JULIANA FLORES
IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
ENTREVISTA SOBRE O CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE DE BELO HORIZONTE – COM JULIANA FLORES
POR LUDMILLA FÉRES FARIA E MICHELLE SENA
JULIANA FLORES
ALMANAQUE: O que é o CURA?
JULIANA FLORES: O CURA – Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte – é um festival de arte urbana, esta que é inserida dentro da arte pública. Na arte pública, todas as linguagens são possíveis – esculturas, instalações, pinturas, murais, grafites. Porém, o CURA tem o foco, até o momento, na pintura.
ALMANAQUE: De onde partiu essa iniciativa?
JULIANA FLORES: O CURA surgiu de um desejo de duas produtoras culturais (Janaína Macruz e eu) e uma pintora (Priscila Amoni) de criar um festival de pintura de empenas, que são essas laterais cegas dos edifícios. É raro uma cidade que tenha tantas grandes empenas como Belo Horizonte. Essas laterais podem ser vistas como inúteis, um legado cinza, mas, para nós, são grandes telas à espera de uma obra. Com isso, também queríamos colocar Belo Horizonte no circuito mundial de street art, fomentar a cena e promover a cidade, que tem excelentes artistas, como uma cidade potente dentro da arte urbana.
Depois veio a ideia de um ponto único de contemplação: primeiro, porque Belo Horizonte tem vários mirantes, pela sua geografia. E, segundo, porque convivemos com arte urbana, com grafite, com ‘pixo’ no dia a dia e muitas vezes vemos, mas não paramos para contemplar. Então, para nós, fez sentido criar um espaço, assim, de fruição artística, de contemplação, de respiro: para você parar, olhar, observar e apreciar. Foi daí que surgiu a ideia de fazer esse mirante de arte urbana na Rua Sapucaí. E, pelas nossas pesquisas, é o primeiro mirante de arte urbana do mundo. Iniciamos o trabalho do festival em julho de 2015; a primeira edição aconteceu em julho de 2017; houve uma edição especial também em dezembro desse ano e, a última edição, em novembro de 2018.
ALMANAQUE: Por que o nome CURA?
JULIANA FLORES: O CURA é o nome do festival: Circuito Urbano de Arte. É uma brincadeira com a palavra ‘cura’. Eu, por exemplo, não acredito que a arte cure a cidade, acho que o que cura a cidade é a justiça social, a educação, outras coisas.
O que nós queríamos era criar um circuito pelo qual as pessoas pudessem andar a pé pelos murais, ou de bicicleta; fazer esse passeio no Centro para apreciar os murais, que hoje são dez. Ou seja, a ideia era a de incluir as pessoas. Embora depois tenhamos percebido que é um festival que também exclui muito. Se BH tem, pelo menos, cinquenta artistas ótimos, que poderiam pintar no CURA, até hoje só cinco pintaram. Salvo a Empena de Letras[1], em que foi possível inserir um número maior: foram 21 artistas.
Essa exclusão deu início às reivindicações. A Empena de Letras, por exemplo, foi da galera do grafite raiz, artistas que fazem letra, que fazem vandal. Aqueles que muitas vezes são artistas de periferia, que pintam a periferia de Belo Horizonte, mas que também têm um espaço no festival. Junto com essa, tivemos outras reivindicações. Uma reinvindicação muito legítima foi a das mulheres negras, das artistas, que perguntavam: Por que a mulher negra está sendo representada, mas não é autora?
ALMANAQUE: E de que forma vocês abordaram essas reivindicações?
JULIANA FLORES: Nossa resposta foi discutir essas reivindicações no festival. Então, assim como temos a curadoria do festival, da pintura das empenas, temos a curadoria da programação[2], que é onde vamos discutir esses temas.
Nesse sentido, convidamos vários artistas para debater sobre a ausência de negrxs nas artes e sobre a participação das mulheres nas artes visuais para falar da história do grafite. Achamos muito relevante discutir sobre a Empena de Letras, pois a letra não é um grafite menor nem se confunde com o ‘pixo’, e, para nós, é importante valorizar os grafite-writers, que fazem a arte fundadora do grafite. É uma postura política e estética colocar letra no festival.
Também percebemos a importância de fazer uma galeria de arte urbana para fomentar o mercado, porque BH tem ótimos artistas, mas alguns deles, que até então só tinham pintado no muro, puderam vender pela primeira vez as suas obras. Foi quando surgiu a Fluxo Galeria de Arte Urbana, que acontece junto à programação do festival.
ALMANAQUE: Como foi a escolha das pinturas?
JULIANA FLORES: A ideia foi fazer uma coleção que tivesse diversidade, que representasse vários estilos que estão na cena. Nessa edição tivemos a Empena de Letras, pintada por 21 artistas; a empena pintada por Criola[3], que tem seu trabalho marcado pelas cores vibrantes e pela pesquisa de matrizes africanas; a empena pintada pela artista argentina Hyuro[4], um dos principais nomes do muralismo contemporâneo, que abordou a questão da liberdade feminina; e também uma empena feita pelo Comum[5], com stencil[6], em que temos o chamado “jeguerê”, que é a imagem de quatro pichadores fazendo uma escada humana para pichar no alto.
IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE BELO HORIZONTE
ALMANAQUE: Duas empenas foram pichadas durante o festival. Quais os efeitos disso para o CURA?
JULIANA FLORES: O fato de termos duas empenas pichadas trouxe o ‘pixo’ para o centro das nossas discussões.
