SILVIA BAUDINI
Psicanalista, A.M.E. da EOL/AMP
sbaudini@yahoo.com.ar
Resumo: a autora apresenta a sua leitura do documentário Pequena garota, que aborda a questão do transexualismo e sua incidência nos corpos das crianças. Sua análise o articula ao discurso de nossa época, o que lhe permite dizer que se “na era vitoriana a histeria era a epidemia que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021”.
Palavras-chaves: transexual; crianças; corpos; impasse sexual.
LITTLE GIRL
Abstract: In this essay the author presents her thoughts on the documentary Little Girl that addresses transsexuality and its impact on children’s bodies. Her analysis articulates it to the discourse of our time wich allows her to say that if “in the Victorian era hysteria was the epidemic that explained the sexual impasse of the time, the trans cause is what is at stake today in the sexual impasse of 2021”. ”
Keywords: transsexual; children; bodies; sexual impasse.
Jacques-Alain Miller (2021) nos disse há um ano que a psicanálise corre e nós, analistas, corremos atrás, sempre atrasados[2]. A questão trans é um desses acontecimentos que nos fisgaram atrasados.
Embora na Argentina a Lei de Identidade de Gênero (lei 26.743) tenha sido sancionada em 9 de maio de 2012 e promulgada duas semanas depois, não começamos a questioná-la de maneira profunda até que Miller fizesse soar o alarme. Após as suas intervenções de março de 2021, posso identificar três questões centrais:
1) A escuta sem interpretação.
2) Os efeitos sobre a linguagem.
3) Os corpos a corrigir.
Pequena garota
Esse filme de Sébastian Lifshitz conta a história da vida de uma família confrontada com a experiência de uma criança que não sente que pertence ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Ao longo de um ano, o realizador filma e documenta momentos cruciais na vida de Sasha, de 7 anos, e sua família.
O documentário foi lançado em novembro de 2020, durante a pandemia, e recebeu críticas muito favoráveis por parte dos meios de comunicação. O jornal Le Monde [3] publicou o seguinte título: “Petite fille, a história da eclosão luminosa de uma criança transgênero”.
Benzine, uma webzine de essência cultural, diz: “Sasha é uma garota como qualquer outra, tirando o fato de ter nascido no corpo de um menino”[4].
As críticas entusiásticas atestam a delicadeza do filme e a qualidade do seu realizador. O respeito pela experiência atravessada por Sasha e sua família é evidente.
Em 9 de maio, na Web TV Lacan[5], ouvimos Caroline Eliacheff (psiquiatra infantil e psicanalista) e Céline Masson (psicanalista e professora universitária) falarem sobre seu livro, La fabrique des enfants transgenre (A fábrica de crianças transgêneros, em tradução nossa). Na capa, podemos ler: “Como proteger as crianças de um escândalo sanitário”.
Temos aqui dois níveis da questão: por um lado, o momento singular e íntimo na vida de uma criança confrontada com a marca significante sobre o corpo e sua família. Por outro, o empuxo atual midiático das redes, do movimento woke, da cultura do cancelamento da qual Eliacheff e Masson falaram na entrevista acima mencionada e do que as autoras chamam de “escândalo sanitário”. Em 29 de abril, ambas foram convidadas para dar uma conferência em Genebra sobre o livro, mas os militantes do CRAQ[6] (Collectif Radical d’Action Queer [Coletivo Radical de Ação Queer, em tradução nossa]) invadiram o local e impediram a palestra de acontecer.
Nesse ano e meio que transcorreu entre a estreia de Pequena garota e o episódio sofrido por Eliacheff e Masson, testemunhamos um aumento do empuxo à solução trans e, por outro lado, o crescimento daqueles que decidem destransicionar. O primeiro produz um apoio e uma militância sustentada, o segundo, por enquanto, impõe uma mordaça àqueles que o fazem e àqueles que o divulgam.
Durante esse ano e meio, Miller também nos advertiu sobre a questão ainda pendente e inquietante da questão trans e de seu aliado, o movimento woke e seus efeitos sobre a linguagem, e, portanto, sobre o discurso analítico, sobre a ameaça que ele representa para esse discurso e para a existência do inconsciente. Sou o que digo é a alocução que Miller propõe como expoente linguageiro da época.
O filme
Sasha, uma pequena menina, percorre o documentário com uma atitude aérea. Grande parte do peso desse filme recai sobre a mãe. Protagonista, ativa, angustiada, combativa, ela não cede do seu desejo. Ela diz: “Sei que esta será a luta da minha vida”. A garotinha a acompanha e, por trás de uma aparente decisão, segue pela via que sua mãe vai abrindo, disposta a fazer qualquer coisa para responder à demanda de seu filho.
Muito cedo, Sasha, aos 3 anos de idade, pergunta à mãe se ela vai ser uma menina quando crescer. Isso toca intimamente essa mulher, que se encontra ali com seu próprio desejo e seu próprio rechaço: o desejo de que essa criança fosse uma menina e sua decepção ao saber o gênero de seu filho. Ela formulará esse desejo em vários momentos, por exemplo, na entrevista com a psiquiatra, mas está presente em sua iniciativa, determinada em não deixar ninguém atrapalhar o que Sasha profere, “querer ser uma menina”. O desejo e a culpa materna estão presentes de maneira cristalina no documentário.
