TÂNIA MARIA LIMA ABREU
A.E. (2020-2023) EBP/AMP
taniaabreu.ta@gmail.com
Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa que tomou como eixo o documentário Pequena garota e as leituras que dele a autora pode fazer a partir de textos e vídeos com os quais dialogou.
Palavras chaves: infância; trans; sexuação; gozo.
Childhood is Trans
Abstract: This article is the result of a research that had as its guide the documentary Little Girl and the readings that the author could make of it through texts and videos with which she dialogued.
Keywords: childhood; trans; sexuation; jouissance.
Trata-se de um lindo documentário dirigido por Sébastien Lifshitz, que chegou aos cinemas e às plataformas digitais em dezembro de 2020. O longa emociona ao contar a história real de Sasha, uma criança de 7 anos que sempre soube que era uma garota, embora tivesse nascido menino, caracterizando, assim, o que no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 6 (DSM 6) aparece como disforia de gênero. Durante um ano o diretor acompanhou a pequena Sasha e sua família, que residem na Alta França (Hauts-de-France). O filme, com muita sensibilidade (o que não impediu de tamponar, com saber, a castração), foi selecionado no Festival de Berlim e garantiu o prêmio de melhor longa-metragem internacional do Festival de Cinema Mix Brasil.
Meu comentário se divide em duas partes, seguindo o que o título, por mim escolhido, aponta. Assim, parto da ideia de que a infância é trans e, depois, me dedicarei às reticências.
Na versão em vídeo (que circulou na Lacan WEB TV), Daniel Roy (2021a), retomando Freud, nos relembra que uma desarmonia entre o que acontece no corpo e as palavras é característico da sexualidade infantil, mas, hoje, ter “nascido em um corpo errado” é um “passaporte” para ser enquadrado em uma transidentidade, como se as crianças, em suas pesquisas infantis, em sua latência, não pudessem ter dúvidas, ambiguidades e qualquer transitoriedade. Como nos adverte Roy, “não há caminho normal para a sexuação”, tampouco uma instância interna ou externa à criança que possa julgar se o próprio corpo é um bom ou um mau corpo. Sigo Roy ao afirmar que nas crianças há afetos e sintomas, mas dos quais só saberemos se as escutarmos. E por falar em sintomas, relembro Maleval (2021) que, também em vídeo da Lacan Web TV, nos sublinhou que a disforia de gênero — nomeação que acalma algumas crianças, por encontrarem um lugar no discurso do Outro — nem sempre é o problema maior, visto que pode vir acompanhada de outros sintomas, tais como anorexia, autismo ou perturbações de humor.
Ainda na direção da minha pesquisa nos áudios da Lacan Web TV, chamou a atenção o que disse Hélène de La Bouillerie, a propósito do prefixo “dis”: “Na experiência com crianças, na prática clínica, é comum encontrarmos crianças diagnosticadas ‘dis’: dislexia, disortografia, discalculias, dispraxia…”. Diagnósticos que fazem série àqueles de outras letrinhas, tais como TDAH, TOC entre outros. A propósito disso, Roy nos diz que:
“Talvez tenhamos agora a fala e o espírito com mais liberdade para nos confrontar com essa criança-terrível, a hiperativa, os ‘dis’ (dis: elemento que significa dificuldade, problema, por exemplo: dislexia), aquele que morde, aquele que não dorme, e aos seus pais exasperados, aflitos ou desesperados” (ROY, 2012, n/p).
No ano de 2005, Miller, no curso Piezas sueltas, na aula de 19 de janeiro de 2005, segundo Roy, adverte para:
“(…) a questão da continuação da psicanálise na época da leveza”. Ele destaca que, face a esse ‘domínio da leveza’ — que visa a conduzir o sujeito da sua particularidade ao universal — a psicanálise não tem que entrar ‘em uma competição de poder terapêutico’, uma vez que, com Lacan, ela é a única a levar em conta o lugar do objeto a, tanto quanto como causa do desejo, como mais-de-gozar, mas, também, como consistência lógica, como um real ‘produto do simbólico’. Ele nos encoraja a tomar um ponto de vista ‘pragmático e de bricolagem’, que consiste em procurar, com os sujeitos, os significantes — os S1 —, que ‘ajudam a deixar legível o gozo’ e, portanto, ‘ajudam a deixar legível a história’” (ROY, 2012, n/p).
