Sérgio de Campos
Psicanalista e Psiquiatra
Analista Membro da Escola (AME), Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: sergiodecampos@uol.com.br
Inicialmente, com a finalidade de abordar a Seção Clínica, é necessário realizar um preâmbulo com o intuito de tecer algumas considerações sobre a diferença entre o Instituto do Campo Freudiano e a Escola de Psicanálise. Por mais que já sejam conhecidas as diferenças pelos colegas mais experientes, é necessário demarcar as distinções entre o Instituto e a Escola, já que endereço este texto aos jovens analistas.
Inicialmente, no “Ato de Fundação”, Lacan (1964/2003, p. 237-238) divide a Escola em Seção de Psicanálise Pura, Seção de Psicanálise Aplicada e Seção de Recenciamento do Campo Freudiano, que têm a finalidade de cuidar das publicações, de articular a psicanálise com as ciências afins e zelar pela práxis de sua teoria.
Na “Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista na Escola”, Lacan (1967/2003, p. 249) aprimorou os estatutos, separando a hierarquia e o gradus. Em relação à hierarquia, propôs o princípio da permutação para a Escola e, com fins de responder a pergunta sobre o que é o analista, inventou o dispositivo do Passe, referido ao título de Analista da Escola (AE), e a Garantia, para aquele reconhecido como um analista que comprovou sua capacidade, o qual foi designado de Analista Membro da Escola (AME). Com esses dois dispositivos – Passe e Garantia – Lacan passou a operar como Diógenes: se este, com sua lanterna, estava à procura de um homem, Lacan, com seus dispositivos, estava em busca de um analista (MILLER, 2023a, p. 227).
Mas, se existe a Escola, para que Lacan cogitou o Instituto? Pode-se dizer que são duas instâncias com lógicas de funcionamento separadas. Grosso modo, se, por um lado, e na medida em que não há uma identidade sobre o que é um analista, no fundo a pergunta que sustenta a Escola é: o que é o analista?, por outro, como existem distorções da psicanálise pelas outras instituições analíticas, e uma diluição da psicanálise em razão de sua apropriação por diversas correntes de psicoterapias, a pergunta que engendra o Instituto é: o que é a psicanálise?
Então, com o intuito de responder a pergunta sobre o que é a psicanálise, Lacan fundou o Campo Freudiano e o estabeleceu como uma instância “para-universitária”, constituindo-o mediante um conjunto de Institutos que funcionam totalmente independentes da Escola. O Instituto e a Escola têm suas próprias consistências, constituições, funções, finalidades e tarefas, de sorte que não existem ambiguidades entre ambos.
O Campo Freudiano detém a missão, formulada por Lacan em 1974, de contribuir para a formação científica dos psicanalistas e de todos os trabalhadores da saúde mental. É interessante destacar a preocupação de Lacan em estender o conhecimento psicanalítico aos trabalhadores da saúde mental (MILLER, 2023b, p. 62). Embora totalmente independentes do ponto de vista legal em relação à Escola, muitos são os membros da Escola que ensinam nos Institutos do Campo Freudiano. Entretanto, a psicanálise não é ensinada a partir da posição do mestre ou do discurso universitário, mas apenas a partir da posição do ensinante, que evoca a condição de analisante (MILLER, 2023b, p. 174). Nessa medida, apenas se ensina a psicanálise a partir de sua própria falta, na posição de sujeito dividido (LACAN, 1970/2003, p. 305). Tal ensino da psicanálise, ademais, não pode ser transmitido de um sujeito a outro, senão pelos caminhos de uma transferência de trabalho (MILLER, 2000, p. 157).
O Campo Freudiano abriga uma série de publicações concernentes aos textos de Lacan e aos principais autores da psicanálise de orientação lacaniana. Portanto, o Campo Freudiano não se define como um corpo institucional fechado, mas sim como um espaço aberto, inconsistente e não-todo, que se dedica ao ensino, à transmissão e à difusão da psicanálise mediante permanente discussão, interlocução e articulação com outros campos do saber. Além disso, é sob os auspícios da Fundação do Campo Freudiano que se realizam uma série de encontros nacionais e internacionais que visam discutir, de maneira pormenorizada, a clínica psicanalítica sob o viés do caso clínico (MILLER, 2023b, p. 62).
Lacan se converteu em diretor científico do Departamento de Psicanálise em 1974, instituiu a Seção Clínica no departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes-Saint Denis) em 1977, criou a Fundação do Campo Freudiano em 1979 e a Escola da Causa Freudiana em 1981. Até o momento de sua morte, ele então presidia essas três instâncias (MILLER, 2023b, p. 63). A Seção Clínica criada por Lacan em 1974, no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, passou a fazer parte do Campo Freudiano, na época de sua fundação.
