PAULO DE SOUZA NOVAIS
Psicólogo
Aluno do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
paulovidanovais@hotmail.com
Resumo: Este artigo busca apresentar um percurso relativo às elaborações sobre o conceito de inconsciente, partindo do momento em que o interesse de Lacan estava voltado para a relação transferencial com o analista e para suas interpretações decorrentes dos conflitos edipianos e do Nome-do-Pai, até chegar às últimas teorizações de que o falasser e o gozo do Um surgem na pena do psicanalista. O testemunho de passe de Alejandro Reinoso será tomado como bússola para ilustrar essas conceituações.
Palavras-chave: inconsciente transferencial; inconsciente real; simbólico; real; gozo.
Abstract: This article presents a discussion about the elaborations on the concept of the unconscious, starting from the moment in which Lacan’s interest was focused in the transference relationship with the analyst and his interpretations arising from Oedipal conflicts and the Name-of-the-Father, to his last theorizations, in which there are the notions of the speaking being (parlêtre) and jouissance of the One. The pass testimony of Alejandro Reinoso will be used as a compass to illustrate these concepts.
Keywords: transferential unconscious; real unconscious; symbolic; real; enjoyment.
“Uma escrita é, portanto, um fazer”
Jacques Lacan
Em seu texto “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Lacan (1975, p. 6) nos diz que “A contribuição de Freud foi a seguinte: não há necessidade de saber que se sabe para gozar de um saber”. Proponho, a partir dessa constatação do psicanalista francês, apresentar as elaborações sobre o conceito de inconsciente nas quais o interesse estava voltado para a relação transferencial com o analista e para suas interpretações, decorrentes dos conflitos edipianos e do Nome-do-Pai, até as últimas teorizações, em que o falasser e o gozo do Um surgem na pena de Lacan. Busca-se, portanto, uma pesquisa sobre os momentos de virada no seu ensino que demonstram a passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real.
Para ilustrar essas conceituações presentes do início às últimas elaborações do ensino de Lacan, vou me utilizar do testemunho de passe de Alejandro Reinoso (2020a; 2020b). Considero que não é o objetivo aqui fazer uma resenha ou comentário do seu trabalho analítico, mas uma tentativa de tornar possível, através de seu percurso e desfecho, uma melhor compreensão do tema abordado.
O relato é que a sua escolha por aquele analista especificamente se deu pelo fato de este falar a língua de seu avô materno, o italiano, e pela seriedade no trabalho. Há um significante-mestre importante: seriedade, decorrente da característica marcante presente nesse avô e, num menor grau, também no pai. Outro aspecto do analista era vivenciado no processo de análise, provocando no analisante uma certa inquietação, nas palavras do próprio: “seu sorriso e suas risadinhas sem sentido. Eram uma careta do real que me perturbava” (REINOSO, 2020a, p.110). O que se pode inferir, a partir dessa experiência ímpar, sobre essa pesquisa do inconsciente transferencial e do inconsciente real? Por que os sintomas que tanto afligiam o analisante eram fontes de perturbação diante do sem sentido dessas risadinhas por parte de seu analista? Veremos, posteriormente, portanto, uma analogia entre esses tais sintomas e uma indignação de si próprio vivenciada por Alejandro: “Era preciso, então, pensar bem antes de falar, apenas olhar e escutar o sofrimento dos outros; escutar demais, ocultando-se sem aparecer e com um desejo constante de fuga” (REINOSO, 2020a, p. 109).
Inconsciente transferencial
A interpretação do sentido do sintoma relatado por um sujeito diz respeito ao modo como a rede de significantes foi transmitida a ele. Ali, na cadeia simbólica, estão contidas as vivências infantis; o modo como a criança foi desejada, como recebeu os cuidados destinados à sua sobrevivência quando ainda era muito pequena. Toda a constituição das identificações com seus genitores, bem como com os adultos responsáveis pela sua educação e socialização, tem início nesse compartilhamento dos ideais paternos, nesses sintomas e segredos familiares. Enfim, ocorre aí uma espécie de construção do Outro do sujeito. No testemunho de passe que estamos tomando como ilustração, cabe aqui uma frase dita pelo avô do sujeito com um certo grau de severidade e que vai ter um valor e um peso de uma injunção durante a vida: “Você não sabe o que é fome” (REINOSO, 2020a, p. 109). O menino havia chegado em casa da escola gritando que estava com fome. Ainda em relação a essas vivências primárias, Lacan (1964) ensina, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos da psicanálise, que o sujeito passa pelas operações de alienação e separação. Ou seja, a alienação seria essa própria identificação a um significante-mestre vindo do Outro, o que já representa a divisão do sujeito em decorrência do recalque também presente nesse momento. Já na operação de separação, aparece em cena o objeto perdido, o objeto a. Jacques-Alain Miller (2012) explica, em seu brilhante trabalho “Os seis paradigmas do gozo”: “da mesma maneira que o sujeito vale como uma falta-a-ser, supõe-se que a pulsão seja definida como incluindo uma hiância ou uma pequena cavidade” (p. 19). Ou seja, a linguagem vem como uma estrutura que, em si própria, já comporta a castração.