Assim, escutem as crianças: elas têm o que dizer, sobretudo sobre o mal-estar que lhes afeta o corpo. Posição, como mencionada acima, absolutamente freudiana — um pouco mais adiante, retomarei a questão da bricolagem, ao dialogar com Fórum Zadig (2021).
Para esta conversação, retomei um texto de Freud intitulado “O esclarecimento sexual das crianças” (1907), uma carta aberta endereçada ao Dr. Michael Fürst. Ali, encontrei a ferrenha defesa de Freud sobre a importância de se falar às crianças e, consequentemente, de escutá-las em suas curiosidades sexuais. Freud argumenta que:
“(…) certamente são a habitual hipocrisia e a própria má consciência em questões de sexualidade que levam os adultos a fazer mistério diante das crianças; mas é possível que influa nisso alguma ignorância teórica, contra a qual podemos agir mediante o esclarecimento dos adultos” (FREUD, 1907/2015, p. 221).
Passagem que se assemelha ao segredo de família, que, com Lacan, sabemos ser sempre um algo não dito sobre o gozo.
Na sequência, Freud traz o equívoco à tona, reinante, à época, nas famílias, nos educadores e na sociedade, ao suporem que “falta às crianças o instinto sexual, que somente na puberdade ele aparece, com o amadurecimento dos órgãos sexuais. Isso é um erro grosseiro, de sérias consequências para o conhecimento e para a prática” (FREUD, 1907/2015, p.221). Ainda, para Freud:
“Na verdade, o recém-nascido vem ao mundo com a sexualidade, determinadas sensações sexuais acompanham seu desenvolvimento no período da amamentação e da primeira infância, e pouquíssimas crianças deixariam de ter atividades e sensações sexuais antes da puberdade” (FREUD, 1907/2015, p.221).
O que, em termos lacanianos, quer dizer que as crianças gozam! Perversão polimorfa é gozo. Em sua argumentação, Freud segue, afirmando que:
“O que a puberdade faz é conferir aos genitais a primazia entre todas as zonas e fontes geradoras de prazer, forçando o erotismo a pôr-se a serviço da função reprodutiva, um processo que naturalmente pode sofrer certas inibições e que em muitos indivíduos, os futuros pervertidos e neuróticos, efetua-se apenas de modo incompleto. Por outro lado, bem antes de alcançar a puberdade a criança é capaz da maioria das atividades psíquicas da vida amorosa (ternura, dedicação, ciúme) e, com alguma frequência, a irrupção desses estados psíquicos vem acompanhada das sensações físicas da excitação sexual, de maneira que a criança não tem dúvida quanto à relação entre as duas coisas. Em suma, bem antes da puberdade, a criança é, tirando a capacidade de reprodução, uma criatura amorosa completa … O interesse intelectual da criança pelos enigmas da vida sexual, sua curiosidade sexual, manifesta-se insuspeitadamente cedo, portanto” (FREUD, 1907/2015, p.221).
Há um ponto que não desenvolverei, mas que gostaria de ressaltar, por permitir atualizar o texto freudiano ao confrontá-lo com o texto de Roy (2021b), uma vez que, ali, localizamos o lugar privilegiado do mal-entendido que transmite o gozo: “(…) a família está, daqui em diante, mergulhada no banho de nossa civilização, onde os objetos vindos da tecnologia, os objetos mais-de-gozar, se tornaram a autoridade e fundaram a lei de todas as formas de ideal. O gozo está aí em primeiro lugar” (ROY, 2021b).
Em um dos seus últimos seminários, de 10 de junho de 1980 — intitulado, por Jacques-Alain Miller, “O mal-entendido” —, Lacan extrai as consequências e evoca “(…) dois falantes que não falam a mesma língua (…), dois que se conjuram para a reprodução, mas por um mal-entendido realizado (…)”, dando a vida, transmitem esse mal-entendido (LACAN, 1980/2016, p. 11). Trata-se, aqui, de um mal-entendido que se refere ao gozo, acrescenta Roy.
Aí estão dadas as condições para podermos afirmar que a infância é trans, na acepção de transitar e transportar. A criança curiosa pergunta, investiga, hipotetiza, experimenta o seu corpo e o corpo do outro, identifica-se e, desse modo, exerce a sexualidade infantil. Identificações livres, influenciadas pelo afeto e pela pulsão, mas, também, livres em sua diversidade. Identificação que não se guia tanto pelo Outro, mas pelo gozo que habita o próprio corpo.
