso clínico. Eu quero te perguntar sobre o seu modo de funcionamento, pois não é o psicanalista que trouxe o caso clínico quem o apresenta, não é? Conforme você diz, há um modo de funcionamento anterior à Conversação em Cartéis, nos quais se discutem os casos clínicos, mas, no momento da Conversação, me parece que o analista responsável pela condução do tratamento, bem como os debatedores que intervêm na discussão, acionam um funcionamento bem parecido com a lógica do Passe. Teríamos um passante (o analista) que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado.

Jésus Santiago: Você tem toda razão sobre o modo como as Conversações Clínicas acontecem na França, elas têm um funcionamento que contém particularidades que dificultam muito o emprego desse mesmo dispositivo entre nós. Aliás, é preciso dizer que, quando a Maria José era a Diretora Geral do Instituto, nós iniciamos uma discussão para avaliar a viabilidade de uma Conversação nos moldes das Jornadas Clínicas do UFORCA. É claro que a realização dessas Jornadas, no contexto do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, requereria de nossa parte uma capacidade inventiva para encontrar soluções compatíveis com as circunstâncias particulares de nosso funcionamento. Nesse sentido, Fátima, eu considero bastante pertinente a sua hipótese sobre a analogia do funcionamento das Jornadas UFORCA com a lógica de transmissão do Passe. Penso, no entanto, que essa analogia não se justifica apenas pela similaridade do modelo organizacional desses dois dispositivos. Parece-me que o mais decisivo diz respeito à sua colocação de que analista que conduz o caso funciona como uma espécie de passante que relata o caso para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado. Depreende-se, da formulação desse funcionamento, que em ambos os dispositivos estamos diante do problema do que é a transmissão de um saber a partir de uma experiência do real. É bem provável que para realizar no Instituto uma Jornada, segundo essa modalidade da Conversação, será preciso aprofundar a reestruturação do Instituto segundo o princípio da Seção Clínica, isto é, introduzir, de modo calculado, em nossos dispositivos de transmissão do saber analítico, o real da clínica. Devo destacar, por último, que convivemos no momento atual com um enorme obstáculo para efetivar a implantação de algo próximo da Seção Clínica, obstáculo oriundo dos tempos da despatologização, pois somos o alvo de uma proibição implacável das apresentações de enfermo.

Paula Pimenta: Eu te agradeço e falo em nome da Diretoria de Ensino do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Acrescento um ponto que diz respeito à questão do discurso da ciência. Nós recebemos no Instituto os candidatos ao Curso de Psicanálise e vários trazem a pergunta sobre a “formação” que nosso curso virá lhes propiciar. Eu acho que você já se antecipou à minha pergunta ao diferenciar os cursos de psicanálise que existem e o que seria a proposta dos Institutos parceiros da Escola Brasileira de Psicanálise, que é a abordagem da prática. Achei isso essencial. O que eu acrescentaria, para retomar esse ponto, seria que, recentemente, no último mandato de governo federal que acabou em 2023, foi aprovada a proposição da graduação em psicanálise. As associações de psicanálise de todo o Brasil investiram esforços por longo tempo para que isso não ocorresse, mas foi autorizada, em uma etapa preliminar, pelo Ministério da Educação, a graduação em psicanálise. Em que medida isso interferirá no tipo de aluno que o Instituto passará a receber? Como você vê a repercussão dessa autorização no Instituto?

Jésus Santiago: Paula, é sempre nocivo para a psicanálise essas tentativas de regulamentar sua prática, seja pelo ordenamento jurídico exercido sob o controle das corporações profissionais, seja pela concessão de diplomas, via o sistema universitário, que, em última análise, objetivam outorgar uma suposta habilitação do que eles próprios denominam como exercício profissional. Não é sem razão o fato de que tanto Freud, quanto Lacan, fizeram de tudo para preservar a formação e a autorização da prática analítica fora do domínio e do controle do Estado. A razão principal é que a base de sustentação da formação de um psicanalista é a exigência de que o candidato à prática tenha passado pela experiência do inconsciente. E essa exigência concernente à experiência da análise não tem outra forma de controle que não seja os próprios analistas. Sem sombra de dúvidas, a aprovação dessa proposta de graduação em psicanálise trará consequências nefastas tanto para o Instituto, quanto também para a Escola. Ela é incompatível com o pressuposto lacaniano de que, apoiado em sua experiência do inconsciente, é o psicanalista que se autoriza por si mesmo e por alguns outros. Diante dessa medida governamental contrária à concepção lacaniana da formação analítica, não nos resta outra saída senão fazermos a nossa parte, aprofundando ainda mais a nossa prática institucional inspirada na ética da psicanálise.

Ram Mandil: Achei interessante a referência à autofagia do saber suposto e fiquei me perguntando o que justificaria essa autofagia. Podemos considerar que uma análise tende à dissolução do saber suposto implicado naquela experiência, mas que haveria também um cuidado em manter uma relação com o saber, inclusive com o saber suposto, pois, de alguma forma, a transferência se funda mais sobre a suposição de saber do que sobre a exposição de saber.

Nesse sentido, achei fundamental isso que você trouxe para pensar a articulação entre o Passe e o matema, de modo que o testemunho de um AE não deixe em segundo plano os problemas cruciais da psicanálise, inclusive como experiência de Escola.

Em relação ao ensino da psicanálise: partindo da questão de Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, considero essa pergunta fundamental uma vez que, a meu ver, ela também interroga a tendência em tomar o discurso universitário como referência de ensino, inclusive nos Institutos. Por essa via, o que se ensina tende a virar matéria, tende a virar objeto, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia, da didática ou coisa dessa ordem e, realmente, para nós, isso não é o principal, uma vez que tende a excluir a dimensão da prática e aquilo que, da experiência analítica, não se concentra em matéria ou disciplina. Isso me fez lembrar de uma expressão que Miller utilizou em algum momento e que permite pensar não apenas o ensino no Instituto, mas também a sua relação com a Escola, que é a noção de imersão.

Pode-se pensar que a transmissão da psicanálise se dá num ambiente de imersão. Existe aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é fundamental na formação, o de estar imerso em uma experiência em curso e que mobiliza a cada vez novos elementos para nossa consideração.

Em relação do ensino da psicanálise, partindo dessa mesma questão do Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, acho que essa é uma pergunta fundamental pois a tendência, não só dos Institutos, é a de tomar como referência alguma coisa do discurso universitário. Então, como eu disse, o que se ensina tende a virar matéria, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia e da didática e realmente para nós isso não interessa. Exclui a dimensão da prática e daquilo que propriamente não se concentra em matérias e objetos. Por isso, lembrei de uma expressão que Miller usou e que acho que permite pensar a relação Instituto-Escola, que é a noção de imersão.

Você pode pensar que, na entrada na prática analítica, você está entrando em um ambiente de imersão. Tem aquilo que se veicula através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima que é o fundamental na formação, que é o de estar aqui imerso em uma experiência que não se conclui e que mobiliza elementos que seguirão.

Jésus Santiago: Talvez nós possamos encerrar a nossa discussão com esse comentário agudo de Ram Mandil sobre esse verdadeiro paradoxo segundo o qual, em psicanálise, ensina-se o que não se ensina. Por meio do problema do que é ensinar psicanálise, o comentário elucida e aprofunda diversos aspectos do que pude abordar no tocante às relações entre Instituto e Escola. Eu ainda reforçaria a ideia fundamental de que a entrada na prática analítica se faz por meio de um lançar-se em um ambiente de imersão que confunde com a Escola e o Instituto. Como conclui Ram, é por estarmos imersos numa experiência de formação interminável que, por consequência, nunca se conclui, que é preciso manter viva a interação inspirada entre o Passe e matema, entre a Escola e o Instituto, animado pelo espírito da Conversação e da Seção Clínica.

Ainda temos a pergunta da Renata Mendonça e, portanto, vamos escutá-la!    

Renata Mendonça: Eu também gostaria de te agradecer. A minha pergunta, eu a faço a partir do Ateliê de Psicanálise e Segregação, do qual sou uma das responsáveis. Você traz questões extremamente pertinentes para separar o Instituto do mundo das pós-graduações e isso implica diretamente o desejo do analista. Digo isso porque o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica. Penso aqui nos jovens que estão às voltas com as redes, sendo capturados pelas ofertas de vários cursos, vários saberes técnicos sobre psicanálise. E agora, com a graduação em psicanálise, isso se complica ainda mais.

Por outro lado, o psicanalista, ao tomar uma posição na clínica de defesa de um determinado grupo, isso levaria, a meu ver, ao apagamento seu desejo, por excluir a singularidade de cada sujeito na experiência analítica. Isso é muito importante em um momento em que estamos às voltas com questões fundamentais, como, por exemplo – e no caso que me cabe –, a questão do racismo e as questões trans.

A pergunta que faço é no sentido de como manejar para incluir essas questões na clínica sem perder de vista o desejo do analista e, consequentemente, a singularidade de cada caso clínico. Isso é algo novo para a Escola e para o Instituto. 

Jésus Santiago: Antes de responder a pergunta da Renata Mendonça, gostaria de ainda tecer algumas palavras aos questionamentos que Maria José e Paula Pimenta fizeram, anteriormente, sobre a questão formação analítica e suas relações com a ciência. É interessante observar que, quando Lacan (1971/2003, p. 237) funda a Escola Freudiana de Paris, ele cria uma Seção de Psicanálise Aplicada, que porta como subtítulo: “O que significa de terapêutica e clínica médica”. De alguma maneira, desde a fundação da Seção de Psicanálise Aplicada, no interior da Escola, já se faz presente algo do espírito da Seção Clínica. Chama a atenção o destaque que é dado à medicina como campo de elaboração para o que é, nesse momento, a aplicação terapêutica da psicanálise. Seu pensamento é que nessa Seção da Escola estarão “grupos médicos […] que estejam em condições de contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a linha direta da práxis freudiana” (LACAN, 1971/2003, p. 237).

Impressiona a antevisão de Lacan acerca do impacto da ciência como discurso, e não tanto como saber, impacto que, para ele, se presentifica de modo contundente no terreno da clínica médica. É provável que com essa proposta Lacan antecipava a necessidade de atualização de nossa prática analítica tendo em vista as grandes mudanças que já se anunciavam no momento de fundação de sua Escola. Evidentemente que a maneira voraz com a qual a ciência invade o campo da medicina, em detrimento de sua vertente propriamente clínica, constitui-se no fator fundamental para entrever as mudanças necessárias em nossa prática. Faz-se necessário renovar nossa prática no mundo, visto que é o próprio mundo que se reestrutura provocado pela aliança dos dois mais eminentes fatores históricos: o discurso da ciência e o do capitalismo. Segundo Miller (2014), a prevalência desses dois discursos na modernidade constitui o principal móvel de destruição da estrutura tradicional da experiência humana. A consequência da ação combinada e corrosiva desses dois discursos, atingindo os fundamentos mais profundos de tal tradição é o que ele pôde designar como a “grande desordem no real (MILLER, 2014, p. 23). É pela via da aliança da ciência e do capitalismo, que “o real escapou da natureza (MILLER, 2014, p. 23), instalando a desordem que afetou a reprodução, a sexualidade, a família, a ordem paterna, etc. A psicanálise de orientação lacaniana vem se mostrando um discurso potente para contrapor e ultrapassar os discursos velhos e retrógrados que protagonizam a ordem natural do real.

Nossa política para a formação analítica não poderia permanecer impassível e indiferente a essa desordem que, de algum modo, torna pensável o que antes era apenas uma ideia-limite e, por isso mesmo, impensável, a saber, o real sem lei e sem sentido. Aproveitando o que disse nesta manhã, é preciso considerar que o real, entendido desse modo, não é um cosmo, não é um mundo e, tampouco, uma ordem de saber ainda não revelável. O real é peça solta, é pedaço, um fragmento assistemático, separado do saber ficcional que se produz a partir do encontro entre lalíngua e o corpo, encontro que faz do real sem lei prévia uma pura contingência.

Retornemos à nossa política para a formação analítica sabendo que, ao contrário da ciência, na psicanálise não há saber no real. Se a ciência pode demonstrar o real pela via do necessário, pela via desse alojar um saber no real, a psicanálise não, a psicanálise precisa do singular, ela precisa do sintoma, porque ela demonstra o real pela via da contingência, pela via do um a um, do caso a caso. E toda a nossa questão é como inserir esse real da clínica em nossos cursos teóricos, em nossos cursos práticos, em nossas apresentações de caso. Caso venhamos abrir mão do ponto de vista clínico, embasado por esse real arriscado da contingência, estaremos, em breve, confundidos com mais uma visão sociológica do mundo.

Agora sim vou tentar responder a questão, a meu ver crucial, da Renata Mendonça, sobre como manter vivo o desejo do analista em formação, como manter viva a práxis analítica considerando o dever que lhe compete de não ceder aos desvios e concessões que amortecem o seu avanço e degradam o seu emprego (LACAN, 1971/2003). Você tem toda razão em trazer para essa discussão sobre os novos rumos para o Instituto a função do desejo do analista em sua relação com um mundo em que os processos de segregação se ampliam e se agravam cada vez mais. E isso tem consequências para a diversidade das mutações que incidem sobre as novas modalidades do envoltório formal do sintoma. Torna-se claro que o seu questionamento, Renata, toca no problema da formação analítica que o Instituto deve ofertar, considerando as novas configurações do mal-estar da civilização. A formação analítica no Instituto deve se mostrar, assim, compatível com as exigências colocadas à prática analítica que acontece em um mundo que caminha no sentido do abandono das normas neuróticas, fazendo valer o sintoma menos como mensagem do inconsciente recalcado, e mais como defesa do real do gozo. A formação deve, assim, incluir um saber fazer com essas novas formas do sintoma que se apresentam como meio de gozo e deve incluir, também, um saber analisar o falasser (parlêtre), no sentido de que, além de falar, ele tem um corpo.

Porém, não é apenas esse saber fazer com o sintoma que gera a distinção entre o ensino no Instituto e a oferta de cursos de psicanálise no âmbito da Universidade. Não é apenas o saber que está em jogo nessa distinção entre o Instituto e a Universidade, pois o foco fundamental dessa diferenciação é o desejo do analista compreendido como “pura enunciação”. Mais precisamente, o desejo do analista é uma incógnita, um “x” que se coloca em sua própria enunciação (LACAN, 1967/2003, p. 257). Segundo esclarecimento recente de Miller (2023), esse “estar em posição de incógnita (x) em sua própria enunciação” se ilustra pela figura do Che vuoi?, que, por sua vez, assume a forma de uma pergunta: “que quer me dizer um analista quando fala e também quando não fala?”. Se desejo não se confunde com a fala, o analista no plano de seu desejo se mantém em uma posição de incógnita (x), ou seja, “não se sabe o que ele quer”. Segundo ele, se pode dizer que o analista pratica a “arte do enigma”, ou seja, “o enigma está para além do enunciado, porém, não se sabe”. E continua essa elaboração a partir da diferença entre a demanda e o desejo, visto que “a demanda é sempre a demanda de algo; o desejo do analista não é nunca o desejo de algo para os seus analisantes”. Conclui-se, assim, que “o desejo do analista se confunde com o desejo de nada”.

É essa articulação acerca do desejo do analista que permite estabelecer a diferença fundamental entre os cursos universitários e o ensino do Instituto, pois este último tem como horizonte a formação analítica, cujo princípio orientador é a passagem de analisante à analista. Nos cursos universitários de psicanálise, em seus programas, prepondera o saber em detrimento do desejo do analista, desejo este que, em última instância, concerne à passagem do analisante a analista. Mais ainda, constata-se que os cursos universitários se mostram fortemente atraídos pelos significantes-mestres que circulam, em nossa época, como eixos orientadores da civilização contemporânea. Daí a importância que assume, nesses cursos, o saber sociológico que busca interpretar, por exemplo, o fenômeno da segregação racial ou sexual. Acoplados a esses saberes, destaca-se inclusive a relevância da atividade militante de grupos que buscam a defesa das causas qualificadas como identitárias.

