Ludmilla Féres Faria
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: ludffaria@gmail.com
Desde seus primeiros tratamentos, Freud estimulava seus pacientes a verbalizarem seus pensamentos e lembranças, sem nenhuma censura, na tentativa de não deixar escapar nada. Essa “regra de ouro”, nomeada mais tarde de associação livre, tinha como alvo aproximar-se dos conteúdos recalcados. Freud percebe que, ao falar, dizemos mais do que pensamos dizer, pois revelamos, pelo material manifesto, o conteúdo latente inconsciente. Ou seja, desde os primórdios da psicanálise, ele procura encontrar a causa dos sintomas das histéricas, através da fala. Miller (2025, p. 127) afirma que “Freud começou seu caminho na busca da causa, e não na busca do sentido”, busca que segue determinante até os dias atuais. Mas como nos guiar nesse caminho para que a fala não prolifere como uma “erva daninha” (MILLER, 1998, p. 40)? Pois sabemos que há na linguagem um poder de ampliação no registro do sentido, do som, que faz com que tudo que se diz seja passível de interrogar: o que isso quer dizer? Ou seja, se tomada por esse viés, a fala pode prosseguir infinitamente, a “palavra bebe o sentido; ela se deleita nesse sentido como a terra demasiado seca, e jamais saciada” (MILLER, 1998, p. 40).
Miller (2019 p. 149) propõe que, para encontrar a causalidade do sintoma, deve-se distinguir, no “estatuto do trauma”, o “vivido como”, do lado da diacronia – da história, de uma ferida que ocorreu antes e do sentido – e o que resta enigmático e é puro furo, do lado da sincronia. E para isso faz-se necessária a presença do analista, encarnando o lugar de SSS, que capte a causalidade desse acontecimento passado.
Tomar o trauma pelo viés da sincronia, do trouma, é abordagem de Lacan, a partir de sua leitura de Freud que culmina com a fórmula “não há relação sexual”. Isso implica que a relação do sujeito com a sexualidade será sempre traumática e a linguagem será uma forma de “se virar” com esse troumatismo, marca do encontro da linguagem com o corpo. Volto a afirmar que isso não se faz sem a presença do analista.
Uma análise visa exatamente resgatar os efeitos desse trouma no discurso do falasser, via interpretação. A escolha do tema do XII ENAPOL vai nessa direção, conforme ressalta Fernanda Otoni (2025, s.p.): “vamos ‘falar com a criança’, porque não se faz outra coisa numa análise do que fazer falar a criança” – ou seja, falar com isso que faz furo no encontro entre lalíngua e o corpo: o trauma.
Essa ênfase no “fator infantil”[1] como causalidade do sintoma, Freud (1913/1996, p. 218) a descreve da seguinte forma:
sabemos quão extraordinariamente importantes são as impressões da infância e, especialmente, as da primeira infância, para todo o curso subsequente da vida de um homem. Neste ponto, deparamo-nos com um paradoxo psicológico, que não existe apenas na concepção psicanalítica, a saber, que são precisamente essas impressões da maior importância que não são preservadas na memória dos anos posteriores. A psicanálise soube estabelecer de maneira mais evidente esse caráter de modelo indelével dos primeiros acontecimentos, justamente para a vida sexual. Nós sempre voltamos aos nossos primeiros amores, essa é a pura e simples verdade.
O que é indelével, inefável, o que é atingido pelo buraco da memória, é, portanto, o mais marcante. É uma memória que se forma pela ausência, inscrita como um lugar reservado.
O termo lalíngua é introduzido por Lacan para situar precisamente essas marcas de gozo que escapam a articulação significante, que apontam para uma positividade ineliminável. Portadora de um investimento libidinal próprio de cada um, lalíngua se situa na junção mais íntima entre gozo e significante. Absolutamente particular, ela beira o inexprimível e é antes de tudo resultado de um caldo de mal-entendido familiar, que funciona a partir de sua própria norma, o que faz com que seja em torno dela que se articulam os nossos pontos de inserção e de exclusão na comunidade humana: “É com lalangue e contra ela que nós nos inscrevemos no mundo” (FARI, 2023, p. 144).
Falar com a criança visa atualizar o traumatismo de lalíngua, já que, ao querer saber mais, o analista funda um discurso apoiado nas singularidades linguageiras de cada parlêtre. Busca-se transferir para o significante o que é incompatível com ele, até o osso, o resto. Ou seja, nas voltas do significante em torno desse furo, o que resta do sujeito é seu status de objeto a, revelando-se, nesse momento, que ele não foi outra coisa senão o que o Outro desejou, isto é, que foi o produto do desejo do Outro.
No início da experiência analítica, o analisante fala a partir da crença no sujeito suposto saber, do qual o analista é suporte, via transferência. Se o paciente se presta a dizer tudo o que vem à cabeça é porque ele supõe um Outro que sabe sobre a causa de seu sintoma, suas verdades escondidas. Mas se a crença no SSS constitui o motor da transferência, não se trata, do lado do analista, de partilhar essa crença, mas de se servir dela. Portanto, é preciso que ele coloque em jogo, na transferência, um ato que possibilite ao sujeito separar-se desse lugar de objeto que ele se fez ser para esse Outro, em seu fantasma. A interpretação analítica, como ato de corte na cadeia significante produtora de sentido, visa desconsistir o Outro, desnudando assim o furo de estrutura. Como nos lembra Miller, uma análise avança em direção a isso de que não se pode falar e “tem de suar para chegar ao singular” (BRISSET, 2025, s.p.).
