Gilson Iannini
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG
E-mail: gilsoniannini@yahoo.com.br
Excerto 1: O carro e o tempo parado
Homem adulto, profissional bem-sucedido, relata dificuldade recorrente em desfrutar experiências prazerosas: festas, viagens, museus, paisagens. Sempre algo estraga: a ansiedade, o medo constante de assaltos, roubos, violências. Na Itália ou França, teme pickpockets; no Brasil, bandidos armados; nos Estados Unidos, terroristas. Vive em estado de alerta. Depois se arrepende. “Não curti, de novo”.
Durante uma sessão, recorda uma cena infantil: o pai estaciona o carro, deixa o filho sozinho por alguns minutos com a promessa de voltar logo. O menino observa da janela quando dois homens arrombam o veículo e levam um objeto do banco da frente. Ninguém se fere. Mas alguma coisa se quebra.
Ao narrar a lembrança, diz que “nada mais o emociona”. Nem a Torre Eiffel, nem o Coliseu, nem o Pão de açúcar. O analista interrompe:
– Nada?
– Me emociono com carro – responde ele, quase sem pensar.
– Que carro?
– Como assim, que carro? Sei lá. Qualquer carro, especialmente se for raro!
– Como aquele em que seu pai te esqueceu?
Ele consente e se levanta do divã.
Excerto 2: O desejo escondido
Mulher jovem, em análise, queixa-se de vergonha excessiva: dificuldade de falar em público, de se colocar profissionalmente, apesar da boa formação acadêmica, de expressar o que quer – seja em situações triviais, seja em relações íntimas. Usa metáforas corporais: diz que “prefere sumir”, “virar parede”, “ser transparente”.
Depois de um sonho de ser impedida de entrar num Colégio só para meninas, lembra cenas da infância. Pequena, gostava de se esconder – debaixo da cama, atrás da cortina – para observar a mãe se vestir. A lembrança é vívida: a mãe de costas, tirando a blusa, o sutiã no chão, os sapatos de salto. Ela, escondida, assistia em silêncio. Nunca foi descoberta. Nunca se revelou. Via tudo por essa janela, esse enquadre.
Já adulta, repete a cena. Agora, são os parceiros que estão “do outro lado da cortina”: homens casados, ocupados, distantes, impossíveis. Relações em que o desejo nunca se realiza à luz do dia, mas apenas como espreita. O escondido virou regra. O objeto se divide entre a face da causa de desejo e a opacidade do gozo.
O tempo freudiano
Uma das coisas mais incríveis da psicanálise é sua teoria do tempo. O inconsciente é atemporal, e mesmo assim feito de camadas, ruínas e traços, em constante movimento. O passado muda rápido demais, e às vezes isso nos dá uma certa vertigem. Mas tem também aqueles buracos negros que insistem em nos atrair sempre para as mesmas armadilhas. Não é isso o inconsciente – ou pelo menos não são essas suas condições?
E tem ainda a transitoriedade. Acho difícil que alguém conteste que “Transitoriedade” não seja um dos mais belos textos de Freud, se não o mais belo. “Vergänglichkeit” designa aquilo que é fugaz, efêmero, que não dura. Uma boa pergunta seria se o infantil é transitório ou não? Se sim, em que consiste a transitoriedade do infantil, que, ao mesmo tempo, insiste em repetir? A fruição do belo contém uma promessa de felicidade, mas, ao mesmo tempo, a certeza de que o objeto de deleite desmancha no ar. O tempo é circular, lembra Freud. Mas serão os ciclos da natureza e suas estações? Ou as elipses do sujeito gravitando em torno do objeto que o divide, enquanto ele próprio também se divide?
Freud passeia com “um amigo taciturno” e “um jovem poeta”, já famoso àquela altura. De curiosidade a gente não morre, né? É claro que descobriram que um era Lou Andreas-Salomé (curiosamente disfarçada de homem) e, o outro, Rainer Maria Rilke. A “florescente paisagem de verão” remetia às Dolomitas, paisagem alpina do norte da Itália. O verão em questão seria o de agosto de 1913, pouco antes da eclosão da Grande Guerra. Pelo relato de Freud, escrito uns anos mais tarde, podemos imaginar uma caminhada lenta e meditativa, observando as paisagens paradisíacas das montanhas, em meio a flores e cogumelos. Rilke reclama: essa beleza vai acabar em breve, tão logo chegue o inverno. Ele é jovem, tem cerca de 36 anos; Freud, perto de completar 60, retruca: mas a beleza está exatamente no fato dessa fugacidade, dessa transitoriedade. A beleza é rara e dura pouco. Salomé, aos 50 anos, prefere ficar em silêncio. O silêncio de Lou é uma espécie de grito? Àquela altura, Lou era ex-amante, mas eterna musa do poeta, ao mesmo tempo em que era psicanalista e escritora, e fascinava Freud, como havia fascinado Nietzsche outrora. Taciturna e melancólica? Tem certeza, Dr. Freud? Não é o que a biografia dela sugere.