Nesse sentido, estou inteiramente de acordo quando você afirma que “o desejo do analista exclui a militância e uma posição sociológica”. Em termos conceituais, eu afirmaria que: se o desejo do analista é o desejo de nada, se o desejo do analista é manter-se em posição de incógnita (x) para sua própria enunciação, isto supõe evitar posições e defesas animadas pelas identificações. Se a Escola e o Instituto se tornarem um sindicato em defesa das identidades, elas correm o risco, como você mesma afirma, de apagar aquilo que é o motor da clínica psicanalítica, ou seja, o desejo do analista. A psicanálise opta por não tratar, seja o problema do racismo, seja a questão trans, por meio do ativismo militante, reduzindo essas questões decisivas, para o rumo da civilização ao problema de defesa das identidades.

A operação analítica lida com o sintoma e, paradoxalmente, o sintoma é concebido, por Miller (1998, p. 55), por nada menos que “uma identidade a mais segura” de alguém”. A identidade, em psicanálise, não é da ordem de uma relação de si mesmo consigo próprio e, tampouco, da ordem de si mesmo a um grupo identitário; porém, ela é uma relação com algo. A identidade em psicanálise pode ser vista como uma relação singular à existência, relação que se faz por meio de um sintoma. Se o sintoma testemunha nossa inadaptação às normas e às exigências do Outro, ele testemunha também nossa verdade secreta, bem como nossa singularidade última. O sintoma, enquanto manifestação de um sofrimento, de um mal-estar, de uma dificuldade profunda na existência, é um obstáculo à toda transparência na relação do sujeito consigo próprio. Ao mesmo tempo, se o sintoma é o que o há de mais singular no ser falante, ele é o que vem perturbar a relação que cada um mantém com sua própria existência. É o sintoma que abala toda crença numa identidade determinada, identidade que supostamente nos tornaria transparentes para nós mesmos. Se a psicanálise toma o sintoma como seu meio de operação, é porque ela testemunha a incidência de um discurso – discurso do Outro – que marcou o nosso corpo, à revelia de nós mesmos. Compete a nós mesmos, portanto, buscar ler e tratar, de outro modo, esse enigma que é a escritura do sintoma.

Transcrição: Beatriz Espírito Santo, Daniela Gontijo de Souza, Jônatas Casséte, Luciana Romagnolli.

Referências
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[1] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-63/2005, p. 42)
[2] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra, estão sujeitos a leis diversas”. (KOIRÉ, 1982, p. 182)



Editorial – Almanaque On-line – Agosto/2023 – Nº 31

Giselle Moreira

Imagem: Renata Laguardia

 

Caros leitores,

Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.

Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir que, nesse caso, de perto ninguém é normal[1]: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).

O universal se coloca no centro da nossa temática, mas seria essa orientação um falso universal a ser lido à luz da lógica do não-todo, ou seja, do um a um?

Abrimos a revista com Trilhamentos, rubrica composta por textos que traçam uma orientação epistêmica para essas questões. De início, contamos com a aula inaugural, proferida por Sérgio Laia, que abriu as atividades do IPSM-MG neste último semestre. Seu texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, ao passo que localiza como a fraturada Ordem do Mundo por ele experimentada se realiza, em nossos dias, para todos.

Na sequência, Frederico Feu desdobra, passo a passo, como a clínica universal do delírio está sob o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa a falta de um significante na linguagem capaz de nomear o gozo. A partir desse ponto, o autor lê o aforismo “todo mundo é louco” como concernente a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica. Dominique Laurent localiza que a norma neurótica, constituída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo, mas que hoje as normas se multiplicam. A autora pondera que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, o que leva a uma “subversão” das diferenças feitas até então entre neurose e psicose. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma que constitui um avanço em uma clínica do inclassificável. O texto de Pascale Fari advém de uma discussão de caso em uma instituição e parte do silêncio embaraçado da equipe após a sua intervenção: “Ele está completamente louco nesse momento”. Fari interpreta esse silêncio localizando que a “loucura” não era mais admissível, nem mesmo no discurso psiquiátrico. O significante se tornara um tabu e, portanto, a autora se interroga quais seriam as consequências desse apagamento da loucura. Finalizando Trilhamentos, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o “todo mundo é louco” lacaniano como uma tentativa de cura diante do real: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.

Na rubrica Encontros, Francesca Biagi Chai opera uma oposição entre o que nomeia ser uma “despatologização selvagem”, que desconhece a loucura, e a “despatologização lacaniana”. Despatologizar, no sentido lacaniano, não consistiria em aplanar a clínica, mas, ao contrário, em dar ao gozo o seu valor, na medida em que ele sempre possa ser interrogado. Após o texto de Francesca, segue a conversação que ocorreu entre a autora, Jacques-Alain Miller, La Sagna e Anaëlle. Por sua vez, Philippe La Sagna irá abordar as consequências da crise do DSM-V e o advento do sistema RDoC, projeto norte-americano que visa formalizar um novo sistema diagnóstico que alinha suas classificações às descobertas em genômica e neurociências. Ao texto também segue a conversação, desta vez entre o autor, Hervé Castanet e Angèle Terrier

Como uma novidade, a partir desta edição a Almanaque On-line contará com a rubrica Pólis, destinada a, eventualmente, divulgar artigos concernentes às questões éticas e políticas que se impõem às instituições psicanalíticas a serviço do discurso analítico. Inaugurando essa proposta, contamos com a conferência proferida por Jésus Santiago no IPSM-MG na qual ele parte da ideia de que o princípio de orientação de uma prática institucional dedicada à formação do analista é o mesmo da prática clínica: trata-se do princípio de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência. Portanto, nos alerta sobre o risco de se assumir um viés especulativo e de incorporar de forma apressada os significantes-mestres que circulam como resposta ao mal-estar da civilização. Jésus encerra sua fala diferenciando a Escola em relação ao Instituto, ao passo que sustenta, para ambos, a “ética das consequências” em contraposição a uma “ética da boa intenção”.

O entrevistado desta edição é Sérgio de Campos, que nos traz direcionamentos sobre a política e a clínica das psicoses, após recente publicação dos dois volumes de seu livro Investigações lacanianas sobre a psicose. A partir das questões a ele endereçadas, Sérgio localiza como a despatologização – sob uma ótica que espera que todo mundo possa ser normal – serve também para recobrir a experiência da segregação. No que toca à clínica das psicoses, recomenda a prudência e localiza como a prática da “ajuda-contra” tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio sem a pretensão de erradicá-lo. Por fim, o paradigma da esquizofrenia é abordado para lançar luz à ética irônica que permeia a clínica universal do delírio: “há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo”.

Na rubrica Prelúdios, dedicada a publicar os textos advindos das 59ª Lições Introdutórias, podemos percorrer o trabalho de uma leitura lacaniana e milleriana em torno dos fundamentos clínicos de Freud. Aqui, as autoras recorrem a vinhetas clínicas e, assim, conferem atualidade aos textos freudianos que lhes servem de base para as apresentações. Iniciando a rubrica, Paula Pimenta propõe uma interlocução entre o texto freudiano “O método psicanalítico”, de 1905, e as conferências de Miller de título homônimo proferidas em Curitiba em 1987, apresentando pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. O texto de Cristiana Pittella sustenta vivamente a questão: o que é um psicanalista? A autora trata do ato de leitura em jogo na interpretação analítica, assim como do trabalho de reescrita que compete ao analisante. Márcia Mezêncio aborda questões relacionadas ao começo de uma análise e, em um movimento de detalhar a técnica, esclarece a ética concernente à prática analítica. Renata Mendonça faz, em seu texto, um percurso sobre a transferência, destacando que “o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento”. Lúcia Melo remete os três verbos que dão título ao texto freudiano – “Lembrar, repetir, perlaborar” – aos conceitos fundamentais formalizados por Lacan no Seminário 11, em uma leitura permeada pelas três consistências: Simbólico, Imaginário, Real. Kátia Mariás percorre o caminho do sentido dos sintomas à satisfação, trajeto que revela a íntima conexão entre gozo e defesa. Finalizando a rubrica, Luciana Silviano Brandão retoma a noção freudiana de “verdade histórica” para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana – a reminiscência e a rememoração – e, assim, faz avançar questões pertinentes à alucinação.

Em Incursões, apresentamos os trabalhos dos núcleos de nossa Seção Clínica. Sérgio de Castro apresenta, com clareza, elementos da primeira clínica de Lacan, em que se destaca o ordenamento simbólico sustentado pelo Nome-do-Pai. É, então, a partir das mutações desse ordenamento e do advento de uma “ordem de ferro”, que Castro irá indicar questões relativas à “norma psicótica” em sua extensão contemporânea. Alexandra Glaze pondera que se, por um lado, sempre houve algo de delirante nos assuntos familiares, por outro, recorta uma especificidade atual: um delírio ligado a um imaginário desenfreado. Considerando as modificações da ordem familiar, a autora faz uma aposta clínica: “construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço”. Em consonância, Tereza Facury demarca qual o lugar da criança numa organização social atravessada por normas que se ampliam com a progressão da ciência, e coloca a questão de saber como nós psicanalistas responderemos, então, à segregação trazida à ordem do dia como efeito da universalização. Suzana Barroso trata sobre a repercussão do último ensino de Lacan, condensado no aforismo “todo mundo é louco”, para a clínica da psicose infantil. A partir de uma vinheta clínica, a autora demarca orientações para uma prática que priorize intervenções destinadas a promover alguma negativização do gozo, para que se possibilite o laço social. Encerrando essa rubrica, Miguel Antunes aborda a clínica da toxicomania, transformando a famosa frase “o supereu alcoólico é solúvel no álcool” em interrogação. Para desdobrar essa questão, o autor fará um percurso sobre a noção de supereu de Freud a Lacan, destacando, para além de sua face reguladora, sua vertente voraz e de imperativo de gozo.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise. Paulo Rocha faz avançar aspectos pertinentes à clínica da neurose obsessiva e sua “falsa normalidade” a partir do texto literário O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, obra que também foi adaptada para o cinema. Edwiges Neves localiza mudanças que se verificam na prática analítica no que concerne à transferência e coloca como pergunta se a psicose ordinária poderia ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea. Fechando os textos que compõem esta edição da Almanaque, Laydiane de Matos aborda o conceito de dom na obra do antropólogo Marcel Mauss, articulando à noção de objeto em Freud e Lacan, para tratar a função do assentimento no que concerne à hiância entre o gozo e a lei do Outro. A autora, por fim, abre a questão sobre como podemos ler os modos de subjetividade nos tempos atuais em que o assentimento se declina, o Outro não existe e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos ofertados.

Esta edição foi composta com as belas imagens cedidas pelas artistas Sofia Nabuco e Renata Laguardia, que não apenas ilustram, mas reverberam algo entre os textos, a quem muito agradecemos.

Renata Laguárdia vive e trabalha em São Paulo. É graduada em Artes Visuais com habilitação em pintura pela UFMG e tem mestrado na École Européenne Supérieure de l’Image. Já participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Renata faz formação em psicanálise no Corpo Freudiano, em São Paulo.

https://www.instagram.com/renatalaguardiaxavier/

Sofia Nabuco é técnica em Artes Visuais, ilustradora e tatuadora. Residente da capital mineira há 10 anos, trabalha com aquarela e ilustrações digitais. Tem publicações nas revistas Laudelinas e OuroCanibal, além dos livros Aleatórias, em coautoria com Constança Guimarães, e O passeio da Larissa, de Diogo Rufatto.

https://www.sofianabuco.com/

Por fim, agradecemos aos autores que contribuíram com esta edição e à equipe de publicação, pela alegre parceria e pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos.

Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos!


Referência
LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978)
[1] Referência à música “Vaca Profana”, composição de Caetano Veloso



Construções e reminiscências[1] 

Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
lucianasbl@gmail.com

Resumo: A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência.

Palavras-chave: construção, verdade histórica, rememoração, reminiscência.

CONSTRUTIONS AND REMINISCENCES 

Abstract: The author takes a journey through the text “Constructions in analysis”, working on the concepts of ultranitical memories, historical truth, remembrance, and reminiscence. Her hypothesis is that historical truth is conceptually equivalent to reminiscence. 

Keywords: construction, historical truth, remembrance, reminiscence.

Imagem: Renata Laguardia

“Construções em análise” foi publicado pela primeira vez em 1937 e, nele, Freud dá ênfase ao procedimento e à técnica analítica. Percebemos sua necessidade em defender a psicanálise, pois esta era alvo de ataques dos mais variados campos, e ele o inicia se referindo a um crítico que acusava os psicanalistas de se colocarem na postura daqueles que têm sempre razão, sem levar em conta o “não” do paciente. Para esse crítico, “se [o analisando] concorda conosco, estamos com razão; mas se ele nos contraria, então seria apenas um sinal de sua resistência e, portanto, também mostraria que temos razão” (FREUD, 1937/2017, p. 365).

No entanto, para a psicanálise, um simples “não” do paciente não abdica o psicanalista de sua interpretação, e é essa posição que pode servir de munição para a reprovação de tais críticos. Dessa forma, é necessário entrar em detalhes sobre como a psicanálise entende o “sim” ou o “não” do paciente.

Objetivo do trabalho analítico

O objetivo do trabalho analítico é a suspensão do recalque para substitui-lo por reações que correspondam a um estado de maturidade psíquica. Para que isso aconteça, é necessário que o analisando se recorde de determinadas vivências e moções de afeto que foram esquecidas. Qual seria o caminho para esse resgate? Freud responde que seria através dos fragmentos de lembranças nos sonhos, na associação livre e em alusões de repetições de afetos pertencentes ao recalcado. A transferência seria o caminho para alcançar a imagem dos anos esquecidos pelo paciente.

No entanto, temos que nos lembrar que o trabalho analítico é feito por duas partes – analista e analisando -, cada qual com uma função. Ao analisando, cabe a tarefa de se lembrar do material recalcado, e, ao analista, cabe interpretar esse material. O analista então, “terá de inferir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o esquecido” (FREUD, 1937/2017, p. 367).

Para caracterizar o trabalho do analista, Freud faz uma analogia com o do arqueólogo. Da mesma forma que o arqueólogo infere onde estaria uma parede em uma ruína, o analista faz o mesmo com as lembranças e associações do paciente. Outra fonte importante para a tarefa analítica de construção são as repetições “de reações oriundas de tempos primevos e tudo o que é revelado em termos de repetições através da transferência” (FREUD, 1937/2017, p. 368). Importante ressaltar que para Freud, nesse momento, há a aposta de ser impossível a destruição total das formações psíquicas. Ele acreditava que seria apenas uma questão de a técnica analítica conseguir trazer totalmente à tona o que está oculto.

Entretanto, é necessário levar em consideração que o objeto psíquico, diferentemente do arqueológico, é muito mais complicado que os restos arqueológicos. A construção é apenas um trabalho preliminar na análise de um sujeito.

O processo analítico, ou a construção, é feita passo a passo. Freud afirma que o analista

produz um pedaço de construção, comunica-o ao paciente, para que faça efeito sobre ele; depois, ele constrói mais um pedaço a partir do novo material que chega como um afluente e trabalha do mesmo jeito, e nessa alternância vai até o fim. (FREUD, 1937/2017, p. 369)

A grande questão é se o analista pegou o caminho certo em sua tentativa de fazer esse trajeto. Se não o tiver feito, poderá se retificar em momento oportuno quando nova construção puder ser feita.