O enigma da diferença sexual não escapa a essa lógica infantil, e, como preconiza Roy (2021a), em vídeo já referenciado, seguindo Freud, “é um momento no qual a criança está só”, momento de crise, no qual descobre que o Outro é barrado, não possui respostas para tudo. Por outro lado, o fato de ser esse o caminho para todos, “a crise é a norma”, “não há um caminho padrão para encontrar sua via para sua sexuação”, completa. Freud nomeou essa fase de latência, aquela na qual o gozo, advindo do sexual, é desviado para atividades sublimatórias e fixa o sujeito em seu modo de gozar.
Partamos, agora, para o que me despertou atenção no filme, tendo como eixo norteador Sasha, sua família e, dentro dela, a relação mãe-criança.
Trata-se de uma família de quatro filhos, sendo a mais velha uma adolescente e os outros três nascidos meninos. Ao longo do filme, escutamos a mãe de Sasha, em consulta com um psicólogo, dizer de seu desejo de ter uma menina durante a gravidez de Sasha — único dos quatro filhos que possui um nome comum aos dois gêneros. É notório que Sasha nasceu em uma família amorosa e teve a sorte de ter uma mãe que olhava para cada filho em sua singularidade, embora tenha ficado claro o idílio amoroso que havia entre ela e Sasha, o que, por vezes, deslocava seu olhar dos outros filhos.
O pai, aquele que só tem direito ao amor e ao respeito ao fazer de uma mulher objeto a causa do seu desejo e se ocupar dos seus produtos, como nos ensinou Lacan (1974/1975), me pareceu bem em sua função de cuidar do produto Sasha, mas inoperante para barrar o desejo da mãe. Seu discurso é de normalizar o que se passava com a criança, não podendo alcançar o sofrimento que a atingia.
No tocante à mãe, é interessante como ela é sensível e se questiona sobre a força do seu desejo, mas o diretor do filme opta pela via do saber, aqui, representado pela psiquiatra infantil Anne Bargiacchi, do hospital Robert Debré, em Paris, que, de um golpe, elimina qualquer lugar tanto para o desejo quanto para o discurso psicanalítico: não sabemos a causa da disforia, mas não é fruto do desejo dos pais. Nesse ponto, detenho-me no vídeo que Fabian Fajnwaks (2021) gravou para a 6e Journée d’étude de l’Institut psychanalytique de l’Enfant, no qual observou que as diferentes teorias do gênero e dos terapeutas querem “abordar a sexuação pelo viés do semblante, modo de gozo feminino ou masculino, curto-circuitando o Outro, e, como se o Outro não existisse, abolem o desejo (…)” (tradução nossa).
A partir daí, o que se vê é que a psiquiatria, tal como representada no filme, não deixou espaço para que o dito de uma criança pudesse ser escutado, o que, com o tempo e sob transferência, poderia ser transformado em um dizer. Afinal, Sasha afirmou que queria ser uma menina quando crescesse. A família passa a travar uma cruzada contra a escola na qual estudava e nas aulas de ballet, que não a aceitam porque, na certidão de nascimento, está registrado menino, ignorando o que recomendou Roy:
“Existe a possibilidade de uma criança decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais como ‘causa de seu desejo’ e ‘como dejeto de seu gozo’. Esse deciframento, uma criança o faz com os significantes que ela retira, que tomam o valor singular do gozo pulsional que os flexibiliza. Essa é a função privilegiada do jogo da criança, que enoda, em volta do objeto indizível, as extremidades do corpo, os fios de gozo e os fragmentos de discurso. Esse objeto é a válvula que abre, entreabre ou fecha, o espaço para uma separação” (ROY, 2021b).
Para concluir a primeira parte do meu trabalho, continuo com o referido texto de Roy, mas, agora, colocando-o frente a frente com o evento Zadig, recém ocorrido na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Nele, destaco a passagem
“Nós partimos, pois, de um outro ponto de vista, colocando que não existe ser falante que não seja de uma família, o que abre então muitas perspectivas para todos aqueles que estão numa situação delicada com suas famílias ou que se consideram “sem família”, mas também para todos os outros. Para cada criança, protegida ou abandonada, existem possibilidades de bricolagem. Respondendo a uma lógica do não-todo (pas-tout), a instituição ‘família’ oferece outros recursos: aqueles, para as crianças, de serem não-todo (pas-tout) dependentes das identificações familiares, não-todo (pas-tout) dependente do amor, filial e parental, quer dizer, de poder explorar as facetas menos amáveis. E isso vale também para os seus “parceiros no jogo da vida”, pai, mãe, padrasto, madrasta e outros ‘familiares’” (ROY, 2021b).
