Dominique Laurent
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
laurent.dominique@wanadoo.fr
Resumo: A norma neurótica é uma falsa evidência imposta na história do patriarcado. As normas se dizem no plural, proliferam, ao passo que a lei se diz no singular. É preciso compreender que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, a fim de irmos além do binarismo neurose e psicose. O conceito de sinthoma, nesse sentido, constituiu um avanço na clínica “inclassificável”, ou seja, na clínica da psicose ordinária.
Palavras-chave: norma; lei; psicose, neurose, sinthoma; psicose ordinária.
THE ORDINARY OF JOUISSANCE, FOUNDATION OF THE NEW CLINIC OF DELIRIUM
Abstract: The neurotic norm is a false evidence imposed on the history of patriarchy. Norms are said in the plural, they proliferate, while the law is said in the singular. It is necessary to understand that the paternal metaphor is never fully realized, in order to go beyond the binary neurosis and psychosis. The concept of sinthome, in this sense, constituted an advance in the “unclassifiable” clinic, that is, in the clinic of ordinary psychosis.
Keywords: norm; law; psychosis; neurosis, sinthome; ordinary psychosis.
A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996 em seu seminário, inaugura, dizia ele, “a era lacaniana da psicanálise”, a “da errância, a dos não-tolos erram, a daqueles que são mais ou menos tolos do pai, mais ou menos tolos do Outro” (MILLER, 2005, p. 10-11).
Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais como um todo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever em Gaia ciência que “Deus está morto”, já não estaria inscrevendo essa questão? Houve, entretanto, ideais que foram resistentes e puderam assentar de modo decisivo a função paterna, um dos detentores do título do Outro. Isso é tão verdadeiro que na psicanálise “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante que o Outro existe” (MILLER, 2005, p. 10). Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho de sua desconstrução e de sua pluralização no equívoco dos não-tolos erram. Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de basta. Não há mais necessidade de ninguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente se tornou louca.
Crença e loucura
A função paterna se apresenta daqui para frente como o avesso do mestre, sob a forma depreciada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia para todos, para assegurar a satisfação de seus desejos e lhes devotando um amor igual. O verdadeiro Outro, ao qual se recorre como garantia, é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica para aquele que encarna a função de pai como se comportar, mas ela autoriza e reconhece, de modo inédito, estilos de vida outrora condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai tem conduzido os movimentos de reivindicação e de luta das mulheres, dos gays e lésbicas para registros diversos cujo último, depois do mariage pour tous,[2] diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber um filho por P.M.A.[3]
Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para-além do pai. O bom uso da função do significante-mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não seja fora-da-lei. O discurso do direito, ao assegurar a promoção do direito à diferença, pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito com o gozo? Em outras palavras, a identificação a um significante-mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não se resolve apenas na prática sexual, o sintoma verifica isso, mesmo que o parceiro sexual seja ocasionalmente o parceiro sintoma do sujeito.
A norma neurótica, construída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan dava a entender em Os complexos familiares,[4] a neurose é, sob muitos aspectos, um efeito de perspectiva tomado em uma relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs em um momento da história do patriarcado. Sem dúvida Lacan falava de um momento remoto. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, elas são falantes. A lei se diz no singular, ela pode, para Lacan, se reduzir aos comandos da fala segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também as que são majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo pelo qual se vive a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não é única. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas P.M.A., o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais casais ou não, encarregados de família ou não. O combate pela emancipação feminista em relação à ordem simbólica tradicional, seguido pela noção de gender, que tenta reduzir a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida até os queer que, confrontados a uma fuga de identificações, se prendem a modos de gozar cada vez mais singulares.
Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma, isto é, do parceiro gozo.
Do patriarcado ao parceiro gozo
Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal em sua composição e recomposição, assim como as da parentalidade. Mais ainda, estamos sendo confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, pelo retorno por artifício ao casamento funesto da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um regime novo, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado dos estilos de vida. O valor social atrelado a um ou a outro varia segundo o preço atribuído pela civilização ao ideal e ao objeto a. Não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem em seu modo de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil acreditar que elas sejam ainda a norma.
