Laura Rubião
Psicanalista, membro da EBP/AMP
lauralustosarubiao@gmail.com
Resumo: O texto explora certas nuances do que se pode conceber como “presença do analista” em nossa época, diferenciando-a de algumas concepções tradicionais que evocam o analista como figura neutra, passiva ou desinteressada. Ao contrário, o analista se faz presente como aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo.
Palavras-chave: analista; urgência; gozo; sinthoma.
Abstract: The text explores certain nuances of what can be conceived as the “presence of the analyst” in our time, differentiating it from some traditional conceptions that evoke the analyst as a neutral, passive or disinterested figure. On the contrary, the analyst is present as the one who chooses to be beside the urgency of the parlêtre and the symptomatic solution of each one in the face of the real of jouissance.
Keywords: analyst; urgency; jouissance; sinthome.
O XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano tem por título um dizer que, a partir do modo exclamativo – “Analista: Presente!” –, nos conclama a trabalhar o lugar por meio do qual o analista pode se fazer presente nos dias de hoje, tanto na análise quanto fora dela, nas questões de sociedade, como nos aponta Fernanda Otoni Brisset em seu texto de orientação, renovando a pertinência de recolocarmos a questão de como o analista pode estar à altura do horizonte de sua época.
Esse título teve como inspiração – certamente não a única, conforme nos observou Romildo Rêgo Barros – os embaraços provocados sobre a nossa prática a partir do acontecimento imprevisto da pandemia, quando, por força das circunstâncias, recorremos aos aparatos tecnológicos para recebermos nossos analisantes. A partir daí, teve início todo um debate em torno das implicações decorrentes dessa nova forma de presença virtual do analista na clínica.
Seja no modo virtual, seja no modo presencial, na esfera clínica ou política, no divã ou nas instituições, o lugar de onde o analista pode dizer “Presente!” implicará sempre o regime das sutilezas analíticas, tal como definido por Miller em seu curso de 2011.
Inspirado por Freud, ele vai buscar em Pascal uma orientação para o que se entende por “coisas de fineza”, ou “sutilezas” analíticas, em oposição às coisas de geometria, que são racionalidades, inferências e construções baseadas em premissas lógicas demonstráveis pela cadeia das razões. As tais “coisas de fineza” são aquelas que “se sentem” e devem ser apreendidas “subitamente em um só golpe de vista” (MILLER, 2011, p. 28). Essa apreensão súbita nos envia ao modo como Lacan identifica, em seu último ensino, o rastro do Ics real como une bévue (um tropeço), ou seja, o que irrompe inesperadamente no espaço de um lapso e se realiza como acontecimento de dizer, e não como um desdobramento de saber. É o que celebra o choque da linguagem sobre o corpo e dá lugar a um significante novo, uma invenção da língua. O que importa e se torna genuíno no último ensino de Lacan é que a linguagem produz um acontecimento disruptivo no corpo e é exatamente essa efração que faz brotar o elemento heterogêneo que não se deixa reabsorver pela estrutura, a qual tece incessantemente a trama do destino.
O analista faz par com essa urgência do falasser (LACAN, 1976/2003, p. 569) e isso nos autoriza a dizer que o analista marca sua presença, tomando partido do inconsciente real. Ele renuncia, desse modo, a encarnar a postura que lhe é atribuída tradicionalmente, a saber, a da “neutralidade benevolente”, sem, tampouco, adotar qualquer postura “ativa”, tal como preconizado por Ferenczi.
Estar presente e não bancar o mestre
O lugar de onde se pode dizer “Presente!” inclui, portanto, uma sutileza dessa ordem: não operamos mais no campo da neutralidade, que serviria como um refúgio para o analista, mas também não adotamos, como nas psicoterapias, uma postura ativa que reforçaria o engodo de um lugar de mestria. Essa sutileza evoca, como apontou Freud, uma dificuldade no caminho da própria psicanálise, que não se furta em lidar com as irrupções do não todo, com aquilo que não cede à lógica da decifração e da ampliação do sentido.