Mas é provável que essa caminhada só tenha ocorrido na imaginação de Freud, e na nossa desde então. É verdade que os três haviam se encontrado, no último Congresso de Psicanálise antes da eclosão da Guerra, ao sopé da montanha. Mas suspeito que a conversa tenha ocorrido no salão do hotel, no intervalo entre as mesas e conferências, entre xícaras de café ou chá, biscoitos amanteigados, bolo de chocolate com geleia de damasco… e charutos. Tudo isso tem cheiro de infância… meio proustiana demais, talvez…
O que importa é que a resposta de Freud à revolta do poeta diante da transitoriedade da natureza é uma aula sobre as relações entre a libido e o luto. Mais do que isso: pouco se nota que Freud estende sua teoria do luto, que se aplicaria não apenas à perda de objetos como pessoas ou coisas, mas a fases da vida. Quem atende pacientes idosos, sabe muito bem que parte do tratamento analítico tem a ver com a perda, com um trabalho de luto: do corpo que não funciona mais como antes, dos sonhos que não se concretizaram, dos amores perdidos e também dos encontrados. Mas também dos desejos que, ao se realizarem, levam à ruína. Os exemplos não são poucos. Parece que o infantil emerge como mais clareza quanto mais o corpo decai. Voltam os apelidos, as cenas, traumáticas, mas também as opacas cenas de gozo.
O infantil como insistência
O infantil, para Freud, não é um tempo perdido. É um tempo em suspenso – fora do tempo, como o inconsciente onde ele se aloja, ou que o desaloja. Essa temporalidade específica é formulada em diversos registros. Em “O mal-estar na cultura”, Freud recorre à metáfora arqueológica de Roma como cidade onde as ruínas de todas as épocas coexistem: nada desaparece, tudo sobrevive em camadas superpostas. No ensaio “Sobre a transitoriedade”, diante da angústia provocada pela efemeridade, ele propõe que a perda não anula o valor; ao contrário, é a condição para que o passado atue. O tempo, na economia do inconsciente, não opera por sucessão, mas por simultaneidade. É o tempo de Roma, feito de camadas e ruínas, mas será também o tempo de Baltimore, feito de um horizonte mais plano. O inconsciente que aloja é Roma, o que desaloja é Baltimore. A criança freudiana não é figura da inocência, mas da intensidade: corpo polimorfo, disposição bissexual, inconsciente como resposta ao enigma da não relação entre os sexos. O infantil não é natureza, nem cultura. É entre dois. Não é uma fase superada. Na verdade, nem exatamente perdida, mas deslocada. Freud não diz apenas que fomos crianças – ele afirma que continuamos sendo. Quem dera fosse a criança idealizada dos poetas aquela que nos espreita nas brechas da memória. Voltar à criança que fomos e que perdemos? Nada mais longe de Freud. Não há esperança, nem temor, como lembra Lacan em algum lugar. Infantil não é a criança. É o que escutamos diariamente.
Nos dois excertos clínicos apresentados, o infantil não aparece como lembrança, mas como operador. No primeiro caso, a cena do pai que abandona momentaneamente o filho no carro, onde ocorre um assalto, não desaparece com o tempo: ela fixa um afeto – o medo – e uma posição subjetiva – a de quem está sempre quase sendo roubado. Ou que rouba? Ao mesmo tempo, o fascínio desloca-se para o objeto carro. Não se trata pura e simplesmente de gosto automotivo – trata-se da única forma de reencontrar o objeto da cena traumática.
No segundo caso, não se trata de trauma. O esconderijo infantil – debaixo da cama, atrás da cortina – não foi abandonado: foi atualizado. Ele itera, mais do que repete. A paciente itera a posição de espectadora envergonhada, engavetando o próprio desejo, cada vez mais invisível, quer dizer, à luz do dia. Namora homens inacessíveis, não por acaso, mas por estrutura iterativa. A vergonha, nesse ponto, não é um obstáculo contingente, mas o signo de uma economia de gozo marcada pelo recuo e pela espreita. Não apenas o brilho da perda, mas o opaco do gozo.
Ambos os casos demonstram que o infantil não é o que passou, mas o que insiste. Freud localiza aí o cerne do sintoma, a cifra do gozo. As chamadas “teorias sexuais infantis” são um exemplo radical disso: não são erros infantis, mas construções duráveis, cuja persistência molda o modo adulto de desejar. O inconsciente é, também, uma teoria sexual infantil. Ou toda teoria é infantil? Como escreveu em 1908, a teoria sexual infantil persiste como matriz de julgamento para todas as experiências futuras. A criança que fomos permanece viva na forma como amamos, tememos, olhamos, nos calamos.
Assim, toda análise é, em alguma medida, a análise do infantil. Não da infância biográfica, mas de seus restos vivos: cenas fixadas, posições gozadas, roteiros inconscientes repetidos, séries iterativas. O infantil não é o começo, mas o núcleo que resiste ao tempo. E que, por isso, só pode ser lido como se lê uma ruína: camada por camada, num presente que se arqueologiza a cada fala. Ou na superfície do labirinto em linha reta.