O sim ou o não

Quanto ao “sim” ou ao “não” do paciente, esta é uma outra história, pois tanto um, quanto o outro, não garantem que a construção esteja correta. O que garante sua asserção é a produção, pelo analisando, de novas lembranças que complementam e ampliam a construção.

Importante ressaltar que, com frequência, o “não” do paciente pode ser um sinal de resistência, pois a construção analítica é sempre incompleta e abarca apenas um pequeno fragmento do acontecimento esquecido. Dessa forma, pode-se pensar que o analisando “fundamenta sua oposição com base na parte ainda não revelada” (FREUD, 1937/2017, p. 372). Para Freud, o analisando só dará a sua concordância quando souber de toda a verdade e esta, muitas vezes, é bastante ampla. “Portanto, a única interpretação segura do seu ‘não’ é aquela que aponta insegurança; que a construção certamente não lhe disse tudo” (FREUD, 1937/2017, p. 372).

Como saber se a construção tocou em um ponto importante? Podemos supor que seja através de tipos indiretos de comunicação, como, por exemplo, através da expressão idiomática “eu jamais pensei (ou teria pensado) isso (nisso)” (FREUD, 1937/2017, p. 373), que podemos traduzir por “Sim, nesse caso, você acertou o inconsciente na mosca”. (FREUD, 1937/2017, p. 373). Outra é a confirmação indireta através de associações que combinam com o conteúdo das manifestações. E, ainda, aquelas em que as confirmações se infiltram na oposição direta por meio de um ato falho.

Diante dessas constatações, Freud conclui que a crítica sofrida pela psicanálise não é devida, pois, ao se prestar atenção na resposta do analisando, pontos de apoio valiosos são retirados. Por outro lado, “essas reações do paciente geralmente têm múltiplos significados e não permitem uma decisão definitiva” (FREUD, 1937/2017, p. 375), o que nos leva a concluir que apenas a continuidade da análise vai provar se essas construções estavam corretas ou se foram inúteis.

Nem sempre uma construção feita pelo analista produz a recordação do recalcado, mesmo assim, em alguns casos, o paciente tem uma convicção segura da verdade da construção.

Recordações ultranítidas

Ocorre também que uma construção gere as chamadas recordações “ultranítidas” (überdeutlich) (FREUD, 1937/2017, p. 376). Nesse tipo particular de recordação, os pacientes não se lembram do acontecimento que fora o conteúdo da construção, e sim de detalhes muito nítidos: rostos, objetos no ambiente, espaço, etc. Como a elas nada é atrelado, o psicanalista sugere que foram resultado de um acordo em que a resistência conseguiu deslocar o recalcado para objetos secundários vizinhos.

Essas lembranças poderiam ser chamadas de alucinações, mas não apresentam a certeza característica do fenômeno e acontecem em casos que não podemos chamar de psicose. Por outro lado, há ocorrência ocasional de alucinações em casos de não psicóticos. Freud se pergunta se seria uma característica da alucinação que algo vivenciado nos primórdios e depois esquecido se insinue na consciência de forma deformada.

Talvez as formações alucinatórias, nas quais vemos inseridas essas alucinações, não sejam assim tão independentes da súbita vinda à tona do inconsciente e do retorno do recalcado. De forma geral, só sublinhamos dois fatores no mecanismo de uma formação alucinatória: o afastamento da realidade e a influência da realização de desejo sobre o conteúdo do delírio. Mas será que quando o recalcado emerge provocaria o afastamento da realidade, que, por sua vez, causaria a deformidade e o deslocamento do relembrado?

A verdade histórica

Freud sinaliza que o importante é que a loucura não só tem método como contém uma parte de verdade histórica.

Nos parágrafos finais de seu texto de 1937, assinala que, em casos patológicos, não se trata de demover o paciente do erro de seu delírio, de sua contradição diante da realidade, mas de encontrar

um fundamento comum no reconhecimento do cerne da verdade a partir do qual se poderá desenvolver o trabalho terapêutico. Esse trabalho consistiria em libertar aquela parte de verdade histórica de suas deformações e ligações [Anlehnungen] com o presente real, reconduzindo aquela parte do passado à qual pertence (FREUD, 1937/2017, p. 378).

Freud considera que as formações delirantes lembram as construções feitas pelo analista durante o tratamento analítico. Da mesma forma que a nossa construção só traz de volta uma parte da história de vida perdida, o delírio também deve o seu poder de convencimento à porção de verdade histórica que ele coloca no lugar da realidade rejeitada.

Ele conclui seu texto com o seguinte parágrafo:

Se abarcarmos a humanidade como um todo e a colocarmos no lugar de cada indivíduo humano, verificaremos que ela também desenvolveu formações delirantes inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, mesmo assim, elas puderem expressar um extraordinário poder sobre as pessoas, a análise levará à mesma conclusão que no caso de cada indivíduo. Elas devem o seu poder ao teor de verdade histórica que foram buscar lá no recalque dos tempos primordiais esquecidos. (FREUD, 1937/2017, p. 379) 

O que é verdade histórica?

Antes de finalizar, gostaria de voltar de forma mais detalhada ao termo “verdade histórica”. Ele aparece em alguns textos freudianos importantes, tais como “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936), “Moisés e o monoteísmo” (1938) e “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)” (1918).

Em “Um distúrbio de memória na Acrópole”, Freud relata sua peculiar experiência ao visitar a Acrópole. Seu primeiro pensamento ao vê-la foi: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!”. O que se segue é o sentimento de divisão do sujeito, pois era como se duas pessoas estivessem ali: “A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa”, e, a outra, “A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida” (FREUD, 1936/1976, p. 295).

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o psicanalista afirma:

Quando Moisés trouxe ao povo a ideia de um deus único, ela não constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana, alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma tradição. (FREUD, 1934/1975, p. 153)

E, em “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)”, há a seguinte passagem do paciente:

Quando eu tinha 5 anos de idade, estava brincando no jardim perto da minha babá e fazia cortes com meu canivete na casca de uma daquelas nogueiras, que também têm um papel em meu sonho. De repente percebi, com um terror indizível, que eu tinha cortado meu dedo mindinho da mão (direita ou esquerda?), de tal maneira que ele só estava pendurado pela pele. Eu não sentia dor nenhuma, mas uma grande angústia. Não me atrevia a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas poucos passos de distância, afundei no banco mais próximo e permaneci sentado lá, incapaz de olhar mais uma vez para o dedo. Finalmente me acalmei, olhei para o dedo, e, veja só, ele estava totalmente ileso. (FREUD, 1918/1976, p. 723)

Parece possível afirmar, a partir dos fragmentos apresentados, que, ao utilizar o conceito de “verdade histórica”, pode-se identificar uma estrutura que se repete, mas que é modificada pela realização de desejo e pelas percepções que são perturbadas pela linguagem. A repetição da representação deformada gera o delírio, mas, quando essa repetição compulsiva carrega consigo um retorno do passado, seria uma verdade histórica.

O que se repete não é a representação ou o sentido ligado à representação, mas uma certa estrutura discursiva, que, no caso de Freud em Atenas, seria a reapresentação da dúvida sobre a existência da Acrópole, no monoteísmo, a reapresentação do chefe da horda no Deus único, e, no Homem dos Lobos, a reapresentação da castração na alucinação do dedo cortado.

Verdade histórica ou reminiscência em “O homem dos Lobos”?

Pretendo me ater aqui ao relato do dedo cortado do Homem dos Lobos para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana: a reminiscência e a rememoração. Minha hipótese é ser possível equiparar a reminiscência à verdade histórica.

Parece-me interessante neste ponto explorar a distinção feita por Lacan entre rememoração e reminiscência. No Seminário 23, o psicanalista afirma:

A reminiscência é distinta da rememoração. […] A rememoração é evidentemente alguma coisa que Freud obteve forçosamente graças ao termo impressão. Ele supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso, e lhes conferiu letras, o que já é dizer muito, porque não há razão nenhuma para que uma impressão se figure como alguma coisa já tão distante da impressão quanto uma letra. Já há um mundo entre uma letra e um símbolo fonológico.

A ideia testemunhada por Freud no Projeto é de figurar isso através de redes, e foi talvez o que me incitou a lhes dar uma nova forma, mais rigorosa, fazendo com isso alguma coisa que se encadeia, em vez de simplesmente se trançar.

A rememoração consiste em fazer essas cadeias entrarem em alguma coisa que já está lá e que se nomeia como saber […]. (LACAN, 1975-76/2007, p. 127)

Em “Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico”, Freud retoma o relato do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos. Cito-o: “Quando me achava brincando no jardim com um canivete (isso se deu quando eu tinha cinco anos de idade) e cortei fora meu dedo mindinho – oh, eu só pensei que ele fora cortado – mas já lhe falei sobre isso” (FREUD, 1914/1996, p. 209). No entanto, o psicanalista, ao ouvir aquele relato, responde-lhe que nunca o havia narrado, mas o paciente afirma ter certeza de já o ter contado. Porém, ao repetir a estória, ele percebe seu engano.

Aqui há um real que fala sozinho, a experiência não é testemunha de um significante que falta, há um aspecto de descontinuidade temporal – extratemporal, melhor dizendo. Nesse caso, o que retorna é um conteúdo que deixou de ser simbolizado, que escapou da simbolização primária e que não pôde ser historiado. Segundo Miller, trata-se de uma forma imemorial que aparece quando o texto, “interrompendo-se (fora do texto simbólico, portanto), deixa desnudo o suporte da reminiscência” (MILLER, 2009, p. 54).

A rememoração, em contraposição ao fenômeno descrito no caso freudiano, acontece quando um elemento esquecido encontra a sua articulação simbólica. Já a reminiscência tem relação com a concepção platônica, pois o indivíduo não pode elaborar uma verdade a partir de sua experiência, só lhe restando o eterno, o que está fora do tempo.

No caso do Homem dos Lobos, diante da emergência do real, só lhe restou o mutismo, o mutismo aterrorizado e a imagem alucinada do dedo cortado. Nesse caso, ao lembrar-se da experiência e relatá-la posteriormente ao analista, não se pode dizer que essa estava na ordem de um mero esquecimento, como no texto “O mecanismo psíquico do esquecimento”, de Freud. Trata-se de uma experiência com uma significação tão estranha que o sujeito não tem como comunicá-la ao Outro. Não estaria, portanto, no registro de uma lembrança esquecida que retorna, de uma rememoração. Para um elemento ser historiado, ele deve, antes de tudo, ter sido simbolizado, ou seja, só há historização secundária se houver uma simbolização primária. A “rememoração está situada do lado da rede significante, das cadeias que se formam com o simbólico, ao passo que a reminiscência, aqui, é deixada em branco” (MILLER, 2009, p. 54).

A questão que proponho aqui, no caso do Homem dos Lobos, é pensar que a alucinação do dedo cortado pode revelar algo que irrompe no discurso do sujeito sem que haja uma historização – ou o que carrega consigo uma história que pode ser contada –, mas revela o puro real sem palavras. Concepção que se aproximaria do conceito de “verdade histórica” como modo de resposta a incidência do real traumático sobre o ser falante.


 

Referências
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXIII, 1975, p. 165-329. (Trabalho original publicado em 1934).
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1976, p. 238-247. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Um distúrbio de memória na Acrópole. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXII, 1976, p. 291-303. (Trabalho original publicado em 1936).
FREUD, S. Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIII, 1996, p. 207-212. (Trabalho original publicado em 1914).
FREUD, S. Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Histórias clínicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 631-773. (Trabalho original publicado em 1918).
FREUD, S. Construções em análise. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 365-381. (Trabalho original publicado em 1937).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 27 de junho de 2023.



Do sentido à satisfação do sintoma[1]/ 

Kátia Mariás
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise /AMP
katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda as Conferências XVII e XXIII de Freud sobre o sentido dos sintomas e sobre os caminhos da formação dos sintomas. Nessas conferências, ao partir do sentido – Sinn – para a significação, a referência – a Bedeutung –, Freud vai do sentido ao gozo do sintoma.

Palavras-chave: sintoma; gozo; pulsão; sentido; referência; satisfação. 

FROM MEANING TO SYMPTOM SATISFACTION 

Abstract: The text addresses Freud’s XVII and XXIII Conferences on the meaning of symptoms and on the paths of symptom formation. In these conferences, by starting from the meaning – Sinn – and moving to the signification, the reference – Bedeutung –, Freud goes from the meaning to the jouissance of the symptom.

Keywords: symptom; jouissance; drive; meaning; reference; satisfaction.

Imagem: Renata Laguardia

O texto que fui encarregada de trabalhar é o único que não está na série de textos sobre os fundamentos da clínica psicanalítica publicados nas Obras Incompletas (FREUD, 2017). Ele compõe a série de conferências proferidas por Freud a um público de não analistas entre os anos 1915 e 1917, chamadas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”. O que Freud desenvolve ali não deixa de estar referido aos fundamentos da clínica e, inclusive, conversa com eles. De qualquer forma, como sugere Miller, o “perder-se um pouco” tem todo seu valor. Para estar bem orientado em um tema analítico é preciso também desorientar-se, quer dizer, não pensar no tema de forma demasiadamente familiar (MILLER, 2011, p. 11). Selecionei algumas passagens da Conferência XVII, “O sentido dos sintomas” (Der Sinn der Symptom) (FREUD, 1916-17/1990a), para que possamos extrair o que há de essencial nesse texto e o que podemos aprender com ele.

Num primeiro ciclo de conferências, Freud se ocupou dos sonhos e dos atos falhos. A fonte desse primeiro ciclo eram as obras da descoberta: “A interpretação dos sonhos”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e até “O chiste e sua relação com o inconsciente”. O segundo ciclo de conferências, presentes na parte III, dentre as quais está “O sentido dos sintomas”, trata dos sintomas neuróticos, as neuroses de transferência, como ele então as chamava: histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva. A conferência XVII é, então, uma aplicação aos sintomas neuróticos do que havia sido dito sobre os sonhos e atos falhos. É possível constatar que os sintomas são como os sonhos e atos falhos, ou seja, têm um sentido e podem ser interpretados (MILLER, 2011).

Esse texto já anuncia o que Freud vai complementar na Conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas” (Die Wege der Symptombildung) (FREUD, 1916-17/1990a)O que há entre as duas conferências? De que trata essas conferências que fazem ponte entre a XVII e a XXIII? Freud introduz aí o pulsional, a libido, o sexual e o perverso do sexual.

Vamos ao texto: “os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente” (FREUD, 1916-17/1990a, p.305).

Podemos observar que Freud aborda o sujeito em sua singularidade. O sintoma tem um sentido e se relaciona com a experiência do sujeito; não é possível tratar essa experiência como sendo da ordem do universal, do para-todos. O sentido deve ser interpretado no caso a caso, no um a um, no singular: “os sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias e os sonhos e, como estes, têm uma conexão com a vida de quem os produz” (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Mais uma vez, Freud conecta os sintomas à vida de quem os produz e não os liga a uma teoria geral, não universaliza os sintomas. Ele situa o sintoma dentro das formações do inconsciente, a saber, o lapso, o chiste, o ato falho, o sonho e o sintoma.

Para Freud, nesse momento, o sonho tem um “querer dizer”, tem um sentido, mas o sonho é efêmero, ao ser interpretado ele se esvai. O sintoma também tem um “querer dizer”, mas ele não é efêmero, ele não se esvai, ao contrário, ele se repete. O caráter de repetição pode levá-lo ao infinito, daí o termo “os etcéteras do sintoma”, que foi, aliás, título de um seminário que ocorreu nas XIV Jornadas do Campo Freudiano em Madrid, em 1997 (MILLER, 1997).

Freud vai tentar tornar a sua descoberta mais compreensível escolhendo exemplos de casos não de histeria, mas “de uma outra neurose muito mais extraordinária”, a neurose obsessiva.