Os irmãos acompanham Sasha sem qualquer oposição ou questionamento sobre sua situação; seu pai concorda e acompanha.
A ignorância e a covardia das instituições desempenham um papel significativo: a escola que se nega a aceitar Sasha em sua singularidade, a professora de dança que expulsa Sasha empurrando, gentilmente, a porta em seu rosto, a psiquiatra que tem respostas e não faz nenhuma pergunta. O diagnóstico, como cataplasma, permite um alívio na mãe e uma desresponsabilização da medicina. Desse modo, a psiquiatra infantil não hesita um minuto em levar adiante a possibilidade da tão almejada transformação e, sem qualquer reserva, faz o atestado para a escola — o que me faz lembrar Freud e sua reserva em dar o atestado que o Homem dos Ratos lhe pedia para aliviar sua culpa.
O que impacta Sasha e produz sua angústia é a relação com o laço social representada por sua situação escolar, seus colegas, seus amigos. Seu choro angustiado ao falar da escola, lugar eminente do laço social, completamente perturbado, e que poderia perder, seria o ponto de ruptura de seu sou o que digo, mas isso não produz nenhum efeito, nenhuma pergunta. Rapidamente se entende que é porque ela quer ser uma pequena garota. No entanto, Sasha faz uma pergunta que é transmitida por sua mãe à psiquiatra, depois de ser expulsa do grupo de dança: “Ela me perguntou se lutar serve para alguma coisa”. A mãe responde: “Todos nós temos uma missão a cumprir e Sasha pode mudar as mentalidades”.
O excelente texto de Hélène Bonnaud (2020), publicado na revista Lacan Quotidienne, dá conta da rejeição à psicanálise implicada no encontro com a psiquiatra infantil “que detém um saber sobre essa questão e será a interlocutora de Sasha e da mãe no processo de transição” (BONNAUD, 2020, n/p, tradução nossa). Nesse texto, ela se pergunta, embora o caminho esteja aberto para que ela tome o lugar de uma menina: “Como seria para ser uma mulher?”.
A escola, em sua recusa dogmática, também coloca em jogo o não quero saber nada disso, sobre aquilo que irrompe no real de um sujeito ainda criança, para finalmente ceder, com uma aceitação administrativa, a um certificado médico que permitirá a Sasha ir à escola como uma menina.
A lei
Em Todo el mundo es loco, Miller (2015) nos diz que, nos dias de hoje, os direitos estão à frente dos deveres. A lei de identidade de gênero da Argentina é pioneira no mundo. Atualmente, na Espanha está sendo discutida uma lei que envolve as questões que em 2012 foram sancionadas em nosso país. Os colegas na Espanha, através da Fundação para a Clínica Psicanalítica de Orientação Lacaniana (FCPOL), estão preparando documentos para serem incluídos na redação dessa lei, para que ela não faça desaparecer a possibilidade de interpretar, quer dizer, de fazer existir o inconsciente. Eles colocam ênfase especial em seu texto sobre as crianças e a prudência necessária na administração de hormônios e intervenções cirúrgicas em menores[7]. A École de la Cause Freudienne (ECF), recentemente, em dezembro de 2021, conseguiu introduzir modificações em um projeto de lei que impede a realização de terapias de conversão, tornando possível a inclusão da escuta psi.
A lei argentina tem uma característica marcante: ela elimina, uma a uma, qualquer instância que permita interrogar, abrir um tempo para compreender a livre escolha do gênero; é uma lei que desliza suavemente, flui, e qualquer um pode ser tentado a entrar nesse trem. Quando eu digo qualquer um, é claro que é no sentido figurativo. Penso de fato na desorientação subjetiva e no que Lacan nos diz em “Televisão”: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele” (LACAN, 1973/2003, p. 533). E aqui o Outro não está separado[8].
O que significa dizer que o Outro é separado? Lemos em Mais, ainda: “(…) é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa” (LACAN, 1972/1973, 1985, p. 52). Isso quer dizer que há uma hiância, um espaço, até mesmo um abismo, entre o que se diz e o que isso quer dizer. Suportar esse espaço é dever do analista, suportar no sentido de ser suporte, comprometer com sua presença: “Estou lhe dizendo que você está dizendo algo diferente do que você quer dizer”. Isso é o que Miller quer dizer quando nos adverte sobre a escuta sem interpretação. Anaëlle Lebovits-Quenehen (2021) diz que Miller, com a “questão trans”, assinala um impasse no discurso comum, não sem efeitos potenciais no discurso analítico.
Todo erro é sexual
“Tudo o que tem a ver com sexo sempre está errado. Todo erro é sexual” (MILLER, 2013, p. 64, tradução nossa).