Em seus chamados “Artigos sobre a técnica”, Freud nos dá um testemunho vigoroso desse cristal analítico, numa época em que ainda trazia ao mundo a novidade da psicanálise. A partir da densidade de seu projeto clínico, ele tratava de diferenciar a arte da psicanálise das chamadas psicoterapias pautadas na técnica da sugestão. Lembremos, por exemplo, retornando ao texto “Os caminhos da terapia analítica”, que Freud (1919/2017) se opôs radicalmente à chamada “postura ativa” do analista defendida por Ferenczi. Essa técnica tinha um propósito claramente ortopédico e foi estabelecida como uma suposta solução para momentos em que o trabalho analítico parecia se estagnar, sem surtir os efeitos esperados, a saber, os efeitos de ampliação do sentido e rememoração no âmbito do Ics transferencial.
Em seu comentário, Freud refere-se ao artigo de Ferenczi intitulado “Dificuldades técnicas de uma análise de histeria”, no qual relata-se o caso de uma jovem que se mantinha estagnada em relação aos avanços de sua análise. Ele pré-fixou, sem sucesso, o prazo final do tratamento, interrompendo-o prematuramente. A jovem acaba retornando à análise com sintomas agravados; foi quando o analista observa a posição das pernas crispadas sobre o divã em postura masturbatória. Entendendo que esse movimento absorvia a energia psíquica empobrecendo o material associativo, ele intervém proibindo essa postura, o que deu lugar às rememorações de cenas traumáticas da infância. Desses experimentos clínicos, Ferenczi pôde extrair uma regra geral para o tratamento, que consistia em coibir as tendências das atividades autoeróticas dos pacientes que acabavam consentindo com a renúncia a esse tipo de prazer infantil, substituindo-o pelo regime da satisfação genital normal.
Freud se mostra bem mais cauteloso quanto ao manejo dos percalços transferenciais na análise, inclusive reconhecendo situações em que o curso do desenlace de uma cura é obstruído pela formação de “novas satisfações sintomáticas substitutivas” (FREUD, 1919/2017, p. 198) que se interpõem no caminho da análise, bloqueando o rumo em direção à cura. Enquanto Ferenczi pretendia normatizar o corpo tomado pelo excesso de gozo pela via do sentido edípico, Freud soube ler esses excessos como uma verdadeira pedra que se impõe no caminho de uma análise, a larva do real que não se absorve pelo sentido, persistindo como resíduo sintomal. Esse resíduo pode assumir, na clínica, o formato da chamada reação terapêutica negativam que atua como obstáculo ao desenlace da análise.
O real e o mistério do corpo falante
Ainda assim, e apesar dos esforços do próprio Freud em reconhecer que a ficção simbólica não drena todo o impacto do inconsciente real sobre o modo de gozo dos sujeitos, sabemos que a psicanálise ficou reconhecida como uma espécie de hermenêutica, que teria trazido ao mundo a chave do mistério do corpo histérico recortado pelo significante. O próprio Lacan, nos anos 1950, atribui a Freud a coragem de “interrogar a vida em seu sentido” por ter sabido desvendar, tal como um iniciado dos antigos mistérios, o falo enquanto significante ímpar na regulação dos impasses da falta a ser (LACAN, 1958/1998, p. 648-649). Com efeito, a interpretação analítica dificilmente se separa da suposição de um saber incrustado no real do corpo, um saber que conjuga o mistério e seu desenlace através da operação significante que nos permite reconhecer o desejo articulado à trama ficcional na qual se apoia Outro da verdade.
O último ensino de Lacan se empenha em desconstruir, até certo ponto, essa vertente sólida do analista intérprete que está sempre disposto a correr atrás da verdade a partir de uma escuta ancorada na suposição de saber. Miller (2012) localiza o modelo do corte como o paradigma da clínica no último ensino de Lacan, um corte que faça florescer o esp d’un laps e opere contra a debilidade mental do Ics ficcional.