A neurose obsessiva manifesta-se no fato de o paciente se ocupar de pensamentos em que realmente não está interessado, de estar cônscio de impulsos dentro de si mesmo que lhe parecem muito estranhos, e de ser compelido a ações cuja realização não lhe dá satisfação alguma, mas lhe é totalmente impossível omitir. Os pensamentos (obsessões) podem ser, em si, carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 306).

Esses sintomas, geralmente, estão desprovidos de sentido, um sentido que não está dado de maneira imediata; ele tem que ser extraído. O sintoma aparece como um sentido recalcado, ele aparece como um enigma. O sintoma manifesta-se suportado por um significante cujo significado está recalcado, quer dizer, que não foi comunicado ao Outro ou por ele aceito.

Ao afirmar que a realização da ação obsessiva não lhe dá satisfação, é possível intuir algo que Freud só vai concluir na Conferência XXIII. Esse ciclo de conferências vai, portanto, do sentido ao gozo. Se o Sentido dos sintomas trata do sentido, O caminho da formação dos sintomas (FREUD, 1916-17/1990b, trata da libido, da satisfação, do gozo. Entre as conferências XVII e XXIII, trata-se exatamente do caminho que vai do sentido ao gozo do sintoma. É interessante destacar isso, porque vemos que já existia uma teoria da satisfação libidinal, do gozo, antes mesmo de “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/2020). 

Certamente, esta é uma doença louca. A imaginação psiquiátrica mais extravagante não teria conseguido construir nada semelhante […] O que é posto em ação, em uma neurose obsessiva, é sustentado por uma energia com a qual provavelmente não encontramos nada comparável na vida mental normal. […] A possibilidade de deslocar qualquer sintoma para algo muito distante de sua conformação original é uma das principais características desta doença. (FREUD, 1916-17/1990a, p. 307)

Nada mais atual para nós do Campo Freudiano: “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. O obsessivo não percebe o sofrimento de seu sintoma, ele o incorpora tão bem à sua personalidade que é motivo de prazer. Os sintomas obsessivos são prazerosos. O sujeito sofre como um condenado, mas não se queixa.

Toda a teoria freudiana dos sintomas, tal como está desenvolvida nas conferências, supõe que uma satisfação pode ser substituída por outra, supõe a possibilidade de substituição de satisfações. É o caráter metafórico do sintoma. Freud chama de Ersatz, uma satisfação nova, ou substitutiva, e isso faz pensar que o substituto não tem o mesmo valor que o original. Mas não é bem assim. A satisfação substitutiva é tão boa quanto a satisfação original. Não importa o objeto, a finalidade libidinal obtém-se custe o que custar e ela é sempre a mesma. A pulsão não conhece o semblante de gozar; a satisfação pulsional é um real.

O primeiro caso apresentado na Conferência XVII refere-se a uma mulher com uma ação compulsiva de proteger o marido impotente. O segundo consiste em um cerimonial de dormir que indica uma encenação da não-relação sexual, sustentada por um vínculo libidinal com o pai. A escolha desses casos talvez se deva ao fato de que Freud se dirigia a uma audiência de não praticantes e eram sintomas muito claros, que têm um sentido evidentemente sexual e se explicam por uma Bedeutung – termo difícil de traduzir por indicar, ao mesmo tempo, “significação” e “referência” –, pela referência a uma experiência anterior. A primeira mulher monta sua cena como repetição e correção de um evento anterior, traumático para ela. Através desses exemplos, Freud vincula o sentido e o libidinal. A Bedeutung é uma vivência anterior.

Retomemos o caso: uma mulher de 30 anos de idade, que sofria de graves sintomas obsessivos, realizava, várias vezes por dia, a seguinte ação obsessiva: corria do seu quarto até um outro cômodo, se colocava numa determinada posição ao lado de uma mesa no meio do aposento, soava a campainha chamando a empregada, lhe dava uma ordem qualquer ou a dispensava sem maiores explicações e, depois, corria de volta para seu quarto. Freud perguntava: “Por que faz isso? Qual o sentido disto?”. Ela respondia: “Não sei”. Certa vez, depois de Freud ter invalidado uma dúvida importante, fundamental, ela subitamente soube a resposta e lhe contou o que estava em conexão com o ato obsessivo. Freud realiza a seguinte leitura, a partir dos elementos fornecidos pela paciente: há 10 anos, na noite de núpcias, o marido, que era bem mais velho, se mostrou impotente e passou a noite correndo do seu quarto para o quarto da mulher, para renovar sua tentativa, mas sempre sem êxito. Na manhã seguinte, envergonhado perante a empregada que arrumaria seu quarto, pegou um frasco de tinta vermelha e derramou sobre o lençol, mas não no exato lugar em que uma mancha viria a calhar. A paciente leva Freud até uma mesa no segundo quarto e mostra-lhe uma grande mancha na toalha. Explicou-lhe que assumia sua posição em relação à mesa de maneira tal que a empregada, ao ser dispensada de sua presença, não podia deixar de ver a mancha.

A explicação de Freud estabelece uma íntima conexão entre a cena de sua noite de núpcias e o ato obsessivo atual. Em primeiro lugar, fica claro que a paciente se identificava com seu marido; ela estava executando o papel dele, imitando suas corridas de um quarto a outro. Além disso, cama e lençol foram substituídos pela mesa e pela toalha. Mesa e cama, juntas, representam o casamento e, assim, podem facilmente tomar o lugar da outra.

O ato obsessivo tinha um sentido: uma representação, uma repetição daquela cena importante. Repetindo a cena, corrigia a falha do homem. Servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada. Separada há anos, debatia-se com a ideia de divorciar-se legalmente. Contudo, não havia como livrar-se dele. Era forçada a permanecer fiel; retirou-se do mundo para não ser tentada. Em sua imaginação, desculpava-o e engrandecia suas qualidades. O segredo de sua doença consistia em que, através da doença, protegia seu marido de comentários maldosos. Através do sintoma, a mulher faz o homem e, deste lugar, o protege e o sustenta na plena possessão de seus atributos. A leitura freudiana dessa ação obsessiva se limita a negar ou desmentir a impotência do marido.

A mulher se encontra, desde então, submetida à obrigação de chamar a empregada para corrigir a cena, convocando o olhar dessa mulher a se colocar sobre uma mancha na toalha da mesa e, assim, mostrando que não haveria de ter vergonha. Toda a cena é montada para corrigir a penosa impotência do marido.

Aqui, a interpretação do sintoma foi descoberta pela própria paciente, sem qualquer influência ou interpretação do analista, e resultou de uma conexão com um acontecimento que não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente e permaneceu vivo em sua memória.

A pergunta que Freud faz ao seu público, nessa conferência é: foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida sexual?

O primeiro caso apresentado por Freud na Conferência XVII foi comentado por Esthela Solano (1993) e por Elisa Alvarenga (2019).

Cito Elisa Alvarenga (2019, p. 37), a propósito do comentário de Esthela Solano sobre essa cena que esconde algo, tanto quanto revela:

A mulher, colocando-se no lugar do marido, faz Um com ele, e a partir dessa solidariedade fálica, chama a empregada. A que lugar ela é convocada? Esta mulher obsessiva recorre a uma Outra mulher, não para interrogar nela o mistério da feminilidade, segundo a estratégia da histérica, mas para tomá-la como testemunha, como Outro diante do qual a mancha pode ser tomada como um semblante que faz valer seu poder de evocação do falo.

A mancha vela o recuo do marido diante do Outro sexo, tomando um valor de quase fetiche, que restitui ao marido seu ter para que ela possa assegurar, do seu lado o ser. Ela adivinha a posição do parceiro e a corrige através do seu sintoma.

Podemos concordar que esses dois casos de mulheres que Freud classifica como obsessão são, na verdade, fragmentos de casos de histeria e é o caráter de obrigação dos seus atos, Zwang, presentes nos dois casos descritos, o que o leva a caracterizar tais sintomas como obsessivos. O sentido do ato obsessivo escapa ao sujeito que se encontra, sempre, obrigado a executá-lo.

O sentido dos sintomas é sempre desconhecido para o doente: “É necessário que esse sentido seja inconsciente para que o sintoma possa surgir”. Ou seja, não se formam sintomas a partir dos processos conscientes. É a condição inconsciente do sintoma. “A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa diferente que está interceptada” (MILLER, 2011, p. 21).

Somente o sintoma nos introduz no mais íntimo da vida sexual. Os sintomas servem à mesma intenção: a satisfação de desejos sexuais. Para Freud, o uso do sintoma é sempre o mesmo – a satisfação sexual ou servir de substituto à satisfação que falta na vida.

O caráter de formação de compromisso do sintoma revela a íntima conexão entre gozo e defesa. No sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dessa satisfação. Essa conexão leva Lacan a deduzir que há algo excessivo no gozo que obriga o sujeito sempre a defender-se do gozo que busca (MILLER, 2011).

O sintoma encontra sua significação (Sinn) e sua referência (Bedeutung) em seu a posteriori – Nachträglichkeit.

Um exemplo que nos ajuda a entender melhor essa temporalidade, considerando as duas indicações de Freud – o Sinn e a Bedeutung –, é o fragmento clínico que ele descreve como próton pseudos, a primeira mentira histérica (FREUD, 1895/1990c). O sintoma apresentado pela paciente Emma consistia na evitação de entrar sozinha nas lojas por temer os risos que sua roupa poderia suscitar. A agorafobia eclodiu a partir de uma primeira cena relatada pela jovem como motivo de seu adoecimento, na qual ela, então com doze anos, fugiu de uma loja ao perceber que dois vendedores riam de sua roupa. Um deles havia atraído Emma sexualmente. A análise com Freud promoveu o franqueamento das ideias recalcadas, possibilitando uma rearticulação dos enlaces associativos. A primeira cena evocou a lembrança de uma segunda cena, mais longínqua, datada de seus oito anos de idade, quando Emma havia sido molestada pelo dono de uma confeitaria. O riso dos vendedores atualizava o sorriso do proprietário da confeitaria que agarrou sua região genital através de seu vestido. Freud enfatiza a temporalidade Nachträglich estruturante das neuroses. Apenas mediante o estabelecimento de um elo entre a cena 1 e a cena 2, portanto só depois, o acontecimento primeiro adquire seu potencial traumático.

A angústia que leva Emma a erigir um sintoma fóbico não é experimentada na cena em que é assediada pelo dono da loja. A significação desse evento como traumático ocorre a posteriori. Apenas com a entrada na puberdade, no intervalo entre as duas cenas, a jovem se confronta com novas formas de satisfação a partir do despertar da sexualidade, se deparando com seu desejo, com o real da puberdade, o que acabou por ressignificar suas experiências anteriores.

Sem pretender fechar as inúmeras questões trazidas pela leitura das Conferências freudianas, podemos concluir que o estatuto do sintoma é problemático, ou melhor, há o que Lacan chamou de “o segredo do sintoma”, na medida em que se trata de um fenômeno articulado no significante e que tem um sentido. O valor metafórico de satisfação da pulsão encarna e eterniza sua exigência de satisfação (MILLER, 2008). É a vocação para mover-se, de ser errante, de mudar o objeto para permutá-lo por outro, para o deslocamento, para a substituição da libido que pode levá-la, inclusive, para a obra de arte. A libido pode, portanto, ser sublimada ou sintomatizada.

O trabalho de Elisa Alvarenga nos esclarece que, uma vez que a histérica não vai sem o Outro, na medida em que esse Outro muda no decorrer dos tempos, as manifestações da histeria também mudam. A neurose obsessiva feminina seria, portanto, uma resposta sintomática ou fantasmática, desencadeada por situações específicas relativas às experiências do sujeito, tal como Freud já havia postulado na Conferência XVII – resposta essa que encobre uma posição histérica.

Em 1978, Lacan manifestava sua incerteza quanto à existência da neurose histérica, mas afirmava a existência da neurose obsessiva, que teria sido descrita por Freud como um dialeto da histeria e seria, sim, a neurose contemporânea por excelência.

Diante do declínio da função paterna enquanto autoridade e de um Outro que se apresenta inconsistente, os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1 que nomeiam modos de gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço que tampa sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão; amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens para a neurose. (ALVARENGA, 2019, p. 26-27)

Enfim, são sujeitos que, devido à maior dificuldade de subjetivação da castração, apresentam, por sua vez, dificuldade também de dar sentido aos seus sintomas, o que nos leva a pensar a clínica a partir do uso que o sujeito faz dos sintomas, como cada sujeito amarra seu gozo ou, ainda, seria uma clínica dos modos de gozo.


 

Referências
ALVARENGA, E. A neurose obsessiva no feminino. Belo Horizonte: Relicário, 2019.
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O sentido do sintoma). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990a, p. 305-322. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise (O caminho da formação dos sintomas). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVI, 1990b, p. 419-439. (Trabalho original publicado em 1916-17).
FREUD, S. A proton pseudos – a primeira mentira histérica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990c, p. 474-478. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabalho original publicado em 1920).
MILLER, J.-A. Síntoma, saber, sentido y real. Los etcéteras del síntoma. Rev. Folhas, n. 5/6, set. 1997.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. In: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
MILLER, J.-A. Seminário sobre os caminhos da formação dos sintomas. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 60, 2011.
SOLANO-SUAREZ, E. Névrose obsessionnelle et féminitéLa Cause freudienne, n.24, p. 16-19, 1993.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 13 de junho de 2023.



Lembrar, repetir, perlaborar[1]

Lucia Maria de Lima Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com

Resumo: A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa. 

Palavras-chave: lembrar; repetir; pulsão; inconsciente; transferência.

REMEMBERING, REPEATING AND WORKING-THROUGH

Abstract: The author comments on Freud’s 1914 text, Remember, repeat, work through, in the light of the modifications presented by the dialogue with Lacan in 1964 as a support for a rereading based on the Seminar The four fundamental concepts of psychoanalysis. Some clinical fragments illustrate aspects of Lacan´s contribution to research.

Keywords: remembering; repeating; drive; unconscious; transfer.

Imagem: Renata Laguardia

Dentre os princípios gerais dos fundamentos da prática psicanalítica, o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” (FREUD, 1914/2022) inicia com uma lembrança, uma advertência, sobre as profundas transformações sofridas pela técnica psicanalítica desde seus primórdios, não apenas incidindo sobre os três verbos, mas no contexto mais amplo dos conceitos que constituem a experiência psicanalítica. As transformações alcançam os conceitos fundamentais em 1964, no Seminário 11 de Lacan, e prosseguem até seu último ensino. Elucidadas por Miller nos cursos psicanalíticos, dentre outros, encontra-se orientação precisa para diferenciar leitura em três consistências, Simbólico, Imaginário, Real, outra lógica antecipatória das surpreendentes mudanças operadas pelo mal-estar na civilização.

Contarei com algum desses textos, dentre outros, na expectativa de seguir uma vereda já traçada, mas indicativa da pesquisa contínua orientada por um método renovado através das mudanças clínicas, subjetivas, políticas, sociais, ao mesmo tempo em que extrai consequências da parceria com o estranho, sem sentido, do silêncio das pulsões.

O lembrar, desde o início da descoberta freudiana, incide nas repetições, o recalcado, os sintomas, as fantasias, sonhos, os atos falhos, vivências incompreensíveis. Incidência esta que implica tanto o inconsciente, como linguagem, quanto a dimensão silenciosa da pulsão, as chamadas moções pulsionais, os destinos da vida e morte traços nos corpos resultando atos estranhos em sua vasta extensão.

