Com Maria Wilma de Faria – EBP/AMP
Maria Wilma Faria, psicanalista e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), é diretora da Seção Clínica do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG).
Almanaque On-line interessou-se em lhe perguntar o que é uma Seção Clínica, como ela funciona e quais são os princípios da psicanálise lacaniana que a regem.
Almanaque 35: Comecemos com a pergunta de Lacan, formulada em 1977 em seu texto “Abertura da Seção Clínica de Paris”: “O que é a clínica psicanalítica? Não é complicado. Tem uma base – é o que se fala em uma psicanálise”.
Como podemos extrair as consequências dessa pergunta no funcionamento da Seção Clínica da qual se ocupa?
Maria Wilma: Essa afirmação de Lacan aparentemente parece simples, mas porta uma complexidade. Talvez pudéssemos cotejar a resposta com o que ele desenvolve adiante, na “Abertura da Seção Clínica de Paris”, e que está relacionado ao dizer, ao divã, à associação (que não é tão livre assim), enfim: “é do inconsciente que se trata” (LACAN, 1977/2001, p. 6). Nessa época do final de seu ensino, Lacan estava questionando o inconsciente e o designa – em seu Seminário 24, que estava proferindo à época e que tem em seu título a palavra l’une-bévue – como “equívoco”. O inconsciente também é visto como um tropeço, “o espaço de um lapso” (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ou seja, o inconsciente é real. Então, nessa alocução de Lacan (1977/2001, p. 8), logo após uma pergunta que lhe foi dirigida, ele apresenta uma definição que nos é muito cara: “a clínica é o real enquanto ele é impossível de suportar”.
Esse assunto nos interessa na Seção Clínica do Instituto, pois lidamos sempre, nos diversos espaços de investigação e pesquisa dos Núcleos, com o ponto de não sentido, com aquilo impossível de ser dito, que está na raiz da linguagem mesma. Poderíamos pensar o real como impossível porque há sempre algo que escapa ao significante, que não cessa de não se escrever. O real, enquanto impossível de suportar e que se apresenta na contingência, é aquele que leva o falasser, com sua dor e com seu corpo, a procurar uma análise, ou mesmo uma instituição. Cabe ao analista, a partir de sua presença e de seu desejo, se orientar pelo real do gozo, fazendo dele o princípio do ato analítico.
Lacan (1977/2001, p. 9) termina ainda dizendo que “A clínica psicanalítica deve consistir não somente em interrogar a análise, mas em interrogar os analistas, a fim de que eles deem conta do que a prática deles tem de acaso, o que justifica que Freud tenha existido”.
Almanaque 35: J.-A. Miller, na abertura da Seção Clínica de Tel-Aviv, em 1996, responde à própria pergunta – O que é uma Seção Clínica? – do seguinte modo: “Ela é feita de seus professores, do seu saber, das suas boas disposições pedagógicas. Ela não é nada sem aqueles que chamamos não de estudantes, mas participantes, para indicar o papel ativo que lhes é dado”.
A partir dessa afirmação, como você avalia a estrutura da Seção Clínica do IPSM-MG?
Maria Wilma: A estrutura da Seção Clínica se apoia nas Conversações Clínicas, na retomada das Entrevistas Clínicas em instituições com as quais o IPSM-MG mantem parceria e convênio, nos seminários teóricos e apresentações de casos clínicos que os Núcleos de Investigação em Psicanálise desenvolvem. Acolhe, assim, todos aqueles interessados em se aproximar da psicanálise de orientação lacaniana.
Penso que poderíamos seguir de mãos dadas com Miller, quando ele diz, na mencionada abertura em Tel-Aviv, que, para além dos professores, dos participantes ativos da Seção Clínica, dos amigos, psiquiatras, colegas de outras instituições, é preciso apreender a Seção Clínica como um conceito que passa por uma experiência, algo que não se dá somente pelo ensino na orientação lacaniana, mas pela experiência mesma do tratamento psicanalítico. Entra aqui em jogo também a formação do psicanalista, aquela necessária, interminável, apoiada no tripé de supervisão, análise e estudos teóricos, e sustentada pelo desejo. Com isso, pode-se deparar, no trabalho desenvolvido pela Seção Clínica, com um saber que não se totaliza, pulsante, dinâmico, questionador e que se renova no movimento que a clínica que visa o real evidencia. Um trabalho que repousa no “reconhecimento de um não-saber irredutível – S(A/) – que é o próprio inconsciente, o ímpeto para prosseguir um trabalho de elaboração orientado pelo desejo de uma invenção do saber” (MILLER, 2020, s. p., tradução nossa). De tal forma que temos na Seção Clínica o constante esforço de “Como fazer para ensinar o que não se ensina?” (MILLER, 2013, p. 9), e, para isso, conta-se com a experiência de cada participante que ali se endereça com seu ponto de não saber.
Almanaque 35: Poderia nos falar sobre como você avalia a relação da Seção Clínica do Instituto com a cidade?
Maria Wilma: A Seção Clínica se faz presente na cidade de uma forma muito viva. Aqui podemos recorrer ao que Lacan (1967/2003, p. 251) chama, em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967”, de “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo”, na medida em que cada um que frequenta os Núcleos de Direito, Medicina, Criança, Toxicomania e Alcoolismo, Saúde Mental, Psicose e o Ateliê de Segregação traz sua experiência, apresenta casos e dialoga com outros discursos nos espaços da cidade onde a psicanálise se faz presente, lidando com seus impasses. E esse ponto é fundamental para a própria existência da psicanálise, uma vez que é um desafio, nesses tempos que correm, fazer valer o discurso analítico.