Freud denomina realidade psíquica ou fantasia esse processo de absorção das influências da realidade externa sobre o sujeito e a consequente subjetivação de tais intervenções que vêm do Outro. A demanda que aparece ao analista quando alguém procura a análise está relacionada, portanto, a essas significações primeiras, e que permaneceram no psiquismo. Algo aí provoca uma espécie de obstáculo, dificuldades na vida cotidiana que se traduzem em uma não fluidez nas diversas modalidades de relação, tais como afetivas, amorosas, profissionais e também que dizem respeito à insatisfação ou a algum desconhecimento ou enigma no que tange ao próprio corpo. Miller, no texto acima citado, elucida o primeiro ensino de Lacan demonstrando que, para o psicanalista francês, “o narcisismo envelopa as formas do desejo” (MILLER, 2012, p. 5), o que é nomeado pelo autor, em sua doutrina do gozo, como “imaginarização do gozo”, e vemos, em seguida, no percurso desse ensino, que a pulsão foi reduzida a uma cadeia significante, o que caracteriza a significantização do gozo.
Seja pelo imaginário, seja pelo simbólico, o que prevalece na relação transferencial é o sentido atribuído ao modo de lidar com os fatos, com as pessoas e com as complicações e dificuldades decorrentes daí. Trata-se de um investimento libidinal naqueles significantes-mestres que estavam presentes desde o início. Podemos dizer, com Lacan, que aí se encontra o sentido gozado. E, na “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, Lacan (1975) é bem claro: “como sustentar uma hipótese como a do inconsciente — se não se vê que é a maneira que teve o sujeito, se é que há algum outro sujeito senão aquele que é dividido, de estar impregnado, poderíamos dizer, pela linguagem?” (p. 6). Já em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, o psicanalista afirma que o saber é um meio de gozo, ou seja, ao mesmo tempo em que há falta nesse saber, há mais-gozar (LACAN, 1969-70).
Inconsciente real
O nome de O Seminário, livro 24, de Jacques Lacan, é L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Em alemão, Unbewusste quer dizer inconsciente, o inconsciente tal como foi ensinado por Freud. O autor traduziu por une-bévue, tradução essa que tem o mesmo som, pela homofonia. Daí pode-se concluir que une-bévue, um-equívoco, um-lapso, um-engano vem como sendo a base do conceito de inconsciente. Em outra referência importante de Lacan, o “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, ele aponta: “Quando o esp de um laps — ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso — já não tem nenhum impacto de sentido (ou de interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo” (LACAN, 1976, p. 567). Esse momento do ensino vem nos demonstrar que houve esse giro na clínica lacaniana. Ou seja, o que prevalecia antes desse momento era o sentido gozado, um gozo atrelado ao significante, havendo até mesmo uma relação primitiva entre o significante e o gozo. Uma entropia ou um desperdício de gozo natural na linguagem era então o gatilho para uma exigência de um mais-de-gozar. Essa busca de gozo no objeto se expande até mesmo para os objetos da cultura, preferencialmente os gadgets, aqueles produtos e aparelhos tecnológicos lançados a todo momento no mercado, seguindo as diretrizes do discurso capitalista e ofertados para o consumo desenfreado.
O que então vem representar essa radical mudança no percurso teórico e clínico da psicanálise lacaniana? Que elemento comportaria e influenciaria a diferença nos modos de intervenção do analista nesse derradeiro ensino? A resposta é o corpo, um corpo separado do Outro. Um-corpo.
“No lugar do Outro, o corpo. Não o corpo do Outro, e sim o corpo próprio […]. E esse Um-Corpo […] é a única consistência do falasser. Eis que, com uma frase, ele reduz todos os reflexos oscilantes desse depósito que é o Outro maiúsculo. O Um-corpo como a única consistência” (MILLER, 2009, p. 110-111).
O significante incidindo no corpo vivo adquire um valor de trauma, pois ele é, primeiro, causa de gozo. É o acontecimento de corpo. Constata-se, então, que o falo já não é suficiente para evitar a não-relação sexual para o falasser. Miller (2010) fala da extimidade para marcar o que esse resto de Coisa tem de heterogêneo em relação ao Outro e, contudo, ao mesmo tempo, de localizável a partir do Outro.
O que Freud (1920) traz em Além do princípio de prazer, bem como nos seus conceitos de supereu e masoquismo, dá a pista para uma ampliação e contemporaneização da noção de sintoma, e, com o inconsciente real, isso se consolida. Não mais a falta no Outro, mas, no lugar do Outro, um furo. O furo remete à exclusão do sentido. A linguagem vem como elucubração de saber sobre lalíngua, dando ao sintoma a característica de ser feito da “reiteração inextinguível do mesmo Um” (MILLER, 2015, p. 21).
No inconsciente transferencial, o que vigora na relação com o analista é a interpretação, a decifração. Enquanto, no inconsciente real, o que há é uma operação de redução do sintoma, um fazer-uso. Savoir-y-faire. Saber-fazer-ali-com o sintoma. Alejandro Reinoso diz em seu testemunho: “Fazer-se sério para obter uma precária dignidade de vida, desprovida de vivacidade e vigor” (REINOSO, 2020a, p. 110). Relata o sonho em que comia, com gosto, o arroz cantonês, il riso a Lacan-tonese, o-riso-à-la-Lacan, como interpreta o analista. “Efeito imediato: ri às gargalhadas, vibrando com todo o corpo; o analista também riu. O que era esse riso-a-la-Lacan?” (REINOSO, 2020b, p. 45). Efeito: um reencontro com o riso que antes aterrorizava, que representava um ódio ao próprio gozo.
Em outro sonho, imediatamente antes da demanda do passe, aparece um livro. No centro do livro estava a palavra francesa Ouïr, em maiúsculas. Oui, Ouïr, Huir. Sim-ouvir-fugir. Letra que nomeia o sintoma e que não remete a nenhum sentido. É um saber-fazer com a fuga e com o ouvir. Um amor ao sinthoma.