A ab-reação servira inicialmente para demonstrar a dissimetria entre o afeto e a representação. Freud encontra o desafio de traduzir e recompor um sofrimento histórico de fazer cessar a compulsão para repetir que, contrariamente ao sintoma que se deslocava rebelde sobre um corpo, mostrava sua consistência e coesão. Antes de 1914, anunciara um vasto conjunto de experiências clínicas, que alcançavam a sexualidade, a paranoia, a histeria, a fobia, a obsessão. O relativo fracasso da palavra para preencher as lacunas históricas ou traumáticas exigia “fazer as pazes com o recalcado que surge nos sintomas” (FREUD, 1914/2022, p.157)

Fazer as pazes com o recalcado implica o paciente em uma nova relação com a doença, outra posição subjetiva para além da queixa inicial, o que exige sua demanda e autorização. Por seu turno, a nova relação com a doença dependia do estabelecimento da neurose de transferência mais colaborativa, porque vem em substituição à neurose comum. As substituições conhecidas por Freud na esfera sintomática foram recurso tático no manejo da transferência, com a proposta da neurose de transferência substituindo a neurose comum, durante uma análise, além da expectativa de certa regulagem das “pulsões selvagens” pelo uso da transferência.

Quando lemos Miller (1997) no “Discurso do método psicanalítico”, de 1987, encontramos em outros termos a importância das entrevistas preliminares para a localização subjetiva e as coordenadas da verificação de mudança possível, posição suportada pelo ato ético do psicanalista.

Freud verificou que a simples nomeação das resistências por seu turno não alcançava superação imediaa, porque as moções pulsionais alimentavam as resistências.  O difícil trabalho conjunto de analista e do analisante, portanto, visaria localizar e superar a incidência da pulsão.

A clínica o ensinava e um dos grandes méritos freudianos foi não se deter diante dos obstáculos, prosseguir suas indagações e pesquisas através de vários enigmas e paradoxos. Descobre que o esquecimento podia ser o não reconhecimento de algo vivido, a denegação, marca neurótica em relação ao desejo, assinalando o mecanismo defensivo que indica e nega a responsabilidade do paciente. Que as lembranças encobridoras podem compensar a amnésia infantil, além de surgirem isoladas, sem qualquer conexão. Podem ocorrer conexões a posteriori de afetos precoces e sem sentido. O paciente se lembra de imagem nunca vista ou não se lembra do que ocorreu anteriormente. Os pensamentos podem não retornar como representações, mas como atuações, portanto, o paciente repete sem saber que repete e experimenta a lembrança como alheia ou permutada pelas defesas.

Um fragmento clínico ilustra bem um dos impasses apresentados pelo início do tratamento localizados por Freud nessa época e que se reencontra ainda segundo alguns depoimentos dos psicanalistas nas práticas clínicas atuais:

Uma senhora, de idade mais avançada, repetidas vezes abandonava a casa e o marido, em estados confusionais, fugindo para um lugar qualquer, sem ter consciência do motivo de tal “escapada”. Ela veio ao meu tratamento com uma transferência carinhosa bem formada, aumentando-a de forma espantosamente rápida nos primeiros dias, e, ao fim de uma semana, também “escapou” de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse impedi-la de incorrer nessa repetição. (FREUD, 1914/2022, p. 159)

É muito interessante nesse pequeno relato de 1914 Freud situar no significante que reitera, a “escapada” da paciente, considerando a possibilidade de contenção como manobra clínica. Faz lembrar a importante pergunta de Lacan, muitos anos depois: “Mas se o ato está na leitura do ato, isto quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido a posteriori que ela toma seu valor?” (LACAN, 1967-68, p. 26). O significado não pertence ao mesmo campo do significante. Essa importante questão surge tanto em Freud quanto em Lacan. O ato da leitura a posteriori marca a distância entre a compreensão e a significação vazia de sentido. É preciso considerar um gozo que se imiscui tanto na palavra falada quanto nas atuações e guarda sua deriva e o enigma para o Outro.

Os sintomas na forma de repetições apresentam-se muito variados como que por acaso, um tropeção, uma falha, mas que insistem, vão dos pequenos fisgamentos cotidianos até esquecimentos que levam à morte, como os que resultam em acidentes. O que está fora da palavra mostra sua insistência e requer um trabalho em outro circuito, labor que mereceu, da parte de Freud, o nome de perlaboração, indicando uma travessia, um percurso através de uma experiência, longamente investigada na “Psicopatologia da Vida cotidiana” (FREUD, 1901/1980), que se desdobra, no próprio Freud em 1937, nas construções em análise, que, por analogia à metáfora arqueológica, ressalta a importância do trabalho com os restos. O curioso é que essas repetições, embora reiteradas, não possuem registros, o inconsciente não toma nota, o sujeito traz a notícia de que ocorrem sempre mais uma vez, uma primeira vez.

Freud, a partir dos trabalhos com a pulsão, sobretudo com a libido, a satisfação, leva em conta dois tipos de repetição. Embora fora da linguagem, é possível traduzir num tempo posterior, ou seja, introduzir condições de legibilidade do ato falho que ele citou mais de uma vez, quando o presidente de uma sessão, ao abrir os trabalhos, levanta-se triunfante e diz: “a sessão está encerrada”. Mesmo aparentemente fora da linguagem, a frase está dentro do contexto significante, portanto pode ser traduzida, mas nem sempre compreendida.

A grande surpresa em 1964 foi a retomada por Lacan, no Seminário 11, do que formalizou nessa época como Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O diálogo com Freud se apoiou inicialmente no texto “Lembrar, repetir, perlaborar” para extrair elementos essenciais visando fundamentar outra modalidade da repetição, pesquisa seguidamente renovada conduzida até seu último ensino.

A pergunta de Lacan (1964/1988) situa o inassimilável na forma do trauma que comparece desvelado fora do sonho, não como portador do desejo, mas o trauma mostrando na face despida de semblantes, o impacto do real. Para além do traumatismo das situações de violência, de guerra, que se repetem e buscam o tratamento pelo sentido, há o trauma do real, que acompanha o sujeito para sempre na esfera do fora do sentido.

A repetição não é o retorno dos signos nem a simples reprodução, não é apenas a rememoração agida, não é um comportamento. A descoberta freudiana do inconsciente encontra nos fundamentos da clínica a experiência de uma memória falha, sempre aberta, repleta de contradições.  A pesquisa lacaniana localiza algo mais que uma memória, como programas que se desenvolvem sem que o sujeito saiba, um saber paradoxal que não é um conhecimento, mas localizado inicialmente apenas pelos seus efeitos, acontecimentos imprevistos, que indicam a relação não evidente entre o pensamento e seu limite, fora do conhecimento do sujeito, ou seja, o real inferido através de seus efeitos que foi verificado inicialmente por Lacan, como o que retorna sempre ao mesmo lugar.

Na repetição, portanto, comparecem dois níveis: o primeiro na rede de significantes, atualizada, insistentemente, nas diversas formas de automatismo da repetição, no automaton, das biografias, nas histórias, narrativas; e, no segundo, temos a tiquê, o acontecimento imprevisto, o inassimilável, o trauma, acontecimento que ressoa diretamente sobre um corpo. Esses dois níveis foram revisitados sob nova leitura a partir da clínica freudiana, precisamente no caso do “Homem dos lobos”, numa cena infantil comparando duas realidades sucessivas e antagônicas ocorridas na infância do paciente no terreno da percepção. A realidade de uma cena que pode ser posta em palavras, e a perplexidade, demarcada pela surpresa, por um instante sem palavras, enigma, alheio ao sujeito do inconsciente como linguagem.  Nessa clínica, as particularidades do estatuto desse inconsciente respondem por realidades surgidas através de fenômenos situados em lugares diversos, como rememoração e reminiscência, o que franqueou a elaboração e construção de hipóteses diagnósticas diversas através da minuciosa leitura a posteriori do caso.

Quando Lacan indaga insistentemente, por vários anos, sobre o estatuto do inconsciente freudiano, formaliza progressivamente algo além da atualização por substituição dos sonhos, atos falhos, chiste, fantasia, sintoma. Algo que desloca para o primeiro plano a Outra realidade, a outra cena. Essa outra cena, entretanto, foge ao enquadre fornecido pela fantasia, não é uma lacuna a ser preenchida, que retorna a um momento prefixado. É um fenômeno inédito, fugidio, alheio a qualquer interpretação.

O relato seguido do comentário de uma experiência pessoal de Lacan sobre a Outra realidade, a outra cena, é colhida em recorte marcante trazido por ele no campo do sonho, quando foi despertado do curto sono através do qual procurava repouso. Despertado, ele diz, “por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu não me despertasse” (LACAN, 1964/1988, p. 58), é a partir dessas batidas apressadas que ele iniciava a construção de um sonho, que manifestava conteúdo diverso das batidas, mas em torno delas, e que reconstitui todo um conjunto de representações:

sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação – de que eu sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked, em choque. (LACAN, 1964/1988, p. 51)

Com esse fenômeno, Lacan destaca o barulhinho, o pequeno ruído, e, através do instante experimentado sobre o choque do despertar, aponta a hiância, o estranho, que evidencia a oposição entre realidades diferentes. Algo muito diverso do que pode ocorrer na esfera dos sintomas e das fantasias ainda no circuito das repetições que surpreendem o sujeito.

A amplitude dos fenômenos na repetição entre realidades disjuntas foi evocada em Freud, no jogo do carretel no qual, ao lado da brincadeira da criança, surge o salto sobre o fosso que separa a borda do berço, salto que inscreve a falta no seio da representação simbólica diferenciadora da ausência – presença do Outro e localiza a angústia em outra dimensão. A repetição na brincadeira infantil, como os casos clínicos o demonstram, pode indicar uma lacuna a ser preenchida por uma palavra, mas o acontecimento imprevisto, sem sentido, na cena do sonho evocada por Lacan, tem ação de corte, surpresa, perplexidade, porque sem nome, indicativa do choque com o real.

As mudanças para os fundamentos da clínica decorrentes do “simples” exame do estatuto do inconsciente, a partir da outra modalidade de repetição, repercutem até a atualidade e ampliam a chance de trabalho com os difíceis casos clínicos atuais.

A importância do Seminário 11 de Lacan no diálogo com o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” reside em reordenar os fundamentos da clínica psicanalítica a partir de nova perspectiva, considerando o real como experiência do inassimilável, tarefa que prosseguirá até seu último ensino.

Assim, demarca a diferença entre dois tipos de repetição propostas por Freud e Lacan: a que concerne à biografia, à história, ao que pode ser lembrado e associado aos modos diversos de satisfação, desconhecidos, mas passíveis de leitura a posteriori. Já o encontro com o acaso, o imprevisto, ou imprevisível, situará novamente a sessão analítica entre repetição e surpresa, em que o lapso convoca seu uso, e não sua interpretação; o acontecimento imprevisto repete como um raio que atinge um corpo, fora da apreensão pelas palavras. Esse outro tipo de repetição, também de dupla forma, separa o gozo incluído na cadeia de linguagem, como defesa, e o gozo fora da lei significante.

A sutileza de Lacan impressiona porque chama atenção para a radicalidade da repetição em situações cotidianas, aparentemente simples, que foram assinaladas anteriormente por Freud como a dimensão lúdica, ou seja, a repetição demanda o novo, mas a modulação é apenas deslizamento da alienação do seu sentido. O verdadeiro segredo do lúdico “é a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” (LACAN, 1964/1988, p. 62).

Um comentário de Zenoni (2022) ilumina essa radicalidade, ao lembrar a frase “o sujeito é sempre feliz”: todo acidente, acaso, reencontro, tudo é bom para a satisfação da pulsão porque ela se repete. O bom para a pulsão se justifica porque o gozo não conhece seu contrário, tal como ocorre com o desejo. A renúncia ao gozo é também um gozo enquanto um desejo realizado, é o oposto de um desejo não realizado. A marca de gozo, sempre a mesma, restará como irredutível, ineliminável. O interessante é o convite ao trabalho que pode tocar um falasser, advindo dos paradoxos da repetição.

Esse convite ao trabalho tem no depoimento de Marcos André Vieira (2019) esclarecimento fundamental sobre os efeitos de uma análise. O psicanalista se expôs ao risco da violência em evento no qual compareceu, acompanhado de seus filhos, à favela da Maré, local onde desenvolveu longo trabalho clínico que resultou em várias publicações de pesquisa. Na entrada foi interrogado, em cena que se repetiu, por dois adolescentes fortemente armados. Da cena, resta a sensação de estranheza. Após intervenção de seu analista, encontra a evidência, na repetição, do desejo inconsciente, que expõe, por seu turno, um gozo ligado ao perigo que carregava, um real acompanhado do afeto: “Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar” (VIEIRA, 2019, p. 32). Trata-se, nesse caso, do inconsciente como efeito de leitura do que se fala.

O trabalho clínico a partir do remanejamento de conceitos fundamentais não corresponde a uma elucubração de saber, mas opera como instrumento para “renovar nossa prática no mundo” (MILLER, 2014, p. 21), considerando a possibilidade de lidar com as contingências que atingem incessantemente um falasser e a responsabilidade implicada na extimidade da prática psicanalítica.


 

Referências 
FREUD, S. Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VI, 1980. (Trabalho original publicado em 1901).
FREUD, S. Lembrar, repetir, perlaborar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1914).
LACAN, J.  O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. 1967-68. (Inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964)
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.
VIEIRA, M. A. Extimidades. Correio Express – Revista Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 82, 2019. Disponível em: www.ebp.org.br/correio_express. Acesso em: 27 jun. 2023.
ZENONI, A. La répétition, de Freud a Lacan. Quarto, n. 131, jun. 2022.
[1] Trabalho apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 30 de maio de 2023.



Uma introdução ao amor transferencia[1] 

Renata Mendonça
Psicanalista, doutoranda (UFMG), membro da Escola Brasileira de Psicanalise/AMP
renatalucindopsi21@gmail.com

Resumo: Este artigo apresenta uma releitura de “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) para abordar as indicações de Freud sobre o método psicanalítico, incluindo no debate também alguns autores de nossa época, como Lacan e Miller, mostrando o quanto o texto freudiano é contemporâneo e necessário à clínica psicanalítica. 

Palavras-chave: método psicanalítico; amor transferencial. 

AN INTRODUCTION TO TRANSFERENCE LOVE 

Abstract: The author rereads the Freudian text “Observations on transference love” (1915 [1914]) to present Freud’s indications on the psychoanalytic method, also including in the debate some authors of our time, such as Lacan and Miller, showing how much the text Freudian is contemporary and necessary to the psychoanalytic clinic.

Keywords: psychoanalytic method; transference love.

Imagem: Renata Laguardia

 

O problema do amor nos interessa na medida em que
vai nos permitir compreender o que se passa na transferência
– e, até certo ponto, por causa da transferência.
(LACAN, 1960-61/2010, p. 52)

Quero agradecer à diretoria do Instituto e às coordenadoras da atividade, Lúcia Mello e Luciana Silviano Brandão, pelo convite. É uma boa responsabilidade estar aqui para tentar transmitir algo dos dois textos indicados.

Para iniciarmos a conversa, faço uso da questão feita por Iannini e Tavares (2017, p. 7) na “Apresentação” ao livro Fundamentos da clínica psicanalítica: “O que separa a Psicanálise de outras práticas de cuidado, como o tratamento medicinal, as diversas psicoterapias ou as curas religiosas?”.

Uma pergunta difícil, principalmente nos dias de hoje, em que a certeza desinibida circula e faz laço na contemporaneidade, em que o uso da Psicanálise nos parece indiscriminado nas redes, em que a técnica parece muitas vezes substituir a ética. Uma pergunta que precisa ser reatualizada a cada vez, tanto pela necessidade ética de verificar as práticas psicanalíticas, quanto pelas mudanças que ocorrem na subjetividade de nossa época.

