Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
lucianasbl@gmail.com
Resumo: A autora faz um percurso ao longo do texto “Construções em análise”, trabalha os conceitos de recordações ultranítidas, verdade histórica, rememoração e reminiscência. Sua hipótese é a de que a verdade histórica se equipara conceitualmente à reminiscência.
Palavras-chave: construção, verdade histórica, rememoração, reminiscência.
CONSTRUTIONS AND REMINISCENCES
Abstract: The author takes a journey through the text “Constructions in analysis”, working on the concepts of ultranitical memories, historical truth, remembrance, and reminiscence. Her hypothesis is that historical truth is conceptually equivalent to reminiscence.
Keywords: construction, historical truth, remembrance, reminiscence.
“Construções em análise” foi publicado pela primeira vez em 1937 e, nele, Freud dá ênfase ao procedimento e à técnica analítica. Percebemos sua necessidade em defender a psicanálise, pois esta era alvo de ataques dos mais variados campos, e ele o inicia se referindo a um crítico que acusava os psicanalistas de se colocarem na postura daqueles que têm sempre razão, sem levar em conta o “não” do paciente. Para esse crítico, “se [o analisando] concorda conosco, estamos com razão; mas se ele nos contraria, então seria apenas um sinal de sua resistência e, portanto, também mostraria que temos razão” (FREUD, 1937/2017, p. 365).
No entanto, para a psicanálise, um simples “não” do paciente não abdica o psicanalista de sua interpretação, e é essa posição que pode servir de munição para a reprovação de tais críticos. Dessa forma, é necessário entrar em detalhes sobre como a psicanálise entende o “sim” ou o “não” do paciente.
Objetivo do trabalho analítico
O objetivo do trabalho analítico é a suspensão do recalque para substitui-lo por reações que correspondam a um estado de maturidade psíquica. Para que isso aconteça, é necessário que o analisando se recorde de determinadas vivências e moções de afeto que foram esquecidas. Qual seria o caminho para esse resgate? Freud responde que seria através dos fragmentos de lembranças nos sonhos, na associação livre e em alusões de repetições de afetos pertencentes ao recalcado. A transferência seria o caminho para alcançar a imagem dos anos esquecidos pelo paciente.
No entanto, temos que nos lembrar que o trabalho analítico é feito por duas partes – analista e analisando -, cada qual com uma função. Ao analisando, cabe a tarefa de se lembrar do material recalcado, e, ao analista, cabe interpretar esse material. O analista então, “terá de inferir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o esquecido” (FREUD, 1937/2017, p. 367).
Para caracterizar o trabalho do analista, Freud faz uma analogia com o do arqueólogo. Da mesma forma que o arqueólogo infere onde estaria uma parede em uma ruína, o analista faz o mesmo com as lembranças e associações do paciente. Outra fonte importante para a tarefa analítica de construção são as repetições “de reações oriundas de tempos primevos e tudo o que é revelado em termos de repetições através da transferência” (FREUD, 1937/2017, p. 368). Importante ressaltar que para Freud, nesse momento, há a aposta de ser impossível a destruição total das formações psíquicas. Ele acreditava que seria apenas uma questão de a técnica analítica conseguir trazer totalmente à tona o que está oculto.
Entretanto, é necessário levar em consideração que o objeto psíquico, diferentemente do arqueológico, é muito mais complicado que os restos arqueológicos. A construção é apenas um trabalho preliminar na análise de um sujeito.
O processo analítico, ou a construção, é feita passo a passo. Freud afirma que o analista
produz um pedaço de construção, comunica-o ao paciente, para que faça efeito sobre ele; depois, ele constrói mais um pedaço a partir do novo material que chega como um afluente e trabalha do mesmo jeito, e nessa alternância vai até o fim. (FREUD, 1937/2017, p. 369)
A grande questão é se o analista pegou o caminho certo em sua tentativa de fazer esse trajeto. Se não o tiver feito, poderá se retificar em momento oportuno quando nova construção puder ser feita.