Sustentar a dignidade ética desse ato que visa cernir o impossível a partir da contingência é a sutileza maior da presença do analista no mundo hoje, e isto acontece em uma dimensão que nada tem a ver com passividade ou com a atividade, mas com uma espécie de escolha forçada muito particular.
Em seu texto “Ponto de basta”, Miller opõe à chamada neutralidade benevolente – em alusão à postura clássica de reclusão e isenção atribuídas ao analista freudiano – a questão da escolha que envolve o gosto, o sabor, que estão enraizados no corpo, “no gozo do corpo, e no sinthoma” (MILLER, 2018, p. 27).
Essa posição standard do analista (da neutralidade benevolente) teria sido extraída, de acordo com Miller, a partir de uma leitura enviesada do cenário da técnica freudiana, sobretudo do que se pôde ler em um dos conselhos dirigidos aos médicos em 1912, no qual Freud retoma o caráter cirúrgico da operação analítica, “deixando de lado toda reação afetiva e até mesmo toda simpatia humana, para só ter um único objetivo: levar a bom termo sua operação” (MILLER, 2018, p. 29) Esse intervalo que Freud convoca como pressuposto da efetividade do ato analítico que não deve se render ao domínio imaginário da escolha pautada na identificação (via da simpatia humana) pôde ser interpretado por alguns como postura fria e desumana ou, em última análise, estranha ao campo dos afetos – lembremos da acusação dirigida a Lacan de ser indiferente ao afeto –, e, por outros, como consagração do êxito da tal neutralidade benevolente.
Sabemos que Lacan respondeu oportunamente à acusação de seu pendor formalista, mostrando nunca ter negligenciado o domínio dos afetos. É certo que ele nos mostra também que, para a psicanálise, esse domínio não se coaduna ao campo das emoções, do calor humano, das humanidades ou desumanidades. O afeto para a psicanálise diz respeito ao domínio do gozo que habita o corpo como lugar da incidência do significante que produz uma irrupção rumo a um significante novo, que será a invenção singular de cada analisante:
A história de que eu negligenciaria o afeto é farinha do mesmo saco. Que me respondam apenas uma coisa: afeto diz respeito ao corpo? Uma descarga de adrenalina é ou não é do corpo? Que perturba suas funções é verdade. Mas em que isso provém da alma? O que isso descarrega é pensamento. (LACAN, 1973/2003, p. 522)
O caráter cirúrgico do ato analítico dispensa o Outro da sustentação identificatória imaginária, acionando a dimensão do corte que, como nos aponta Laurent, não mais precisa fazer apelo à função de pontuação que mobiliza o sentido retroativo da cadeia significante em busca de um efeito de verdade. Para nos transmitir o modo incisivo como a interpretação pode operar como corte que não mais relança o sentido inconsciente, Laurent (2020, p. 174) retoma Miller:
Não se trata de saber se a sessão é longa ou curta, silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semântica, aquela em que S2 vem pontuar a elaboração – delírio a serviço do Nome do pai –, muitas sessões são assim, ou então a sessão analítica é uma unidade assemântica, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo (…).
Desse modo, resta-nos ler, a partir do último ensino de Lacan, a dimensão do mistério como pura cifra de gozo e que não faz apelo a qualquer revelação. Se cada palavra assume na “bateria significante de lalíngua” uma gama enorme e disparatada de sentidos heteróclitos, conforme nos é esclarecido em “Televisão” (LACAN, 1973/2003, p. 515) – tal como, de modo exemplar, nos demonstram os escritos joyceanos –, o que permanece insondável é o instante da mordida do significante no gozo, esse instante em que se fisga o afeto, sempre desalojado, numa escrita original que produz uma marca de gozo. Essa escrita se faz por um forçamento poético, nos diz Laurent, ou seja, por um acontecimento de dizer que, no entanto, não é prerrogativa de poetas. Os Analistas da Escola (AE), por nos darem testemunho “d’isso de que se goza” e que acontece no corpo, não se apresentam como um grupo de iniciados, ou seja, como aqueles que, nos antigos cultos de mistério, costumavam compartilhar um segredo em comum.