Com isso, podemos afirmar que a escolha da Diretoria em estudar os Fundamentos da clínica psicanalítica é essencial, na atualidade, diante das mudanças nos laços sociais, da constatação da diluição do Outro e de um mundo que precisa ser lido, ou lido de outra maneira, como nos mostra o título da XXVI Jornada da EBP Seção Minas, “Há algo de novo nas psicoses… ainda”, e o tema do XI ENAPOL, “Começar a se analisar”. Temas que são atualizados a partir do que há de novo em nossa época, da verificação da nossa clínica, para que as orientações e construções não se percam, mantendo assim, o rigor transmitido por Freud e Lacan.

Nessa mesma “Apresentação”, Iannini e Tavares (2017, p. 7) afirmam que os textos ali reunidos “constituem o essencial dos escritos freudianos sobre o método e a técnica, em sua constituição, em sua história e em seus desdobramentos”. O que, entretanto, nos interessa especificamente em “Observações sobre o amor transferencial” é que, no trabalho de Freud, e na Psicanálise, o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento. Um amor lido e provocado pela análise. Uma das belezas de Freud e de seu método.

Observações sobre o amor transferencial 

O texto foi escrito no final de 1914 e publicado em 1915, e Freud achava que esse era um dos artigos fundamentais para a transmissão da técnica psicanalítica. Penso que, provavelmente, mesmo com as notícias da eclosão da guerra, as questões que surgiram nos consultórios de seus “alunos” fizeram com que ele pensasse na publicação independente do momento histórico.

Escutamos em nossos consultórios, seja em análise, seja em supervisão, os jovens praticantes se perguntando diariamente o que fizeram para que o paciente tenha ido embora, faltado à sessão, sumido sem responder, etc. Muitas vezes pensam nessas questões como um erro técnico, algo que sempre retorna invariavelmente, como nos afirmou Jésus Santiago na última conversação do Instituto. Ele nos diz que houve uma época em que a Psicanálise tinha manuais, que diziam o que deveríamos fazer a cada circunstância ou situação, seja relativo a pagamento, às faltas ou sobre quando o analisante estaria de fato em análise ou se tornaria um analista (essa decisão se dava, por exemplo, pelo número de sessões feitas).

O retorno a Freud feito por Lacan e o retorno a Freud nas “Lições Introdutórias” é fundamental, pois ele afirma no início do texto em tela que, apesar dos incômodos dos jovens psicanalistas, “as únicas dificuldades realmente sérias são encontradas no manejo da transferência” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 165).

Esse manejo nos é caro e implica vários sentimentos dirigidos ao corpo do analista – amor, interesse, raiva. Em minha leitura, nesse texto, Freud (1915[1914]/2017, p. 166), de forma bem “brincalhona”, elege o amor como algo que surge em uma análise e nos relata as várias soluções sobre o amor que não cabem a um psicanalista:

1ª: a união dos dois protagonistas, analista e analisante, médico e paciente, e diz: “uma união duradoura e legítima”;

2ª: a separação do médico e do paciente, encerrando assim o tratamento, “desistindo do trabalho iniciado”;

3ª: a confirmação da relação entre os dois, “o início de relações amorosas ilegítimas e não destinadas à eternidade; mas essa se tornaria impossível devido à moral burguesa e a dignidade médica”.

A segunda saída incluída no texto: a separação do médico e do paciente, com o abandono do tratamento, é desaconselhada por Freud, mas nos ensina como o amor transferencial funciona. Ele afirma que, quando o tratamento com aquele psicanalista é interrompido, suspenso, as questões do paciente continuam, ele já sabia que o paciente seria perturbado pelo seu sofrimento e que o amor não o salvou de suas dificuldades. Ao se dirigir a outro analista, o amor será transferido para esse segundo, em um deslocamento.

Com isso, podemos afirmar:

1. É preciso enfrentar o amor transferencial! Melhor dizendo, nos utilizarmos dele.

2. O paciente não está, de fato, enamorado pela pessoa do psicanalista.

É importante que o psicanalista saiba que o amor não se dirige a ele, enquanto pessoa; estar avisado disso é imprescindível para o tratamento, pois a transferência e o método psicanalítico dão trabalho, e não é viável para o analista, desavisado, dar trabalho também.

Nesse momento do texto, Freud vai nos relatar as várias situações que caberiam a um livro de romance, a relação com a família, a ideia de tirar a paciente do tratamento, etc., sempre nos avisando pontualmente, como mencionei anteriormente, o que não cabe ao tratamento psicanalítico. Depois, ao retomar o caminho das possibilidades relativas ao amor transferencial, traz-nos um ponto essencial a ser lido em uma análise: “tudo aquilo que atrapalha a continuidade do tratamento pode ser uma expressão de resistência. No aparecimento daquela exigência tempestuosa de amor, a resistência indubitavelmente tem grande participação” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 169). Ele ainda completa, dizendo-nos que, provavelmente, é ao nos depararmos com um ponto importante para o tratamento ou algum ponto difícil para o analisante que o amor transferencial age como resistência. Podemos afirmar que vários sentimentos podem surgir nesse momento: o amor transferencial aparece com um xingamento ou com um convite para o seu aniversário. Algo a ser avaliado, lido, a cada vez.

Existe, nesse texto de Freud, uma informação de trabalho indispensável a ser escutada: quando o amor transferencial se torna a mola de trabalho e os sentimentos ao redor do psicanalista ficam presentes no tratamento, esses sentimentos, ou esse enamoramento, não podem ser expulsos. Esses sentimentos, ideias, sensações surgem e não podem ser simplesmente dissolvidos rapidamente, essa é uma das condições para o tratamento psicanalítico.

Ele afirma que quando pretendemos trabalhar com o método psicanalítico invocamos “um espirito do submundo para que venha à superfície” e que não é coerente ao tratamento “mandarmos ele de volta, sem ao menos lhe fazermos uma pergunta” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 171). Podemos concluir também que, tal qual o amor de transferência, que surge no corpo do outro psicanalista, o “espírito do submundo” não vai deixar de aparecer para aquele analisante, de um jeito ou de outro – tal qual ocorre, por exemplo, no filme O Lodo.[2]

Logo depois, Freud conta uma anedota do pastor e do corretor para nos dizer que se cairmos no jogo do analisante estaremos, nesse momento, simplesmente abrindo mão do tratamento. Que nada pode ser feito ao toparmos, cedermos, a esse amor. Isso não quer dizer que devemos “desviar a transferência amorosa, afugentá-la ou estraga-la na paciente; também nos abstermos ferrenhamente de toda correspondência desse amor” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 174).

É necessário darmos espaço para escutarmos o sentimento para além do sofrimento, para além do amor e fazermos uma interrogação sobre esse sentimento. No texto “A metáfora do amor: Fedro”, que está no capitulo “A mola do amor” do Seminário 8, Lacan (1960-61/2010, p. 54) avisa que “nada de melhor podemos fazer, nesse sentido, do que partir de uma interrogação sobre aquilo que o fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: o amor”. Assim, os sentimentos que surgem em uma análise precisam ser lidos, o analista não pode abstrair deles ou evitá-los, mas interrogá-los.

Lacan avisa que o texto freudiano fica às voltas com o amor, diferenciando-o do amor transferencial, em que há uma “suspensão no problema do amor, uma discórdia interna” (LACAN, 1960-61/2010, p. 55), pois é preciso tentar saber o que se passa numa análise, numa “ação analítica”. Mas, podemos assegurar a partir do texto freudiano, que há um objetivo nesse amor transferencial: é a “descoberta da escolha do objeto infantil e das fantasias que o enredam” (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 176). Ele se pergunta se há diferença entre o amor transferencial e outros amores e afirma que os dois têm uma certa autenticidade, mas só a transferência coloca o trabalho psicanalítico da escuta do inconsciente em movimento.

O enamoramento, por sua vez, é composto de “reedições de traços antigos e repete reações infantis”, já que

a natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo ou do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções, mas não pode mais livrar-se delas. (FREUD, 1915[1914]/2017, p. 248).

No amor transferencial existem algumas diferenças, já que este é provocado pela análise, potencializado pela resistência ao tratamento e menos preocupado com as consequências sociais. Ele cabe ao tratamento.

Para Lacan é necessário entender a transferência como uma articulação e implicação ao simbólico, ao imaginário e ao real, é uma condição de leitura da transferência e é “impossível comparar a transferência e o amor, e medir a parte, a dose, do que se deve atribuir a cada um, e reciprocamente, de ilusão ou de verdade” (LACAN, 1960-61/2010, p. 51).

No texto “Uma conversa sobre o amor”, Miller (2010) fala que Freud nos avisa que o vínculo social é um vínculo erótico ou amoroso, que a psicanálise, em Lacan, inventou um novo amor, e que Freud inventou um novo Outro, um tipo de Outro ao qual o analisante possa dirigir o seu amor. Um Outro que possa dar novas respostas ao amor, respostas diferentes e, talvez, mais adequadas àquelas que encontramos cotidianamente. Ler esse texto de Miller, que apresenta uma leitura do que Freud inventou – “Um novo Outro” –, nos faz retornar a “Observações sobre o amor transferencial”, pois todas as recomendações implicam esse novo Outro. Todas as recomendações são para o psicanalista e seu lugar no mundo. No texto, Freud tenta ensinar ao analista a suportar e a usar, a favor do tratamento, o amor dirigido a ele – o que o analisante dirige ao analista e o que é possível que o analista “devolva” ao analisante.

Para finalizar, Freud (1915[1914]/2017) faz observações importantes, equivalendo o psicanalista a um químico e dizendo que não é porque o químico trata de materiais explosivos que ele é proibido de manuseá-los, assim como o psicanalista também fica às voltas e trata de materiais explosivos. Afirma que não precisamos, e nem o mundo precisa, do furor sanandi, ou seja, tentar curar o doente a qualquer custo. Para ele, o material a ser manuseado precisa de tempo e uma certa coragem, ou aposta no inconsciente, e que, principalmente, a ética precisa estar próxima da técnica. Me parece, portanto, que, nesse texto, o que orienta Freud é a ética. Assim, dizer “sim” ao amor transferencial é dizer “sim” ao tratamento e ao inconsciente.

O texto do Miller (1997) “O método psicanalítico” faz laço com o texto de Freud ao dizer que esse método não tem padrões, mas tem princípios. Melhor dizendo, não é orientado pela técnica, mas sim pela ética, e que em “análise não há paciente à revelia de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 223). Há uma diferença entre o paciente que está na análise e aquele da psiquiatria que pode ser encaminhado por outros, tal qual a criança que é encaminhada pelos pais: em análise, o paciente precisa querer ser paciente. No texto “Observações ao amor transferencial” Freud (1915[1914]/2017, p. 168) nos avisa inclusive que a família decidir pelo paciente não tem nenhum efeito de tratamento, pode no máximo atrapalhar, e conclui: “O amor dos parentes não consegue curar uma neurose”.

Em relação ao texto de Miller e ao de Freud poderíamos também afirmar que precisamos localizar numa análise sempre o dito e o dizer, o enunciado e a enunciação, e que a declaração de um amor de transferência precisa ser lida desta forma: isso foi dito, mas o que isso quer dizer, a que se refere? Isso para que, de um modo ético, possamos encontrar ou formular uma resposta que tenha lugar para o tratamento ou para o inconsciente, que dê lugar para a “boca maldita”, pois, no amor transferencial, o analisante demanda uma resposta que o inclua na repetição infantil, no mesmo de sempre, colocando em ordem o sintoma que funcionava muito bem até aquele momento.

Isso que Miller traz sobre o dito e o dizer se mostra em seus exemplos pelo enamoramento dirigido a uma análise, mesmo que não seja o amor transferencial estabelecido por Freud – uma paixão –, mas, em todos os aspectos, a palavra precisa ser escutada, dando lugar para o que vem junto dela, acoplado a ela. Miller dá o exemplo de uma mulher que chega aos prantos no seu consultório: ela sabia que ele iria viajar, e ele diz que talvez seja por isso que ela chega dessa forma, dizendo que os filhos sairiam de viagem sem ela. Ele sorri, dizendo que esperava que seu sorriso tenha sido verdadeiro, pois não cabe ao psicanalista “participar emocionalmente das situações afetivas dos pacientes demonstrando sempre que compreende ou sente ternura” (MILLER, 1997, p. 244), e que é preciso avaliar cada caso, tal qual Freud. Isso não significa não acolher, mas fazer um cálculo que possa autorizar o que pode vir a posteriori, que é no dizer, na enunciação.

O que fazer com o amor que surge em análise? 

Ao ler o texto de Freud, lembrei-me de um caso que Oscar Ventura (2020) trouxe na XXIV Jornada da EBP Seção Minas, em uma conferência com o nome “O Amor. Sempre Outro”, que tratava do amor, do amor repetição, do amor em Freud e do amor em Lacan como elaboração de saber, ligado ao Outro. Mas trago aqui o texto intitulado “A mulher pródiga”, que apresenta um caso muito bem trabalhado por Ventura (2003/2005) e que está em La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jacques-Alain Miller em Barcelona.

Nesse texto, Ventura traz o caso de uma psicose ordinária estável por mais ou menos 37 anos, que ele chama, tal qual Miller (1997) em Lacan Elucidado, de pré psicose. Ela estava estabilizada em um casamento em que o marido, por causa dos trabalhos, fazia viagens. Quando esse casal decide ter um pouso e pensar em filhos, surge a instabilidade. Em seguida, surge uma posição delirante em relação a um professor de Yoga e a separação do marido. Nesse momento, ela estava em uma primeira análise. Ao se separar, ela decide vender todas as suas coisas e voltar para a sua cidade, com uma mala e o endereço de um novo analista. Fica errante na cidade por um tempo, entre hotéis, lugares e com seus perseguidores, pois havia um delírio de perseguição ao seu redor.

Na análise com Oscar Ventura, ela tira os objetos da mala, os deposita no tapete e começa a falar, e depois que se encerra a sessão, os recolhe novamente. Em um certo momento, passa a deixar seu dinheiro nos lugares, a pagar muito mais que o necessário, a não aceitar troco e, na análise, quer pagar em dobro, o valor do ano todo, com o que o analista não consente. Até o momento em que ela decide entregar a ele os objetos da mala: o analista não aceita, mas consente em guarda-los. Nesse momento, esse lugar vira uma âncora na cidade e o “aumento progressivo do amor começa a ser notado” (VENTURA, 2003/2005, p. 201).

Com as joias guardadas, algo se estabiliza e o mundo é dividido em dois: um, dos perseguidores, e o outro, de pessoas que assumem “o status de deuses, pelos quais vale a pena existir” (VENTURA, 2003/2005, p. 202). Ela começa, assim, a traduzir textos de psicanálise, fazendo o que chama de suas próprias versões; o analista passa a ser o depositário dessas versões e a análise ocupa um lugar fundamental para o seu tratamento e estabilização, um lugar para sua história, e os fenômenos persecutórios ficam mais distantes dela, menos invasivos. Nesse momento, o “analista agora encarna o fiador do psi, é um deus protetor e às vezes basta um simples chamado para organizar os ânimos” (VENTURA, 2003/2005, p. 203).

Em relação ao aumento do amor transferencial, Ventura relata que

a insistência em aumentar a periodicidade das sessões aparece como um obstáculo, ela aspira ser a única paciente, ela se diz analista! […]. Esse sujeito ama o analista e os deuses começam a exigir sacrifícios de amor, o corpo começa a tremer e não há país para onde fuja a menos que outro seja inventado. (VENTURA, 2003/2005, p. 202)

O manejo da transferência no caso da “mulher pródiga” é um instrumento evidentemente fundamental e algo a ser verificado. Até que ponto é possível regular essa erupção de gozo que recaí sobre o corpo do analista, já que a transferência se torna explicitamente erotomaníaca? Ventura descreve todas as artimanhas feitas por essa mulher para ter o objeto amado, tal qual descrito por Freud em “Observações sobre o amor transferencial”:  ela compra roupas, veste-se de modo sedutor, liga para o analista em horários desnecessários para perguntar se pode ser atendida, se pode ir para casa dele, convida-o para jantar e descobre o endereço de sua casa. Manda-lhe presentes pelo correio, que são imediatamente devolvidos.