O sim ou o não
Quanto ao “sim” ou ao “não” do paciente, esta é uma outra história, pois tanto um, quanto o outro, não garantem que a construção esteja correta. O que garante sua asserção é a produção, pelo analisando, de novas lembranças que complementam e ampliam a construção.
Importante ressaltar que, com frequência, o “não” do paciente pode ser um sinal de resistência, pois a construção analítica é sempre incompleta e abarca apenas um pequeno fragmento do acontecimento esquecido. Dessa forma, pode-se pensar que o analisando “fundamenta sua oposição com base na parte ainda não revelada” (FREUD, 1937/2017, p. 372). Para Freud, o analisando só dará a sua concordância quando souber de toda a verdade e esta, muitas vezes, é bastante ampla. “Portanto, a única interpretação segura do seu ‘não’ é aquela que aponta insegurança; que a construção certamente não lhe disse tudo” (FREUD, 1937/2017, p. 372).
Como saber se a construção tocou em um ponto importante? Podemos supor que seja através de tipos indiretos de comunicação, como, por exemplo, através da expressão idiomática “eu jamais pensei (ou teria pensado) isso (nisso)” (FREUD, 1937/2017, p. 373), que podemos traduzir por “Sim, nesse caso, você acertou o inconsciente na mosca”. (FREUD, 1937/2017, p. 373). Outra é a confirmação indireta através de associações que combinam com o conteúdo das manifestações. E, ainda, aquelas em que as confirmações se infiltram na oposição direta por meio de um ato falho.
Diante dessas constatações, Freud conclui que a crítica sofrida pela psicanálise não é devida, pois, ao se prestar atenção na resposta do analisando, pontos de apoio valiosos são retirados. Por outro lado, “essas reações do paciente geralmente têm múltiplos significados e não permitem uma decisão definitiva” (FREUD, 1937/2017, p. 375), o que nos leva a concluir que apenas a continuidade da análise vai provar se essas construções estavam corretas ou se foram inúteis.
Nem sempre uma construção feita pelo analista produz a recordação do recalcado, mesmo assim, em alguns casos, o paciente tem uma convicção segura da verdade da construção.
Recordações ultranítidas
Ocorre também que uma construção gere as chamadas recordações “ultranítidas” (überdeutlich) (FREUD, 1937/2017, p. 376). Nesse tipo particular de recordação, os pacientes não se lembram do acontecimento que fora o conteúdo da construção, e sim de detalhes muito nítidos: rostos, objetos no ambiente, espaço, etc. Como a elas nada é atrelado, o psicanalista sugere que foram resultado de um acordo em que a resistência conseguiu deslocar o recalcado para objetos secundários vizinhos.
Essas lembranças poderiam ser chamadas de alucinações, mas não apresentam a certeza característica do fenômeno e acontecem em casos que não podemos chamar de psicose. Por outro lado, há ocorrência ocasional de alucinações em casos de não psicóticos. Freud se pergunta se seria uma característica da alucinação que algo vivenciado nos primórdios e depois esquecido se insinue na consciência de forma deformada.
Talvez as formações alucinatórias, nas quais vemos inseridas essas alucinações, não sejam assim tão independentes da súbita vinda à tona do inconsciente e do retorno do recalcado. De forma geral, só sublinhamos dois fatores no mecanismo de uma formação alucinatória: o afastamento da realidade e a influência da realização de desejo sobre o conteúdo do delírio. Mas será que quando o recalcado emerge provocaria o afastamento da realidade, que, por sua vez, causaria a deformidade e o deslocamento do relembrado?
A verdade histórica
Freud sinaliza que o importante é que a loucura não só tem método como contém uma parte de verdade histórica.