O encontro com um analista hoje, ou como se fazer presente na era do outro que não existe
A partir da queda dos semblantes e do declínio dos ideais, o corpo se impõe, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para lalíngua, cujo correlato analítico é o que Miller (2015) chamou de clínica acontecimento, mais próxima dos efeitos de gozo do que dos efeitos de verdade. Nela, prepondera o estranhamento do gozo feminino dito não todo sobre o universal do gozo fálico; a emergência da equivocidade da letra que faz do ato analítico, ele próprio, um acontecimento interpretativo ou, ainda, o modo inaudito como o sexo chega aos seres falantes, produzindo arranjos sinthomáticos os mais diversos.
Em todas essas declinações, o analista pode comparecer, inclusive com seu corpo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo opaco do sintoma, que aponta para o “lugar de mais ninguém”, o lugar do exílio de lalangue que testemunha o ponto em que o gaio issaber vem “roçar” (piquer) o sentido para além de toda compreensão. (LACAN, 1973/2003, p. 525). Nesta direção, Laurent segue as indicações propostas no Seminário 23, de 1975-76, para evidenciar que o analista não seria mais visto como essa subjetividade segunda, que se instala no rigor de uma escuta dos efeitos de sentido que fazem brotar a verdade do sujeito em análise, mas como aquele que segue a via do sinthome, buscando ressoar (resón) no corpo o eco do dizer pulsional. Trazendo seu próprio corpo para a ordem do dia, o analista usa a interpretação pela via do equívoco que faz vibrar o “escrito na fala”, que é da ordem não do sentido, mas de lalangue. Ele já não opera com a razão (raison),2 ou com o Logos do Inconsciente, mas com essa ressonância que “libera algo do sinthome” (LAURENT, 2016, p. 81). Haveria, no que concerne à prática da psicanálise, um novo uso da interpretação, que opera por um deslocamento da verdade ao gozo.
Para finalizar, gostaria de trazer um breve recorte do testemunho de Veronique Voruz que, no relato “Exorcizada pela psicanálise”, publicado em 2017, conta como cresceu assolada pelo gozo mortífero que lhe fora transmitido tanto pela avó, quanto pela mãe – ser um monstro a ser exorcizado via religião. Ela nos transmite como conseguiu escapar desse destino sórdido pela experiência da análise, que promoveu o verdadeiro exorcismo, dando lugar a uma nova escrita para o gozo. Certa vez, quando falava de seu problema d’yeux (doença dos olhos), a analista lhe retorna: “Ah, sim, agora eu escuto Dieu (Deus)”. Essa nova escrita depura a angústia de ser um monstro aos olhos do Outro, encarando-o de outro modo, em vez de ser vista como tal. O final da análise encaminha-se para essa operação de ser arrancada dessa identificação. Sua mãe era alpinista e muito jovem sofreu um terrível acidente na montanha, que lhe arrancou uma das pernas. Em um sonho, ela se vê subindo uma montanha à l’arrache (por arrancos/atalhos), no mesmo cenário do acidente sofrido pela mãe:
Eu interpreto este sonho de subjetivação do acidente de meus pais, dizendo que finalmente meu S1 é à l’arrache. Subindo pelo caminho da montanha, à lárrache eu me arranco de meu destino de ser uma parte do corpo do Outro. Esse significante nomeia o que chamarei de “meu estilo pulsional”. Estou sempre um pouco à l’arrache, mas não me é mais necessário arrancar-me do corpo do Outro para me separar. (VORUZ, 2017)
Esse fragmento nos mostra como a psicanálise de orientação lacaniana pode se colocar ao lado da urgência do falasser, promovendo uma nova escrita para o gozo. No caso de Veronique, o lugar de dejeto com o qual o sujeito se identificará ao longo da vida torna-se um jeito de caminhar que, embora claudicante, é o que lhe permite avançar.