Nesse caminho, as defesas se levantam e podem se manifestar de variadas formas: nas reticências, no mutismo, na verborreia e, também, nas passagens ao ato ou no acting out (KUPERWAJS, 2025). Nesse momento, face ao que pode se apresentar como uma urgência subjetiva, ali onde a palavra é curto-circuitada, a prioridade imediata do analista é a de encontrar como ser um interlocutor para o sujeito, como “fazer par” (BRIOLE, 2019). O psicanalista é aquele que ocupa um lugar no ato. Um ato que não é um rito, nem protocolo, nem cálculo, mas é isso que surge num instante, e que verifica seus efeitos aprés-coup .
Rosine Lefort (2013, p. 129, tradução nossa), em uma entrevista dada a Judith Miller[2] na qual conta fragmentos de seu percurso em análise com Lacan, destaca como foi marcante para ela a forma com que Lacan se implicava em seu ato: “me ensinou o rigor e ao mesmo tempo a total não ritualização da análise: o ato analítico pode fazer-se em qualquer parte”.
Foi Jenny Aubry que a indicou para análise com Lacan, e assim que Rosine Lefort (2013, p. 130) o encontrou foi logo falando que era um “dejeto irremediável”. Passou os três primeiros meses de tratamento falando tudo que sabia dessa sua posição de dejeto. Na sua família, era tratada como uma “mulher débil”: sofria de fobias, de fugas, de sonambulismos – tudo isto em oposição a um irmão brilhante. Sua mãe era uma mulher muito humana, desde que não se tratasse de seus filhos. Seu pai era tão maternal que, quando ela tinha nove meses, ele quebrou sua perna de tanto apertá-la. Como ela chorou muito, foi deixada num canto da sala sozinha, e só mais tarde se deram conta de que ela estava machucada. Ela afirma que o próprio Lacan custou a acreditar nisso, chegando a pedir que ela mostrasse a marca (LEFORT, 2013).
Mas, após esse primeiro tempo, “Pouco a pouco o silêncio se instalou. Todos os dias, vinte minutos, meia hora, [eu ficava] em silêncio” (LEFORT, 2013, p. 131, tradução nossa). Para que ela saísse desse mutismo, Lacan tentou de tudo: falava ou se calava, fazia com que ela o acompanhasse no trabalho, corria atrás dela na saída, entre outras coisas. Confirma que “ele manteve sua pressão e eu toquei o que jamais verdadeiramente articulei, senão em eco, o outro lado de todas as palavras de meus pais que me haviam calado e das instituições que me insultaram” (LEFORT, 2013, p. 131, tradução nossa). Rosine afirma que, se Lacan não tivesse infiltrado o simbólico, mediante palavras, nem o vivo nas sessões, ela jamais teria voltado.
Durante oito meses que passou com Lacan, ela voltou a experimentar o terror frente ao furo da linguagem, e foi quando ele insistiu para que ela falasse das crianças, não só pelo que traziam à psicanálise, mas também como testemunho das curas efetuadas no passe, a partir desse lugar horrível que ela havia conhecido: “Esse mesmo furo encontrei nas crianças” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa). De sua experiência com as crianças e de sua análise, ela pôde dizer mais tarde que “O lugar imaginário no qual eu estava, enquanto a, resto, na análise com Lacan se inverteu: eu assumi esse lugar na análise [das crianças]” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa).
Dois sonhos vão delimitando a passagem desse lugar de dejeto para lugar de objeto causa. Aos dezessete anos, sonhou que era “sucessivamente um passarinho, um peixe vivo e um fogo fátuo[3]. […] eu seguia os passos, as pegadas, sem saber quem os fazia” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa). Ao final dessa sessão, Lacan lhe disse: “Adeus ao fogo fátuo”; e ela afirma: “Depois de muitos anos, achei isso extraordinário porque, de fato, era isso o que eu devia reter, do ponto de vista da marca” (LEFORT, 2013, p. 132, tradução nossa).
No segundo sonho, Rosine Lefort (2013, p. 132, tradução nossa) “estava no topo de uma duna extremamente afiada, em cujo extremo se encontrava Lacan, com seu olhar extraordinário”, e um precipício de cada lado: em um, encontrava-se “um carrinho [de bebê] despedaçado”; no outro, “absolutamente nada”. Para ela, esse foi o caminho percorrido em sua análise:
O lugar de resto e de dejeto foi a ferramenta e o gérmen do meu trabalho como analista. Dizer que me desembaracei disso na vida, é outro assunto. […] Lacan lutou contra minha debilidade e meu horror, e eu devia continuar nessa via. […] Ele manteve com rigor e vontade o fogo fátuo da marca, em uma via que desembocou na possibilidade de estar no lugar de a para as crianças. […] Essa é para mim a diferença entre um saber e meu desejo de saber. […] Falar em análise é falar, ou não, do ato, e é por isso que digo que luto tratando de escrever e de falar contra um resto débil. (LEFORT, 2013, p. 133-134, tradução nossa)
Se queremos nos fazer destinatários do que o falasser diz é preciso colocar em jogo uma clínica que se singularize no laço transferencial. Ali encontramos o ponto que orienta nosso trabalho: para falar com a criança, sem se perder no sentido, é preciso que o analista faça ressoar no corpo do parlêtre um dizer, um silêncio, um gesto que singularize sua relação particular com o gozo. Nesse sentido, Lacan (1971-72/2011, p. 84) dirá, a respeito dos pacientes do Hospital Sainte-Anne, que “todos são capazes de se fazerem ouvir , desde que existam ouvidos apropriados”.