Nos parágrafos finais de seu texto de 1937, assinala que, em casos patológicos, não se trata de demover o paciente do erro de seu delírio, de sua contradição diante da realidade, mas de encontrar
um fundamento comum no reconhecimento do cerne da verdade a partir do qual se poderá desenvolver o trabalho terapêutico. Esse trabalho consistiria em libertar aquela parte de verdade histórica de suas deformações e ligações [Anlehnungen] com o presente real, reconduzindo aquela parte do passado à qual pertence (FREUD, 1937/2017, p. 378).
Freud considera que as formações delirantes lembram as construções feitas pelo analista durante o tratamento analítico. Da mesma forma que a nossa construção só traz de volta uma parte da história de vida perdida, o delírio também deve o seu poder de convencimento à porção de verdade histórica que ele coloca no lugar da realidade rejeitada.
Ele conclui seu texto com o seguinte parágrafo:
Se abarcarmos a humanidade como um todo e a colocarmos no lugar de cada indivíduo humano, verificaremos que ela também desenvolveu formações delirantes inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, mesmo assim, elas puderem expressar um extraordinário poder sobre as pessoas, a análise levará à mesma conclusão que no caso de cada indivíduo. Elas devem o seu poder ao teor de verdade histórica que foram buscar lá no recalque dos tempos primordiais esquecidos. (FREUD, 1937/2017, p. 379)
O que é verdade histórica?
Antes de finalizar, gostaria de voltar de forma mais detalhada ao termo “verdade histórica”. Ele aparece em alguns textos freudianos importantes, tais como “Um distúrbio de memória na Acrópole” (1936), “Moisés e o monoteísmo” (1938) e “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)” (1918).
Em “Um distúrbio de memória na Acrópole”, Freud relata sua peculiar experiência ao visitar a Acrópole. Seu primeiro pensamento ao vê-la foi: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!”. O que se segue é o sentimento de divisão do sujeito, pois era como se duas pessoas estivessem ali: “A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa”, e, a outra, “A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida” (FREUD, 1936/1976, p. 295).
Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, o psicanalista afirma:
Quando Moisés trouxe ao povo a ideia de um deus único, ela não constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana, alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma tradição. (FREUD, 1934/1975, p. 153)
E, em “Da história de uma neurose infantil (caso Homem dos Lobos)”, há a seguinte passagem do paciente:
Quando eu tinha 5 anos de idade, estava brincando no jardim perto da minha babá e fazia cortes com meu canivete na casca de uma daquelas nogueiras, que também têm um papel em meu sonho. De repente percebi, com um terror indizível, que eu tinha cortado meu dedo mindinho da mão (direita ou esquerda?), de tal maneira que ele só estava pendurado pela pele. Eu não sentia dor nenhuma, mas uma grande angústia. Não me atrevia a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas poucos passos de distância, afundei no banco mais próximo e permaneci sentado lá, incapaz de olhar mais uma vez para o dedo. Finalmente me acalmei, olhei para o dedo, e, veja só, ele estava totalmente ileso. (FREUD, 1918/1976, p. 723)
Parece possível afirmar, a partir dos fragmentos apresentados, que, ao utilizar o conceito de “verdade histórica”, pode-se identificar uma estrutura que se repete, mas que é modificada pela realização de desejo e pelas percepções que são perturbadas pela linguagem. A repetição da representação deformada gera o delírio, mas, quando essa repetição compulsiva carrega consigo um retorno do passado, seria uma verdade histórica.
O que se repete não é a representação ou o sentido ligado à representação, mas uma certa estrutura discursiva, que, no caso de Freud em Atenas, seria a reapresentação da dúvida sobre a existência da Acrópole, no monoteísmo, a reapresentação do chefe da horda no Deus único, e, no Homem dos Lobos, a reapresentação da castração na alucinação do dedo cortado.
Verdade histórica ou reminiscência em “O homem dos Lobos”?