O capítulo I da Lei n. 26.743 dispõe sobre o direito à identidade de gênero e suas consequências jurídicas: reconhecimento civil, livre desenvolvimento e o de ser tratado de acordo com a escolha de gênero. Ela apela para a não discriminação contra aqueles que não se reconhecem em uma norma. Nós, analistas, sempre trabalhamos nesse sentido, não advogamos por nenhuma norma. A psicanálise tem apenas uma prescrição: associação livre e uma exigência (que a pandemia perturbou): a presença dos corpos no mesmo espaço físico; o paciente deve trazer seu corpo para o consultório.
Pois bem, a esse direito humano, que está estabelecido no artigo 1º da lei e que nós celebramos, seguem-se uma série de artigos que, na minha opinião, são extremamente perigosos, porque não se trata apenas de um direito, mas, no extravio contemporâneo do modo de gozo, pode ser um empuxo, uma incitação, uma “revelação”. E o corpo já está comprometido com o assunto, o corpo como um objeto de “modificações”. Segue uma lista de quais, eventualmente, poderiam ser essas modificações: da aparência ou funções corporais através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, sempre que seja “livremente” escolhida. Atrevo-me a chamar essa enumeração de “provocadora”, uma vez que está escrita com a força de uma lei. A liberdade contida na palavra “livremente” é uma petição de princípios, pois ninguém age sobre esse julgamento, nem sobre quem o faz, nem de onde ele é feito; pelo menos a lei não o prescreve.
Miller, em La fuga del sentido, cita “Cortejo”, um poema de Prévert, e faz referência à enumeração feita pelo poeta como a presença da pulsão de morte, assinalando para “o domínio do significante sobre as significações humanas” (MILLER, 2012, p. 88, tradução nossa).
- Bonnaud continua em seu texto:
“O tempo para crescer e escolher é essencial. Esse tempo do qual Sasha foi privada ao ser informada de que ela é uma menina e que tudo o que ela não tem para ser uma menina lhe será retirado… mas fica uma resposta que afirma o gênero como determinado pela imagem do corpo” (BONNAUD, 2020 n/p.).
“Uma criança se autopercebe”: poderia ser esse o nome que hoje toma o “Bate-se numa criança” freudiano? Em outras palavras, a presença do Outro é apagada e o discurso da criança é transformado em uma palavra monolítica, uma holófrase, como disse Jacques Lacan. O valor metafórico da palavra perde seu lugar, a palavra se aproxima cada vez mais do real. As equipes médica e psicológica que recebem as crianças que desejam fazer a transição têm uma mordaça autoimposta? Ou, antes, o outro social representado pelas associações trans, a mídia, laboratórios, etc., etc., impõe uma sanção à equipe se eles não autorizarem a palavra monolítica. Perguntar, quer dizer, “(…) interpretar, não equivale nem a ‘julgar’, nem a ‘rechaçar’, nem a ‘negar’ (…)” (LEBOVITS-QUENEHEN, 2021, n/p.).
Em “Dócil ao trans” (2021), Miller nos lembra que Lacan elogia Freud por ter sido dócil à histérica e se pergunta se ele poderia felicitar o praticante de hoje por ser dócil ao trans. Como podemos ler isso?
Assim como na era vitoriana a histeria era a “epidemia” que explicava o impasse sexual da época, a causa trans é o que está em jogo hoje no impasse sexual de 2021. Por que ano trans e não século ou década? Porque dá a indicação de um lugar efêmero, que não assume a consistência que pode ser nomeada em termos de época, era, século, etc.
Dócil ao trans é a forma de dizer do compromisso do psicanalista com o tempo e o lugar em que vivemos e praticamos a psicanálise.
Alteridade real
O nome do pai, a função simbólica, a ordem simbólica, figuras, lugares de alteridade têm perdido a autoridade. Lacan, em seu Seminário 19: …ou pior, diz que o pai é quem surpreende, quem bate na mesa, quem impacta. Ele vincula a função do pai ao trauma. E também a função do analista ao trauma[9]. A alteridade da época é o trauma.
O trauma como disrupção de lalíngua sobre o corpo faz desse corpo um corpo falante. A experiência de um corpo que erra, que não se adequa; a experiência de uma palavra que também erra e falha ao dizer. Freud, em “Estudos sobre histeria”, escreve:
“Devemos antes presumir que o trauma psíquico — ou mais precisamente, a lembrança do trauma — atua como um corpo estranho que muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um importante interesse prático para nossas descobertas” (FREUD, [1893/ 1996], p. 42).
O gozo é profundamente hétero para cada um, incompreensível, insuportável, impossível. A questão trans na infância apaga a diferença sexual, porque nunca se trata de sexo, mas de gênero. Poderíamos até dizer gênero humano, não vamos descartar o desejo de transição para o não humano. Esses são desvios a serem corrigidos. Se o erro for eliminado, o sexual desaparece.
O inconsciente é incorrigível, lapsos, sonhos, chistes são as faíscas que iluminam o caminho para a opacidade do sintoma, sintoma que implica em saber ler de outro modo.
A lei e o direito normatizam, se movem no campo do para todos. Eles protegem o cidadão, mas não resolvem o singular da relação com a sexualidade. E isso não pode ser corrigido, só pode se esclarecer a fim de tornar a vida vivível.