LAMA -RICHARDSON PONTONE
Freud, em “Pulsões e seus destinos” (1915), fala sobre o amor e o ódio tendo como pontos de partida suas relações com o tempo e com a origem. Eles têm origens diversas e andam em um descompasso temporal, sendo o ódio anterior ao amor.
Em Lacan, as paixões do ser se inscrevem no momento em que ele define o sujeito do inconsciente como falta-a-ser, motor que conduz o sujeito a buscar, no outro, aquilo que pode lhe conferir um sentido diante de uma significação sempre aberta.
O ódio, como uma das paixões do ser, diz respeito à operação de constituição do sujeito através do mecanismo da Austossung, a expulsão como o ponto de partida da configuração do ser. Movido pelo princípio do prazer, aquilo que é desagradável é expulso, configurando-se de um modo radical no dito do sujeito “isso não sou eu”. Do outro lado, temos a introjeção da experiência prazerosa que constitui o “isso sou eu”.
Ódio, o mais antigo
Em “Pulsões e seus destinos”, Freud nos diz que o amor e o ódio
(…) não surgiram da cisão de uma entidade originalmente comum, mas brotaram de fontes diferentes, tendo cada um deles se desenvolvido antes que a influência da relação prazer-desprazer os transformasse em opostos” e que “O ódio enquanto relação de objetos é mais antigo que o amor (1915/1976, p. 160-161).
Ele se refere a “uma fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, [em que] a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia em dominar, para a qual o dano ou aniquilamento do objeto é indiferente” (Ibid.).
Freud não supõe pura e simplesmente uma anterioridade do ódio em relação ao amor. Ele parte do momento em que o eu só ama a si mesmo e permanece indiferente para com o mundo. O odiar atinge seu objetivo quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, assim, prazer e desprazer significam relações entre o ego e o objeto, motivo de uma instabilidade essencial e sempre presente no eu, motor para uma relação mais permeável entre dentro e fora, descrita por ele da seguinte maneira:
O mundo externo é decomposto agora em uma parcela prazerosa, que [o sujeito] incorpora em si, e em um resto, que lhe parece estranho. Do seu próprio eu, ele extraiu uma parte que expeliu para o mundo externo e que passa a sentir como hostil (Ibid., p. 159).
Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio.
Essa passagem aponta para uma expulsão fundadora, a Austossung, primeiro intercâmbio do sujeito com o mundo, que se baseia na expulsão de um excesso inominável.
Como aproximar essa expulsão mítica e estrutural dos fenômenos do ódio?
Para melhor situar as relações entre dentro e fora, Lacan insiste na importância de discernir os registros imaginário e real. A operação mítica de constituição do sujeito se dá sem a interferência do simbólico. Imaginário e real participam da constituição de um corpo que goza e, sem o alcance do simbólico, se constitui como um gozo que não segue o modelo do Ideal do Eu (SILVA, 2019). Dessa forma, o imaginário não consegue estabilizá-lo.
Esse corpo permanece no real, marcado por uma relação entre o eu e o outro que se constitui como uma espiral em que a possibilidade de vacilação da percepção quanto à unidade encontra-se sempre presente. É o que, no Seminário 2, Lacan nomeia ‘desarvoramento’ (LACAN, 1954-1955). O recurso à alteridade que o sujeito utiliza deixa como legado uma tendência à rivalidade e à inveja.
Essa tal rivalidade seria o fundamento do ódio? Lacan afirma que há uma dimensão imaginária do ódio, uma vez que a destruição do outro é um polo da relação intersubjetiva. Contudo, o ódio não se satisfaz com a destruição do adversário, o que aponta para uma presença suplementar. Aqui, Lacan destaca uma diferença entre simplesmente vencer, destacar-se no eixo imaginário e frustrar o sujeito no seu ideal no sentido de uma formação egoica, eu ideal (LACAN, 1953-1954, p. 316).
O desaparecimento do outro, objeto do ódio do sujeito, pode não representar uma solução eficaz. Pelo contrário, a presença imaculada da sua ausência pode eternizar o ódio. Humilhar e degradar publicamente o outro pode ser uma forma de destituição mais eficaz para o sujeito do que derrotar esse outro: mais vale a sua abjeção.
Para Lacan, no Seminário 1, o ódio, assim como o amor, é uma carreira sem limite (1953-1954, p. 316). Há um ilimitado em questão, uma presença suplementar que se constitui como gozo, que estabelece uma relação entre as figuras simbólicas abstratas e o campo concreto das relações. O gozo tende a evocar esse ponto de alteridade interna, de presença êxtima, de erro.
A distinção entre o ódio dito estrutural, constitutivo do sujeito, e o ódio manifesto no comportamento muito nos auxilia na nossa prática clínica.
O Erro enquanto uma figura de linguagem
Lacan, no Seminário 1 (1953-1954, p. 300-301), articula as três paixões às três figuras de linguagem: erro, ambiguidade e engano. Ele aproxima o ódio do erro vinculando-o à denegação, a ambiguidade à condensação e o engano ao lapso. Para Lacan, é no tecido simbólico que a emergência da verdade pode ser verificada. A palavra se afirma verdadeira justamente por ser enganadora. Na emergência de certo tipo de contradição, encontra-se uma passagem da errância subjetiva habitual para a materialização de um erro sem lugar e singular.
A denegação freudiana nos ensina que, quando um significante veicula uma impropriedade, quando se apresenta como não podendo estar ali, algo do ser comparece nesse regime de não ser, de não poder ser.
A figura do erro constitui uma prerrogativa capaz de possibilitar uma passagem do ódio como rompante, como fenômeno, como excesso, para algo mais apreensível na linguagem, para a ex-sistência, que, como tal, é sempre complicada. A ex-sistência é um nome para um excesso particular ou singular.
Marcus André, em seu livro A ética da paixão, trata o erro como aparição na fala de algo não planejado, de uma presença insensata que introduz a dimensão da verdade. “O erro diz respeito a um significante que é o ‘não pode ser” (2001, p. 174). Pode provocar o desprezo, a depreciação, a necessidade apaixonada de exclui-lo da série, de eliminá-lo. Esse é o fundamento do ódio. Um significante que, de alguma maneira, extrapolaria o próprio exercício corrente do simbólico.
Lacan nos diz que o ódio é um sentimento lúcido pressupondo, portanto, sua ligação com o saber, enquanto a dificuldade em reconhecer o ódio manifesto na relação ao outro pode ser uma manifestação da ignorância, como uma das paixões do ser. Dessa forma, o sonho do amor universal pode levar à ignorância quanto à irredutibilidade do ódio, que nunca se reduz a zero. O trabalho de análise pode possibilitar ao sujeito encontrar alternativas e saídas próprias.