Pretendo me ater aqui ao relato do dedo cortado do Homem dos Lobos para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana: a reminiscência e a rememoração. Minha hipótese é ser possível equiparar a reminiscência à verdade histórica.
Parece-me interessante neste ponto explorar a distinção feita por Lacan entre rememoração e reminiscência. No Seminário 23, o psicanalista afirma:
A reminiscência é distinta da rememoração. […] A rememoração é evidentemente alguma coisa que Freud obteve forçosamente graças ao termo impressão. Ele supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso, e lhes conferiu letras, o que já é dizer muito, porque não há razão nenhuma para que uma impressão se figure como alguma coisa já tão distante da impressão quanto uma letra. Já há um mundo entre uma letra e um símbolo fonológico.
A ideia testemunhada por Freud no Projeto é de figurar isso através de redes, e foi talvez o que me incitou a lhes dar uma nova forma, mais rigorosa, fazendo com isso alguma coisa que se encadeia, em vez de simplesmente se trançar.
A rememoração consiste em fazer essas cadeias entrarem em alguma coisa que já está lá e que se nomeia como saber […]. (LACAN, 1975-76/2007, p. 127)
Em “Fausse reconnaissance (dejá raconté) no tratamento psicanalítico”, Freud retoma o relato do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos. Cito-o: “Quando me achava brincando no jardim com um canivete (isso se deu quando eu tinha cinco anos de idade) e cortei fora meu dedo mindinho – oh, eu só pensei que ele fora cortado – mas já lhe falei sobre isso” (FREUD, 1914/1996, p. 209). No entanto, o psicanalista, ao ouvir aquele relato, responde-lhe que nunca o havia narrado, mas o paciente afirma ter certeza de já o ter contado. Porém, ao repetir a estória, ele percebe seu engano.
Aqui há um real que fala sozinho, a experiência não é testemunha de um significante que falta, há um aspecto de descontinuidade temporal – extratemporal, melhor dizendo. Nesse caso, o que retorna é um conteúdo que deixou de ser simbolizado, que escapou da simbolização primária e que não pôde ser historiado. Segundo Miller, trata-se de uma forma imemorial que aparece quando o texto, “interrompendo-se (fora do texto simbólico, portanto), deixa desnudo o suporte da reminiscência” (MILLER, 2009, p. 54).
A rememoração, em contraposição ao fenômeno descrito no caso freudiano, acontece quando um elemento esquecido encontra a sua articulação simbólica. Já a reminiscência tem relação com a concepção platônica, pois o indivíduo não pode elaborar uma verdade a partir de sua experiência, só lhe restando o eterno, o que está fora do tempo.
No caso do Homem dos Lobos, diante da emergência do real, só lhe restou o mutismo, o mutismo aterrorizado e a imagem alucinada do dedo cortado. Nesse caso, ao lembrar-se da experiência e relatá-la posteriormente ao analista, não se pode dizer que essa estava na ordem de um mero esquecimento, como no texto “O mecanismo psíquico do esquecimento”, de Freud. Trata-se de uma experiência com uma significação tão estranha que o sujeito não tem como comunicá-la ao Outro. Não estaria, portanto, no registro de uma lembrança esquecida que retorna, de uma rememoração. Para um elemento ser historiado, ele deve, antes de tudo, ter sido simbolizado, ou seja, só há historização secundária se houver uma simbolização primária. A “rememoração está situada do lado da rede significante, das cadeias que se formam com o simbólico, ao passo que a reminiscência, aqui, é deixada em branco” (MILLER, 2009, p. 54).
A questão que proponho aqui, no caso do Homem dos Lobos, é pensar que a alucinação do dedo cortado pode revelar algo que irrompe no discurso do sujeito sem que haja uma historização – ou o que carrega consigo uma história que pode ser contada –, mas revela o puro real sem palavras. Concepção que se aproximaria do conceito de “verdade histórica” como modo de resposta a incidência do real traumático sobre o ser falante.