A primeira pichação feita na Empena de Letras foi muito simbólica, porque foi feita na faixa vermelha, acima de toda a obra. Dentro do universo do ‘pixo’, é como se ele tivesse quebrado a empena, no sentido de que “eu fui maior do que esses vinte artistas que estão embaixo de mim. Eu que fui no vandal, quebrei esses vinte artistas que foram convidados pelo festival”. Em menos de 24 horas nós apagamos o ‘pixo’ da Empena de Letras e isso deu uma repercussão. Essa empena tinha curadoria de dois artistas e também o artista que estava esperando sua vez, e pintaria no lugar onde foi feito o ‘pixo’. Se os três decidiram que queriam continuar com o plano e apagar, a gente respeitou. Pela primeira vez eu percebi que a cidade ficou do lado do pichador. Porque, quando um festival grande apaga o ‘pixo’, e é um festival de arte, as pessoas começam a refletir: “Uai, mas ele está reivindicando o espaço dele”, “mas por que vocês estão apagando, se vocês valorizam as intervenções urbanas?”.
Após esse primeiro ‘pixo’ ter sido apagado, o mesmo pichador foi para a empena ao lado. Também foi muito simbólico, pois o que está representado nessa empena é o chamado “jeguerê” e uma gaivota. A gaivota é o símbolo do ‘pixo’: significa que se chegou muito alto, como um “salve”, dizendo que se está lá em cima. Novamente, o pichador, no vandal, pichou acima, mostrando que chegou mais alto, acima da gaivota. Esse ‘pixo’ não foi apagado.
ALMANAQUE: O que é o ‘pixo’?
JULIANA FLORES: Para mim é um grito de “eu existo”, um grito de “eu estou aqui”, um grito de “eu estou reivindicando um lugar que não me foi dado, mas eu vou ocupar esse lugar”. E o CURA não deu espaço nessa edição para o ‘pixo’, e não sei também se temos que dar, se interessa para um pichador pintar com balancinho, seguro de vida e autorização.
ALMANAQUE: O ‘pixo’ é vandal?
JULIANA FLORES: O ‘pixo’ é pichar onde você não pode pichar. É protesto, é indignação… é uma mensagem, é um grito! Então será que faz sentido fazer empena de ‘pixo’? Como seria uma empena de ‘pixo’? Simbolicamente é muito mais forte o pichador ganhar a parede dele, ou seja, ir lá e pintar sem autorização nenhuma, garantir o seu “lugar”, do que ser convidado pelo festival. Se ele estivesse na Empena de Letras como convidado, saiba que não teria a mesma repercussão que ele ter ido lá e pichado o topo. Não teria mesmo.
O ‘pixo’ também é aparecer, porque são pessoas que estão invisíveis na sociedade e picham grande, picham alto, picham uma empena maravilhosa: eles estão sendo vistos. Pra eles é muito importante serem vistos, isso que é o ‘pixo’. Então, no CURA inteiro, o pichador que mais chamou atenção foi o que fez o vandal, e não os que participaram com cinto de segurança, com balancinho, com seguro de vida.
É uma guerra que não é de armas, mas existe uma disputa na cidade, disputa por território.
ALMANAQUE: De que forma a questão do ‘pixo’ foi abordada nas edições anteriores do festival?
JULIANA FLORES: Na edição de aniversário da cidade, duas das empenas escolhidas tinham ‘pixos’ icônicos. Quando mostramos na internet, começaram os comentários contra. Eram ‘pixos’ difíceis, em que as pessoas arriscaram a sua vida, e isso, dentro do ‘pixo’ é valorizado: o risco. Isso gerou um debate e a participação de todos os artistas[7] e pichadores das empenas[8].
Em uma delas, a ideia foi fazer uma textura inteira. Eram quase 2.000 m2 de empena, a maior empena do CURA, só com ‘pixo’. Então são duas mulheres nuas dançando (representa uma homenagem às bruxas de antigamente, que tinham o poder e o conhecimento sobre o próprio corpo, que seriam as feministas de antigamente) em uma textura inteira de ‘pixo’. Eu acho que ficou uma empena maravilhosa. É uma das minhas preferidas. Mas, quando essa estética do ‘pixo’ é absorvida por um mercado – querendo ou não, o CURA representa mercado, um lugar institucional, por mais que seja um festival de arte de rua –, é ‘pixo’ ou é um trabalho de arte com a estética do ‘pixo’? Não sei dar essa resposta.
ALMANAQUE: O que representa o vestido pintado no mural da Hyuro?
JULIANA FLORES: É um voal e é muito delicado. A Hyuro tem uma arte muito feminista, mas muito sutil. Não é todo mundo que lê o feminismo dos murais dela. Essa obra se chama O que fica e fala sobre as mulheres que fizeram aborto ilegal. Na Europa, o cabide tem a mesma conotação, o mesmo símbolo das agulhas de crochê na América Latina: as mulheres na América Latina abortavam com agulha de crochê. Na Europa elas abortavam com um cabide; abriam um cabide e se fazia um instrumento de aborto. Ela, ao pendurar um vestido num cabide, tá falando disso… ela tá falando de aborto.
ALMANAQUE: Como podemos pensar a política no festival?
JULIANA FLORES: Este ano achamos importante levantar bandeiras. O que foi feito no material produzido pela nossa equipe de comunicação, que abordava a diversidade religiosa, a questão LGBT, a criminalização das drogas, a questão feminista.
É um trabalho político. A gente viu que não dava pra fingir que não tem que pensar em política. Ao contrário, num momento como este que a gente vive, a gente precisa marcar a posição sim, assumir posições… Eu acho que quem se excluir das discussões, ficar em cima do muro, não quiser criar desconforto, vai se arrepender no futuro. Não dá pra fingir que não tem nada acontecendo, então a gente quis ser político sim.