Os tipos de sintomas e os imperativos de gozo
Lacan apreendeu o sintoma em sua dimensão singular, isto é, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, já que ele remete sempre ao um a um. Essa perspectiva do sintoma é, entretanto, correlativa de uma outra, a do sintoma apreendido pela estrutura. Em “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, Lacan (1973/2003) coloca a questão sobre os tipos de sintomas como a clínica os isolou antes da psicanálise, pelo olhar da particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade desses tipos como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não respondem ao nominalismo da contingência, mas ao realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são então identificáveis pelo “imperativo de gozo”. A Zwangneurose deve ser generalizada para além daquilo que a neurose obsessiva permite perceber.
Essa questão do gozo está em primeiro plano no caso freudiano do Homem dos Lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, dedicou a ele todo um seminário de DEA.[5] É com esse caso que Freud introduz pela primeira vez o termo Verwerfung, rejeição à castração, que é acompanhado, ao mesmo tempo, de um reconhecimento da castração. Para Lacan, como observa J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado assim: “como formular uma coexistência da Verwerfung e do reconhecimento da realidade?” (MILLER, 1987-88, p. 11). J.-A. Miller situa em primeiro lugar a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele nomeia “forclusão como mecanismo simbólico” (LACAN, 1954/1998, p. 388-89). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento linguageiro significante – e não um sentido – que é subtraído do circuito”. É um elemento “que faz sentir seus efeitos somente por sua ausência, e que mobiliza muitas significações em torno dela, sem que essas significações cheguem a alcançar esse próprio significante” (MILLER, 1987-88, p. 16).
A forclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não põe em questão toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar na assunção […] da função paterna, mas sobre a função da castração” (MILLER, 1987-88, p. 21). A forclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956 com a “Questão preliminar…” (LACAN, 1957-58/1998). A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica numa forclusão do Nome-do-Pai?
Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são interrogadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Assim que um menos se dirige ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito se desestabiliza. É o que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se esse falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (MILLER, 1987-88, p.40).
A paranoia e a clínica universal do delírio
A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a forclusão generalizada vem evidenciar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente reabsorvido pela mortificação significante e que, a esse respeito, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que ali onde está o gozo, e não simplesmente o joui-sens[6] fálico, é a língua em seu conjunto que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se faz com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se imobilizam dependem do sinthoma e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthoma tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas de procurar em cada caso a singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.
O conceito de sinthoma constituiu um avanço considerável para compreender uma clínica confusa, “inclassificável”, e aquela que chamamos desde a Conversação de Arcachon de clínica da psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, a ênfase dada por Lacan ao impacto do dizer sobre o corpo antes da entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade […] é a mesma coisa” (LACAN, 1975-76/2007, p. 52). Lacan havia mostrado desde o estádio do espelho a paranoia constitutiva do sujeito em seu imaginário em relação ao outro e elaborou os diferentes tratamentos desta paranoia constitutiva. Ele chega a concluir com a teoria dos nós que a psicose paranoica consiste em que o sujeito amarre a três, em uma continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros traz o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1964/1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S(Ⱥ).
O impacto do dizer no corpo, antes de qualquer entrada em cena do olhar no estádio do espelho, depende do troumatisme.[7] Ele é apreendido a partir do furo, da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como fazendo furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamava de “clínica universal do delírio aquela que toma seu ponto de partida disso, que todos nossos discursos são apenas defesas contra o real” (MILLER, 1996, p. 90). A fórmula “todo mundo é louco, isto é, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31) remete à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que concerne a sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso subverte as diferenças feitas até então entre neurose e psicose.
Para concluir, não é excessivo dizer que, com a declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico para se defender do real não é mais a norma mesmo que haja sempre pais e mães em torno dos quais o discurso se apega mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, a esse respeito, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.