Enfim, a Seção Clínica é um conceito central na teoria e na prática lacanianas e tem a finalidade de articular a experiência da clínica analítica com o ensino e a transmissão da psicanálise, em uma relação distinta dos modelos convencionais das Universidades. Diferente da estrutura convencional do modelo universitário, ela foi pensada por Lacan (1973/2003, p. 518) a partir de sua crítica às formas tradicionais da formação do analista, instituídas pela IPA, que, ironicamente, a renomeava como Sociedade de Ajuda Mútua Contra o Discurso Analítico (SAMCDA).
Os Institutos de Psicanálise no Brasil ligados ao Campo Freudiano funcionam de maneiras bem distintas. Não entraremos em consideração sobre os demais Institutos, mas apenas sobre o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG). Fundado em 1997, desde então sua diretoria é regida pelo princípio da permutação a cada quatro anos. O IPSMG se divide em: Diretoria de Ensino, que se ocupa das Lições Introdutórias à Psicanálise e do Curso de Psicanálise; Seção Clínica, que é constituída pelos Núcleos de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças, Psicanálise e Direito, Psicanálise e Medicina, Psicanálise e Psicose, Psicanálise e Saúde Mental, Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, além do Ateliê de Psicanálise e Segregação; e Diretoria de Publicação, que cuida das mídias digitais e da publicação da revista Almanaque On-line e da coleção …com Lacan.
A psicanálise aplicada ao sintoma, aplicada à terapêutica, à pesquisa e à investigação e desenvolvida na Seção Clínica se baseia no seguinte tripé: a “Apresentação de pacientes”, hoje renomeada de “Entrevistas clínicas”, as discussões de casos clínicos e os seminários teóricos. Esse tripé tem o objetivo de colocar em evidência a experiência prática do analista, o manejo da condução do caso, assim como a direção do tratamento, particularmente de casos paradigmáticos e difíceis.
Ademais, a Seção Clínica promove semestralmente uma Conversação Clínica com a finalidade de cogitar, ampliar, aprofundar e fundamentar o debate dos temas relevantes gerados pelo saber extraído das apresentações teóricas e clínicas dos Núcleos de Pesquisa e Investigação sob a perspectiva do mundo contemporâneo.
Portanto, a Seção Clínica não é apenas um espaço do saber exposto para os analistas transmitirem suas experiências, mas, particularmente, a porta de entrada dos mais jovens que se interessam pela psicanálise e encontram nos Núcleos de Pesquisa e Investigação um terreno fértil de interface com outras áreas afins. Assim, a Seção Clínica não se constitui como mais um curso de psicanálise, como os demais. É um espaço vivo de trabalho, de debate, de interlocução e de transmissão da psicanálise. Portanto, a Seção Clínica é o ponto de convergência da busca de respostas na tentativa de elucidação do gozo que se manifesta na repetição sintomática dos casos clínicos, de esmiuçar os impasses da transferência, de despertar a capacidade reflexiva para colocar em questão o conhecimento standard e do desejo de saber.
A teoria da prática enquanto prática é distinta da teoria. Portanto, a psicanálise é uma prática que leva em conta o inconsciente, e não uma teoria do inconsciente. A psicanálise é essencialmente uma prática e sua transmissão apenas funciona como um saber fazer aí com sua presença, visto que se trata de um saber fazer da experiência analítica em sua transmissão e na formação do analista (MILLER, 2008, p. 19).
À guisa de conclusão, a formação do analista é composta pela tríade de uma experiência de análise pessoal, do controle da prática clínica com supervisões regulares e frequentes e pelo estudo da teoria psicanalítica. Portanto, pode-se dizer que a Seção Clínica tem uma boa parcela de influência na formação analítica no que concerne à experiência, ao ensino e à transmissão da psicanálise. Vale destacar que a análise pessoal, o controle da prática e o ensino da psicanálise se articulam em um nó, permanecendo assim enlaçados de maneira borromeana.
Sob essa perspectiva, é possível que a análise pessoal esteja concernida ao real como índice de saber fazer com o gozo pelo trabalho analítico; o controle da prática analítica esteja referido ao plano imaginário, já que ela visa desbastar os efeitos imaginários da contratransferência e orientar a direção do tratamento dos casos supervisionados; e, por último, a teoria psicanalítica estaria referida ao registro do simbólico, pois lida com as estratégias de transmissão e de ensino da psicanálise.