Acontece aí o choro e o ranger de dentes, o bater de portas, os xingamentos, ela se enfurece… mas volta. Essa, talvez, nesse caso, seja a orientação dada pela analisante. Ela volta. Assim, “são esses momentos em que ela não é o manejo privilegiado da transferência, não se trata do não da rejeição ou do não de uma negação pura e arbitrária, mas um não de um manejo, um não que cumpre” (VENTURA, 2003/2005, p. 203). Ele age e esse manejo da transferência começa a produzir outros efeitos.

Vi nesse caso de Oscar Ventura uma ótima oportunidade de exemplificar as questões sobre o amor transferencial e seu manejo. Após essa intensa posição da analisante, ela passa a acreditar que ele a roubou, e logo que se esvazia esse excesso ela se sente em falta e passa a verificar os objetos, se eles continuam ali guardados. Depois de algum tempo, pede de volta os objetos para depositá-los em um banco, vai espaçando a periodicidade das sessões e o analista vai consentido. Em uma sessão, chega bem, arrumada discretamente, com uma caixa na mão e diz, de forma imperativa, que aquele presente ele precisava aceitar. Ele pede para ver: em uma caixa estava uma escultura do analista, feita por ela. Ela conta como foi feita, o material, etc. E ele o aceita: a escultura é um trabalho que inclui o analista e a história da analisante e seu pai.

Podemos concluir que o amor transferencial, a transferência, da forma que ela vier, está ali em função do método psicanalítico, é preciso escutar como algo a favor do tratamento, a favor do sujeito, pois, como afirmou Miller (1997, p.235), a “primeira incidência clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito”.


 

Referências
FREUD, S. (1915 [1914]). Observações sobre o amor transferencial. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 165-182.
LACAN, J. (1960-61). A mola do amor. In: O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 31-210.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 219-284.
MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Opção Lacaniana On-Line, n. 2, jul. 2010. Disponível em: opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2. Acesso em: 22 mai. 2023.
VENTURA, O. Uma mulher pródiga. In: La pareja y el amor: Conversações Clínicas com Jaques-Alain Miller em Barcelona. Barcelona: Ed. Paidós, 2003/2005
VENTURA, O. O Amor. Sempre Outro. In: XXIV Jornada da EBP-MG – Mutações do laço social: o novo nas parcerias. 2020. Disponível em:jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/ Acesso em: 22 mai. 2023.
[1] Texto apresentado nas 59ª Lições Introdutórias à Psicanálise do IPSM-MG, em 25 de abril de 2023.
[2] Filme de Helvécio Ratton, da produtora Quimera, lançado em 13 de abril de 2023.



Inventar a própria maneira de ler[1] 

Márcia Mezêncio
A.P. da Escola Brasileira de Psicanáise/AMP
Mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG)
marciasouzamezencio@gmail.com

Resumo: Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual. 

Palavras-chave: início do tratamento; técnica da psicanálise; leitura do inconsciente; desejo de saber. 

INVENTING YOUR OWN WAY OF READING 

Abstract: This article presents a reading, contextualization and commentary on Freud’s article entitled “On the beginning of treatment”, published in 1913 in the series that became known as Technical Writings, and unfolds some reflections on the transmission of knowledge in psychoanalysis, referring to the current moment. 

Keywords: beginning of treatment; psychoanalysis tecnique; reading of the unconscious; desire to know.

Imagem: Renata Laguardia

Agradeço a oportunidade e o convite para estar aqui e para trabalhar com vocês um texto apaixonante, como são para mim os escritos de Freud. Sou de uma geração que se iniciou na psicanálise pela obra de Freud e se fascinou com as aberturas que a leitura feita por Lacan tornou possíveis. O modo de ler de Lacan tornou-a um texto vivo que, como tal, permite que inventemos nossa própria maneira de ler (MILLER, 1997, p. 249). Se digo paixão e fascínio, refiro-me à paixão da ignorância, a paixão colocada em jogo na experiência analítica, implicada na transferência. É pela via do amor e da suposição de saber que tudo começa, e aqui já me insiro no próprio tema desta lição.

As Lições Introdutórias são, para mim, um espaço privilegiado, eu já disse isso em outras ocasiões, por proporcionar retornos sobre textos fundamentais, bem como sobre a nossa própria trajetória, não sem lançar luz sobre o atual e o contemporâneo, abrindo portas a uma nova leitura. Retomamos hoje esses escritos de Freud na perspectiva não mais de um retorno a Freud, já empreendido por Lacan – e quanto a isso é importante assinalar ainda uma vez que a série dos seminários de Lacan, em seu retorno a Freud, se inicia justamente com os “escritos técnicos” –, mas do desafio contemporâneo de fazer valer a existência do inconsciente em nosso tempo e de que as análises comecem.

Para isso, é preciso que uma pergunta se coloque. Mais que uma questão de método, também é condição de existência do inconsciente e de sobrevivência da psicanálise. Nunca é demais reafirmar esse princípio, levando em consideração que é característica desse tempo em que praticamos a psicanálise que existam somente respostas.

Dominique Laurent, discutindo as implicações do ensino com o saber e a Escola, salienta a importância de ensinar os textos fundadores, para manter a transmissão do saber explícito da psicanálise – e aqui considero a função do Instituto em relação a esse ensino. Ela prossegue reafirmando a necessidade de “perseguir a transmissão do saber implícito, aquele saber sob transferência, assim como a dimensão política de sua ação” (LAURENT, 2018, p. 4) No entanto, ela conclui que “o ensino faz obstáculo ao saber, no sentido de Lacan” (LAURENT, 2018, p.5). E defende um saber que não se reduz a uma aprendizagem e que faça oposição à demanda daqueles que se endereçam à Escola, ou ao Instituto, para obter um saber-fazer no mau sentido, ocultando, assim, seu ponto de não saber. Cabe a nós operarmos com o furo no saber e acolher a transferência de trabalho que o desejo de saber coloca em funcionamento.

Com essa orientação, organizei minha apresentação em dois eixos: o comentário do artigo e algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise.

Uma questão de preliminares: no início o mal-entendido 

O texto de Freud que provoca nossa conversa – seja por seu título, “Sobre o início do tratamento”, seja por sua proposta (cito Freud (1913/2017, p. 121): “tentarei reunir algumas dessas regras para o início do tratamento, no intuito de serem utilizadas pelo analista praticante”), ou por seu contexto, a saber, a expansão do movimento psicanalítico e as primeiras dissidências – possibilita inúmeras entradas.

Uma entrada possível ocorreu-me ao considerar o nosso contexto, a série na qual essa nossa conversa acontece: Lições Introdutórias, que também reverbera com a ideia de um início, ou iniciação, introdução, e que haveria algo de mal-entendido contido na própria ideia de transmitir, através desses escritos ou dessas lições, a técnica da psicanálise. Uma primeira recomendação ou advertência se coloca. É mesmo com ela que Freud abre seu artigo: há limitações para transmitir as regras do jogo, seja o do xadrez, seja o da análise. É preciso a experiência, o jogo jogado pelos grandes mestres, no caso do xadrez, ou a de cada um que se coloque o desafio da prática da psicanálise, em nosso campo.

Por outro lado, estamos no nosso elemento, nada como o mal-entendido para começar. Veremos como Miller (1997, p. 246) ressalta a função primordial do mal-entendido e da paixão da ignorância como a paixão analítica: o princípio é não compreender. É por essa entrada, a do não-saber, que se abre a via das questões, das perguntas, princípio de método fundamental em psicanálise. É o que Lacan (1962-63/2004) aponta como necessário no plano da experiência: colocar todas as perguntas. Isso não quer dizer que tudo possa ser dito. É necessário considerar que a ética que orienta a análise, sendo a ética do bem-dizer, remete ao saber inconsciente, em sua radical singularidade a cada sujeito. Freud igualmente valoriza o princípio de começar cada caso como se fosse o primeiro, colocando em suspenso todo saber prévio adquirido através de outros casos.

Dito isso, começo pela nota de edição.

Vale lembrar que a palavra central do título (Einleitung) tem o sentido de início, mas que o verbo einleiten tem também o sentido de “colocar em movimento numa determinada direção”, o que é precisamente uma das principais questões de Freud no texto. (IANNINI; TAVARES, 2017, p. 148)

Ainda na nota de edição, lemos que esse texto funciona como báscula no conjunto dos chamados “escritos técnicos” de Freud, ao mesmo tempo fechando uma série e abrindo outra – o que se observa na Edição Standard, na qual ao título se segue um subtítulo, reproduzido da edição original: “Novas recomendações sobre técnica da Psicanálise I”, sendo o artigo que o antecede justamente chamado “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, lido aqui na lição anterior; na oportunidade, Cristiana Pittella abordou a nuance na diferença de tradução do título entre as edições, referente ao plural no destinatário, bem como a justificativa do endereçamento das recomendações ao “médico” e não, ainda, ao psicanalista, como se consolidará no prosseguimento da obra de Freud.

Seguindo na leitura da nota, somos informados também de que esse artigo permanece como a principal referência acerca do início do tratamento, encontrando enorme repercussão no movimento psicanalítico. Tal asserção parece confirmada no eixo dessas Lições Introdutórias – “Sobre o início da experiência analítica” – e no tema do ENAPOL que elas antecipam – “Começar a se analisar”. É destacado ainda o interesse de Lacan no que se refere às entrevistas preliminares, apresentadas longamente no texto em questão, do qual constituem, a meu ver, o tema central.

O contexto em que Freud escreveu esses artigos é o das primeiras dissidências e, então, ele via em risco os princípios sobre os quais havia criado sua técnica. Ao longo dessa série de artigos, bem como ao longo de toda a sua obra, ele deixa claro que não é a técnica que define a psicanálise, podendo esta ser variável segundo a “preferência pessoal” do analista, desde que os princípios analíticos — que ele chama as “pedras angulares” da psicanálise — sejam tomados em consideração. Esses fundamentos, ou princípios, dos quais Freud fará sempre uma defesa intransigente, são a teoria do inconsciente, do conflito psíquico e do recalque, o reconhecimento da importância etiológica da sexualidade e do complexo de Édipo. Ênfase particular será dada ao reconhecimento da causalidade psíquica e sobre o sentido dos sintomas e à sua característica de satisfação substitutiva. Especificamente no artigo em questão hoje, Freud (1913/2017) é assertivo: Se o tratamento opera pelo manejo da transferência, com o objetivo de vencimento das resistências, está em causa um tratamento analítico.

É o que está em jogo nesse esforço de detalhar a técnica: esclarecer seus fundamentos éticos e clínicos, sem os quais ela não existe ou se justifica. Foi nesse mesmo contexto da defesa da existência da psicanálise que se deu a criação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), em 1911. Outro marco no esforço de esclarecer esse ponto foi a publicação, em 1914, da “História do movimento psicanalítico”, texto que sucede os escritos técnicos, no qual Freud valoriza nas primeiras dissensões (Adler e Jung) o abandono dos pilares, dos conceitos necessários à fundamentação de qualquer técnica da psicanálise. Trabalhei essas questões detalhadamente em minha Dissertação de Mestrado, na qual insisto que Freud estava longe de ser ortodoxo e que desenvolveu uma investigação exaustiva no sentido de adequar a técnica analítica às mudanças da clínica que se apresentavam, já vislumbrando a singularidade, isto é, não somente a técnica se deveria à preferência pessoal do analista, como deveria responder às necessidades de cada paciente, estendendo-se a quadros clínicos diversos dos casos de neurose para os quais a técnica havia sido inicialmente construída.

Vocês puderam ler, ao longo deste artigo, a preocupação de Freud com a sobrevivência da psicanálise e um esforço de diálogo com os bem-intencionados (sempre é prudente desconfiar) inovadores: a existência e o modo de funcionar do inconsciente exigem que a psicanálise responda à altura. Em nosso tempo, a psicanálise também corre o risco de deixar de existir e esse é um motivo suficiente para nos debruçarmos sobre as questões fundamentais que esses textos nos apresentam e que continuam válidas, mesmo que devam ser atualizadas ao nosso contexto. De toda forma, não farei uma leitura linha a linha, vou partir da premissa de que vocês leram o texto e vou fazer alguns recortes pontuais para conversarmos e remetermos às questões de atualidade na clínica.

Retomo a nota de edição, que nos informa que o texto foi publicado originalmente em duas partes e que teria três seções: Sobre o início do tratamento (primeira parte), A questão das primeiras comunicações e A dinâmica da cura (segunda parte). A edição que conhecemos não está dividida em partes ou seções. Mas essa informação pode ser útil para nossa leitura.

A tentativa de considerar que a primeira seção parece abordar principalmente questões práticas, estabelecendo as condições para o início do tratamento, e que as duas seguintes tratariam de questões clínicas, privilegiando as intervenções do psicanalista na direção do tratamento, mostra que é impossível obter essa divisão, mesmo para fins “didáticos”. Pois o que vemos se desdobrarem em questões aparentemente objetivas é sua implicação ética no que delas se espera. Assim, as entrevistas preliminares, ou tratamento de ensaio, as determinações referentes a tempo e dinheiro, o uso do divã, referido como o “cerimonial da situação na qual é conduzido o tratamento”, se mostram condições decisivas para o engajamento do paciente em um trabalho com o inconsciente, que ultrapassam suas justificativas objetivas, que as colocariam no nível de condições de um contrato. Vejamos.

As entrevistas preliminares, cuja função é a seleção e o diagnóstico dos pacientes, são justificadas pelas razões objetivas de protegê-los de dispêndio inútil e proteger a psicanálise do risco de um fracasso se o caso não for indicado à intervenção analítica. No entanto, devem ser conduzidas nas mesmas premissas do tratamento propriamente dito, sendo decisivas para sua “direção”, lhe sendo prévias, mas fazendo parte dele, e sendo sua função a de cuidar da instalação e consolidação da transferência.

As questões de tempo e dinheiro não se reduzem à garantia da ocupação, remuneração e sobrevivência do profissional, mas estão implicadas na economia psíquica do paciente.

Relativa ao tempo, a questão da duração do tratamento envolve, segundo Freud, o desconhecimento da etiologia das neuroses e o esquecimento da proporcionalidade necessária entre tempo, trabalho e sucesso, o que gera expectativas exageradas em relação à análise. O que impediria o encurtamento do tempo de tratamento é “a atemporalidade dos processos inconscientes e o vagar com que as transformações psíquicas profundas ocorrem” (FREUD, 1913/2017, p. 130). Esse processo segue seu próprio caminho, e o analista não tem o poder de impor direção ou sequência.

Não irei abordar aqui, por razões de tempo e escolha, a discussão sobre a duração do tratamento nos dias atuais e outras variáveis no manejo do tempo, sejam aquelas introduzidas por Lacan em relação ao tempo lógico, sejam as incidências das mudanças tecnológicas sobre a vivência contemporânea do tempo, que se torna acelerado ou mesmo instantâneo, como a experiência dos atendimentos on-line têm demonstrado. No que se refere ao tempo de entrada em análise, indico a leitura do argumento de Jorge Assef, no site do ENAPOL.

Quanto ao dinheiro, Freud lembra de que há poderosos fatores sexuais envolvidos, sendo um assunto tratado na vida cotidiana com dubiedade, pudicidade e hipocrisia. O analista, segundo ele, deve exercer vigorosa oposição sobre tal modo de tratamento e enfrentar abertamente essa questão, levando em consideração a desvalorização do tratamento advinda de se cobrar pouco pela consulta, os inconvenientes do tratamento gratuito, o lucro secundário da doença, entre outros fatores que impactam o sucesso do tratamento. Sobre o aparente investimento excessivo no tratamento, ele é taxativo: “não há nada mais caro na vida do que a doença e – a estupidez” (FREUD, 1913/2017, p. 134). Considerações que seguem válidas e devem ser levadas em conta nos formatos e lugares onde se pratica e aplica a psicanálise atualmente, bem como nas novas formas de circulação do dinheiro, que também se tornam cada vez mais virtuais.