Do Fórum Zadig, ocorrido em 1º de julho de 2021, retiro a entrevista com Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari, e os ensinamentos extraídos dos dez minutos que nos concedeu, sobretudo no tocante à relação dela com a moda, que, ao vestir a própria pele, a liberta.
Sasha e Are têm, ambas, uma paixão que, entretanto, encontrou destinos distintos. Are relata como tem sido libertador cuidar de sua pele, por intermédio da moda. Sasha, uma criança cujo discurso foi, segundo Maleval (2021), tomado como “discurso científico”, não foi ouvida naquilo que a movia: a dança. A tristeza no olhar de Sasha poderia ter sido interpretada como a de quem não podia fazer o que o desejo lhe apontava? Nesse contexto, o da “bricolagem” acima citado, podemos questionar: Sasha poderia ter sido um “menino bailarino”? Bricolagem, por esse prisma, com o que a pulsão vivificava em seu corpo, ressonância do eco de um dizer? Teria sido essa sua saída sinthomática, seu modo de ser mulher?
Parto, agora, para as reticências…
É do conhecimento de todos que Jacques-Alain Miller denominou o ano de 2021 como “ano trans”. Toda nomeação implica alguma fixação. No campo epistêmico, estamos ainda no instante de ver, de produção de ideias decorrentes dessa fixação, cabendo, então, dúvidas: o que é um trans? Binário ou não binário? O que é sexo fluido? Necessitaremos de algum tempo para compreender o que é um fenômeno global, atemporal e diverso: a teoria do gênero. Eric Marty (2021), entrevistado por Jacques-Alain Miller sobre seu recém-lançado livro, O sexo dos modernos, elevou tais teorias à categoria de “última grande mensagem ideológica do ocidente ao resto do mundo”, destacando suas influências jurídicas em diversas democracias.
Diante da diversidade que o tema impõe — e assim deve ser tratado, a meu ver —, detenho-me agora em uma pequena digressão, contida no título do meu trabalho: as reticências, pois eles me levarão a tratar de outra fixação.
O que são as reticências? Quando usá-las? Em que contexto? A sua presença no título do meu trabalho levou-me a pesquisar as suas origens, e eis que me deparo com uma etiologia latina para os três pontinhos, que significam algo implícito. O que há de implícito no momento “trans”, que, de uma década para cá, assolou o mundo, levando as crianças em seu movimento? Será que a onda “trans” do mundo adulto pode ser “transportada” para o infantil que, em si, é uma transmutação por estrutura?
A infância é, por estrutura, “trans”: transição, transformação, transgressão. Mas, sobretudo, “transfixão”. Essa palavra é dicionarizada e significa um método de amputação cirúrgica em que se transpassa o bisturi de lado a lado, dividindo os músculos de dentro para fora, segundo o Michaelis. Qualquer semelhança com o que temos presenciado ao nível do esmagamento do infantil pelo discurso do adulto não é mera coincidência. É de “fixão” que se trata quando a ficção infantil é atravessada pelo discurso do Outro.
Freud nos legou o conceito de fixação, Lacan inventa a “fixão”. A criança do século XXI está a nos presentear, com sua divisão desde dentro, com os efeitos em seu corpo do Discurso do Mestre, aqui representados pela Ciência e pelas leis. Quem vem primeiro? Quem serve a quem? Isso não interessa ao infantil, pois, sobre ele, tombam os efeitos daí transportados. Se o músculo se divide de dentro para fora, a criança se divide de fora para dentro, a partir do que vê e ouve.
Voltemos às reticências, sem perder de vista que, além de apontarem para uma interrupção da frase, elas transmitem sentimentos: surpresas, dúvidas, suspense… Elas animam um texto! Eis o que interessa nesses pontinhos: a arte da vivificação que, no nosso affaire, tem como caminho privilegiado a prática clínica.
O que a psicanálise pode oferecer aos sujeitos falantes que sofrem por uma inadequação entre corpo e discurso? É de leitura do sintoma que se trata: encontro de significante e corpo.
Concluo lembrando que os significantes menina ou menino fazem eco no corpo de modo singular e o fazem gozar, uma vez que “um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972–73/2008, p. 29), desde que tal gozo seja corporizado de modo significante. Sasha nos demonstra que, no sexo, não há nada mais que uma questão de cor, como ensina Lacan: “pode haver mulher cor de homem, ou homem cor de mulher” (LACAN 1975–1976/2005, p. 112).