ELISA ALVARENGA
Almanaque: A AMP foi reconhecida pela ONU como ONG e propõe, para 2012, uma ação política da psicanálise de orientação lacaniana no sentido de contribuir com o debate político contra a segregação. Por que a ideia de uma discussão no âmbito da AMP-América sobre o tema do álcool e drogas? De que forma a psicanálise pode contribuir com esse debate?
Elisa Alvarenga: A psicanálise de orientação lacaniana está presente de maneira significativa nos países da América Latina, que parecem ter vários pontos e problemas sociais em comum. Por isso, levei à última reunião do Conselho AMP-América — que inclui os Presidentes e Diretores das três Escolas da América, a EOL, a NEL e a EBP — uma proposta de trabalho em torno de um tema comum às três Escolas, já na perspectiva da AMP como ONG reconhecida pela ONU: é possível pensarmos, a partir da psicanálise, uma política para abordar os usuários de drogas? Essa ideia surgiu a partir da leitura de um texto de Éric Laurent: “Post-war on drugs? Como a psicanálise pode contribuir para um debate político sobre as drogas”, [1] em que ele se refere a um informe realizado a partir dos trabalhos da Comissão Latino-Americana sobre as drogas na democracia, composta por ex-Presidentes do Brasil, México, Colômbia e El Salvador, da qual Fernando Henrique Cardoso é membro. Fernando Henrique realizou um interessante documentário sobre as drogas, com entrevistas a autoridades políticas, sanitárias e a pacientes de vários países do mundo, visando a uma política de redução de danos, intitulado: “Quebrando o tabu”. No Brasil, como em vários países da América Latina, as drogas são um problema da máxima importância social, ligadas à violência que foi e é também notícia no México, Colômbia, etc. E, em alguns países da América, autoridades buscam interlocução com os psicanalistas em sua luta pela criação de políticas antissegregativas, tendo em vista as abordagens dos usuários de drogas realizadas pelas correntes cognitivo-comportamentais ou de orientação religiosa, que propõem internações de longa permanência. Em Belo Horizonte, o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais realizou, no último semestre, uma interessante Conversação Clínica com a coordenadora de Saúde Mental do Município sobre o tema: “Uma política para álcool e drogas — Como podemos contribuir?”. [2]
A pergunta que levei então ao Conselho AMP-América foi se não poderíamos contribuir para um debate político sobre as drogas e a violência nos países da América onde a psicanálise de orientação lacaniana está presente. Pensou-se, na reunião, que esse seria um tema para a rede TyA e os Institutos, a partir da pergunta colocada por Leonardo Gorostiza: de que maneira a AMP e suas Escolas, assim como o Campo Freudiano, podem abrir perspectivas para a psicanálise como força política no século XXI?
Almanaque: O tema de trabalho do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, neste semestre, é “A insistência da pulsão e o fracasso em psicanálise”. Partindo dessa perspectiva, a do fracasso, o que podemos pensar como contribuição no campo da política de álcool e drogas, considerando que o campo das políticas é, como afirma Milner (2007), [3] o campo da solução?
Elisa Alvarenga: Lacan, no Seminário 17, é claro: “não esperem de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a solução” (LACAN, 1992, p.66). Falando do discurso do mestre como avesso da psicanálise, Lacan coloca a questão do lugar da psicanálise na política: “a intrusão na política, ele diz, só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso — e não apenas o analítico — que não seja do gozo. (…) Tudo gira em torno do insucesso” (LACAN, 1992, p.74, 78).
Para Éric Laurent, a droga não é um produto solucionável e nos confronta com os limites do paradigma problema-solução, introduzindo a passagem a certa humildade. Se não há solução universal, teremos que passar ao múltiplo, a uma tolerância com relação ao impossível, o que implica uma modéstia ativa dos políticos, terapeutas, analistas, etc. Tentamos dar lugar à dimensão subjetiva e ao gozo da palavra, e seria interessante constituir um fórum no Brasil e, penso, em outros países da América, para influenciar os políticos nas decisões que têm importância. Laurent dá ênfase à possibilidade de se falar com os usuários, um por um, visando a cingir o sofrimento de cada um, bem como modos singulares de se responder aí.
Trata-se, portanto, de pensar uma política da modéstia, antiuniversal, pois a universalização só pode engendrar mais segregação (MILLER, 2003). Se Lacan, na “Proposição sobre o analista da Escola”, aponta que nosso futuro de mercados comuns ampliará os processos de segregação, ele propõe como missão à Escola, estar atenta às derivas universalizantes da ciência (LAURENT, 2011).
Almanaque: Na perspectiva de uma maior presença dos analistas da AMP nas discussões sobre esse tema, podemos pensar que se trata do que Lacan chama de uma psicanálise em extensão. De que forma podemos articular essa posição com a psicanálise em intensão?
Elisa Alvarenga: Parece-me interessante pensar uma política que alie o fórum — tomando, por exemplo, a pergunta: Como contribuir para um debate sobre as drogas? — e o passe, na medida em que ele foi feito para apontar o mais singular de cada um. Como observa Leonardo Gorostiza, os fóruns pertencem ao Campo Freudiano, enquanto o passe pertence às Escolas da AMP. O passe sem os fóruns como espaço de conversação com o exterior da Escola poderia levar ao esoterismo, ao passo que os fóruns sem o passe podem levar a um ativismo político sem princípios. Temos, nos Institutos, os instrumentos, os semblantes, que podem ser usados para abordar diversas situações clínicas e sociais pela AMP, que deve, no entanto, cuidar do real em jogo na formação dos praticantes.
Parece-me também interessante notar que foi depois de apresentar à sua Escola a “Proposição sobre o analista da Escola”, em 1967, que Lacan fundou o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, em 1969, criando, em 1977, a Seção Clínica. O Instituto do Campo Freudiano, fundado por Miller, em 1987, para desenvolver a tarefa de ensino e investigação, levando-a a outros países, parece vir a abranger as duas Seções inicialmente previstas no Ato de Fundação da Escola, a Seção de Psicanálise Aplicada e a Seção de Recenseamento do Campo Freudiano. Entre o Instituto e a Escola, deve, portanto, haver intervalo e articulação. Embora o Instituto tente ser o mesmo nos diferentes lugares, uma vez que ele prioriza o matema como forma de transmissão, cada Instituto trabalhará com as possibilidades de articulação com as Instituições e as questões sociais de sua cidade, onde estão lotados os membros da Escola que fazem parte do seu corpo docente. É a libido dos membros da Escola que alimenta, conforme os interesses de investigação de cada um, a produção de saber no Instituto, ao mesmo tempo em que o Instituto estimula, com o saber exposto, a suposição de saber nos membros da Escola, aos quais os analisantes se endereçam para sua formação.