Sobre o uso do divã, apresentado como resquício do tratamento hipnótico, seria motivado por uma questão pessoal, a saber: o incômodo de ser observado por horas por outra pessoa revela-se, na verdade, muito mais uma justificativa de ordem clínica – evitar que, através de expressões faciais que a postura de entregar-se à atenção equiflutuante poderia produzir no analista, se forneça material ao paciente para que interprete e se influencie em suas comunicações, impondo-lhe, ainda, a privação do objeto olhar, o que remete à questão da opacidade do analista.

Em entrevista recentemente publicada em português, Miller (2022) reflete sobre as perspectivas atuais e futuras do divã. Em uma frase que ressoa a Freud, ele diz que não é o divã (onde Freud colocava a técnica) que define a psicanálise e aponta como, em seu manejo, é crucial levar em conta as singularidades de cada paciente, e que o divã pode ser um objeto importante e emblemático das relações que se estabelecem entre paciente e analista, incidindo sobre as fantasias do primeiro. Reflexões semelhantes estão presentes nesse artigo de Freud, que apresenta exemplos de situações e resistências dos pacientes à submissão ao divã.

A entrevista de Miller avança questões sobre o momento atual, atribuindo ao divã uma incidência sobre a banalização da presença virtual. A permanência do divã se justifica largamente por encarnar a impossibilidade da relação sexual e o paradoxo de efetivar a presença do corpo e ao mesmo tempo seu despojamento: “Deitar-se no divã é tornar-se puro falante, fazendo ao mesmo tempo a experiência de si como corpo parasitado pela fala, pobre corpo doente da doença dos falantes” (MILLER, 2022, p. 44). O real da presença dos corpos faz-se assim necessário para que o paradoxo permaneça e o objeto encarnado pelo psicanalista permita que a experiência como sujeito se dê: “como falante, sem saber o que quer, nem o que diz, nem mesmo a quem” (MILLER, 2022, p. 43).

No começo, a associação livre

Definidas essas questões práticas, mas nem tanto, por onde começar? Em que ponto e com que material? Verei-o amanhã’” (KARDINER, 1979, s/p).

Freud diz que é indiferente, o paciente escolhe o tema que gostaria de trabalhar. Mas, só que não, como se diz hoje em dia, pois aqui se impõe a regra fundamental: o paciente deve comunicar aquilo que lhe ocorrer, sem omitir, com o compromisso de sinceridade plena. Sem escolher, no fim das contas: eis aí o mal-entendido da regra da associação livre. Por isso, desencoraja-se a preparação prévia do material da sessão, que estaria a serviço da resistência e não facultaria o engajamento do sujeito na dinâmica do tratamento, impedindo o acesso ao inconsciente.

Exemplo disso encontramos em uma intervenção irônica de Freud, relatada por um de seus pacientes, candidato a analista, destacada no site do ENAPOL, na seção “Citações”, como um chamado aos praticantes: começar a se analisar e esclarecer a própria relação com o inconsciente: “Freud me parou aqui e disse: ‘Você preparou este relato?’. ‘Não’, respondi, ‘mas porque você me pergunta?’. ‘Porque foi uma apresentação perfeita. Quero dizer que foi, como dizemos em alemão, druckfertig (“pronto para imprimir”). Verei-o amanhã’”. (KARDINER, 1979, s/p)

Outro exemplo corriqueiro, com o qual nos deparamos frequentemente em nossa clínica. O paciente começa a sessão dizendo: “Tive vontade de não vir, pois não pensei em nada durante a semana para falar hoje”. Ao que respondo: “Que bom que veio, assim podemos conversar sem preparação prévia”. Ele começa a falar do dia no trabalho e várias questões surgem. Quando corto a sessão, ao sair ele diz: “Achei que não sairia nada, mas acabou que deu para ‘conversar’ muito hoje”.

Outra paciente começa a sessão dizendo que iria ler o que escreveu, para não se perder e não esquecer o que gostaria de trabalhar naquele dia. Inicia a leitura e, já nas primeiras linhas, o relato escrito é deixado de lado, provocado por uma pergunta da analista, que desvia o curso para a associação, livre, nesse caso, do roteiro preestabelecido.

Outras recomendações são detalhadas, como discrição sobre o tratamento (para evitar resistências externas e escoamento dos temas a serem trazidos para a sessão). Do lado do analista: encaminhamento das intercorrências a outro profissional, atenção aos sinais de resistência, como o silêncio (manifestação da transferência), aos primeiros sintomas ou atos casuais e à inclusão no tratamento do material dito nas franjas da sessão, fora do divã. E, principalmente, o tema da transferência deve ficar intocado até que ela tenha se transformado em resistência.

Essas recomendações enquadram o desenrolar das entrevistas preliminares, dirigindo-as ao ponto em que, instalada a transferência produtiva, sejam feitas as “primeiras comunicações” e se coloque em funcionamento a dinâmica da cura e se mobilize o jogo de forças capaz de levantar o recalque e vencer a resistência. Miller (1994) traduz essas recomendações: uma análise começa pela espera do analista, até ser investido pela transferência e situar-se em uma posição de domínio para interpretar. Lacan (1958/1998) aponta que Freud reconheceu que aí estava o princípio de seu poder, mas que se arranjava bem com isso, renunciando a fazer uso dele.

Para se começar, então, é preciso a transferência. Miller assevera que esse princípio é um consenso entre as várias escolas de psicanálise e de que “Até Lacan havia uma doutrina bastante precisa em relação a isto. Primeiro esperar a emergência da transferência para depois interpretar” (MILLER, 1994, p. 6).

Miller aponta também a demanda como uma forma de entrada em análise, considerando que se há demanda há transferência. Ele indica que Lacan faz uma torção ao dizer que a transferência é a interpretação, na medida em que dá uma significação de inconsciente a esse significante: “Sem dúvida, para ir até um analista, é preciso já ter interpretado seu próprio sintoma, atribuindo a ele uma significação inconsciente, ou seja: Não sei ler isto sozinho” (MILLER, 1994, p. 11).

Na prática das entrevistas preliminares está em jogo o ato analítico e a ética da psicanálise. Técnica em psicanálise é, lembremos, questão de ética, pois “não há clínica sem ética” e “há ética onde há escolha” (MILLER, 1996, p. 113). Nessas “entrevistas ditas preliminares, duas coisas são essenciais – assegurar-se que se está lidando com sintomas do tipo analítico e com um sujeito capaz de produzir leituras do inconsciente”. (MILLER, 1994, p. 5). É dessa forma que se selecionam, nas palavras de Miller (1996), casos éticos, analisáveis.

As entrevistas preliminares servem, então, para a avaliação clínica ou diagnóstico, essencial para a direção do tratamento. Isso também segue sendo válido, mas não sem mal-entendidos. Miller já relatava o desconforto dos contemporâneos, e mesmo de alguns alunos de Lacan, com sua prática do diagnóstico e da apresentação de pacientes, que consideravam segregativa. Atualmente, ainda que a prática do diagnóstico se ocupe mais de esclarecer a relação do sujeito com o Outro e o real, é igualmente acusada de segregativa pelos militantes da despatologização generalizada.

Miller (1994, p. 4) detalha que “Um critério de analisabilidade é a capacidade de associação livre. O sujeito é capaz de estabelecer uma nova relação com seu próprio dizer? Para ser analisável, é preciso poder dizer sem assumir por conta própria o que se diz”. Diz ainda que “É preciso assegurar-se de uma segunda coisa – que o candidato à psicanálise é capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e mesmo de o ler de diversas maneiras. É isto que chamamos de ‘entregar-se à associação-livre’” (MILLER, 1994, p. 4).

A associação livre, nos termos de Freud, é uma expressão pela qual tentamos cernir o modo de dizer próprio ao sujeito em análise. É muito difícil cernir o que é este modo de dizer, o modo de dizer analisante. De certo modo, não tomo por minha conta o que digo como analisante – posso mencionar raivas, desejos, temores, pensamentos em que não me reconheço, os quais eu rejeito. Não tenho nada a ver com isto, sou inocente em relação a isto, não sou eu. (MILLER, 1994, p. 4)

Também servem à localização subjetiva, que equivale à subjetivação, responsabilidade pelo dizer, pelo gozo e pelo desejo. Onde está o sujeito? Quem fala? Para essa localização, “o essencial é o que o sujeito diz”. Ao valorizar a fala, um primeiro movimento é acionado, trata-se de separar-se da dimensão do fato, dos acontecimentos, para entrar na questão do dito; o que prepara um segundo passo: a partir dos ditos localizar o dizer do sujeito, a enunciação, quer dizer, questionar a posição de quem fala (modalização do dito). “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). O sujeito é a caixa vazia onde se inscrevem as modalizações do dito, lugar da sua ignorância.

Por isso, as entrevistas preliminares e a função essencial do mal-entendido que a regra da associação livre possibilita servem para que o sujeito minta e assim perceba alguma antinomia na lógica de seus ditos. Tal antinomia entre o dito e o dizer, se traduziria como: “Eu (o paciente) não sei o que digo” (MILLER, 1997, p. 247). O lugar da enunciação é então o próprio lugar do inconsciente.

O bem-dizer, para Lacan, é a chave da ética da psicanálise, a ética do dito e do dizer, antes de um acordo ideal entre o dito e o dizer, trata-se de encontrar uma maneira de dizer que leve em conta a diferença entre o dito e o dizer, e que também leve em conta a possibilidade de modificar a posição subjetiva a respeito do dito. (MILLER, 1997, p. 249)

Nos dias atuais, na fórmula “eu sou o que digo que sou”, há uma identidade entre o dito e o ser, ou não há um querer dizer por trás do dito. Não há lugar para o mal-entendido ou para um questionamento ou interpretação. Dessa forma, o discurso analítico não encontra seu lugar de incidência: introduzir o sujeito no inconsciente através da localização e retificação subjetiva. Já em 2002, nas “Intuições milanesas”, Miller (2011) alertava que o ato do psicanalista está sob ameaça. Por esse motivo, a pergunta sobre como começam as análises é decisiva para o futuro do ato analítico.

Silvia Salman (2022, p. 6), repercutindo essa reflexão de Miller, mais atual do que nunca, sobre a degradação da posição do analista, avalia que “o sentimento de desvalorização da psicanálise surge do fato de não ser captada a partir de um desejo de verdade, mas de uma demanda de atenção pessoal”. E se pergunta como fazer frente à degradação do discurso analítico e “fazer surgir o desejo de verdade ali onde só se espera atenção personalizada que faz prevalecer o narcisismo social e a primazia do eu, em detrimento do mistério do corpo que fala” (SALMAN, 2022, p. 6). Sugere o interesse de se examinar e formalizar os inícios de análise, pois “Fazer prevalecer o analítico a cada encontro é não cessar de fazer emergir um você disse algo ‘que é diferente do que queria dizer’” (SALMAN, 2022, p. 6).

E quanto ao ensino? O que afinal se transmite?

No curso da preparação do texto para minha apresentação hoje, encontrei ressonâncias com o que eu pretendia abordar aqui, para concluir, condensadas no comentário sobre a aula inaugural no ICP-RJ, feito pelos alunos Diogo Pereira de Sousa e Samantha de Moura Ribeiro, que vou ler para vocês:

A aula inaugural se propôs a introduzir o tema da entrada em análise, estabelecendo uma conversa com o XI ENAPOL que acontecerá em setembro/2023. Como circunscrever o momento em que uma análise se inicia, aquele que marcaria o início do trabalho pelo analisante? Seria esse um ato do analista? Seria ato do analisante? Talvez a resposta venha, como de praxe, a posteriori e in casu, quando olhando para trás é possível pinçar o momento em que um não-saber surgiu, através da manifestação do inconsciente. Como nos lembra Laurent, há algo da incidência de uma verdade que passa a implicar o analisante em sua mensagem e o situa de outra forma em relação à sua demanda. Com isso em mente, gostaríamos de lançar uma provocação: haveria um ponto de encontro (ou desencontro) entre a entrada em análise e a entrada numa escola de psicanálise? Em uma análise, cabe ao analista escutar e fazer ressoar, seguir o analisante “destacando os significantes que pesam”. Contudo, para que as pontuações tenham efeito, produzindo quedas e aberturas, é necessário um consentimento do analisante, um deixar-se ir, que também é dar de si. Seria esse consentimento a transferência, seria ele precedente a ela ou viria dela? E na entrada em uma escola do que se trata? (SOUSA; RIBEIRO, 2023, s/p)

E é por estar também em torno dessas questões da transmissão, da Escola e da transferência de trabalho, que me é impossível conversar sobre esse texto, sem me colocar essas e outras perguntas.

Como ensinar algo sobre a psicanálise e sua técnica?

Em suas observações sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud (1919[1918]/1976, p. 219) se refere à impossibilidade de sua transmissão integral em aulas teóricas, invocando a necessidade “para finalidades de pesquisa” de acesso ao material clínico, por meio de ambulatório ou hospital.

Mais que as recomendações, indicações, pretensamente pragmáticas, sabemos estar diante de um impossível. Se Freud assinalava o impossível de psicanalisar, incluindo a psicanálise entre as profissões impossíveis ao lado das de educar e governar, Lacan afirmava o impossível do ensino da psicanálise e apostava em sua transmissão.

Uma pergunta puxa outra, e outra… esse é mesmo o método da psicanálise, que coloca em jogo o que Miller indicava como paixão da ignorância, não há saber todo, não há transmissão toda. Talvez o que se transmita, afinal, seja mesmo uma questão, na melhor das hipóteses, um desejo de saber.

É pela transferência de trabalho que se entra na Escola e é ela que faculta a transmissão, a “inventar a própria maneira de ler”.

Em relação ao texto do inconsciente trata-se de “produzir uma certa distância de si para ler-se de outro modo” (SALMAN, 2022, p. 6).

Concluo, com Miller (1994, p. 3), que

Este enunciado indizível, causa do sintoma, é a partir de então assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que ele não poderia lê-lo como se deve. Isto que Freud chamou de inconsciente, é estritamente equivalente a um texto escrito indecifrável, subsistindo como os hieróglifos antes que Champollion viesse a lê-los e – para usar os termos que Lacan tomou emprestados de Saussure, mas que não eram ignorados pelos estoicos – subsistindo como significantes sem significados. Nesse sentido, Lacan pôde dizer que o inconsciente é acima de tudo algo que se lê.


 

Referências
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FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. (Trabalho original publicado em 1913).
IANNINI, G.; TAVARES, P. H. Nota de Edição. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
KARDINER, A. Mi análisis con Freud. México: Ed. Joaquín Mortiz, 1979. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/ bibliografia-2/primeira-parte/citacoes/. Acesso em: 10 abr. 2023.
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MILLER, J.-A. Não há clínica sem ética. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
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MILLER, J.-A. Come iniziano le analisi?. 1994. Disponível em: enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023Acesso em: 10 abr. 2023.
SALMAN, S. A crescente decomposição do discurso analítico. Opção Lacaniana, n. 85, p. 5-7, 2022.
SOUSA, D. P.; RIBEIRO, S. M. Sobre a aula inauguralBoletim Eletrônico da EBP Rio e ICP-RJ, n.  2, abr. 2023.
[1] O presente artigo foi apresentado em 11/04/2023, no contexto das 59ª Lições Introdutórias do IPSM-MG. Agradeço às coordenadoras Lucia Mello e Luciana Silviano Brandão pelo convite.